CADERNOS DO CHDD
EDITOR: ALVARO
ASSISTENTE
DO
DA
COSTA FRANCO
EDITOR: MARIA
FUNDAÇÃO ALEXANDRE
Presidente
DE
DO
CARMO STROZZI COUTINHO
GUSMÃO
Embaixadora Thereza Maria Machado Quintella
Ministerio das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H, Anexo II, Térreo, Sala 1
70170-900 Brasília, DF
Telefones: (61) 411 6033/6034 – Fax: (61) 322 2931, 322 2188
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DE
HISTÓRIA
E
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Impresso no Brasil – 2002
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Sumário
APRESENTAÇÃO ............................................................................... 5
ARTIGOS A NÔNIMOS E PSEUDÔNIMOS
O
DO
BARÃO DO R IO BRANCO .............. 7
BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
SANDRA B RANCATO ................................................................. 95
RETORNO DO
TESTAMENTOS DE FRANCISCO ADOLPHO DE VARNHAGEN ....................... 111
“I
R IO...” – REVENDO AS NOTAS DO
CHRISTIE SOBRE O B RASIL
EUGÊNIO VARGAS GARCIA ...................................................... 119
HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO
SR.
REPÚBLICAS DO PACÍFICO. MEMÓRIA DE
PONTE RIBEIRO, 1832
LUÍS CARLOS VILLAFAÑE GOMES SANTOS ................................... 135
UM OLHAR
BRASILEIRO SOBRE AS
DUARTE DA
NOTÍCIAS
DO
CHDD ................................................................... 161
CADERNOS DO CHDD
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ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Apresentação
Institucionalizado como órgão da FUNAG por força do Decreto
nº 3.963 de 10 de outubro de 2001, que aprovou o estatuto da
Fundação, o Centro de História e Documentação e Diplomática – CHDD,
tem por objetivos promover e divulgar pesquisas e estudos sobre a
história diplomática e das relações internacionais do Brasil.
Coerente com sua vocação, o Centro inicia, com este volume, a
publicação dos Cadernos do CHDD. Prevista como uma publicação
semestral, os “Cadernos” estão votados à difusão de documentos
inéditos, ou de difícil acesso, de interesse para a nossa história diplomática,
notadamente os constantes do acervo documental do MRE no Palácio
Itamaraty, no Rio de Janeiro, bem como de estudos sobre nossa história
diplomática.
No quadro das comemorações do centenário de posse de Rio Branco
no Ministério das Relações Exteriores, o CHDD publica neste volume
uma série de artigos da autoria do Barão, publicados sob pseudônimo
ou anonimamente, pouco conhecidos do público especializado.
O artigo da Professora Sandra Brancato sobre a cobertura pela
imprensa da chegada do Barão e as expectativas depositadas em sua
gestão enquadra-se no mesmo propósito de assinalar o centenário da
posse de Rio Branco.
A publicação da “Memória sobre as Repúblicas do Pacífico”, de
João Duarte da Ponte Ribeiro, apresentada pelo diplomata Luís Cláudio
Villafañe G. Santos abre uma perspectiva interessante sobre as relações
do Império com as repúblicas do Pacífico. Esperamos, num dos próximos
números, publicar a totalidade da correspondência de Varnhagen quando
chefe de missão na área, bem como variada correspondência sobre
as tentativas de reunião do Congresso Americano, em que países do
Pacífico desempenharam papel importante.
Eugênio Vargas Garcia oferece um excelente comentário sobre a
reedição de “Notes on Brazilian Questions”, de William D. Christie
(Cambridge, MA : Elibron Classic, 2001).
Rio de Janeiro, dezembro de 2002.
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CADERNOS DO CHDD
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ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Artigos Anônimos e Pseudônimos
do Barão do Rio Branco
Introdução
A coincidência do lançamento dos Cadernos do CHDD com as
comemorações do centenário da posse do Barão do Rio Branco como
Ministro das Relações Exteriores sugere uma natural homenagem ao
grande estadista, cuja vida e atividade política são consubstanciais
com as nossas melhores tradições e se confundem com um dos mais
brilhantes períodos de nossa história diplomática.
É sabido que o Barão do Rio Branco, durante os anos de sua
gestão à frente do Itamaraty, mantinha estreitos laços de cooperação
com os principais jornais do Rio de Janeiro, no propósito de informar e
angariar o apoio da opinião pública para sua política exterior. Publicou
artigos assinados, notas anônimas e, em alguns casos, artigos nãoassinados ou em que o autor se ocultava atrás de um pseudônimo.
Seus objetivos táticos ditavam o grau de identificação com o texto
publicado. Os leitores atentos talvez não deixassem de reconhecer o
real autor, mas, como Rio Branco tinha também o hábito de fornecer
aos diretores ou principais redatores amplas informações sobre assuntos
em que o esclarecimento da opinião pública lhe parecia importante, em
muitos casos a identidade do autor poderia parecer incerta.
Seria de grande interesse revelar o conjunto desta produção
jornalística, que não foi contemplada nas Obras do Barão do Rio Branco,
editadas pelo MRE por ocasião do centenário de seu nascimento. É,
entretanto, tarefa difícil, senão impossível. O que ora nos propomos é,
apenas, trazer à luz alguns textos que nos pareceram de maior interesse,
publicados sob pseudônimos identificados como seus ou assinalados
com suas iniciais na sua coleção de recortes de jornais, guardada no
Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro.
São conhecidos os pseudônimos “Nemo” e “Kent”. Sob o primeiro,
publicou, em 1903, o artigo em que refutava as críticas do líder positivista
Miguel Lemos aos estilos protocolares de sua correspondência oficial,
em que Rio Branco se afastava das práticas impostas ou inspiradas
pelos positivistas no início da república, e, em 1910, sob o título “Confiar
7
CADERNOS DO CHDD
desconfiando” a propósito de um pronunciamento de Quintino Bocayuva,
então Senador, por ocasião da Revolta da Chibata.
“Kent” foi como assinou a série de cinco artigos sobre a questão
do Acre, em dezembro de 1903 e janeiro de 1904.
Além desses artigos, de fácil identificação, também estamos
publicando cinco outros sobre o caso “Panther”, estampados por
“A Notícia” entre 10 e 15 de janeiro de 1906. Não estão assinados,
mas seus recortes na coleção de jornais do Barão estão assinalados
com as iniciais RB, que, como ensina Álvaro Lins, são indicação certa
de sua autoria.
Excetuados os artigos de Nemo, que tratavam de temas ligados
à política interna, os demais têm a marca evidente dos trabalhos de
Rio Branco, reveladores de um profundo conhecimento do assunto,
minuciosos, de argumentação exaustiva, respondendo a todas as
objeções e antecipando os possíveis questionamentos.
Sua publicação põe à disposição dos estudiosos textos importantes
para o conhecimento das questões tratadas e para a compreensão do
método de trabalho Rio Branco. A pesquisa foi realizada por Angela
Cunha da Motta Telles, a supervisão da transcrição, em ortografia
atualizada, foi feita por Maria do Carmo Strozzi Coutinho.
As relações de Rio Branco com a imprensa foram amplamente
abordadas por seus biógrafos, mas há uma rica fonte de informação
sobre o assunto na correspondência privada de Rio Branco no AHI.
Esperamos poder, no curso de 2003, publicar uma seleção dos textos
mais significativos dessa correspondência, ilustrativos da forma como
Rio Branco procurava informar e influenciar a mídia e, num plano mais
amplo, da natureza das relações do poder com a imprensa.
O Editor
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ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
O SR. MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES*
NEMO
CAPITAL FEDERAL. – SAÚDE E FRATERNIDADE. – VÓS. – RECOMENDOVOS. – ASSINATURA. – CIDADÃO. – ROCHA TARPÉIA.
Entre as publicações ineditoriais no Jornal do Commercio, de 25 de
dezembro, encontramos um artigo em que o ilustrado Sr. Miguel Lemos,
diretor do Apostolado Positivista no Brasil, censurou incidentemente o
novo Ministro das Relações Exteriores por haver restabelecido na
correspondência oficial da sua repartição o estilo e certos usos que
haviam sido modificados em 1893 por um dos seus predecessores, o
então ministro Dr. João Felipe Pereira, positivista praticante. A Tribuna,
dias antes, tinha feito também, de passagem, alguns reparos sobre o
assunto, em uma das suas seções humorísticas.
Examinemos rapidamente essas censuras e outras críticas que
têm chegado ao nosso conhecimento.
*
*
*
Estranharam, o Sr. Miguel Lemos e a Tribuna, que os atos do
Ministério das Relações Exteriores sejam agora datados do Rio de
Janeiro e não da Capital Federal.
A razão é óbvia.
Empregando-se o nome geográfico Rio de Janeiro, todo o mundo
sabe que se trata da Capital Federal do Brasil; usando-se da perífrase
Capital Federal, não se pode saber ao certo se o documento foi firmado
no Rio de Janeiro, ou se em Berna, Berlim, Washington, México, Caracas,
Buenos Aires, Ottawa ou Sydney. Em nenhuma outra federação ocorreu
ainda a ninguém substituir o nome particular ou distintivo da cidade por
um vago circunlóquio, e, felizmente, em nenhum dos Estados da nossa
União houve ainda quem se lembrasse de desprezar o nome próprio
da cidade, sede do Governo, para escrever: Capital Estadual.
Uma fórmula que poderia conciliar tudo, mas que teria o grande
inconveniente de ser sobremodo extensa e sair de regra geral, seria
* Publicado no Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 11 jan. 1903. Seção: Publicações a Pedido.
9
CADERNOS DO CHDD
esta: “Na cidade do Rio de Janeiro, Capital Federal da República dos
Estados Unidos do Brasil, aos ... de janeiro de 1903”.
O Sr. Miguel Lemos, que tanto se arreceia do chamado
sebastianismo, deveria atender a que o emprego de Capital Federal
tem franco ressaibo monarquista, pois não é outra coisa mais do que
uma transformação do antigo vezo português e brasileiro de dizer
Corte, para designar Lisboa e Rio de Janeiro.
No tempo do Império, o atual Ministro das Relações Exteriores
nunca deu à cidade do Rio de Janeiro o impróprio nome de Corte e
agora, procedendo coerentemente, quer apenas que os documentos
expedidos pela sua repartição tragam o nome próprio da cidade em
que são assinados e que se proceda aqui a semelhante respeito como
procedem republicanos insuspeitos em todas as outras capitais federais
e capitais de república.
Cumpre notar que o artigo do Sr. Miguel Lemos em que aparece a
censura é datado do Rio de Janeiro (“Rio de Janeiro, Templo da
Humanidade, 22 de Bichat de 114”) e que a Tribuna também apresenta,
com muito acerto e diariamente, no alto de sua primeira página, o
nome geográfico e privativo da sede do nosso Governo e não o
inconveniente e extravagante substitutivo: Capital Federal.
O Sr. Miguel Lemos viveu muitos anos em Paris, no belo bairro
latino, também de mui gratas recordações para o atual Ministro das
Relações Exteriores. Sabe, portanto, belamente que os republicanos
daquela terra não datam seus ofícios e cartas de Capitale de la
République, mas sim de Paris.
No tempo do Império, os viajantes que escreviam sobre o Rio de
Janeiro mostravam-se admirados do costume local de dar à cidade o
nome de Corte. Agora, os modernos, como Carton de Wiard e outros,
estranham também a denominação de Capital Federal. É verdade que
há entre nós outras excentricidades do mesmo gênero, que não causam
menos espanto aos estrangeiros, como, por exemplo, a de se chamar
“apólice” (bond) ao tram-carro – esquecendo o nome do inventor,
Mr. Tram – e “cartola” o que para os portugueses – e também para os
brasileiros do tempo antigo – é “chapéu alto” ou “chapéu redondo”. No
caso, porém, dos nomes de cidade, a coisa pode ter até inconvenientes
imprevistos. Não há muito tempo, um jovem patrício nosso, em Paris,
querendo dirigir uma carta para o Rio de Janeiro, escreveu assim o
endereço: “Monsieur F.. – Capitale Fédérale”. A carta foi aberta pelo
10
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
correio francês, para conhecer o nome do remetente, e devolvida a
este, depois de fechada, com a nota “adresse insuffisante”.
Restituamos à nossa cidade federal o nome que lhe pertence e
único por que é conhecida no mundo inteiro. Chamemo-la como ela
tem o direito de ser chamada: Rio de Janeiro. A federação e a República
não poderão perigar por isso, nem o Templo da Humanidade sofrer
dano de espécie alguma.
*
*
*
A circular de 7 de julho de 1893, do Sr. Dr. João Felipe Pereira,
tornando obrigatória a fórmula positivista – Saúde e Fraternidade – foi
revogada por outra de 4 de dezembro último, do atual Ministro das
Relações Exteriores.
Os motivos da revogação encontram-se no seguinte respeitoso
ofício que o Sr. Rio Branco, então ministro em missão extraordinária
nos Estados Unidos da América, dirigiu ao seu ilustre superior:
“Missão Especial do Brasil nos Estados Unidos da América”
Nova York, 20 de setembro 1893.
2ª Seção. N. 21 bis
Sr. Ministro,
Tenho a honra de acusar o recebimento do Despacho-Circular de
7 de Julho em que V.Ex. recomenda que todos os ofícios sejam fechados
com as palavras: “Saúde e Fraternidade”.
Entendendo que a circular se aplica aos serviços ordinários e não
às Missões Especiais e Temporárias como esta, deixo por enquanto,
até a decisão de V.Ex., de recomendar aos secretários que ajuntem
essa fórmula final aos ofícios daqui expedidos. Se a ordem é igualmente
aplicável a missões especiais, ouso pedir a V.Ex. que, não havendo
inconveniente, se digne de me dispensar do emprego de uma fórmula
de saudação que na República Francesa, onde teve nascimento, só é
empregada hoje pelos discípulos da religião de Augusto Comte, e que
só poderei empregar com o protesto, que desde já faço, de que isso
11
CADERNOS DO CHDD
não importará da minha parte adesão de espécie alguma à doutrina
política e religiosa desse filósofo.
Se entre nós a antiga fórmula – Deus guarde a V.Ex. ou V.S. – foi
abolida em atenção a idéias filosóficas de alguns brasileiros, creio que
as crenças religiosas de outros, sem dúvida muito mais numerosas,
merecem também consideração. Isto justificaria a adoção das fórmulas
de cortesia e respeito usadas no estilo oficial da República Francesa, da
Confederação Suíça e dos Estados Unidos da América, fórmulas estas
que satisfazem a todas as consciências.
Peço vênia para observar que mesmo no tempo em que a
correspondência oficial de todas as outras repartições públicas no Brasil
terminava com “Deus guarde a V.Ex. ou V.S.” (que, entretanto, nunca
foi obrigatório), o nosso antigo Ministério dos Negócios Estrangeiros,
creio que desde pouco depois da independência, usava como fórmula
final ou de saudação as que estavam e estão em uso no estilo da
chancelaria ou diplomático de todos os povos cultos.
Com adoção da antiga fórmula revolucionária, não admitida em
nenhuma outra república, os despachos ou documentos do nosso
Ministério das Relações Exteriores, comunicados aos governos
estrangeiros pelos nossos representantes diplomáticos, ficaram
constituindo uma exceção estranhável, e asseguro a V.Ex. que, mesmo
nas três repúblicas acima citadas, a impressão daí resultante não nos
será favorável, porque isso induzirá a crer que ainda estamos
atravessando uma crise revolucionária.
Estou convencido de que V.Ex. prefere ao silêncio das reservas
mentais a linguagem da franqueza e lealdade e assim não levará a mal
as respeitosas observações que faço neste ofício, usando do direito de
representação e guardando a decisão de V.Ex., que receberei com o
maior acatamento.
Tenho a honra de reiterar a V.Ex. os protestos da minha mais
respeitosa consideração.
(Assinado) Rio Branco
A S.Ex. o Sr. Dr. João Felipe Pereira
Ministro e Secretário de Estado das Relações Exteriores”
Esse ofício não foi respondido e o Sr. Rio Branco continuou a
regular-se pelo antigo formulário até que o seu particular amigo
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ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Sr. Dr. Olyntho Magalhães, em 1899, tornou extensivas às missões
especiais as regras estabelecidas para a correspondência das Legações
e Consulados. A ordem foi imediatamente cumprida pelos dois Ministros
que então tínhamos em missão especial no estrangeiro, os Srs. Nabuco
e Rio Branco, mas deixou de ser observada em algumas de nossas
Legações sem que o Dr. Magalhães, ocupado com assuntos mais
urgentes tivesse tido oportunidade para recusar a excelência e os
protestos de respeitosa consideração que lhes eram enviados ou para
exigir o emprego da fórmula positivista “Saúde e Fraternidade”.
Agora, para uniformizar a correspondência oficial do Ministério das
Relações Exteriores, foram restabelecidas as práticas anteriores a 1893
por meio das seguintes instruções:
“1ª Seção
Circular
Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores, 4 de Dezembro
de 1902.
Sr.... (Ministro ou Cônsul)
Sendo conveniente estabelecer na correspondência desta repartição
e dos serviços que dela dependem as fórmulas de cortesia usadas no
estilo de chancelaria de todos os povos cultos, e nomeadamente no
de todas as outras Repúblicas, declaro revogada a circular de 7 de
julho de 1893 e peço a V.S. que de ora em diante remate os ofícios
que dirigir a funcionários públicos brasileiros e a particulares dizendo
que tem a honra de lhes oferecer ou de lhes reiterar, conforme o caso,
os protestos mencionados no apontamento anexo a esta circular.
Quando forem dadas ou transmitidas ordens e instruções, não
será necessário ordenar ou recomendar sempre a sua execução:
bastará, na generalidade dos casos, pedir ao subordinado que as tenha
presentes ou que as execute, devendo este entender que o pedido do
seu superior hierárquico ou de qualquer autoridade competente é
necessariamente uma ordem.
No fecho das notas e cartas oficiais às autoridades estrangeiras,
as legações e consulados brasileiros deverão continuar a empregar
as fórmulas da polidez usadas no estilo oficial do país em que
estiverem.
13
CADERNOS DO CHDD
Tenho a honra de reiterar a V.S. os protestos da minha estima e
consideração.
(Assinado) Rio Branco”
Como se acaba de ver, o que o Sr. Ministro das Relações Exteriores
fez com a circular de 4 de dezembro último foi pôr de novo em vigor,
na correspondência da sua repartição, as regras de cortesia oficial
abolidas em 1893 e que são, resumidamente e com ligeiras variantes,
as mesmas que se encontram em um folheto de cinqüenta páginas
em cuja capa e folha de rosto se lê o seguinte:
“République Française. Protocole du Ministère des Affaires
Etrangères. – 1900”
E da página 11 em diante: – “Protocole du Ministre”.
