ISSN 2176-6983 INTERAÇÕES ENTRE AS ATIVIDADES PESQUEIRAS E OS CETÁCEOS NA REGIÃO ENTRE CONDE/BA E PIAÇABUÇU/AL Victor Roncaglione Sousa Discente do Curso de Medicina Veterinária, Faculdade Pio Décimo, [email protected] Juliana Plácido Guimarães Doutora em Ciências, Fundação Mamíferos Aquáticos, Integrante do Núcleo de Estudos dos Efeitos Antropogênicos nos Recursos Marinhos - NEARM [email protected] Jociery Einhardt Vergara-Parente Doutora em Ciências Veterinárias, Fundação Mamíferos Aquáticos, Líder do Núcleo de Estudos dos Efeitos Antropogênicos nos Recursos Marinhos - NEARM [email protected] Eixo temático 2: Atores, territórios e territorialidades da pesca no Brasil Resumo A captura acidental em redes de pesca é considerada a interação antrópica mais relacionada à mortalidade de cetáceos. No presente estudo foram avaliados os encalhes ocorridos entre norte da Bahia e Sul de Alagoas no período de março de 2010 a novembro de 2011 relacionando-os com as interações em artefatos de pesca. Para tanto foi utilizado o banco de dados da Fundação Mamíferos Aquáticos, e entrevistas semiestruturadas com pescadores locais. Evidenciou-se neste trabalho a captura intencional e acidental da espécie Sotalia guianensis na área de estudo. Desta forma observa-se uma necessidade urgente de se aprofundar estudos sobre este aspecto para garantir a conservação dos cetáceos nesta região. Palavras-Chave: mamíferos marinhos, odontocetos, artefatos de pesca. Introdução A atividade pesqueira caracteriza-se por apresentar, uma evolução progressiva, de acordo com a necessidade de obtenção de proteína animal de alta qualidade em função do aumento populacional. Nos últimos anos, a pesca apresentou verdadeiros saltos tecnológicos, deixando de ser uma atividade extrativista para sobrevivência, para se transformar em uma técnica que envolve do mais simples artefato aos mais sofisticados métodos (GAMBA, 1994, p.94). 1 ISSN 2176-6983 No que se refere às atividades pesqueiras, segundo o Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras da Unidade Operacional Sergipe Alagoas da Petrobras PEAC/UO-SEAL/PETROBRAS denominado Projeto de Monitoramento Participativo do Desembarque Pesqueiro – PMPDP, existem pelo menos 91 comunidades atuando na pesca na área situada entre os municípios de Conde/BA e Brejo Grande/SE (PETROBRAS, 2010, p.167). Nesta área predominam a pesca amadora que visa o turismo, lazer ou desporto, e o produto da atividade não pode ser comercializado ou indstrializado; pesca de subsistência que tem como principal objetivo a obtenção de alimento, não tendo finalidade comercial, sendo praticada com técnicas rudimentares; e a pesca artesanal que inclui tanto as capturas com o objetivo comercial associado à obtenção de alimento para as famílias dos praticantes, como para a comercialização do produto e os principais artefatos utilizados na pesca de subsistências e artesanal são as redes de emalhar, arrastão de praia, tarrafa, linha de mão e pequenas redes de arrasto manual (PETROBRAS, 2010, p.167). A ação antrópica é hoje um dos principais fatores motivadores de discussões no que diz respeito ao encalhe de mamíferos aquáticos, seja por atividades de pesca, colisão com embarcações, derramamento de óleo, lixo urbano e industrial, poluição do meio aquático ou ruídos intensos provocados por algumas embarcações (GERACI; LOUNSBURY, 1993, p.126). As interações entre cetáceos (baleias, botos e golfinhos) e atividades pesqueiras podem ser verificadas em todas as regiões onde ambos estão presentes (DI BENEDITO; SICILIANO; RAMOS, 2010, p.41). Estima-se que aproximadamente 100.000 espécimes de cetáceos, especialmente golfinhos de pequeno porte, se prendam acidentalmente em artefatos pesqueiros em todo mundo, sendo que grande parte dos enredamentos resulta em morte dos animais (IWC, 1994, p.43). No Brasil, a captura acidental é considerada dentre as interações antrópicas a mais comumente associada à mortalidade dos golfinhos (DI BENEDITTO, 2004, p.34). Dentro desse contexto, esse estudo tem como objetivo realizar um levantamento das atividades pesqueiras e dos encalhes de cetáceos ocorridos entre os municípios de 2 ISSN 2176-6983 Conde/BA e Piaçabuçu/AL no período de março de 2010 a novembro de 2011, a fim de verificar a existência