Os republicanos da Suíça, dos Estados Unidos da América e da
França, sendo mais antigos, devem entender mais de república do
que os do Brasil. O nosso Ministério das Relações Exteriores está
seguindo agora, em matéria de estilo oficial, os exemplos que nos dão
os republicanos dessas e de todas as outras repúblicas.
O Sr. Rio Branco, portanto, não suprimiu fórmulas republicanas,
nem obedeceu a pensamento algum político. O Salut et Fraternité,
usado em França na época da grande revolução, é desde muito fórmula
religiosa e não política, de que apenas se servem em França e outros
países os pouco numerosos observantes da doutrina religiosa de Augusto
Comte. Não nos parece que se possa com razão considerar “pequice
política” o emprego de alguns poucos minutos em consertar a reforma
de 1893. O que com certeza deve ser considerado “pequice política” e
mesmo rematada carolice é o ato dos que então impuseram ao Ministério
das Relações Exteriores uma fórmula da Religião da Humanidade. Na
República do Equador o ultramontano Garcia Moreno não foi tão longe,
pois nunca se lembrou de decretar para fecho dos ofícios e notas o
Dominus Vobiscum, que seria a fórmula equivalente e mais aceitável
naquele país de carolas.
Os avisos e comunicações das outras repartições são documentos
do nosso serviço interno, correspondência trocada entre brasileiros e
que, assim, se passa toda em família. Não sucede o mesmo aos
despachos do Ministério das Relações Exteriores. Não raro são eles
14
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
comunicados por tradução aos governos estrangeiros e isso basta
para mostrar que em tais documentos nos não devemos afastar dos
estilos observados na correspondência diplomática de todos os povos
civilizados. O “Salut e Fraternité” e o “Hail and Fraternity”, nas traduções
francesa e inglesa do nosso protesto contra a decisão do tribunal
arbitral anglo-venezuelano, causaram bastante surpresa aos velhos
republicanos de Paris, Berna e Washington e deram motivo a comentários
pouco agradáveis sobre o nosso calourismo republicano.
No Brasil foi decretada a separação da Igreja e do Estado e não
houve lei alguma impondo às repartições e aos funcionários públicos
manifestações de adesão à religião da Humanidade.
Sabemos que o Sr. Rio Branco admira profundamente os talentos,
a ilustração, a constância de propagandistas e a pureza de vida dos
dois dignos apóstolos do positivismo no Brasil. Tem por eles e por
todas as religiões o maior respeito, mas não pode esquecer que no
Brasil o Estado não tem religião.
*
*
*
O chamado tratamento de – vós – também se não pode dizer
que seja rigorosamente republicano. Nas outras democracias é admitido,
ou de rigor em certos casos, o tratamento de Excelência. Nas de
língua espanhola, há este e o de Vossa Senhoria: nunca o de vós.
Mesmo no Brasil, o de Excelência é de estilo corrente nas discussões
das câmaras legislativas. O pronome da segunda pessoa do plural só
é, em regra, empregado na língua portuguesa, na espanhola e na
italiana quando se fala ou escreve a mais de uma pessoa. À índole
dessas três línguas repugna o tratamento de vós, e pode dizer-se que
em Portugal ele só era e é empregado nas Cartas Régias e outros
documentos expedidos em nome do Rei ou, excepcionalmente, quando
se fala à Majestade ou a alguma pessoa de maior eminência. Nos
países de língua portuguesa tratamo-nos todos por “senhor”. Como,
pois, pretender que o “Vossa Senhoria” ofenda o sentimento de
igualdade?
É melhor evitar os erros de conjugação tão freqüentes entre nós
depois que se introduziu o tratamento de vós.
Veja-se, por exemplo, o seguinte curioso trecho de ofício há tempos
publicado, escrito por um pretenso positivista que em 1889 mereceu a
15
CADERNOS DO CHDD
honra de um retrato, com extensa dedicatória, do ilustre Benjamin
Constant:
“... já vês, pois, que quem se enganou e errou fostes vós e
não este seu criado, que chamei a atenção dos ilustres Ministros...”
Em ofícios e telegramas, em vez de vós, têm recebido funcionários
brasileiros, às vezes, o pouco cerimonioso tratamento tu.
*
*
*
O segundo parágrafo da circular teve por fim, como o primeiro,
acabar com a secura e dureza do estilo oficial observado desde 1893 e
que de dia em dia se foram agravando. Abolidas todas as fórmulas de
polidez (“Tive a honra de receber”; “Reitero a V. os protestos da
minha estima e consideração”; “Queira fazer isto”; etc.), a
correspondência entre os funcionários do serviço exterior e a Secretaria
deixava a impressão de que o Governo estava mal com os seus
delegados e de que estes também não sabiam tratar com a devida
deferência os seus superiores. As ordens eram dadas com o laconismo
e aspereza com que certos sargentos falam aos seus inferiores:
“Recomendo-vos que encarregueis o 1º Secretário dessa
Legação de escrever um relatório minucioso sobre a viticultura
nesse país.
Saúde e Fraternidade.”
A fórmula final soava como um áspero “Passe bem!”
Não era assim que tratavam os seus subordinados os estadistas
que deram renome ao nosso antigo Ministério dos Negócios Estrangeiros,
dentre os quais bastará citar os Viscondes do Uruguai, de Abaeté, do
Rio Branco, de Maranguape, de Sinimbu e de Caravellas, o Marquês
de Abrantes, o Conselheiro Saraiva, o Barão de Cotegipe e, depois da
República, Quintino Bocayuva e Carlos de Carvalho.
Homens como Daniel Webster, Guizot, Gambetta, Metternich,
Palmerston, Derby, Salisbury não desciam sua dignidade dizendo aos
seus subordinados: “O ofício que me fizestes a honra de dirigir...”,
“Peço-vos que comuniqueis isto...”, “Recebei, senhor, os protestos da
minha distinta consideração” (fórmula francesa de cortesia nos
despachos dirigidos aos simples Chanceleres de Consulados). Na
16
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Inglaterra, o chefe do Foreign Office, seja ele embora um Palmerston,
termina deste modo os seus despachos oficiais, mesmo quando se
dirige a um Vice-Cônsul: “Tenho a honra de ser, senhor, vosso humilde
e obediente servo...”
Entre nós, entenderam alguns jovens ministros que não ficava
bem à sua autoridade respeitar tais usos de chancelaria, posto que
observados escrupulosamente por mestres em república, como são
os suíços, os norte-americanos e os franceses.
Compreende-se facilmente que na carreira diplomática, e também
na consular, o exercício da polidez deva ser de uso constante.
Funcionários habituados à dureza de forma, ou à falta de forma,
maltratados e inibidos de observar as mais comezinhas regras de
cortesia nas relações com os seus superiores, acabariam por ficar uns
grandes malcriados, até mesmo no trato com as autoridades
estrangeiras.
A Circular de 4 de dezembro procurou atender à necessidade de
evitar esse inconveniente, restaurando práticas que não são só das
monarquias, mas também de todas as demais repúblicas.
*
*
*
Outra crítica de que tivemos notícia é relativa à assinatura RioBranco. Essa foi feita por um ex-Ministro em conversa de bond, ouvida
pelos vizinhos. O jovem estadista via nesse modo de assinar uma
demonstração de sebastianismo.
Responde-se mui facilmente à crítica e à suspeita.
O nosso Diário Oficial acaba de publicar uma nota do Conselho
Federal Suíço dirigida ao Ministério das Relações Exteriores desta
República. Termina assim o documento:
......................................................................................
“Queira aceitar, Sr. Ministro, os novos protestos
da nossa alta consideração.
Em nome do Conselho Federal Suíço
O Presidente da Confederação
(Assinado) ZEMP
17
CADERNOS DO CHDD
O Chanceler da Confederação
(Assinado) RINGIER”
Vejamos, ao acaso, outro documento, este da França:
“O Presidente da República Francesa, por proposta do Ministro
dos Negócios Estrangeiros, decreta:
......................................................................................
O Ministro dos Negócios Estrangeiros fica encarregado da
execução do presente decreto.
Feito em Paris, aos 16 de novembro de 1900
(Assinado) E. LOUBET”
Pelo Presidente da República, o Ministro dos Negócios
Estrangeiros:
(Assinado) DELCASSÉ
Poderá o crítico pretender que os velhos republicanos suíços Zemp
e Ringier, que o radical francês Delcassé devem ficar suspeitos de
fingido republicanismo porque assinam um só nome?
E cumpre notar que não são esses os únicos republicanos que
assinam em documentos oficiais um só nome. Pode dizer-se que tal é
a regra geral na Confederação Suíça e na República Francesa (Constans,
Waldeck-Rousseau, além de muitos outros), e se nos não falha a
memória, o uso, sem ser tão geral, é freqüente nos Estados Unidos
da América.
*
*
*
Notemos também de passagem que nas repúblicas que nos podem
servir de modelo em matéria de costumes democráticos e estilo oficial
(Suíça, Estados Unidos da América e França), ninguém diz ou escreve
“cidadão Chefe de Polícia”, “cidadão Ministro”, “cidadão Fulano ou
Beltrano”. Nos Estados Unidos diz-se: “Mr. President”, “Mr. F.”; e nunca:
“citizen President”; “citizen F”. Na Suíça também, embora todos sejam
cidadãos, os funcionários e particulares são tratados por “Sr. F.” e não
18
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
por “cidadão F.”. Na República Francesa, só aos anarquistas, desordeiros
e políticos desequilibrados se costuma dar em tom de mofa o tratamento
de “citoyen” em vez do de “Monsieur”. Diz-se correntemente: “la
citoyenne Louise Michel”; mas nenhum homem que se respeite dirá ou
escreverá: “le citoyen Waldeck-Rousseau”, “le citoyen Méline”.
No Paraguai de Solano Lopez, sim, quando ali reinava o cepouruguaiano e outros instrumentos de tortura, além dos fuzilamentos
e degolações, é que se dizia sempre: “el ciudadano coronel F.”,
“el ciudadano juiz de paz ”, etc.
*
*
*
Depois de dizer que o Sr. Rio Branco é o “aclamado chefe do
intitulado partido da pátria”, o Sr. Miguel Lemos termina assim:
“... seja como for, o que sinceramente desejamos é que essas
reformas iniciais do atual Ministro do Exterior muito contribuam
para que o ilustrado brasileiro nos demonstre praticamente na
gestão política da sua pasta, que o capitólio das Missões e do
Amapá está muito distante da rocha tarpéia do Acre e de outros
insondáveis despenhadeiros que demoram em torno da sua
eminente posição no Governo da República.”
Não sabemos que haja entre nós um “intitulado partido da pátria.”
Se existe, terá outro ou outros chefes. Afastado há vinte e oito anos
das nossas questões de política interna, o Sr. Rio Branco tem mostrado
que não procura nem deseja eminências políticas. Se ultimamente,
pela confiança do novo Presidente da República, foi colocado em “posição
eminente”, outros galgaram essas alturas muito mais depressa e muito
mais facilmente do que ele. É também sabido que só aceitou o posto
que ocupa depois de longa resistência, porque, dados os seus hábitos
de vida tranqüila e retirada e os encargos de família que tem, a aceitação
importava mui grande sacrifício, não só seu, mas também de terceiros
que lhe são caros. Acabou, porém, por inclinar-se diante do insistente
convite do Presidente eleito, e inclinou-se lembrando-se somente do
muito que devia e deve à nossa terra.
Pode o Sr. Miguel Lemos estar muito certo de que o novo Ministro
das Relações Exteriores não partiu da Europa ignorando a existência
dos despenhadeiros a que se refere. Veio para o Brasil mui ciente de
19
CADERNOS DO CHDD
que no posto de perigo que lhe foi designado tinha bastante a perder e
nada a ganhar. Se, porém, tiver de cair de algum despenhadeiro,
estamos convencidos de que há de fazer o possível por cair só sem
arrastar em sua queda os interesses do Brasil. Seja como for, as
fórmulas agora abolidas do nosso estilo de chancelaria não tiveram a
virtude de impedir a horrorosa embrulhada do Acre, em que andamos
metidos, nem a constituição dos rochedos com que é ameaçado o
novo ministro.
___________________________________________________________________
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
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–
–
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Correio da Manhã. 13 jan. 1903.
O Paiz. 12 jan. 1903.
Gazeta de Notícia. 12 jan. 1903.
A Tribuna. 12 jan. 1903.
20
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
A QUESTÃO DO ACRE E O TRATADO COM A BOLÍVIA I*
KENT
O Commercio de S. Paulo, em editoriais, “Cartas do Rio de Janeiro”
e “Notas Fluminenses”, tem tratado por vezes do acordo a que chegaram
em Petrópolis os plenipotenciários do Brasil e da Bolívia. “Waterloo!”,
“No charco!” e “Fora do charco”, são os títulos de três desses artigos,
os dois últimos saídos da pena do infatigável propagandista da
restauração Sr. Martim Francisco Ribeiro de Andrada.
Examinemos rapidamente este último escrito, pois aos dois primeiros
artigos já respondeu brilhantemente Eduardo Salamonde nas colunas
d’O Paiz.
*
*
*
As questões do Amapá e Missões, diz o Sr. Martim Francisco,
“vinham do Império: poderiam ter erros, não tinham sujeiras”. A do
Acre, acrescenta, “vinha da República: era-lhe inevitável a indecência.”
Muito se ilude o ilustre monarquista. A questão do Acre tem
incontestavelmente as suas raízes no Império.
Foi no tempo da monarquia que se negociou o tratado de 27 de
Março de 1867, atacado por Kakistos, pseudônimo de um dos nossos
melhores diplomatas, o Conselheiro José Maria do Amaral.
Foi no tempo do Império que o Governo brasileiro começou a dar
ao artigo 2º a absurda interpretação de que resultou a linha oblíqua
Javari-Beni, defendida depois pelos Ministros da República durante as
administrações Prudente de Moraes e Campos Salles.
Se isso era “sujeira”, vinha de muito longe, e não aos que a
defenderam por sentimento de solidariedade governamental, mas sim
aos que a criaram é que deviam ser dirigidas as censuras do
Sr. Martim Francisco.
Pretende o emérito polemista que o tratado de Petrópolis, em
suas linhas gerais, estipula o seguinte:
* Publicado no Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 17 dez. 1903. Seção: Publicações a Pedido.
21
CADERNOS DO CHDD
a)
A cessão do território nacional, embora em quantidade mínima;
b)
O pagamento, pela segunda vez, e oito ou dez vezes mais
caro, de território que alguns homens de mérito pensavam
ser brasileiro;
c)
Proteção eficaz e dispendiosa aos interesses comerciais da
Bolívia por meio de estrada de ferro com responsabilidade e
compromissos do erário nacional.
Comecemos pelo parágrafo c:
A construção da estrada de ferro do Madeira ao Mamoré, em
território de Mato Grosso, desde Santo Antônio até Guajará-Mirim, é
obra que aproveita não só à Bolívia, mas também ao nosso Estado de
Mato Grosso.
A construção dessa via de comunicação, ao mesmo tempo
brasileira e internacional, foi aconselhada e reclamada pelos primeiros
estadistas do Império, desde Tavares Bastos até o Marquês de São
Vicente, o Visconde do Rio Branco e o Barão de Cotegipe, sem excetuar
um Conselheiro de Estado que se chamou Martim Francisco Ribeiro de
Andrada.
É execução de promessa feita à Bolívia no art. 9º do tratado de
27 de março de 1867, e renovada solenemente no de 15 de março de
18821, negociado nesta cidade do Rio de Janeiro, pelo Conselheiro
Felipe Franco de Sá, com a aprovação de Martinho Campos, então
Presidente do Conselho. Basta transcrever aqui, para conhecimento
dos novéis monarquistas, esquecidos ou pouco conhecedores de atos
que fazem honra ao passado regímen, o preâmbulo e o art. 1º do
Tratado de 1882, todo ele relativo à estrada de ferro do Madeira ao
Mamoré:
“S. M. o Imperador do Brasil e S. Ex. o Presidente da República
da Bolívia, desejando completar, no interesse comum, a estipulação
do art. 9º do Tratado de 27 de Março de 1867, resolveram fazêlo por meio de um tratado especial, e para esse fim nomearam
por seus plenipotenciários, a saber:...
..................................................................................................
1
Corrigida pelo próprio Barão do Rio Branco, na Coleção de Recortes de Jornais do Arquivo
Histórico do Itamaraty, para 15 de maio de 1882.
22
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
..................................................................................................”
“Art. 1º – S. M. o Imperador do Brasil, confirmando a promessa
feita pelo art. 9º do Tratado de 27 de Março de 1867, obriga-se a
conceder à Bolívia o uso de qualquer estrada de ferro que venha
a construir por si, ou por empresa particular, desde a primeira
cachoeira na margem direita do rio Mamoré até à de Santo Antônio,
no rio Madeira, a fim de que a República possa aproveitar para o
transporte de pessoas e mercadorias os meios que oferecer a
navegação abaixo da dita cachoeira de Santo Antônio.”
Dessa estrada de ferro, que o terceiro Martim Francisco parece
condenar, disse o Conselheiro Andrade Figueira, em sessão de 20 de
setembro de 1882, na Câmara dos Deputados, quando orava Passos
de Miranda, um dos propugnadores do grande empreendimento:
“É a mais importante estrada de ferro do Império. É a única
estrada de ferro para que votarei garantia de juros”.
Eis o que o colaborador do Commercio de S. Paulo supõe ser uma
via férrea dispendiosa, destinada a proteger os interesses comerciais
da Bolívia, sem atender a que ela vai servir também aos de Mato
Grosso, e, salvando as cachoeiras do Madeira e do Mamoré, tornar
esse Estado brasileiro independente da comunicação fluvial através
das Repúblicas do Paraguai e Argentina. Por tudo isso, dizia o Imperador
D. Pedro II, no preâmbulo do tratado de 1882, que a estrada seria
feita no interesse comum do Brasil e da Bolívia.