de relação entre estes. Material e Métodos Área de Estudo O presente estudo foi desenvolvido na área das praias situadas entre o município de Conde, na Bahia e Pontal do Peba, em Alagoas. Esta área possui aproximadamente 275 km de extensão (Figura 1), sendo nesta faixa territorial desenvolvido o Programa Regional de Monitoramento de Encalhes e Anormalidades na Área de Abrangência da Bacia Sergipe-Alagoas - PRMEA, criado pela Petrobras, em atendimento às exigências instituídas pelo IBAMA estabelecidas pela Coordenação Geral de Petróleo e Gás (CGPEG) para o licenciamento ambiental de atividades de exploração e produção de petróleo e gás e executado pela Fundação Mamíferos Aquáticos (FMA). Figura 1 - Área de atuação do Programa Regional de Monitoramento de Encalhes e Anormalidades na Área de Abrangência da Bacia Sergipe-Alagoas - PRMEA. 3 ISSN 2176-6983 A área de estudo compreende dez municípios, sendo dois no extremo norte da Bahia: Conde e Jandaíra, sete ao longo do litoral Sergipano: Estância, Itaporanga d’Ajuda, Aracaju, Barra dos Coqueiros, Pirambu, Pacatuba e Brejo Grande e um no extremo Sul do litoral de Alagoas: Piaçabuçu. Destes, quatro municípios foram escolhidos de forma aleatória e por disponibilidade de deslocamento, sendo eles: Aracaju, Pirambu, Barra dos Coqueiros e Piaçabuçu, com os dois primeiros considerados os principais portos de pesca da área de estudo. A zona costeira do estado de Sergipe possui uma linha de costa com 163 km de extensão estando compreendida entre os rios São Francisco, ao norte e Piauí/Real, ao sul e apresenta diversidades de aspectos físicos, biológicos e socioeconômicos (CARVALLHO; FONTES, 2006, p.13). Nessa área, a plataforma continental interna apresenta grandes variações de largura devido à presença dos canyons do São Francisco, Sapucaia, Japaratuba, Vaza Barris e Real (COUTINHO, 1995), que são formados principalmente pelo rebaixamento do nível do mar e pela presença de correntes fluviais de reconhecida competência e capacidade (VAN BERCKEL, 1976, p.10). Metodologia Para se obter uma relação entre os cetáceos encalhados na área de estudo e as atividades pesqueiras, utilizou-se dois instrumentos: Entrevistas com Pescadores: Foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas no período de setembro a dezembro de 2011 sendo os entrevistados selecionados por serem pescadores ativos e possuir disponibilidade para participar da pesquisa de forma voluntária. Durante as entrevistas foram abordados os seguintes aspectos: perfil do entrevistado (nome e idade), modalidades de pesca, espécies-alvo, capturas de espécies não-alvo (em especial os cetáceos), sazonalidades dos recursos e medidas da malha das redes Banco de Dados de Encalhes: utilizaram-se os dados entre março de 2010 a novembro de 2011 do Programa Regional de Monitoramento de Encalhes e Anormalidades na Área de Abrangência da Bacia Sergipe-Alagoas - PRMEA, conforme citado anteriormente, este é executado pela FMA por meio de monitoramentos diários das praias, realizados a pé, de moto ou de triciclo por monitores devidamente 4 ISSN 2176-6983 capacitados, informações de encalhes oriundas por demanda também foram consideradas, isto é, aquelas em que a comunidade local informa o registro. Todas as informações sobre os animais encalhados tais como: número de registro, local da ocorrência, espécie, classe etária, sexo, status (vivo ou morto), condição de conservação da carcaça, presença de marcas, cicatrizes e ferimentos, foram obtidas a partir do levantamento do banco de dados da FMA, que segue o Protocolo de Conduta para Encalhes de Mamíferos Aquáticos (IBAMA, 2005, p.17). Resultados e Discussão No presente estudo observou-se que em Aracaju/SE e Pirambu/SE se realiza a pesca estuarina e marítima, utilizando canoas e embarcações do tipo camaroeira e que grande parte dos pescadores utiliza redes de espera conhecidas como “redes de caceia”, sendo essas colocadas tanto no fundo como na superfície da água (caceia afundada e caceia boiada, respectivamente) e redes de arrasto. Essas mesmas características da pesca foram observadas pelo Projeto de Monitoramento Participativo do Desembarque Pesqueiro – PMPDP, acima descrito, na área situada entre os municípios de Conde/BA e Brejo Grande/SE (PETROBRAS, 