Cumpre notar ainda que ela será custeada principalmente pelo
comércio da Bolívia; que todos os outros vizinhos, como é natural, se
esforçam por atrair para o seu território o comércio de trânsito entre a
Bolívia e o estrangeiro; que a República Argentina está prolongando por
território boliviano uma via férrea sem pedir por isso favor algum ao
Governo desse país; e que quando ficar terminada a seção do novo
caminho de ferro compreendida entre o Santo Antônio e a foz do Beni
e concluída também a que, com indenização que o Brasil vai pagar à
Bolívia, o General Pando projeta iniciar entre La Paz e Yungas, ficará
aberta uma via intercontinental pela qual se poderá atravessar de
Belém do Pará a Antofagasta, no Chile, ou a Mollendo, no Peru, isto é,
do Atlântico ao Pacífico em barcos a vapor ou em caminhos de ferro.
*
*
*
23
CADERNOS DO CHDD
Vejamos agora os parágrafos a e b : “Cessão de território nacional”
e “pagamento, pela segunda vez, de território considerado brasileiro
por homens de mérito.”
É impróprio falar em cessão de território nacional quando o que
há, pelo tratado, é uma permuta de territórios, permuta que, por ser
sumamente desigual, explica a compensação em dinheiro com que o
Brasil deve entrar.
Com efeito, nessa troca, o Brasil transfere à Bolívia apenas 3.164
quilômetros quadrados, ou 102 léguas das de 20 ao grau – pouco mais
do dobro do Distrito Federal – e recebe 191.000 quilômetros quadrados
ou 6.190 léguas, isto é, extensão maior do que a de seis2 Estados da
União tomados separadamente, maior do que as dos dois Estados de
Pernambuco e Alagoas reunidos, e quase igual à que resultaria da
soma das áreas dos quatro Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo,
Sergipe e Alagoas.
Dá o Brasil insignificantes nesgas de território: em Mato Grosso,
inteiramente desabitadas e pela maior parte cobertas de água, pois de
terra firme apenas se contam ali 78 quilômetros quadrados ou
2½ léguas; no Amazonas, um trecho inculto, só habitado por bolivianos,
entre o Albunã e a margem esquerda do Madeira. Recebe uma região
imensa, rica de produtos naturais, povoada e explorada por mais de
60.000 brasileiros, incluindo os do Acre, Yaco, Alto Purus e outros
afluentes e subafluentes do Amazonas.
Por não haver equivalência nas áreas dos territórios permutados é
que o Brasil paga a indenização de £ 2.000.000 à Bolívia, aplicável a
caminhos de ferro e outros melhoramentos que favoreçam as relações
de comércio entre os dois países, e que, provavelmente, em pouco
tempo tornarão dispensável qualquer desembolso para pagamento de
juros aos acionistas da empresa do Madeira ao Mamoré.
O Brasil não “vai pagar à Bolívia, por preço mais avultado, o que
já pagou ao Sindicato Norte-Americano”. O pagamento de
£ 112.000 ao Sindicato deve ser levado em conta na soma dos sacrifícios
que fazemos para resolver definitivamente a chamada questão do
Acre, mas não houve nessa operação compra de direitos ou de
territórios. O que fez então o Governo brasileiro foi eliminar um elemento
2
Corrigido para “nove Estados” pelo próprio Barão do Rio Branco, na Coleção de Recortes de
Jornais do Arquivo Histórico do Itamaraty
24
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
perturbador e perigoso, que andava a suscitar-nos dificuldades na Europa
e na América do Norte, tirar ao Governo boliviano a esperança de
apoio estrangeiro, simplificar a questão entre o Brasil e a Bolívia e
facilitar um concerto amigável entre os dois países.
*
*
*
O fato de haverem sustentado alguns eminentes compatriotas
nossos, a partir de 1900, que o Acre é brasileiro até o paralelo de 10º
20’ Sul, não exclui a conveniência e a legitimidade da transação que se
acaba de fazer. Oficialmente, segundo vários protocolos, notas
diplomáticas e declarações do Governo brasileiro durante 35 anos, isto
é, desde 1867 até 14 de novembro de 1902, o território ao sul da linha
oblíqua Javari-Beni era incontestavelmente boliviano. Só a partir de
janeiro deste ano o novo Ministro das Relações Exteriores, Sr. Barão
do Rio Branco, rompendo com o passado, deu oficialmente à última
parte do art. 2º do Tratado de 1867 a inteligência que começaram a
dar-lhe em 1900 os distintos publicistas, oradores e engenheiros a que
se refere o Sr. Martim Francisco. Ora, sabe S.Ex. muito bem que não
raro, em causas cíveis e comerciais, dois litigantes transigem, com o
fim de evitar as delongas e as incertezas do processo e não é, portanto,
para estranhar que agora demos dinheiro por um território em litígio,
com o fim de resolver de pronto a questão a nosso favor.
Há mais ainda.
No caso presente, não é só o território considerado brasileiro desde
1900 pelo Srs. Ruy Barbosa, Serzedello Corrêa, Frontin e outros que
fica reconhecido como brasileiro pela Bolívia, mas também uma extensa
zona ao sul do paralelo de 10º 20’, zona que para eles era, com razão,
tida por incontestavelmente boliviana em virtude do Tratado de 1867,
e na qual se compreende a maior parte do Acre, habitada por brasileiros.
Adquirimos, pois, por transação muito legítima, o território só
ultimamente declarado em litígio entre a linha oblíqua chamada Cunha
Gomes e o paralelo de 10º 20’ e adquirimos por compra, não menos
legítima, a zona ao sul desse paralelo.
Se nessa combinação não entrássemos também com a transferência
de alguns insignificantes pedaços de terra, se pretendêssemos que
deve ser amaldiçoado o que cede uma polegada de território nacional,
25
CADERNOS DO CHDD
mesmo em troca de região considerável e rica, como seria possível
convencer a Bolívia de que nos devia abandonar mais da oitava parte
do que considerava seu patrimônio nacional?
Suponhamos que a Inglaterra – como em 1890 cedeu a Ilha de
Heligoland à Alemanha em troco de certas concessões importantes na
África Oriental – nos oferecesse 10 ou 20 léguas quadradas de bons
campos nos confins da sua Guiana em troco da Ilha de Trindade,
longínqua, estéril e até agora inaproveitável para nós. Seria ou não
essa troca um bom negócio para o Brasil? Qualquer homem de simples
bom senso responderia pela afirmativa. Os patriotas de nova espécie
que pretendem levantar a opinião contra o tratado com a Bolívia,
esses repeliriam indignados a troca.
*
*
*
Afirmou mais uma vez o Sr. Martim Francisco que o Império nunca
cedeu territórios. Já mostramos que no caso presente não se trata de
cessão, mas sim de permuta ou, se quiserem, de mútua cessão de
territórios, e que a troca – tendo-se em vista a importância das áreas,
a qualidade das terras e a circunstância de serem elas ou não habitadas
– é sumamente desigual, sendo toda em vantagem do Brasil.
Essa permuta é autorizada pelo art. 5º do Tratado de 1867, que
diz assim:
“Se para o fim de fixar, em um ou outro ponto, limites que
sejam mais naturais e convenientes a uma ou outra Nação parecer
vantajosa a troca de territórios, poderá esta ter lugar, abrindo-se
para isso novas negociações e fazendo-se, não obstante isto, a
demarcação como se tal troca não houvesse de efetuar-se.
Compreende-se nesta estipulação o caso da troca de territórios
para dar-se logradouro a algum povoado ou a algum estabelecimento
público que fique prejudicado pela demasiada proximidade da linha
divisória.”
A Constituição do Império, como já lembrou O Paiz, permitia a
troca e a cessão de territórios mediante a aprovação da Assembléia
Geral Legislativa.
26
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
O Império concluiu dois tratados de troca de território: o de 4 de
setembro de 1857, com o Uruguai e o de 11 de fevereiro de 1874,
com o Peru, o primeiro negociado pelo ilustre estadista Paulino de
Souza, Visconde do Uruguai, o segundo quando era Ministro dos
Negócios Estrangeiros o não menos ilustre Carneiro de Campos,
Visconde de Caravelas.
O Império ofereceu ceder à França, em 1856, o território, então
despovoado, entre os rios Calçoene e Oiapoque, procurando assim
transigir para pôr termo a um velho litígio em que o direito do Brasil era
perfeito, incontestável, como ficou demonstrado no processo arbitral
de Berna.
Durante o Império foram feitas generosas concessões aos nossos
vizinhos nos tratados de limites com o Peru (1851), Uruguai (1853),
Venezuela (1859), Bolívia (1867) e Paraguai (1872).
Durante os sessenta anos do regímen passado, o território nacional
não teve aumento algum, pelo contrário, em todos os ajustes citados
renunciamos a terras a que, pela aplicação do princípio do uti possidetis,
tínhamos direito e sofremos até, pelo tratado de 27 de Agosto de
1828, a desagregação da Província Cisplatina, depois República Oriental
do Uruguai, isto é, a perda de 187.000 quilômetros quadrados,
extensão territorial – seja dito de passagem – quase equivalente à que
pelo Tratado de Petrópolis vamos agora incluir dentro dos limites do
Brasil...
Não recordamos estes fatos com a intenção de desaprovar ou
censurar o que praticou o Império. Desejamos tão somente que o
Commercio de S. Paulo e o Sr. Martim Francisco meditem sobre esses
antecedentes históricos e expliquem o porque era lícito e louvável,
naquele tempo, permutar, ceder território ou mesmo consentir na
separação de uma província inteira, com representação no Parlamento
Brasileiro, e é condenável agora alargar os domínios da Pátria Brasileira,
receber um território imenso, fertilíssimo, onde vivem e trabalham 60.000
compatriotas nossos e conseguir isso sem um tiro, sem uma gota de
sangue derramado, somente pela persuasão, dando nós em retorno à
outra parte algumas léguas de terra despovoada e de alagadiços, uma
soma em dinheiro aplicável a melhoramentos que indiretamente nos
serão vantajosos, favores comerciais que nenhum povo culto recusa
a outro seu vizinho, e o uso de um caminho de ferro já prometido,
sem compensação alguma no tempo do Império, e que, mais do que
27
CADERNOS DO CHDD
à Bolívia há de beneficiar os Estados brasileiros de Mato Grosso,
Amazonas e Pará.
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
–
–
–
–
Gazeta de Notícias. 18 dez. 1903.
Jornal do Brasil. 18 dez. 1903.
A Tribuna. 19 dez. 1903.
O Paiz. 18 dez. 1903.
28
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
A QUESTÃO DO ACRE E O TRATADO COM A BOLÍVIA II*
KENT
Ontem, examinando certas críticas e censuras do Commercio de
S. Paulo, ocupamo-nos com as principais cláusulas do Tratado de
Petrópolis, já conhecido do público, em suas linhas gerais, tanto no
Brasil como na Bolívia.
Hoje desejamos mostrar que não é propriamente o sentimento
de patriotismo ofendido, mas sim de paixão partidária, o desejo de
perturbar a paz pública, que inspira as hostilidades abertas em setembro
contra o Governo atual e mui particularmente contra o Sr. Ministro das
Relações Exteriores.
O plano assentado e seguido pelo Barão do Rio Branco para
resolver a chamada questão do Acre, tão mal parada quando ele
assumiu a direção do seu cargo, ficou perfeitamente conhecido de
toda a nossa imprensa desde janeiro último, só encontrando, durante
meses, manifestações de simpatia e até louvores e aplausos dos
mesmos que hoje procuram levantar contra esse compatriota a cólera
popular.
Tudo corria tranqüilamente quando em setembro aprouve a certos
agitadores de profissão explorar contra o Governo algumas das cláusulas
do tratado que se negociava.
Em outros países, onde em todos os círculos da política e da
imprensa se tem melhor compreensão de patriotismo e dos interesses
da causa pública, as questões com o estrangeiro são consideradas
sempre questões nacionais.
Por isso em França, ministros como os Srs. Hanotaux e Delcassé
têm podido permanecer em gabinetes sucessivos, de diferentes matizes
políticos. Entre nós não se dá o mesmo nos dias de hoje, que infelizmente
ainda são de anarquia mental. São precisamente as grandes questões
externas que alguns ambiciosos de mando, ao mesmo tempo agitados
e agitadores incuráveis, exploram com mais engenho para intrigas de
politicagem, no propósito de transviar a opinião e urdir conspirações e
golpes de Estado. E há jornalistas, alguns de puro e sincero patriotismo,
que se deixam levar pelo canto dessas sereias das discórdias civis!
* Publicado no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 18 dez. 1903. Seção: Publicações a Pedido.
29
CADERNOS DO CHDD
Vejamos se as bases do tratado ultimamente concluído e os atos
praticados para que pudéssemos chegar a esse resultado eram ou
não conhecidos de longa data. Examinemos se antes de iniciada há
pouco a guerra dos boatos e intrigas havia indignações e revoltas
contra a permuta de territórios, contra a compra do Acre, a eliminação
do Sindicato anglo-americano e a ocupação militar de parte da região
que só em janeiro último ficou em litígio.
*
*
*
Em 26 de janeiro dizia o Jornal do Commercio em um bem lançado
artigo da sua Redação:
“O Governo atual teve ensejo de propor a compra do território.
Apesar dos títulos do Brasil para pleiteá-lo, a questão tinha chegado
a tal pé que valia a pena não perder tempo a reduzi-la o mais
possível a uma solução prática.”
A proposta foi recusada...
“Recusada a idéia de venda, o Governo brasileiro buscou
outro alvitre: propôs a troca de território e ofereceu grandes
compensações no sentido de favorecer por meio de uma estrada
de ferro o tráfego comercial pelo Madeira, entendendo-se nesse
sentido, se assim fosse necessário, com o Bolivian Syndicate. Não
é possível espírito mais conciliador. Se é na distância do Acre e na
quase impossibilidade de o governar e explorar que se procura
fundar o ato do arrendamento, nada mais natural do que oferecer
à Bolívia outro território mais propício à sua influência e ao seu
mando, sobretudo com a vantagem de uma saída fácil dos seus
produtos pelo Amazonas, que é o mais curto caminho do seu
contato com o velho mundo...”
Em 28 de janeiro, todos os jornais desta Capital publicaram um
telegrama-circular do Sr. Barão do Rio Branco, dirigido às Legações
Brasileiras, e nele se lia o seguinte:
“Propusemos comprar o território do Acre, atravessado pelo
paralelo de dez graus e vinte minutos, para nos entendermos
depois com o Bolivian Syndicate. Depois propusemos uma troca
30
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
de territórios. O Governo boliviano a nada tem querido atender. O
Presidente Pando vai marchar com o fim de submeter os brasileiros
do Acre. Em conseqüência disso, o nosso Presidente resolveu
concentrar tropas nos Estados do Mato Grosso e Amazonas...”
Os trechos que acabamos de transcrever, do Jornal do Commercio
e da circular de Rio Branco, não ficaram ignorados do ativo redatorchefe d’A Notícia, pois no seu número de 30 de janeiro último
encontramos um editorial que começa assim:
“No telegrama-circular que o ilustre Barão do Rio Branco dirigiu
às Legações do Brasil, narrando as recentes ocorrências com a
Bolívia, vê-se que o Brasil propôs preliminarmente a compra do
território do Acre e em seguida uma troca de territórios, a nada
acedendo o Governo da Bolívia. Reatadas as negociações, sempre
com o espírito conciliatório de que temos dado tantas provas,
constou que o Governo brasileiro oferecia-se a construir uma
estrada de ferro que facilitasse à Bolívia o seu movimento comercial
pelo Madeira...”
Em 26 de março, dizia assim A Notícia :
“... Não se chegando a um acordo direto, o Brasil e a Bolívia
recorrerão à arbitragem. Como se sabe, têm sido três as bases
de um acordo direto, bases que naturalmente voltarão a ser objeto
das negociações: indenização pecuniária; construção de estrada
que facilite à Bolívia uma saída para o Amazonas e para o oceano;
permuta de territórios. Tudo quanto se possa dizer a esse respeito
é antecipado, parecendo apenas que a Bolívia repele in limine a
indenização pecuniária... Quanto à terceira base, a permuta de
território, qualquer juízo ou previsão seria impertinente na
intercorrência da questão diplomática que vai prosseguir durante o
modus vivendi ...”
Assim, já em 30 de janeiro A Notícia sabia perfeitamente o
que desejava ou pretendia o Sr. Barão do Rio Branco: a compra do
Acre ou uma troca de territórios; a construção da via-férrea do Madeira.
E A Notícia, desde janeiro até outubro, não disse uma palavra
contra a permuta de territórios. Em 4 de abril aconselhava a compra
do Acre. E, em 13 de novembro, esquecida do que escrevera em 30
de janeiro e 26 de março, dizia: “O Sr. Barão do Rio Branco, para cuja
31
CADERNOS DO CHDD
lealdade não precisamos apelar, repelia in limine e com todo o vigor do
seu esclarecido patriotismo qualquer proposta de permuta de territórios”.
Avivada assim a memória d’A Notícia, verá ela que o Sr. Barão do
Rio Branco não só não repelia propostas de troca de território, que
ninguém lhe fazia, mas até foi quem propôs a combinação de troca
desigual e compensação em dinheiro. O Governo da Bolívia até fins de
julho não queria saber de indenização pecuniária: só admitia a permuta
rigorosa de territórios ou, o que achava preferível, o arbitramento para
a interpretação do art. 2º do Tratado de 1867.
Vem de molde lembrar também que, quando o ilustre redatorchefe d’A Notícia e da Gazeta defendia o Governo passado, não se
revoltava contra a idéia de troca de territórios, nem via na Constituição
da República empecilho algum para a permuta projetada. A Platéa de
S. Paulo deu então resumida conta das negociações em curso entre
os Srs. Olyntho de Magalhães e Salinas Vega. Os jornais desta Capital
transcreveram as revelações da Platéa de S. Paulo. Não podia, portanto,
o ativo redator-chefe d’A Notícia, demais a mais confidente íntimo do
Governo de então, ignorar o que era aqui divulgado, em diferentes
ocasiões, por várias folhas, entre as quais o Jornal do Commercio, a
Imprensa e o Correio da Manhã.
*
*
*
Tratava-se naquele tempo de operação modesta. O pequeno
trecho do rio Acre (45 milhas) e o território que ele atravessa, entre a
linha oblíqua Javari-Beni e o paralelo de 10º 20’, seriam transferidos ao
Brasil em troco de território de igual superfície, pertencente ao Estado
do Amazonas, e de um porto no Paraguai, devendo o Brasil entregar à
Bolívia durante quinze anos a renda do Acre ou aplicá-la à construção
do caminho de ferro do Madeira.
Dizemos que a operação era modesta porque a maior parte do rio
Acre (250 milhas), a mais produtiva e mais povoada de brasileiros,
continuaria a pertencer à Bolívia; mas o trecho de território incontestavelmente nacional que passaria à Bolívia não era de uns 3.000 quilômetros
quadrados, como agora, mas sim de 50.000 ou mais.
A negociação ia por diante quando, pela intervenção de uma
esquadrilha que o Governo Federal mandou ao Acre, se fez a pacificação
em proveito da Bolívia. Então, como referiu no Jornal do Commercio o
32
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
escritor ministerial que se assinava “Um diplomata”, o Sr. Salinas Vega
suspendeu a negociação, rejeitando, em nome do seu Governo, as
propostas e combinações de permuta de territórios que andavam sendo
estudadas.
O Correio da Manhã naquele tempo era pela troca de territórios
que hoje condena.
“Se a Chancelaria brasileira”, dizia na parte editorial dessa folha o
ilustre Victorino Pereira (24 de junho de 1902), “se a Chancelaria brasileira
esteve prestes a resolver o assunto com a contra-proposta do Sr.
Salinas Vega em condições aceitáveis, porque deixou escapar a ocasião
favorável e firmou ou manteve o protocolo de outubro de 1900? Se
essa proposta existe, e documentada, por que não sustentá-la ou
revivê-la? Se disso não há prova, porque deixou o Ministro de se
assegurar na posse do documento tão necessário e importante?”
A solução que Victorino Pereira e o Correio da Manhã achavam
boa e aconselhavam em junho do ano passado, ficou sendo agora
uma “vergonha”, uma “infâmia”, somente porque o Brasil adquire
território quatro vezes maior do que pedia então o Governo brasileiro e
transfere à Bolívia 3.000 quilômetros quadrados em vez de 50.000.
O Correio da Manhã também publicou em 28 de janeiro deste ano
o telegrama-circular a que acima nos referimos, sem reprovar a idéia
de compra, nem a de troca de territórios, antes aplaudindo tudo quanto
fazia o Barão do Rio Branco e mostrando-se coerente com o que dizia
no tempo de Manoel Victorino.
Gil Vidal, em 8 de fevereiro, dava um artigo com o título “Vitória
diplomática” e, no dia 9, relembrando as que o Brasil alcançara nos
dois arbitramentos de Washington e Berna, dizia:
“Vitória igual nos espera na contenda com a Bolívia se
porventura não pudermos resolvê-la por concessões recíprocas, e
tivermos que entregá-la a arbitramento. Ainda desta vez a estrela
do Barão do Branco foi propícia ao Brasil. Parece que os céus
tomaram sob o seu patrocínio esse nome a que está ligada a
nossa maior obra de caridade e humanidade – a redenção dos
cativos...”
Entendia, portando, o Correio da Manhã, em 9 de fevereiro, que
devíamos procurar resolver a contenda com a Bolívia por meio de
33
CADERNOS DO CHDD
concessões recíprocas, compreendendo-se, sem dúvida, nesta
expressão a permuta de territórios, já aconselhada em 24 de junho do
ano passado no mesmo Correio da Manhã, ou a compra do Acre,
proposta pelo atual Governo com o intento de reduzir à expressão
mais simples a nossa contribuição em território.
*
*
*
No precedente artigo já explicamos que o Brasil não comprou, em
fevereiro, direitos ao Bolivian Syndicate, direitos que lhe não reconhecia
e que, mesmo quando fossem válidos, não podiam, por disposição
clara e terminante do contrato, ser transferidos sem o consentimento
do Congresso boliviano. O que o Governo brasileiro então obteve foi a
renúncia pura e simples da concessão havida pelo Sindicato, para assim
eliminar um elemento perturbador das negociações.
Em 11 de novembro, A Notícia, ainda que de passagem, envolveu
nas suas censuras essa operação, dizendo que o Governo comprara
por cem mil libras “o direito ilíquido de um Sindicato”.
É interessante aproximar desse juízo desfavorável o que
A Notícia tinha dito anteriormente.
Em 26 de fevereiro:
“... Referimo-nos ao que nos diz o nosso correspondente
especial de Petrópolis, comunicando-nos a grata, importantíssima
notícia de já estar terminada a negociação entabulada entre o
Governo brasileiro e o Sindicato anglo-americano... Está removido
um grande embaraço a que era preciso atender...”
Em 13 de março:
“... Nos telegramas de hoje fez-se questão, sobretudo, das
negociações em virtude das quais o Brasil obteve a desistência do
Sindicato. A Bolívia reputa caduca a concessão, por um lado; e
por outro lado recusa-nos o direito de ter entabulado essas
negociações. De que a ação do Governo nesse sentido foi útil são
provas, por exclusão, os protestos, aliás tardios, que ela desperta;
quanto ao direito que nos é recusado agora, poder-se-ia dizer que
34
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
essa desistência é, pelo menos, um elemento de facilidade para a
ocupação militar que o Brasil resolveu fazer...”
*
*
*
Relativamente à intervenção militar que, em janeiro e fevereiro, o
Governo e a Nação inteira julgaram necessária para proteger os
brasileiros do Acre e é hoje condenada pelo Correio da Manhã,
reproduziremos os seguintes trechos:
– De Gil Vidal, artigo de fundo no Correio da Manhã de 25 de
janeiro último:
“Já não é permitido confiar na eficácia dos meios diplomáticos
para chamar à razão a Bolívia. Esta quer dominar o Acre pela
força, levando de vencida a resistência que lhe têm oposto os
brasileiros ali residentes. Nós não podemos consentir na imolação
dos nossos compatriotas à ganância dos bolivianos, tanto mais
quanto o território é pelo menos litigioso... Temos que repelir a
força pela força. Na situação a que chegaram as coisas nada mais
nos resta fazer senão o apelo às armas. Seria indecoroso recuar...”
– Do Sr. Rocha Pombo – que depois se tornou pombinha de paz,
amigo da Bolívia e mais boliviano do que o General Pando e os Srs.
Guachalla e Pinilla – artigo no Correio da Manhã de 31 de janeiro:
“... O General Pando ... à frente de legiões, abala para o
Acre, onde não mais pode tolerar que haja brasileiros que
protestem, como já protestaram contra a usurpação de um
território que é tão nosso, pelo menos como dos bolivianos. Que
virá essa expedição fazer ali onde há 20.000 brasileiros que sofrem
nos seus direitos e nos seus interesses? A que excessos está
exposta toda essa inditosa gente, abandonada naqueles sertões
à inclemência e ao furor de inimigos cuja única lei pode-se imaginar
qual será lá no desolamento das florestas!...
Veja-se agora como são diferentes os tempos! Em 1864,
bastou que compatriotas nossos estivessem sendo vítimas de
vexações no Estado Oriental, para que um corpo do nosso exército
imediatamente transpusesse a fronteira e fosse reclamar pelas
35
CADERNOS DO CHDD
armas aquilo que se nos negava pela razão e o direito. E tratava-se
então de brasileiros domiciliados em outro país ... Hoje, há irmãos
nossos oprimidos, tratados à bala e à faca em terras que habitaram
sempre, muito certos de que estavam em sua pátria e sob a
proteção das leis da República ... E que fizemos nós até hoje?...”
– Do mesmo pacífico Sr. Rocha Pombo, no Correio da Manhã de
4 de fevereiro:
“... Se os bolivianos se apoderarem do Acre, além da ação
enérgica que nos cumpre exercer ali, uma represália imediata se
impõe: a invasão da Bolívia por Mato-Grosso. Entre as nações a
lei inelutável é esta, por mais que nos pese e constranja aos
nossos sentimentos cristãos: dente por dente...”
Deixou apenas de acrescentar: “olho por olho...”
*
*
*
Assim, o Correio da Manhã desejou, em janeiro e fevereiro, “ação
enérgica” e imediata no Acre, para a defesa dos “nossos irmãos
oprimidos”, e a invasão da Bolívia por Mato Grosso.
Agora, censura o Governo porque mandou tropas para o Acre
com o fim de impedir que fossem esmagados “os nossos irmãos
oprimidos”, que continuassem eles a ser “tratados à bala e à faca”, e
que pudessem ser exterminados por forças estrangeiras, quando –
como declarou, em documento público, o Barão do Rio Branco – se
queríamos adquirir aquela região, não era pelo valor da terra em si,
mas para que passassem a viver sob a proteção da bandeira e das
leis de sua pátria os brasileiros que a povoavam. Se o Correio da
Manhã entende que tropas brasileiras não devem ser mandadas, em
caso de necessidade, para regiões insalubres, porque aconselhou isso
há meses? Pois não é fazer injustiça aos nossos soldados de hoje
supor que neles o espírito de sacrifício é menor que nos da Bolívia, e
nos nossos veteranos do Paraguai, que souberam afrontar o
impaludismo e a cólera-morbus?
*
*
36
*
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Ocupação militar, compra e permuta de territórios, concessões
recíprocas, tudo isso foi aconselhado ou aprovado durante meses pelos
mesmos que hoje fazem disso outros tantos crimes do Governo e se
levantam indignados contra o tratado.
Admiráveis conselheiros do povo e mestres de patriotismo...!
___________________________________________________________________
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
– O Paiz, de 19 dez. 1903.
– Gazeta de Notícias, 19 dez. 1903.
– A Nação, 19 de dez. 1903.
37
CADERNOS DO CHDD
A QUESTÃO DO ACRE E O TRATADO COM A BOLÍVIA III*
KENT
Reservamos para hoje outro trecho do Correio da Manhã, trecho
duplamente interessante, embora para o nosso propósito apenas o
consideremos agora por um só dos seus dois aspectos.
Em 28 de junho de 1902 dizia essa folha, pela pena brilhante de
Manoel Vitorino Pereira:
“Referindo-se à revolução do Acre, afirmam as confidências do
Ministro (das Relações Exteriores) a um diplomata, que ela terminou
quando menos nos convinha, porque, conquanto o Governo
Federal fosse inteiramente alheio a essa revolução, a resolução
que por conta própria tomaram os oficiais da flotilha era
inteiramente inoportuna, por isso que só em virtude da revolução
consentiu o Governo da Bolívia NA PERMUTA DE TERRITÓRIOS,
já aceita pelo seu Ministro.”
“... Parece incrível que, como dizem as mesmas confissões,
os oficiais da flotilha, que só havia sido enviada pelo Governo ao
Acre para o fim de proteger o livre trânsito dos vapores mercantes
brasileiros, tomassem a si a atribuição de pacificar o Acre, sem
que para isso recebessem ordens ou instruções. Dado, porém,
que assim fosse, o que aliás o Governo não procurou apurar,
responsabilizando os que excederam a sua missão, nada impedia
que as negociações continuassem NO TERRENO EM QUE
ESTAVAM COLOCADAS, tanto mais quanto os revolucionários
entregaram o território ao Governo brasileiro, representado pela
sua força armada, e fizeram lavrar dessa entrega uma ata, na
qual confiavam aos seus pacificadores a restituição desse pedaço
do solo pátrio, que eles haviam civilizado com a sua iniciativa e o
seu trabalho, e que haviam defendido com o seu esforço e com o
seu sangue...”
Fica assim perfeitamente estabelecido, pelas citações feitas no
nosso anterior artigo e pelo trecho acima transcrito:
* Publicado no Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 21 dez. 1903. Seção: Publicações a Pedido.
38
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
1º – Que em 1902 o Correio da Manhã entendia ser a melhor
solução para as dificuldades do Acre uma permuta de territórios entre
o Brasil e a Bolívia;
2º – Que em janeiro e fevereiro deste ano o Correio da Manhã
soube oficialmente e publicou – como todos os outros jornais desta
cidade – que o Sr. Barão do Rio Branco havia proposto à Bolívia a
compra dos territórios, em litígio ou não, povoados por brasileiros, e
ainda uma combinação de permuta de territórios, indenização pecuniária
e execução de velha promessa relativa à projetada via férrea do
Madeira ao Mamoré, continuando a dar a esse Ministro, durante meses,
apoio e aprovação que, sabemos, muito o penhoraram.
Depois de o haver por tal modo animado com os seus favores,
entrou repentinamente o Correio da Manhã a qualificar de vergonha e
infâmia a compra pelo Brasil de uma região em que só há brasileiros, e
de crime de lesa pátria a permuta desigual de territórios, tão desigual
(como mostravam as medidas de superfície publicadas em primeira
mão no próprio Correio), que dela resulta para o nosso país um enorme
acréscimo territorial, transformado, não obstante, nas colunas dessa
folha em “cessão de território nacional”.
Somente o Sr. Rocha Pombo, desde os primeiros meses do ano,
levava a martelar nas colunas do Correio da Manhã pelo arbitramento,
como a melhor das soluções, e estafava os seus leitores com estirados
artigos no intuito de provar à Sociedade Geográfica de La Paz que o
limite estipulado em 27 de março de 1867 é o paralelo 10º 20’ Sul.
Esses artigos devem ter pesado muito no espírito do ilustre redatorchefe e proprietário do Correio da Manhã, pois desde novembro entrou
a preconizar, como solução da contenda, o arbitramento após um
novo reconhecimento da nascente principal do Javari.
*
*
*
Quantos anos durariam essas duas campanhas, a da quarta
exploração da nascente do Javari e a do processo arbitral até a
assinatura do laudo? Pelo menos uns cinco a seis. E quantas
complicações e quantos perigos poderão surgir durante tão largo período
com os levantes dos povoadores brasileiros dessas regiões, os conflitos
entre eles e os bolivianos do Orton e Madre de Diós e as intrusões
peruanas?
39
CADERNOS DO CHDD
Demais, que certeza poderíamos ter de que sairia vencedora
perante qualquer juiz imparcial uma interpretação que o Governo
brasileiro só começou a dar em princípios deste ano, cabendo à Bolívia
o fácil papel de defender, contra essa recente interpretação, a outra
que o mesmo Governo brasileiro havia mantido invariavelmente durante
trinta e cinco anos e afirmado em numerosos documentos oficiais?
A defesa eficaz de uma causa em arbitramento internacional não
é empresa fácil como parece a alguns. É preciso que a causa seja boa
e que o advogado saiba defender. Uma coisa é escrever artigos às
pressas, em cima da perna, para gente que leva a mandriar e não
conhece e nem estuda as questões que lê, e outra muito diferente é
produzir argumentos e provas que um juiz examina, esmiuça e
aprofunda, por si mesmo e por auxiliares competentes.
Se, por exemplo, o Sr. Rocha Pombo repetisse em juízo arbitral
que o tratado de 1777 estabelece uma linha de fronteira pela divisória
das duas águas entre os rios Verde e Paragahú (Correio da Manhã de
4 de fevereiro de 1903), os jurisconsultos e geógrafos, conselheiros do
árbitro, iriam logo examinar aquele tratado e achariam, mediante simples
leitura do artigo 10º, que nele não há menção alguma desses dois
afluentes da margem esquerda ou ocidental do Guaporé e que ambos,
portanto a anticlinal citada, ficavam em terras da Coroa de Espanha,
por ser o álveo do Guaporé, a leste, a fronteira determinada no mesmo
artigo. E o árbitro tomaria boa nota de que o Sr. Rocha Pombo – o
futuro fundador da Universidade de Curitiba – ou tinha querido deitarlhe poeira nos olhos, como não raro faz nos seus leitores cariocas, ou
escrevia às vezes sem suficiente preparo. Quandoque bonus dormitat
columbus...
Admitamos que no arbitramento para a interpretação do
art. 2º do tratado de 1867 o Brasil levasse a melhor. Estariam por isso
removidas as dificuldades que queríamos resolver? De nenhum modo.
Ao sul do paralelo de 10º 20’ – máxima pretensão dos que andavam a
quebrar lanças pelos “nossos irmãos oprimidos” e a atacar o Governo
transato –, ao sul desse paralelo é que corre a maior parte do rio Acre,
com os seus afluentes Xapuri, igarapé Bahia e outros. É precisamente
nessa parte incontestavelmente boliviana que se contam em maior
número os brasileiros e as propriedades chamadas “barracões”. Dentre
esses estabelecimentos, que são outros tantos centros de população
nacional, citaremos apenas Volta de Mazagão, Guarani, Paraíso,
Capatará, Antunes, S. João do Itú, Itú de Cima, Remanso, S. Luiz,
40
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Boa União, Castilha, Floresta, Providência, Vila Nova, Natal,
Perseverança, Santa Luzia, S. Francisco de Iracema, Iracema do Meio,
Boa Fé, S. Joaquim de Iracema, Independência, Paumarizinho, Carão,
Fonte Nova, Paumari, Extrema do Paumari, Apurimã, Soledade,
Irapurinã, Aquidabã, Novo Apurinã, Sapateiro, Equador, S. Francisco,
Irapuá, Recreio, Xapuri, Guedes, Bosque, Flor do Ouro, Floresta, Sibéria,
Oliveira, Santa Fé, Santa Vitória, Nazareth, Porvir, Belmonte e Bahia,
para não alongar esta nomenclatura geográfica essencialmente brasileira.
Iríamos ao arbitramento abandonando todos os proprietários
brasileiros e seus empregados residentes na zona ao sul do paralelo
10º 20’, sacrificando milhares dos “nossos irmãos oprimidos”, que ali
continuariam a ser “tratados à bala e à faca”, como dizia o Correio da
Manhã. Durante o processo arbitral ouviríamos o grito de angústia
desses nossos compatriotas; logo depois, os seus gritos de revolta e
de guerra – contra o jugo estrangeiro. Então, os mestres de patriotismo
que agora dizem ser uma inépcia a grande aquisição territorial que o
Brasil vai fazer, clamariam contra o recurso ao arbitramento e contra o
abandono dos “nossos irmãos oprimidos”. Diriam, dessa vez com razão,
que, pelo arbitramento, nada conseguíramos resolver e que todas as
dificuldades continuavam de pé. Procurariam agitar a massa popular
contra o Governo e contra a Bolívia. Pediriam a “ação imediata e
enérgica” no Acre boliviano ao Sul do paralelo de 10° 20’ e a “invasão
da Bolívia por Mato Grosso.” O conspícuo Gil Vidal, homem que não
comete “inépcias”, nem faz “dislates”, em vez de ficar sossegado,
sairia com suas inventivas de ontem e bradaria como em 25 de janeiro
último: “Nós não podemos consentir na imolação dos nossos
compatriotas à ganância dos bolivianos... Nada mais nos resta fazer
senão o apelo às armas...”
O Tratado de Petrópolis, se for aprovado, evitará a contingência de
novos destemperos e agitações e protestos do Acre. O Tratado põe
termo à trapalhada em que andávamos metidos desde 1899 e resolve
honrosamente a questão, atendendo às mútuas conveniências do Brasil
e da Bolívia. O arbitramento a não resolveria, havendo vários fatores
para perturbar a sua marcha regular, ou daria apenas, na mais favorável
das hipóteses, uma solução demorada e deficiente.