2010, p.167). Todos os pescadores entrevistados na área deste estudo afirmaram ter contato frequente com mamíferos, aves e tartarugas marinhas, porém a maioria dos entrevistados demonstraram receio em abordar assuntos relacionados aos cetáceos, principalmente os botos. Segundo os pescadores locais, a captura de cetáceos em redes de pesca é rara, e quando ocorre é acidental, no entanto quando questionados qual seria o destino dado aos animais caso ocorresse um evento de captura acidental, a resposta mais freqüente foi que descartariam o animal, tanto vivo quanto morto, para não serem prejudicados por instituições de fiscalização como, por exemplo, o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Segundo Zerbini et al. (1999, p.34) a captura acidental em atividades de pesca é considerada atualmente o fator mais comumente associado à mortalidade de Sotalia guianensis. Por meio dos dados dos encalhes de cetáceos obtidos pelo banco de dados da FMA, pode-se observar que no período de março de 2010 a novembro de 2012, um 5 ISSN 2176-6983 total de 43 animais encalharam na área de estudo, porém somente 11 espécimes apresentavam marcas sugestivas de interação com artefatos de pesca, sendo que 82% desses animais eram da espécie Sotalia guianensis (boto-cinza) (Figura 2), o mesmo encontrado por Hubner et al. (2007, p.1) em trabalho sobre interações negativas entre Sotalia guianensis e atividades pesqueiras no litoral de Sergipe, sendo que dos 36 encalhes de boto-cinza registrados entre os anos de 2000 a 2007, 21 espécimes apresentaram marcas sugestivas de enredamento. Figura 2– Registros de marcas de redes de pesca encontradas em animais encalhados entre março de 2010 e novembro de 2011 desde o litoral de Conde/BA a Piaçabuçu/AL. A- Observa-se marcas retilíneas caudal a nadadeira peitoral esquerda. B e C - Nota-se marcas em forma de “X” espalhadas pelo corpo do animal. D- Evidenciam-se marcas de rede no pedúnculo caudal do animal. O número pequeno de animais com marcas sugestivas de interação com artefatos de pesca em nosso trabalho (25,6%) pode ser devido ao avançado estado de decomposição em que a maioria dos animais se encontrava, inviabilizando um exame externo detalhado, bem como a determinação do sexo, comprimento e identificação da 6 ISSN 2176-6983 espécie de alguns exemplares, fato este também reportado por Medeiros (2006, p.24), Santos et. al (2003, p.234) e Silva e Siqueira (2003, p.90). Para este estudo foi verificado que o principal artefato de pesca relacionado com o emalhe de boto-ciza é a rede de espera, popularmente conhecida como “caceia boiada”, devido ao posicionamento destas redes na água (superfície) e por ser utilizada tanto na pesca marítima em regiões próximas à costa, como na pesca estuarina, sendo esses os locais utilizados pela espécie, fato este semelhante ao reportado por Di Benedito e Rosas (2008, p. 215) para a costa do Rio de Janeiro e Paraná. Embora a causa da morte mais freqüente do boto-cinza esteja relacionado com capturas acidentais em redes de pesca, alguns autores relatam a existência de capturas intencionais destes animais para a utilização do tecido adiposo como isca na pesca de tubarão (SICILIANO,1994, p.656), o mesmo relatado pelos pescadores neste trabalho. Por meio dos métodos utilizados neste trabalho foi possível relacionar os aspectos da interação pesqueira e os encalhes de cetáceos, ficando evidente a captura intencional e acidental dos golfinhos, em especial boto-cinza pelos pescadores da área de estudo. Por esse motivo observa-se uma necessidade urgente de pesquisas sob este aspecto para que se possa garantir a conservação dos cetáceos nesta região. Referências CARVALHO. S.E.; FONTES, L. A. Estudo Ambiental da Zona Costeira Sergipana como Subsídio ao Ordenamento Territorial. Revista Geonordeste. p. 10-39, 2006. COUTINHO. P. N. (coord.). Programa REVIZEE. Oceanografia Geológica da região Nordeste. MMA/SMA, 1995- 2000. DI BENEDITTO, A. P. M.; SICILIANO, S.; RAMOS, R. M. A. Cetáceos: Introdução à Biologia e a Metodologia Básica para o Desenvolvimento de Estudos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. 2010.100 p. ______. Guia para estudo de cetáceos: interações com atividades de pesca. vol.1. 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