*
*
*
41
CADERNOS DO CHDD
O Acre até pouco tempo era, para os acusadores do Governo
transato, a região mais maravilhosamente rica da América do Sul, um
território cobiçado pelos americanos do norte e pelas grandes potências
comerciais da Europa. Era preciso a todo o custo que o Acre fosse
incorporado ao Brasil desde a linha geodésica Javari-Beni até a latitude
austral de 11º.
O Sr. Lauro Sodré, em 2 de maio do mesmo ano, exclamava no
Club Militar, sendo as suas palavras cobertas de palmas entusiásticas:
“A questão do Acre não é uma questão amazonense, é uma questão
brasileira!” E acrescentava: “O Acre, que há tanto tempo desafia o
interesse das nações que vivem da guerra, que é objeto de cogitações
das nações conquistadoras, é exclusivamente criação dos brasileiros.
Aquele solo fertilíssimo foram cidadãos brasileiros que o trabalharam...”
Manoel Vitorino Pereira, no Correio da Manhã de 10 de outubro,
escrevia: “Se me não seria lícito negar aos diplomatas e governos
bolivianos louvores e elogios pelo empenho que revelam em conservar
para sua pátria a posse do fecundo e rico território, não podem eles
estranhar que aos Ministros e Presidentes do meu país eu censure a
inabilidade e imprevidência com que têm concorrido para a sua perda...”
Gil Vidal, melindrado em seu amor pátrio, dizia em 14 de setembro
do mesmo ano de 1902 que o Acre estava “inteiramente perdido” para
nós e que “só pela guerra o poderíamos reconquistar”.
Sem que fosse necessário recorrer às empresas bélicas, que a
sagacidade política de Gil Vidal andou prevendo, pode agora, em breves
dias, ficar incorporado à União Brasileira, não o Acre mínimo, com que
ele e o Sr. Rocha Pombo sonhavam, sim o Acre imensamente maior,
operando-se tal anexação mui pacificamente, per amicabilem
transactionem, como diria Justiniano, ou por “concessões recíprocas”,
como Gil Vidal desejava em 9 de fevereiro último. O Tratado de Petrópolis
assegurará esse resultado, que para ficar de todo obtido só depende
agora do voto dos dois Congressos Legislativos reunidos em La Paz e
no Rio de Janeiro.
Mas... mudam os tempos e transformam-se os escritores do
Correio da Manhã. Aquelas florestas do Acre, por eles tão apetecidas e
choradas quando em poder do estrangeiro, assunto ou pretexto para
tantos assomos de patriotismo, hoje que podem ficar sendo
definitivamente nossas, já não prestam para nada, segundo os mesmos
escritores. “... Poderíamos observar”, escreveu o Sr. Rocha Pombo no
42
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Correio da Manhã de 5 do corrente mês, “Poderíamos observar que,
em qualquer caso, não faríamos mais senão comprar muito caro terras
inóspitas, quando é certo que possuímos terras de sobra... Basta que
o tratado seja repelido por qualquer dos dois Congressos e estaremos
aí com o problema cada vez mais insolúvel. Mais insolúvel não seria de
espantar tanto: o que faz gelar a alma nacional é o risco de ver sem
solução o problema e sem mudar a conjuntura amargante a que
fomos levados, tendo de ficar com o Acre como um báratro aberto, a
tragar vidas e vidas... sem se saber bem por que nem para que...”
O Sr. Rocha Pombo, que queria intervenção militar no Acre para
libertar “os nossos irmãos oprimidos”, que aconselhava a tomada dessa
“fertilíssima região” à viva força e a invasão da Bolívia por Mato Grosso,
agora tem o desembaraço de lamentar que fiquemos com o Acre, de
dizer que “fomos levados” ao que chama uma “conjuntura
amargurante”, e de acrescentar que não sabe bem “porque nem para
que” ficaremos com o Acre.
Não sabe porque nem para que ? Pois releia os seus escritos de
quase um ano atrás e neles achará a resposta e a explicação.
*
*
*
E depois, que polemista de truz! Com que habilidade defende as
causas que abraça!
Em 5 de dezembro, no trecho acima transcrito, mostra-se aterrado
com as conseqüências da rejeição do Tratado por qualquer dos dois
Congressos. Em outro tópico do mesmo artigo diz: “Imaginemos, porém,
que o nosso Congresso, afinal convencido de que se trata não de
cessão, mas de troca de territórios, aprove o Tratado: e se o Congresso
boliviano não estiver pelos autos? Esta hipótese é talvez a mais grave
de todas...”
O Sr. Rocha Pombo acha que o caso é muito grave e não pode
“prever as conseqüências do perigo”.
Entretanto, no dia 10 – cinco dias depois – deseja a rejeição do
tratado pela Bolívia, provoca o caso gravíssimo, prenhe de perigos, e
estimula nestes termos o povo boliviano a levantar-se contra o ajustado:
“Mas esquecendo por um instante a nossa desgraça: é possível
que o povo boliviano – se é que ainda há povo, como acreditamos,
43
CADERNOS DO CHDD
no Alto Peru das eras passadas – é possível que o povo boliviano
deixe, passivo e inconsciente, que se consuma este negócio
escandaloso, este assombro de irrisão, no qual, se o nosso papel
é de uma barbaridade atrocíssima e de um descomunal desdém
pela pátria, a parte da Bolívia é a ofensa mais pungente ao seu
pudor de nação? Estará de todo morto na alma daquele povo o
sentimento nacional, e de modo tão desesperador, que nem mais
se deva esperar dele um simples movimento de repulsa a um
atentado de semelhante natureza?...”
Pode dar-se melhor documento da desorientação de um espírito?
Que brasileiro é este que se não contenta de pretender dar lição de
moral e patriotismo aos negociadores brasileiro e boliviano do Tratado
de Petrópolis e chega até a querer ser mais boliviano do que os próprios
bolivianos? E ousa falar em “barbaridade atrocíssima” e “descomunal
desdém pela pátria brasileira” o homem que assim desdenha os que
ontem chamava “nossos irmãos oprimidos” e hoje prefere ver de
novo tratados pelo estrangeiro “à bala e à faca”!
___________________________________________________________________
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
– Jornal do Brasil. 22 dez. 1903.
– O Paiz. 22 dez. 1903.
– A Tribuna. 22 dez. 1903.
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ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
A QUESTÃO DO ACRE E O TRATADO COM A BOLÍVIA IV*
KENT
Já vimos que em 1902, pela pena tão competente do nosso
sempre lembrado Manoel Vitorino Pereira, o Correio da Manhã
insinuou iterativamente a conveniência de resolvermos as complicações
do Acre por meio de uma permuta de territórios, permuta pura e
simples, acarretando, portanto, a transferência para a Bolívia de uma
área de território, incontestavelmente brasileiro, igual àquela sobre que
queríamos haver o domínio eminente. Vimos também que nos primeiros
meses deste ano o Correio da Manhã acolheu sem nenhum comentário
desfavorável, antes com mui manifesta simpatia, a notícia de estar o
atual Ministro das Relações Exteriores negociando, ou procurando
negociar, não só sobre a indicada base de permuta de territórios, mas
também, e principalmente, sobre a de uma indenização pecuniária à
Bolívia em razão da falta de equivalência nas áreas a permutar.
Vejamos agora, nos seguintes extratos, como o mesmíssimo jornal se
pronuncia hoje sobre as bases que aconselhava ou que lhe não
repugnavam antes, e até que ponto eleva o diapasão das suas habituais
contumélias.
1)
O tratado “é a vergonha de dois povos. Não é um ato
diplomático e sim uma vergonhosa transação de compra e
venda em grosso” (5 de dezembro).
2)
“O tratado do Acre será a mancha negra da nossa história”
(9 de dezembro).
3)
“O que se fez agora não é um tratado, não é um contrato: é
antes uma escritura de negócio...”(artigo Rocha Pombo, de
10 de dezembro).
4)
“Alcançamos, a peso de ouro, dez vezes mais do que o
Império – dizem os próprios bolivianos – alcançara em 1867
do general Melgarejo, cuja memória, aliás, é hoje tão detestada
por aqueles mesmos de quem se espera a aprovação do
ímpio, sacrílego tratado...” (Ibidem).
* Publicado no Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 23 dez. 1903. Seção: Publicações a Pedido.
45
CADERNOS DO CHDD
5)
“Para dourar a pílula, damos à impiedade uns ares de acordo
legítimo, de lícita conciliação de interesses... como se se
tratasse de troca de territórios. Compramos as terras; os
vastos latifúndios de que a caudilhagem vizinha se apropriara
na zona que nos é vendida...” (Ibidem).
6)
“O tratado seria para a Bolívia um opróbrio e para nós, além
de opróbrio, seria um desastre talvez incalculável...” (10 de
dezembro).
7)
“É uma obra descomunalmente abusiva e comprometedora
das nossas tradições...” (Ibidem).
8)
“É um crime contra nós próprios desagregando o nosso
território... Pois nós que nunca cedemos a ninguém (e sob
pretexto algum, por mais ponderoso que se imagine) um
palmo se quer de terra pátria, vamos agora disfarçar um
negócio oprobrioso entregando à Bolívia pedaços de solo
sagrado...!” (Ibidem).
9)
“Porque enfrentamos com povo fraco e pobre nos erigimos
em fortes para liquidar questões a golpes de força e a peso
de dinheiro...” (Ibidem).
10) “Dislate de uma Chancelaria desmoralizada...” (artigo de Gil
Vidal, scilicet, Leão Velloso, 19 de dezembro).
11) “Obra inepta, requintada pelo desprezo das severidades do
melindre nacional” (mesmo Sr. Leão Velloso, artigo citado).
12) Ato de “um governo réprobo” (mesmíssimo Sr. Leão Velloso,
em artigo de novembro).
Ponhamos de lado os palavrões e doestos contidos nos tópicos
que acabamos de transcrever, bem como os impatrióticos incitamentos
com que neles se procura resolver a Bolívia a recusar-nos uma verdadeira
vastidão de terras feracíssimas, trabalhadas por milhares de brasileiros.
Consideremos somente os pontos que nos interessa esclarecer.
*
*
*
No trecho 8º, acima, o Sr. Rocha Pombo insiste em que “nunca
cedemos a ninguém um palmo sequer de terra pátria”.
46
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Reportamo-nos ao que ficou dito no nosso primeiro artigo. Aí terá
visto o mal informado autor do “Compêndio da História da América”
que, pela convenção de 27 de agosto de 1828, renunciamos a uma
província inteira, com 187.000 quilômetros quadrados, e que nas de
4 de setembro de 1837 e de 11 de fevereiro de 1874 estipulamos
permutas de território com o Uruguai e com o Peru. Hoje acrescentaremos
outro tratado nosso: o concluído em Montevidéu aos 15 de maio de
1852 por Carneiro Leão (depois Marquês de Paraná) e Florentino
Castellanos, e no qual renunciamos, em favor do Uruguai, a meia
légua de terra na foz do Cebollaty e outra meia légua de terra na do
Tacuari. Não é muito, mas sempre é mais do que o palmo de terra de
que fala o Sr. Rocha Pombo.
Nos trechos 1º, 3º e 5º supratranscritos, diz-se que o Tratado de
Petrópolis “não é um ato diplomático”, “não é um tratado”, “não é um
acordo legítimo nem uma lícita conciliação de interesses”, é sim “uma
vergonhosa transação de compra e venda em grosso”, uma “escritura
de negócio”, “a vergonha de dois povos”.
Mui pouco versados em direito internacional e em história política e
diplomática são os que escreveram tais coisas.
Não necessitamos de recorrer a jurisconsultos estrangeiros para
mostrar que é muito regular e legítima, em direito, a aquisição derivativa
que o Brasil vai fazer, e muito usual, nas relações internacionais, a
transação a que chegaram os dois Governos, do Brasil e da Bolívia.
Temos prata de casa.
Abramos o tomo 1º dos Princípios de Direito Internacional do
Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira (Rio, 1902):
“§ 92. – Constituem títulos legítimos de aquisição de território
os tratados e convenções que pertencem à classe daqueles pelos
quais se transferem direitos e que se podem reduzir aos seguintes:
cessão gratuita, compra e venda, permuta, transação, partilha,
demarcação de limites.
.............................................................................................”
“A compra e venda, como modo de cessão de territórios
entre as nações, tem sido usada ainda em tempos recentes.
.............................................................................................”
“§194. – Muitas vezes um Estado, ou sob a pressão das
circunstâncias em que se acha, ou por interesses e conveniências
47
CADERNOS DO CHDD
de ordem política, administrativa ou econômica, é levado a ceder
a outro uma parcela de território, uma certa região, ilhas ou
possessões remotas.
A cessão importa a transferência ao cessionário, por parte do
cedente, de todos os direitos de soberania sobre o território
alienado, com o ônus e obrigações que o gravam, salvo as
reservas expressas.
São cláusulas usuais e peculiares desta espécie de tratados:
[...].
.............................................................................................
A cessão de território pode ser gratuita, mas de ordinário ela
se realiza a título oneroso, por via de permuta, de compra e
venda, de dação in solutum e ainda como compensação de
prejuízos e danos sofridos.”
Os nossos leitores decidirão entre a recente opinião do Correio da
Manhã, de um lado, e do outro, a autoridade de Lafayette Rodrigues
Pereira e de uma centena de outros mestres ou expositores do direito
internacional que poderiam ser citados.
No que diz respeito à alegada imoralidade da compra e venda de
territórios entre nações, podemos apelar não só para a autoridade dos
homens do direito, mas também para a de um ilustre patrício nosso, o
Sr. Miguel Lemos. Pelo Jornal do Commercio de 25 de janeiro disse ele:
“... Fomos dos que reprovaram a absurda e arriscada
concessão da região acreana feita pelo Governo da Bolívia a um
sindicato estrangeiro, e bem assim deploramos que essa República
não tivesse aceitado a proposta da compra da mesma região,
que o Brasil lhe fez recentemente, segundo dizem...”
*
*
*
Passemos aos precedentes de tratados de cessão, permuta, e
compra e venda de territórios.
Celebrados por potências européias, há muitíssimos. Basta
mencionar os que concluíram, em 24 de março de 1860, o Piemonte e
a França, e em 12 de fevereiro de 1899 a Espanha e a Alemanha.
48
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Por este último, o Império alemão comprou os arquipélagos das
Carolinas, Palaos e Marianas, exceto a ilha de Guam, já cedida aos
Estados Unidos, recebendo a Espanha por essas ilhas, cuja superfície
é de apenas 2.076 quilômetros quadrados, 16.593.373 marcos ou
£ 829.918 e 13 shillings. Se a transferência de territórios pudesse ser
cotada pela extensão dos mesmos, o nosso desembolso, a julgar pela
operação que fez a Alemanha em 1899, deveria ser agora de mais
£ 76.355.000, em vez de £ 2.000.000.
O outro tratado é mais interessante. As suas linhas gerais ficaram
combinadas e assentadas desde julho de 1859, na célebre conferência
de Plombières, entre o grande Cavour e Napoleão III, embora o tratado
só fosse assinado oito meses depois. Por ele, e com assentimento das
Câmaras piemontesas, o Rei galantuomo cedeu a Sabóia, berço da
sua dinastia, e Nizza, pátria de Garibaldi, ao imperador dos franceses.
Prevaleceu em Turim a razão de Estado. Cavour entendeu dever
abandonar à França esses 15.190 quilômetros quadrados de terra
encantadoramente bela para conseguir a anexação ao Piemonte do
Reino Lombardo-Veneziano e poder prosseguir na grande obra da
unificação da Itália.
Na história da América há vários exemplos de tratados de cessão,
permuta, e compra e venda de territórios.
Já citamos os concluídos pelo Brasil. Vejamos os celebrados pela
república dos Estados Unidos, a qual, principalmente por compra,
conseguiu adquirir a maior parte do território que hoje possui.
1)
Sendo Presidente Thomas Jefferson: Tratado de Paris, de 30
de abril de 1803, com a República Francesa, negociado por
James Monroe e Robert Livingston.
Nesse instrumento ficou estipulada a venda aos Estados Unidos,
pelo Governo de Napoleão Bonaparte, da Luisiana, cuja população
branca era toda de origem e língua francesa. Custou essa aquisição
territorial ao comprador 16 milhões de dólares, ou 80 milhões de francos,
ou £ 3.200.000. A renda federal em 1803 era apenas de 11.604.000
dólares. Portanto, se o sacrifício que agora vamos fazer em dinheiro
fosse proporcionado ao que então fizeram os americanos do norte,
em vez de 40 mil contos, teríamos que despender 422 mil.
49
CADERNOS DO CHDD
2)
Na Presidência de James Monroe : Tratado de 22 de fevereiro
de 1819, negociado pelo seu Secretário de Estado John Quincy
Adams, depois 6º presidente dos Estados Unidos.
Da fixação de fronteiras estipulada nesse tratado resultou a cessão
feita à Espanha da parte ocidental da Luisiana, comprada pelos Estados
Unidos em 1803, e a aquisição, por esta república, das duas Flóridas, a
oriental e a ocidental, comprometendo-se o Governo americano a pagar
reclamações no valor de 6.500.000 dólares, ou £ 1.300.000.
3)
Na Presidência de John Tyler (“em cujo período nada ocorreu
de notável”, segundo o Sr. Rocha Pombo, não sendo, portanto,
fato notável para este escritor a anexação do Texas): Tratado
de limites com a Grã-Bretanha, no qual foram admitidas “as
equivalências e compensações que pareceram justas e
razoáveis”, diz o preâmbulo (“such equivalents and
compensations as are deemed just and reasonable”). Foram
negociadores o célebre Daniel Webster, então secretário de
Estado, e Lord Ashburton.
Em virtude desse tratado, passou para o Canadá um território de
14.806 quilômetros quadrados, que estava em litígio entre os Estados
do Maine e de Massachussetts, no ângulo nordeste dos Estados
Unidos, ganhando estes um pequeno trato na fronteira do Estado de
Nova York.
4)
Na Presidência de James Polk : Tratado com a Grã-Bretanha,
concluído em Washington aos 17 de julho de 1846, negociado
por James Buchanan, então secretário de Estado, depois 15º
presidente.
Este tratado dividiu entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha o
imenso território do Oregon, que estava em litígio.
5)
Na mesma Presidência Polk : Tratado de paz, amizade e limites
assinado em Guadalupe-Hidalgo, no dia 2 de fevereiro de
1848. Negociador americano, Nicholas P. Trist.
Os exércitos dos Estados Unidos, depois de várias vitórias,
ocupavam a Cidade do México e grande parte do país. Esquadras
50
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
americanas bloqueavam os portos do México. O Governo americano,
jure victoriae, poderia ter anexado à União os vastos territórios da
Califórnia e Novo México, que lhe convinham. Preferiu comprá-los,
custando-lhe a aquisição o seguinte:
Dólares
Transferência de Domínio (art. XII) ..............................
Libras
15.000.000
3.000.000
1.700.000
340.000
8.250.000
650.000
19.950.000
3.990.000
63.000.000
12.600.000
82.950.000
16.590.000
Pagamento que tomou a si de reclamações estrangeiras
contra o México (art. XIII), sem que levemos aqui em conta
os juros .....................................
Pagamento que prometeu fazer aos americanos que tinham
reclamações contra o México (art. XV) ............
Adicionando as despesas de Guerra .............................
6)
Presidência de Franklin Pierce : Tratado concluído na Cidade
do México em 30 de dezembro de 1853, sendo negociador
americano James Godsden.
Objeto único do tratado: compra pelos Estados Unidos e venda
pelo México do Valle de Mesilla e do território ao sul do rio Gila (Arizona
Meridional). Preço pago, £ 2.000.000.
Notemos de passagem, em primeiro lugar, que a superfície do
território então adquirido pelos Estados Unidos era de 117.840 quilômetros
quadrados, portanto muito menor do que a dos que vão entrar agora
para o nosso patrimônio; e, em segundo, que, salvo o pequeno vale
de Mesilla, tudo o mais formava o chamado Deserto de Gila, só
percorrido por alguns índios selvagens, e cuja população, 17 anos
depois, em 1870, orçava apenas por 9.600 habitantes, ao passo que
os territórios que nos vão advir contém uma população de 60.000
brasileiros laboriosos.
51
CADERNOS DO CHDD
7)
Na Presidência de Andrew Johnson: Convenção de Washington,
de 30 de março de 1867 com a Rússia, sendo negociador
americano o secretário de Estado H. Seward.
Compra do Alaska e ilhas adjacentes por 7.200.000 dólares ou
£ 1.440.000.
8)
Na Presidência Mackinley : Tratado de paz com a Espanha,
de 10 de dezembro de 1898, negociado em Paris.
No art. 3º se encontra a estipulação relativa à cessão das ilhas
Filipinas aos Estados Unidos, mediante indenização de 20 milhões de
dólares ou 4 milhões de libras esterlinas; no art. 4º a cláusula relativa a
favores comerciais concedidos à Espanha; no 7º, a obrigação que
assumem os Estados Unidos de julgar e liquidar as reclamações dos
seus nacionais contra a Espanha. Sem levar em conta gastos que esta
última cláusula acarretou, os Estados Unidos despenderam:
Dólares
Compra das Filipinas ...........
Libras
20.000.000
4.000.000
Despesas de Guerra .............. 195.000.000
39.000.000
215.000.000
43.000.000
Deve-se acrescentar que também a ilha de Porto Rico foi então
cedida aos Estados Unidos pela Espanha por imposição do vencedor.
*
*
*
Temos, portanto, que os Estados Unidos concluíram:
Cinco tratados de compra e venda de territórios com a França,
México, Rússia e Espanha (nºs. 1, 5, 6, 7 e 8 supra);
Um tratado de que resultou permuta desigual de territórios,
completada por uma soma de dinheiro (nº 2, com a Espanha);
Outro tratado de limites de que resultou também permuta de
territórios (nº 3, com a Grã-Bretanha);
52
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Um tratado de divisão de vastíssimo território em litígio, sobre o
qual o Governo americano havia sempre afirmado ter direito incontestável
(n°. 4, com a Grã-Bretanha).
*
*
*
Depois do exposto e em vista das autoridades e dos exemplos
citados, o leitor certamente convirá conosco que os escritores do Correio
da Manhã são um tanto imodestos quando, a propósito do tratado de
Petrópolis, vituperam os negociadores brasileiros e bolivianos e pensam
poder dar lições de direito internacional, de direito diplomático, de
patriotismo, de moralidade e honra a homens como os presidentes
Rodrigues Alves e General Pando e os plenipotenciários do Brasil e da
Bolívia, Srs. Barão do Rio Branco, Assis Brasil, Guachalla e Pinilla.
Os dois presidentes e os quatro plenipotenciários têm em seu
favor as provas já feitas em sua não curta vida pública, assim como
os exemplos de Thomas Jefferson, James Monroe, Bonaparte, John
Quincy Adams, Daniel Webster, James Buchanan, Franklin Pierce, Conde
de Cavour, H. Seward e muitos outros.
___________________________________________________________________
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
– O Paiz. 24 dez. 1903.
– Jornal do Brasil. 24 dez. 1903.
– A Tribuna. 24 dez. 1903.
53
CADERNOS DO CHDD
O TRATADO DE PETRÓPOLIS*
KENT
Como ainda nestes últimos dias alguns jornalistas têm contestado
ao Governo Federal e ao Congresso o direito de negociar e aprovar
tratados da natureza do de Petrópolis, parece-nos conveniente reproduzir
o notável artigo que, sob o título de Soberania e Acre, publicou na
parte editorial do Jornal do Commercio, a 20 de novembro último, o
eminente jurisconsulto Dr. J. ISIDORO MARTINS JUNIOR, catedrático
na nossa Faculdade de Direito do Recife. Nesse artigo, sustenta ele a
mesma doutrina que defendeu no Congresso Jurídico Americano, em
1900, e que ali ficou vencedora por quase unanimidade de votos,
entre os quais os dos senadores Gomes de Castro e Coelho de Campos;
deputados Luiz Domingues, Henrique Salles, João Vieira, Sá Freire,
João Luiz Alves e Paranhos Montenegro; ex-senadores Ubaldino do
Amaral, Coelho Rodrigues, Gonçalves Chaves e Amaro Cavalcanti; exdeputados Xavier da Silveira e Pinto da Rocha; professores de direito
Carlos Gusmão, Bandeira de Mello, Lima Drummond, Inglês de Souza
e Souza Bandeira.
Outras ocupações nos impedem neste momento de tomar em
consideração as objeções que a esse e outros respeitos têm sido
formuladas nos últimos dias. Aos que se espantam de que o Governo
de um Estado Federal e o Congresso dos Representantes de uma
Nação assim constituída, sem consulta prévia aos Cantões ou aos
Estados particulares, formadores da União, disponham de pequenas
nesgas de território nacional, bastará afirmar por hoje que o Governo
e o Congresso em um Estado Federal têm o poder de ceder não só
trechos de território nas fronteiras, mas até um Estado inteiro, em
caso extremo, como medida de salvação pública ou no interesse da
toda a Nação, como ensinam jurisconsultos dos Estados Unidos da
América.
Mesmo na Suíça, a competência do Governo Federal e da
Assembléia Federal é reconhecida para celebrar tratados de retificação
de limites. Assim aconteceu no caso da negociação do tratado com a
França relativo à fronteira entre o Mont Dolent e o Lago Leman, caso
em que o Conselho Federal recusou a solicitada intervenção do Cantão
* Publicado no Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1º jan. 1904. Seção: Publicações a Pedido.
54
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
de Valais, respondendo que as fronteiras com o estrangeiro eram
fronteiras da Suíça e não dos Cantões. As duas câmaras chamadas
Conselho dos Estados e Conselho Nacional, que formam a Assembléia
Federal Suíça, sancionaram tal doutrina, apesar dos protestos dos
representantes do Valais.
Vai em seguida o magistral estudo do Dr. Martins Junior3.
3 Estudo intitulado “Soberania e Acre”, publicado no Jornal do Commercio de 20 de novembro de
1903.
55
CADERNOS DO CHDD
CENSURAS PLATINAS*
O nosso ilustre colega do Jornal do Brasil deu-nos em sua edição
de anteontem largos extratos de um artigo de La Prensa, de Buenos
Aires, assinaladamente desagradável para o Brasil. Temos agora à
vista o texto desse artigo, que pedimos pelo telégrafo ao nosso
correspondente em Buenos Aires e não nos devemos furtar a emitir
as considerações que ele nos sugere. Obsedada por uma sorte de
idéia fixa, La Prensa começa esse artigo, intitulado El Brasil en el
continente, repetindo observações que já fizera sobre a projetada
reorganização naval do Brasil; afirma aos jornais fluminenses que a
imprensa de Buenos Aires não se alarma com o armamento naval que
o Brasil prepara, apenas aconselha o Governo argentino que imite o
bom exemplo que dá o Brasil para a defesa de seus interesses.
Desse assunto já tratou O Paiz com muita largueza. Seria, porém,
conveniente repetir alguma coisa do que já disse. Até 1893, e desde a
sua independência, o Brasil foi sempre a primeira potência naval da
América do Sul; mas nem mesmo no tempo em que a esquadra
argentina se compunha apenas dos vapores Guardia Nacional e Pavon,
a armada brasileira foi uma ameaça ou um perigo para a República
Argentina. Mesmo naquele tempo, compreendendo melhor do que certos
políticos argentinos os verdadeiros interesses desta parte do continente,
procurávamos e queríamos a amizade e a aliança argentina. Pode-se
dizer com segurança que sem a nossa vitória naval de Riachuelo
(atribuída pela Prensa, em 11 de junho último, ao prático Bernardino) a
esquadra e os exércitos de Solano Lopez teriam facilmente chegado
até Buenos Aires. Nestes últimos quinze anos, causas sobejamente
conhecidas determinaram o enfraquecimento do exército e da marinha
de guerra do Brasil. A revolta de uma parte da esquadra em 1903 fez
a nossa marinha decair do primeiro para o terceiro plano. Enquanto
isso acontecia a Argentina criou rapidamente uma poderosa esquadra.
Não lhe pedimos contas por isso e não nos assustamos com tão
grande aumento do seu poder naval. Agora, tratamos apenas de
reconquistar em parte a posição perdida e devíamos esperar que a
imprensa argentina imitasse a calma e a segurança que mostramos
quando o seu país se armava. Temos um litoral imenso e um vasto
* Publicado no Jornal O Paiz. Rio de Janeiro, 18 jan. 1905.
56
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
sistema de comunicações fluviais a defender e a proteger. Não podemos
prescindir de esquadra e se a República Argentina entender que a
sua não deve ser inferior à nossa, não nos queixaremos ou gritaremos
por isso.
Na previsão de futuros perigos, é conveniente que as três maiores
repúblicas da América do Sul – o Brasil, a Argentina e o Chile – se
ponham em bom pé de defesa. Mais importante, porém, é que, pelas
obras de paz, dentro de meio século, elas sejam três grandes e
poderosas nações, prósperas e ricas. O general Roca, estadista de
vistas largas, compreendia isso, quando pôs um paradeiro aos
armamentos argentinos, e, rompendo com a política de desconfianças
e ódios, procurou unir em um grande pensamento de concórdia a
Argentina, o Brasil e o Chile. Em 1903, no desenvolvimento lógico das
idéias que defendia, esforçou-se ele para que o Brasil igualasse
imediatamente as suas forças navais às da Argentina e do Chile,
adquirindo os navios que as duas repúblicas tinham em construção nos
estaleiros da Europa.
La Prensa vê no nosso projeto de lenta reconstituição naval e na
criação da embaixada brasileira em Washington a pretensão de firmar
a nossa hegemonia no continente. Atribuiu-nos aquilo que ela deseja
para o seu país e que nunca pretendemos. Não andamos procurando
influir na vida interna ou na política dos povos vizinhos. O Brasil não
exporta revoluções para os outros países do continente, não só porque
entende que essa exportação é perigosa porque alimenta na própria
casa o espírito revolucionário, mas também porque os continuados
pronunciamentos e guerras civis desacreditam esta parte do mundo e
fazem falar, na Europa e nos Estados Unidos, das “turbulentas repúblicas
da América do Sul.” La Prensa é jornal que andou sempre a assanhar
ódios contra o Brasil e contra o Chile, contrariando assim a política de
congraçamento a que se consagrou o general Roca.
Tomou sempre partido dos adversários do Chile e do Brasil. Por
isso, volta a falar na nossa questão finda com a Bolívia, sobre que
escreveu tantos despropósitos, e sobre a nossa questão com o Peru
de que também tem tratado sem nenhum conhecimento de causa,
aceitando tudo quanto lhe impinge qualquer jovem peruano, que, para
se dar por erudito, remonta ao tratado de Tordesilhas.
A questão com a Bolívia terminou, ficando essa República satisfeita
com as grandes e valiosas compensações que lhe demos para salvar
os nossos nacionais da dominação estrangeira e para livrá-la dos estéreis
57
CADERNOS DO CHDD
sacrifícios que andava a fazer no Acre. A questão com o Peru é natural
que acabe também pacífica e honrosamente. O Peru é um país que
tem questões com todos os seus vizinhos e que até aqui não as tem
podido resolver, tão extraordinárias e exageradas são as suas
pretensões. Com o Brasil, assinou um tratado definitivo de limites em
1851, depois de reconhecer a nulidade do tratado preliminar, ou
provisório, de 1777, e, expressamente, que era o uti possidetis que
devia regular a determinação da fronteira dos dois países. Estipulando
então o limite do Javari, admitiu ipso facto que nada possuía a leste
desse rio, nas bacias do Juruá e do Purus. Apesar disso, é baseado
unicamente no caduco tratado de 1777 que o Peru nos reclama 440.000
quilômetros quadrados de território em que desde longa data estão
estabelecidos mais de 100.000 brasileiros e trabalham, há apenas alguns
anos, uns 2.000 caucheiros peruanos de passagem. E porque nos não
apressamos a ceder às exigências peruanas, La Prensa lança sobre
nós os raios de sua condenação!
O que, porém, estomagou seriamente La Prensa foi a recente
criação de uma embaixada brasileira em Washington. Viu nisso uma
ofensa às outras repúblicas da América Latina. Algumas delas, diz, hão
talvez fazer sentir o seu desagrado por essa situação de “inferioridade
representativa em Washington”.
Não se pode imaginar desabafo mais insensato. Entenda-se La
Prensa a esse respeito com o Presidente Roosevelt e com os Estados
Unidos da América que resolveram estabelecer uma embaixada
americana no Rio de Janeiro, como já tinham uma no México.
Que queria La Prensa que fizéssemos? Que lhe pedíssemos licença
para poder corresponder à fineza da nossa grande irmã do norte,
elevando também a categoria do nosso representante em Washington?
Julgou-se a República Argentina alguma vez ofendida pelo fato de ter o
México um embaixador em Washington? Acredita La Prensa que em
Montevidéu, por exemplo, onde a República Argentina tem um enviado
extraordinário e ministro plenipotenciário e a Grã-Bretanha um simples
ministro residente, esta grande potência fica valendo menos do que a
República Argentina? Em Paris, Londres, Berlim, Viena d’Áustria e Roma,
onde a República Argentina mantém enviados extraordinários e mesmo
em Petersburgo onde apenas tem um encarregado de negócios, há
vários embaixadores, sem que daí La Prensa tire motivo de ofensa, e
sem que ninguém entenda que a República Argentina seja nação menos
soberana ou importante do que as outras.
58
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Para a graduação dos representantes diplomáticos militam apenas
razões de ordem política e comercial, ou de ordem orçamentária. Uma
nação não fica sendo menos ou mais importante porque se faz
representar por ministro residente ou por um embaixador.
Quanto à hegemonia ou preeminência na América do Sul, não a
queremos disputar com a República Argentina.
No Pacífico, ela pertence inquestionavelmente aos nossos amigos
do Chile, cuja esquadra nunca se há de reunir a outra para combater o
Brasil, como imaginou há dias certo jornal de Buenos Aires. Na parte
do Atlântico, teremos sempre prazer em dividir com a República
Argentina, se assim se pode dizer, a parte de hegemonia que nos
cabe. Mas não é às novas embaixadas que a deveremos. Já em 1894
Elisée Réclus escrevia na sua monumental geografia:
“Le premier rang dans l’Amérique Latine appartient
incontestablement au Brésil, inférieur seulement à trois grands
Etats du monde – la Russie, la Chine, les Etats-Unis, et rivalisant
en étendue avec la Puissance du Canadá. Par la superficie il égale
presque l’ensemble des territoires hispano-américains du continent
méridional et ne leur céde guère par le nombre des habitants;
même en tenant compte des populations du Méxique, de l’Amérique
Centrale et des Antilles espagnoles et françaises, le Brésil représente
un tiers de tous les latinisés du Nouveau Monde...”
Não sabemos se a atitude de La Prensa corresponde a alguma
corrente de opinião no seu país; mas, seja como for, é preciso reconhecer
de modo categórico que essa atitude é positivamente impertinente.
Não agimos senão estritamente dentro das nossas faculdades de
nação soberana; e qualquer que seja a preeminência que La Prensa
reivindique para a República Argentina, forçoso lhe será reconhecer
que ela ainda não chegue ao extremo de nos ditar a lei dentro de
nossa casa.
___________________________________________________________________
Artigo também publicado no seguinte periódico:
– Jornal do Commercio, 19 jan. 1905.
59
CADERNOS DO CHDD
BRASIL, BOLÍVIA E PERU*
Há confusão e erro manifesto nas linhas com que o Jornal do
Brasil procedeu ontem à publicação de uma carta de Manaus.
Recorda o mal informado comentador que há meses o mesmo
correspondente já havia assinalado um erro no traçado estabelecido
pelo tratado de Petrópolis, erro que acarreta grande perda de território
em benefício da Bolívia, e acrescenta que a carta confirma aquele erro
dado da determinação da linha Cunha Gomes, isto é, na locação da
oblíqua traçada da nascente do Javari à confluência do Beni, por
comissários brasileiros e bolivianos, em execução do tratado concluído
em La Paz aos 27 de março de 1867.
Em primeiro lugar o erro precedentemente apontado nada tinha
que ver com a linha oblíqua ao Equador, vulgarmente chamada Cunha
Gomes, mas sim com a do paralelo de 10 graus e vinte minutos,
desde o Abunã até ao Rapirran, muito ao sul daquela oblíqua, e com a
que, pelo tratado de Petrópolis, deve acompanhar o Rapirran. Este rio,
segundo se diz, é afluente do Abunã e não do Iquiri. Dado que assim
seja, o erro em nada prejudicará o Brasil, pois o tratado de Petrópolis
também determina que a fronteira siga o curso do Rapirran até a sua
nascente.
Portanto, se os mapas de que se serviram os negociadores
estavam errados, nada mais fácil do que corrigir o engano, evitando
que haja prejuízo para um e outro país, prejuízo que, aliás, seria de
somenos importância.
Bastará que se observe o tratado seguindo, do Abunã para o
oeste, como ele determina, o paralelo de 10 graus e 20 minutos e, não
podendo essa linha alcançar o Rapirran, que ela termine no ponto em
que encontre o meridiano da confluência do mesmo e continue por
esse meridiano na direção do sul, e depois pelo álveo do rio, desde a
sua confluência até a origem principal.
O engano que o correspondente de Manaus diz ter sido agora
descoberto pelos comissários do Brasil e do Peru, Srs. Euclydes da
Cunha e Buenaño, incumbidos da exploração do Alto Purus, não implica
* Texto publicado em O Paiz. Rio de Janeiro, 4 jan. 1906. Atribuído ao Barão do Rio Branco
(Ganns, Cláudio. Bibliografia sobre Rio Branco. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores,
1946, p. 18).
60
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
de modo algum com a próxima demarcação de limites brasileiro-boliviana
ou com o tratado de Petrópolis de 1903, nem tampouco com o acordo
provisório de modus vivendi firmado pelo Brasil e pelo Peru em 1904.
Afirma o correspondente que os citados comissários do Brasil e do
Peru acabam de verificar que a linha oblíqua do tratado de 1867 não
corta o Purus em Barcelona, mas sim nove minutos ou nove milhas ao
sul, isto é, que os cálculos feitos por Cunha Gomes e Thaumaturgo de
Azevedo estavam errados, e termina dizendo, com a sua já provada
ignorância destes assuntos, que “o Brasil mais uma vez foi embrulhado,
comprando à Bolívia território incontestavelmente amazonense”.
Quem, entretanto, refletir dois minutos, lendo a desconcertada
carta de Manaus, compreenderá imediatamente que o que compramos à
Bolívia pelo tratado de Petrópolis não foi a insignificante e estreita nesga
de terra compreendida entre a oblíqua Cunha Gomes e a nova oblíqua
que se teria de traçar, nesga de terra cuja largura Norte-Sul, em
Barcelona, seria apenas de nove milhas ou três léguas.
O que compramos, e assim recuperamos, foi imenso território
que cedêramos à Bolívia em 1867 e que se estende da oblíqua JavariBeni às nascentes do Purus e do Juruá, abrangendo uma superfície de
200.000 quilômetros quadrados4.
Admitamos que as coordenadas dos dois pontos de interseção no
Purus, determinadas pelo Coronel Thaumaturgo de Azevedo e pelo
General Pando, quando fizeram a demarcação, estejam erradas.
Admitamos que a linha oblíqua Javari-Beni, que, pelo tratado de 1867
formava a fronteira entre o Brasil e a Bolívia, devesse passar mais ao
sul. O tratado de Petrópolis não sofreria com isso modificação de espécie
alguma. O tratado não fez menção dessa linha oblíqua, nem tinha que
fazer, porque os limites que estabeleceu ficam muito ao sul da mesma.
A dúvida levantada não interessa, portanto, à nossa demarcação
de limites com a Bolívia e não tem também importância alguma do
ponto de vista das nossas questões pendentes com o Peru: 1º, porque
a pretensão peruana vai muito ao norte da tal linha oblíqua, até o
paralelo que corre da nascente do Javari à margem esquerda do Madeira
(linha de Santo Ildefonso); 2º, porque os territórios provisoriamente
neutralizados pelo Brasil e pelo Peru demoram muito para ao sul da
mesma oblíqua.
4
A versão publicada no Jornal do Comércio refere-se a 209.000 km2.
61
CADERNOS DO CHDD
A questão só interessa hoje à União e ao Estado do Amazonas,
pois se houve erro na demarcação Thaumaturgo-Pando, o Amazonas
ganhará uma pequena nesga de terra no território federal do Acre.
Todos sabem que a tão discutida linha oblíqua, hoje divisa entre o
Estado do Amazonas e o território federal do Acre, tem por pontos
extremos a nascente do Javari e a confluência do Beni.
Os comissários na demarcação de limites entre o Brasil e o Peru,
Teffé (von Hoonholtz) e Black, acharam, em 1874, para a nascente
do Javari estas coordenadas (latitude sul, longitude oeste de Greenwich):
Latitude 7°, 1’, 17’’, 5; longitude 74°, 8’, 27’’, 7.
Cunha Gomes, em 1899, achou:
Latitude 7°, 11’, 48’’, 1; longitude 73°, 47’, 44’’, 5.
Luiz Cruls, em 1901:
Latitude 7°, 6’, 55’’, 3; longitude 73°, 47’, 30’’, 6.
Tirada do ponto Teffé-Black, a oblíqua passava mais ao sul do
que a resultante do reconhecimento Cruls, adotado oficialmente.
Não é exato que o Sr. Euclydes da Cunha tenha vindo ao Rio de
Janeiro expor ao Sr. Barão do Rio Branco “a grave descoberta”. Esse
distinto engenheiro aqui chegou anteontem por ter a comissão mista
brasileiro-peruana de reconhecimento do Alto Purus terminado os seus
trabalhos.
___________________________________________________________________
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
– Jornal do Comércio, 6 jan. 1906.
– Jornal do Brasil, 7 jan. 1906.
62
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
O CASO DA PANTHER*
Escreve-nos pessoa bem informada:
“um brilhante escritor5, restituído desde poucos dias às lides do
jornalismo, censurou ontem o Governo por ter feito sair apressadamente
para o Sul, no dia 9 de dezembro, uma divisão naval com o intento de
intimar o comandante da Panther a entregar o alemão Steinhauf, que
este prendera em território brasileiro, e de haver negado depois
semelhante intento respondendo, a um pedido de explicação do Governo
alemão, que a divisão naval partira para fazer evoluções, anunciadas
havia muito tempo.
“Que a partida da divisão naval de evoluções já estava anunciada
antes de conhecidas aqui as ocorrências de Itajaí, é perfeitamente
exato; que essa partida foi apressada em conseqüência de tais fatos,
também o é. Um governo previdente, sempre que tem de tratar de
assunto em que esteja empenhada a dignidade nacional, deve prepararse para a pior hipótese, embora dificilmente admissível.
Deve, porém, proceder sem indelicadeza ou fanfarronada. Se o
ilustre escritor, admitindo a possibilidade, embora remota ou pouco
provável de uma agressão, se armar de um revólver e for pedir
explicações a pessoa com quem mantenha excelentes relações, não
há de começar por lhe dizer que está armado para repelir qualquer
afronta.
Quando a Alemanha ou outros países da Europa reforçam
guarnições de fronteira e mobilizam corpos de exército, a imprensa
européia limita-se a consignar o fato comentando-o como entende,
mas não faz o espalhafato que alguns repórteres e correspondentes
de folhas estaduais e estrangeiras, vivendo nesta nossa atmosfera de
agitações quase constantes, costumam fazer aqui, mesmo nos casos
em que movemos dois canhões e algumas centenas de soldados.
A indelicadeza e fanfarronada no caso de 9 de dezembro não foi do
governo, foi de certos repórteres e correspondentes nacionais e
estrangeiros, residentes nesta cidade, e que tão grande barulho
levantaram com a mobilização de alguns navios de guerra, escrevendo
* Publicado em A Notícia. Rio de Janeiro, 10 jan. 1906.
5 Na margem, anotação de próprio punho do Barão: “Resposta à Tribuna, ao Salamonde R.B.”
63
CADERNOS DO CHDD
e telegrafando que eles iam dar caça à Panther ou bloqueá-la no Rio
Grande.
Os que querem aproveitar o ensejo para intrigar o Barão do Rio
Branco com a nossa marinha, dizem que ele a expôs ao ridículo porque
os navios saíram apressadamente e nada puderam fazer contra a
Panther. A intriga, ainda desta vez, não há de ter o efeito desejado.
Os nossos oficiais de mar e terra sabem que desde a mocidade o
Barão do Rio Branco foi um amigo desinteressado da Armada Nacional
e do Exército Brasileiro, pregoeiro das suas glórias, defensor dos seus
brios perante o estrangeiro, e que não pode de modo algum ser
confundido com os falsos amigos que exploram o elemento militar
para fins exclusivamente políticos.
Se é permitido comparar pequenas mobilizações, como foi esta,
com a colossal mobilização não de navios, mas de esquadras, que a
Inglaterra fez quando se deu o incidente diplomático de Fashoda,
lembraremos esse fato, que assombrou o mundo. E não precisamos
lembrar que os oficiais da marinha inglesa se não queixaram de ter
essas esquadras voltado para os seus portos militares sem ter trocado
tiros com a armada francesa.”
Diz o escritor:
“A retratação da nossa Chancelaria à primeira referência que sobre
esse delicado assunto fez o Sr. von Treutler importa flagrantemente
um desastre diplomático. A União, no dia 6, entre dois artigos sobre o
Cardeal Brasileiro, já tinha com a mansidão e generosidade de certos
clericais, publicado outro em que atribuía ao Barão do Rio Branco
vergonhosas e pusilânimes satisfações dadas à Alemanha e ao Sr. von
Treutler pela saída dos nossos navios para o Sul.
O correspondente da Notícia em Petrópolis já desmentiu ontem
essa invenção.
O Governo alemão não pediu explicação alguma ao do Brasil. Os
inventores de humilhações e covardias brasileiros não percebem que
com tais invenções não ferem somente o ministro e o governo, mas
espalham também pelo mundo – porque há aqui correspondentes de
jornais estrangeiros – notícias que podem ser espalhadas pelos nossos
rivais e inimigos com o fim de desacreditar este país. Verdade é que
tão leviano procedimento vem de longe. Em 1904, certos noveleiros
da rua do Ouvidor espalharam que as nossas tropas tinham sido
derrotadas no Alto Purus e no Alto Juruá pelos peruanos, indicando até
64
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
os nomes dos oficiais mortos e feridos, e tais mentiras, logo telegrafadas,
ficaram passando por verdades em toda a América e Europa.
Noutras terras inventam-se vitórias e glórias. Aqui, na quadra que
atravessamos, há patriotas, nacionais ou estrangeiros, que inventam
derrotas e humilhações para o Brasil.
Se, porém, o Governo alemão não pediu explicações, estamos
informados de que o Sr. von Treutler as pediu amigavelmente por sua
conta própria ao Sr. Barão do Rio Branco, na manhã de 9 de dezembro,
em Petrópolis, dizendo que a notícia da partida dos navios produziria
má impressão na Alemanha e tornaria impossível as negociações. Pedia,
por isso, que fosse sustada a ordem de partida.
Informa-me pessoa fidedigna que o Barão do Rio Branco,
muito amigavelmente, respondeu que tínhamos o direito de mover
para onde quiséssemos, sobretudo em águas brasileiras, os nossos
navios; que, como ministro, lhe declarava que os navios saíam para
fazer evoluções, como estava antes assentado, mas que como amigo
particular – já que o interrogava, esquecido de que os vizinhos da
Alemanha nunca lhe pediram explicações quando ela preventivamente
reforçava os seus corpos de exército e guarnições de fronteira – lhe
diria que a decisão tomada pelo Governo seria mantida; que o Brasil,
pela sua inferioridade militar, não estava no caso de intimidar a Alemanha;
que ele, barão, era muito sincero amigo da Alemanha e dos alemães,
reconhecido às bondades do Imperador e dos membros do seu atual
Governo, mas que era brasileiro e tinha o dever de colocar acima de
tudo, de todas as considerações pessoais e dos seus interesses
particulares, a dignidade e a honra do Brasil.
Como particular amigo, a ele, von Treutler, e não ao ministro da
Alemanha, diria, que se Steinhauf estivesse a bordo deveria ser restituído
ao Brasil, e estava convencido de que o seria à vista do pedido mui
cortês e amigavelmente feito pelo Brasil; mas que, se por qualquer
motivo, isso fosse recusado, seria dada ordem aos nossos navios
para que capturassem a Panther e tirassem de bordo esse preso. A
Alemanha poderia mandar cem, duzentos navios contra o Brasil, mas
teríamos feito o nosso dever.
Eis aí a declaração pusilanimemente ridícula, como escreveu um
patriota, que o Barão do Rio Branco, muito polidamente, e em particular,
fez na manhã de 9 de dezembro ao Sr. von Treutler. Depois, o reteve
para almoçar.
65
CADERNOS DO CHDD
Também já foi censurado por isso, por homens que não conhecem
as atenções de que foi cercado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros
do Japão, o ministro da Rússia, Barão de Roser, mesmo depois de
receber os seus passaportes e começadas as hostilidades, sendo então
acompanhado até a bordo por aquele ministro.
Houve quem lembrasse que o Imperador D. Pedro II não quis
receber o ministro inglês Christie depois dos tristes incidentes de
dezembro de 1862 e janeiro de 1863.
Atenda-se, porém, que D. Pedro II era o Chefe de Estado, e que
o Barão do Rio Branco ocupa a posição que então ocupava o Marquês
de Abrantes, o qual não deixou de receber, sempre que foi necessário,
aquele ministro com quem tinha o dever de negociar e a quem não
podia deixar de tratar com toda a correção porque o governo de um
país culto não pode proceder como procedem os Botocudos nas suas
relações com os enviados das tribos vizinhas. Atenda-se mais que não
há comparação possível entre as correrias de alguns oficiais e marinheiros
em Itajaí e as ofensas que à nossa dignidade de nação foram feitas
por aquele ministro britânico, insolentíssimo nas suas notas. O ministro
von Treutler não tem responsabilidade alguma pelos fatos de Itajaí,
que não autorizou e de que só teve notícia pelos telegramas dos
jornais.
Tinha direito a ser tratado com a consideração e estima com que
são tratados em qualquer país civilizado os diplomatas estrangeiros,
sobretudo os que, como ele, se mostram sempre amigos do país em
que residem.”
___________________________________________________________________
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
–
–
–
–
Gazeta de Notícias, 11 jan. 1906.
Jornal do Commercio, 11 jan. 1906.
O Paiz, 11 jan. 1906.
Jornal do Brasil, 11 jan. 1906.
66
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
O CASO DA PANTHER*
Temos a seguinte nota:
Algumas das considerações, reservas e críticas na Vária do Jornal
do Commercio de hoje, sobre o caso da Panther, baseiam-se em erros
de fatos, que terão sido desde logo notados por quantos hajam lido
atentamente os documentos publicados, a que se refere o próprio e
amável censor do Sr. Ministro das Relações Exteriores.
Lê-se na Vária.
“É curioso que com essa mesma data de 1 de dezembro
tenha aparecido um cartão postal de Steinhauf, dirigido do Desterro
ao dono do hotel de Itajaí, falando na quantia precisa de que era
devedor e pedindo-lhe a remessa da mala para o consulado alemão
de Buenos Aires.”
O próprio Jornal do Commercio de 14 de dezembro, em telegrama
de Florianópolis, publicou a tradução em português do cartão, escrito
em alemão, por Steinhauf, e aí se vê que ele não pediu a remessa da
mala, mas sim que esta fosse guardada no hotel. O mesmo se vê no
“Memorandum” anexo à nota brasileira de 31 de dezembro, publicado
no Jornal do Commercio de 10 do corrente.
Diz a Vária:
“O dono do hotel e Zimmermann disseram em seus depoimentos,
confirmados por outras pessoas, que sofreram a mais clamorosa
violência da gente de bordo, que os obrigou a abrir as casas,
gente essa no meio da qual uma testemunha respeitável, homem
maior de 60 anos, de origem alemã, veterano da guerra de 1870,
informa ter reconhecido o próprio comandante a quem por mais
de uma vez tinha visto em terra.”
Não sabemos se todos os veteranos da guerra de 1870 e todos
os sexagenários devam ser considerados homens respeitáveis, o que
sabemos é que somente o veterano Antônio Maluch (unus testis nullus
* Publicado em A Notícia. Rio de Janeiro, 11 jan. 1906.
67
CADERNOS DO CHDD
testis, ensina o direito processual dos tempos antigos e modernos)
declarou, no 3º inquérito, ter visto o Conde Saurma no Hotel do
Commercio, porém às 9 horas da noite mais ou menos e não pelas
2 horas da madrugada, quando se deram as violências atribuídas aos
oficiais e marinheiros da Panther.
Os outros depoentes só ouviram essa história ao velho Maluch. O
proprietário do hotel declarou que não conhecia o comandante, e que
era um oficial alto o que dava as ordens quando a gente da Panther foi
buscar Steinhauf às 2 da madrugada, mais ou menos.
Ora, o Conde Saurma é um homem bastante baixo, como podemos
afirmar por tê-lo visto aqui no Rio muitas vezes, e, demais, ninguém
poderia admitir que um oficial superior da armada alemã, ou da nossa
armada, comandante de um navio de guerra, se empregasse em
procurar pessoalmente um desertor, podendo encarregar da diligência
subordinados seus.
Sobre a entrada no Hotel do Commercio por meio de ameaças,
às 2 horas da madrugada, só há o depoimento do proprietário Gabriel
Heil, no segundo inquérito feito pelo prefeito de polícia. Os outros
depoentes, alguns somente, ouviram isso a Heil, mas nada puderam
dizer de ciência própria. No primeiro inquérito, Heil se tinha limitado a
dizer que os oficiais exigiram a entrega de Steinhauf, para lhes ir mostrar
onde estava o desertor Hasmann, e que às observações feitas por
ele, proprietário, responderam “que tivesse paciência, que queriam
levá-lo.” No depoimento que posteriormente fez no Consulado da
Alemanha, esse mesmo Heil não falou em ameaças: declarou que
abriu a porta do hotel pensando que quem batia era um hóspede seu,
por quem ainda esperava.
A Vária refere-se à ofensa sem precedente de que falou o Sr.
Ministro das Relações Exteriores, a qual, segundo o mesmo “não podia
ser efetuada sem ciência ou ordem do comandante”.
Os documentos publicados mostram que o Sr. Barão do Rio Branco
se exprimiu assim no telegrama de 9 de dezembro à Legação do Brasil
em Berlim e na nota de 15 do mesmo mês ao ministro da Alemanha,
quando só tinha por base do seu juízo os telegramas recebidos de
Florianópolis, dando resumos incompletos dos inquéritos, e os telegramas
que ao Jornal do Commercio mandava o seu jovem correspondente
daquela cidade. Ao redigir aqueles dois documentos o Sr. Barão do Rio
Branco estava persuadido de que tinha havido uma diligência militar,
68
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
um desembarque de força armada e a prisão de um estrangeiro,
Steinhauf, levado para bordo. Depois, recebeu, em 17 e 20 de
dezembro, os nossos inquéritos, e neles não achou prova alguma de
que tivesse havido desembarque de força armada nem de que Steinhauf
tivesse sido levado para bordo. Modificou, portanto, a opinião que
formara à vista das primeiras e exageradas notícias. Se tivesse havido
um desembarque de força armada para efetuar uma prisão em terra,
a ofensa à nossa soberania não teria precedente e o desembarque
não poderia efetuar-se “sem ciência ou ordem do comandante”.
Mas o que se passou não foi o que precipitadamente lhe andaram
dizendo e ao público. O que se passou foi isto: – O comandante
encarregou oficiais à paisana e inferiores e marinheiros fardados, que
tinham permissão para ir a terra, de procurarem descobrir o paradeiro
de um suposto desertor, a fim de que o agente consular tratasse de
obter a sua prisão e entrega. Recomendou a esses licenciados a maior
prudência e discrição nas indagações que fizessem, para não ofender
as suscetibilidades dos naturais da terra. Os licenciados desembarcaram
na tarde de 26, e não no silêncio da noite, como se disse.
Pelas 4 ou 5 horas da tarde, um sargento da guarnição avistou
Hasmann, em companhia de Steinhauf. Chamou Hasmann dizendo-lhe
que não fizesse asneiras e voltasse para bordo. Hasmann fugiu,
metendo-se no mato e o sargento alcançou Steinhauf e o agrediu,
dando-lhe umas bordoadas. É a isso que alguns depoentes, nos nossos
inquéritos, chamam “surra”, dada pelos marinheiros alemães e supondo,
pelo que ouviram, que o caso se tivesse passado à noite. Durante a
noite os oficiais e marinheiros da Panther estiveram duas vezes no
Hotel do Commercio; a primeira às 9 horas, a segunda, às 2 da
madrugada ou pouco antes, porque não está provado que os
informantes tivessem relógio e pudessem precisar bem a hora.
Houve a bordo, por ordem do almirantado, um inquérito, com
deposições feitas debaixo de juramento. Se os excessos em terra
tivessem sido praticados por ordem do comandante, não se
compreende que ele tivesse a imprudência de perjurar e trair os seus
subordinados, nem tampouco que estes deixassem de afirmar que
haviam cumprido ordens.
Bem inteirado do que se passava, o Sr. Barão do Rio Branco
reduziu as coisas às suas justas proporções e na nota de 31 de
dezembro disse o seguinte, que é muito diferente do que havia dito no
69
CADERNOS DO CHDD
telegrama do dia 9, em que se apoiou o autor da Vária para o criticar
e, sem dúvida involuntariamente, expô-lo à animadversão dos nossos
compatriotas.
“À vista dos documentos examinados, não podemos manter
que houve em Itajaí um desembarque militar, de homens em
armas : podemos, porém, afirmar que houve operações de polícia,
executadas durante a noite por oficiais, inferiores e marinheiros de
um navio de guerra estrangeiro, com menoscabo da soberania
nacional.”
A questão, portanto, tinha mudado muito de figura. Alguns dos
oficiais e inferiores que estavam com licença em terra, desde a tarde
de 26, provavelmente beberam cerveja demais na casa de D. Anna
Asseburg, onde estiveram, e praticaram excessos ofensivos da
soberania territorial, se eles fossem autorizados pelo comandante e
pelo Governo alemão. O comandante declarou que não autorizara tais
coisas e apenas os encarregara de fazer, com a maior prudência,
indagações sobre o paradeiro do suposto desertor, a fim de ser
reclamada a sua prisão e entrega.
Como poderia o Sr. Ministro das Relações Exteriores pedir a
demissão do comandante, inocente dos excessos praticados?
A geração brasileira de 1865, a que sabia pelejar no Uruguai e no
Paraguai, em defesa da honra nacional, contentou-se com a satisfação
que a Inglaterra nos deu naquele ano pela ofensa feita à nossa
dignidade, à nossa soberania territorial em janeiro de 1863. Depois de
dois anos de negociações em Londres, dirigidas pelo mediador português
Conde de Lavradio, desde 29 de junho de 1863 até 26 de julho de
1865 – dois anos durante os quais foi discutida a fórmula da satisfação,
sendo rejeitadas a primeira e segunda que propúnhamos –, recebeu o
Brasil, com geral contentamento, a que lhe deu a Inglaterra: “Sua
Majestade a Rainha exprime o pesar com que tem considerado as
circunstâncias que acompanharam a suspensão das relações amigáveis
entre os dois países e nega toda a intenção de ofender a dignidade do
Império do Brasil.”
A geração briosa e patriótica daquele tempo achou que isso era
uma satisfação aceitável, apesar de se ter o Governo britânico recusado
a censurar o Ministro Christie que nos dirigiu notas insolentíssimas e o
Almirante Warren que, por ordem do mesmo, apresou diante da barra
70
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
do Rio de Janeiro navios mercantes nossos e os guardou em nossas
águas territoriais, na enseada de Palmas.
Agora obtivemos da Alemanha, por fato de muito menor
importância, uma satisfação completa, satisfação como o Governo
Imperial nunca deu igual a governo algum, segundo declaração textual
do Barão de Richthofen ao nosso ministro em Berlim, no mesmo dia 7
do corrente, em que, à noite, caiu fulminado de apoplexia, e há aqui
quem se mostre descontente e diga que o Barão do Rio Branco não
soube defender a dignidade nacional.
Quanto à entrega de Steinhauf, ela foi reclamada com toda a
decisão enquanto a Panther esteve nas nossas águas. O comandante
afirmou ao seu Governo que o reclamado não estava e nunca tinha
estado a bordo. Por isso não nos foi entregue.
“Si le commandant déclare que les personnes réclamées ne
sont pas à son bord, cette declaration devra suffire” diz PradierFodéré.”
Da afirmação do comandante ao almirantado alemão e ao
Imperador da Alemanha não é lícito duvidar.
Não se pode com justiça aproximar essa afirmação solene das
notícias que lhe mandou, por ouvir dizer, sobre a chegada de Steinhauf
em uma pequena embarcação de vela, no dia 30 de novembro, e
sobre a sua partida para Buenos Aires, no dia 1º de dezembro.
Podemos assegurar que o Governo alemão está muito empenhado
na descoberta de Steinhauf e que nesse sentido foram passadas
instruções aos seus consulados em Santa Catarina, Rio Grande do Sul,
Uruguai e Argentina.
___________________________________________________________________
Publicado também nos seguintes periódicos:
– Jornal do Commercio, 12 jan. 1906.
– O Paiz, 12 jan. 1906.
– Gazeta de Notícias, 12 jan. 1906.
71
CADERNOS DO CHDD
A SATISFAÇÃO DIPLOMÁTICA*
Temos a seguinte nota:
Todos sabem que Le Temps, de Paris, é, como quase todos os
jornais franceses, uma folha sistematicamente anti-germânica.
Vejamos como ela se pronuncia, em seu número de 21 de
dezembro, sobre o projeto de satisfação ao Brasil, publicado na
Norddeutsche Allgemeine Zeitung e oferecido ao Governo brasileiro no
dia 18 daquele mês:
“O INCIDENTE GERMANO-BRASILEIRO – A oficiosa Gazeta
da Alemanha do Norte anuncia que o Governo alemão encarregou
o seu ministro no Rio de Janeiro, Barão de Treutler, de dar a
seguinte resposta às reclamações do Governo brasileiro sobre o
incidente de Itajaí:
1º – Steinhauf não está, nem nunca esteve a bordo da canhoneira
Panther;
2º – O comandante da Panther tinha encarregado os oficiais e
praças licenciados em terra de se informarem do lugar em
que se achava um marinheiro suspeito de deserção. Como
do inquérito que fizemos resulta que os marinheiros alemães
ultrapassaram os limites das instruções que haviam recebido,
o Governo Imperial exprime ao Governo brasileiro o seu pesar
(ses regrets) pelo que se passou.”
‘O incidente, portanto, pode ser tido por encerrado.’ ‘L’incident
peut donc être considéré comme clos.’ Conclui Le Temps. E esse jornal
tinha publicado, como a imprensa européia em geral, quase todas as
mentiras e exagerações que correspondentes levianos ou mal
intencionados andaram pondo em circulação aqui.
Aquela simples declaração, tão diferente da que nos foi feita em 2
de janeiro, Le Temps achava satisfação aceitável e bastante para pôr
termo ao incidente.
* Publicado em A Notícia. Rio de Janeiro, 12 jan. 1906.
72
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Entretanto, no dia 22, sob o mesmo título – O incidente germanobrasileiro –, dizia Le Temps:
“Segundo o correspondente do New York Herald no Rio de
Janeiro, o Barão do Rio Branco, Ministro dos Negócios Estrangeiros,
teria achado insuficientes as explicações do ministro da Alemanha
sobre o incidente da canhoneira alemã Panther. O Ministro da
Alemanha apresentará ao Governo brasileiro uma nova proposta
fundada no desejo que tem o Governo de Berlim de manter as
suas boas relações com o Brasil. Acrescenta o Herald que se um
acordo direto não for possível, os dois governos nomearão uma
comissão mista para fazer um inquérito.”
O Brasil recebeu, não a expressão de pesar que Le Temps julgava
suficiente para encerrar o incidente, mas:
1º – A declaração formal e por escrito, feita por ordem do Governo
Imperial, em 17 de dezembro, enquanto a Panther estava
em águas brasileiras, de que Steinhauf não podia ser entregue
ao Capitão do Porto do Rio Grande porque não estava e
nunca havia estado a bordo da canhoneira, o que importa no
reconhecimento da obrigação de o restituir se estivesse a
bordo;
2º – A declaração muito amigável e completa de 2 de janeiro,
declaração cujos termos foram assentados em Berlim entre
o Secretário de Estado, Barão de Richthofen e o Chanceler
do Império, príncipe de Bülow, submetidos ao Imperador e
aprovados por ele, e em que é dito:
a) Que o comandante Saurma dera a oficiais e inferiores
licenciados da Panther a simples incumbência de
procurarem discretamente em terra um marinheiro
retardatário, suspeito de deserção, conformando-se com
o uso universalmente seguido nas marinhas de guerra de
todos os países;
b) Que estava longe da intenção de todos os envolvidos no
caso, o ofender com tal procedimento a soberania territorial
do Brasil;
73
CADERNOS DO CHDD
c) Que o Governo Imperial tem em grande apreço a perfeita
manutenção das boas relações com o Brasil;
d) Que por todos os modos deseja fortalecer os laços de
amizade existentes;
e) Que tendo os inquéritos alemães provado que as pessoas
licenciadas ultrapassaram os limites do encargo recebido,
o Governo Imperial assegura que os responsáveis serão
submetidos à justiça militar;
f ) Que o Governo Imperial exprime o seu vivo pesar (ses
vifs regrets, e não simplesmente ses regrets, como seria
bastante para o Temps) ao Governo brasileiro pelo que
se passou.
De 10 de dezembro de 1905, data da nossa reclamação em
Berlim, a 17 do mesmo mês em que ficou resolvido satisfatoriamente,
segundo os mestres de direito internacional, a questão relativa à entrega
de Steinhauf, contam-se sete dias. Daquela primeira data a 18 de
dezembro, em que o Governo Imperial resolveu dar-nos inteira satisfação
pelos fatos ocorridos em terra, decorreram oito dias; em 2 de janeiro,
dia em que a satisfação foi formalmente dada, completaram-se vinte
e três dias.
E houve quem aqui achasse que o Sr. Barão do Rio Branco não
devia ter assinalado a presteza que houve, nem ter admitido que
houvesse retidão nas decisões tomadas, tão pronta e cordialmente!
Tivemos a devida e mui cordial satisfação ao cabo de 23 dias
apenas. Quando tivemos de dar satisfação ao Paraguai, em 1901,
pela ofensa à sua soberania territorial, feita pelo comandante da
canhoneira Carioca, que apresou uma lancha com bandeira paraguaia
e retirou as peças essenciais da máquina de um vapor em águas
daquela República, apesar dos protestos da autoridade local, levamos
50 dias para responder à justa e bem fundada reclamação do ministro
paraguaio, porque naturalmente precisávamos basear a nossa decisão
nos nossos próprios inquéritos e indagações.
Muito antes do incidente de Itajaí, deu-se outro bastante grave
em Missoune, na fronteira franco-alemã do Cameroun e do Congo.
Um sargento e vários milicianos franceses foram, não presos, mas,
mortos, sem prévia intimação, por um destacamento de tropas coloniais
alemãs sob o comando de um capitão.
74
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Esse incidente ainda não está resolvido e a imprensa dos dois
países tem tido o bom senso ordinário de não andar procurando agitar
as massas, porque compreende que não é assim que se encaminham
questões de dignidade nacional e porque sabe que é necessário tempo
para proceder, de uma e outra parte, a inquéritos que esclareçam
bem os fatos e restabeleçam as responsabilidades.
Em 1887, ocorreu outro incidente desagradável em Vexaincourt,
com a Alemanha, sendo morto um caçador francês e ferido gravemente
outro.
O Sr. Flourens, Ministro dos Negócios Estrangeiros, telegrafou logo
ao Sr. Raindre, encarregado da Embaixada de França em Berlim,
incumbindo-o, não de exigir energicamente, como fariam ministros
rastaquouères, mas de “convidar (inviter) o Governo alemão a verificar
os fatos, e, quando a sua exatidão fosse reconhecida, a dar à França,
conforme os princípios de direito, as reparações devidas pela violação
do território e os prejuízos causados aos seus nacionais”.
O Secretário de Estado, Conde Herbert de Bismarck, respondeu
que, se verificasse a exatidão dos fatos apontados, o Governo Imperial
não poderia deixar de lamentar profundamente o incidente e de dar
todas as reparações que razoavelmente fossem pedidas. Terminado o
inquérito alemão, o Governo Imperial manifestou (como agora no Brasil)
o seu vivo pesar (ses vifs regrets) pelo ocorrido e pagou uma
indenização à viúva da vítima.
A nobre nação francesa achou que o incidente ficara honrosamente
encerrado com essa expressão de pesar, sem ter recebido protestos
de cordial amizade, como os que, pronta e espontaneamente, nos
foram feitos de Berlim, nem a promessa de que o soldado que matou
e feriu franceses em território francês fosse submetido à justiça militar,
e sem ter pedido que fosse ele castigado.
Aqui, certos patriotas de esquina, e até alguns estrangeiros,
quereriam que o Sr. Barão do Rio Branco pedisse o castigo do
Comandante da Panther, inocente dos excessos praticados em terra
por alguns oficiais e marinheiros, que ultrapassaram as suas instruções,
e só culpado do pecado venial de haver mandado fazer o que todos os
comandantes de navios de guerra mandam fazer em casos tais, e
pode ser feito com a única condição de que a autoridade local não
fique sabendo oficialmente do que se fez. Já um comunicado, na
Notícia de ontem, recordou que a satisfação recebida por nós da
75
CADERNOS DO CHDD
Inglaterra, em 1865, depois das notas insolentíssimas do seu Ministro
Christie e do apresamento de navios mercantes brasileiros pelo Almirante
Warren diante da barra do Rio de Janeiro, só foi concedida ao cabo de
dois anos de negociações em Londres, e, versando sobre fatos de
muito maior gravidade, praticados por um enviado extraordinário e por
um almirante, foi muito menos completa e cordial do que a que nos
deu a Alemanha pelas tropelias desautorizadas de quatro tenentes à
paisana e doze sargentos e cabos da Panther.
Dizem certos críticos, sempre fáceis em achar incompleto e ruim
o que os outros fazem com meditação e trabalho, e excelente o que
eles muitas vezes produzem precipitadamente, sem inteiro
conhecimento dos fatos ou dos atos que pretendem julgar de
cadeira –, dizem eles que a submissão dos culpados à justiça militar é
reparação ilusória, porque necessariamente serão inocentados.
Não sabemos, nem precisamos saber se isto se dará. O que
sabemos é que as nações mais briosas contentam-se com a promessa
de julgamento dos culpados pela justiça militar.
O comandante Collins, do Wachussetts, que no porto da Bahia
capturou, em 1863, o corsário Georgia, foi absolvido em conselho de
guerra e o Brasil daquele tempo se não queixou disto.
O comandante Estanislau Przewodowski, da nossa flotilha do
Uruguai, que em 1873, por sua conta própria, bombardeou a povoação
argentina de Alvear, e o comandante Mariano de Azevedo da Carioca,
que em 1901 apresou, no porto paraguaio de Olympo, uma lancha,
levando-a para Corumbá, foram ambos absolvidos pela nossa justiça
militar e a Argentina e o Paraguai nos não pediram contas por isso,
porque o governo de um país não pode impor decisões a juízes, militares
ou não.
A satisfação dada pelo governo e pela nação que ele representa,
é o que regula, e não a decisão dos juízes locais.
E a satisfação deve ser graduada conforme a gravidade da ofensa.
Diz Bonfils, no seu Direito Internacional Público:
“Um representante oficial do Estado, no estrangeiro, como
um agente diplomático ou um oficial da marinha, falta ao respeito
devido a um Estado estrangeiro, viola os seus direitos, causa um
dano. O Estado assume, sem que possa haver dúvida, a
76
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
responsabilidade dos atos de tais agentes. A reparação variará
segundo a gravidade dos fatos e a extensão do prejuízo causado.
Uma simples desaprovação bastará algumas vezes. Outras vezes,
uma indenização pecuniária, desculpas diplomáticas (des excuses
diplomatiques), acompanhadas ou não da demissão do agente,
serão necessárias...”
O Governo brasileiro não podia esperar ou pedir, sobre o caso de
Itajaí, bem esclarecido como ficou por fim, e despido das exagerações
dos primeiros dias, mais do que franca, leal e nobremente, com a
maior cordialidade, lhe foi concedido pelo Governo alemão.
O incidente terminou muito melhor do que supunha o Temps
de Paris.
O COMANDANTE DA PANTHER
Têm dito alguns compatriotas que o Conde Saurma, comandante
da Panther não se importou com a polícia de Itajaí e resolveu ofender
a soberania brasileira, mandando que os seus oficiais e marinheiros
fossem praticar atos de polícia em terra.
O seguinte telegrama, por ele dirigido ao nosso compatriota Carlos
Renaux, superintendente municipal em Brusque, mostra que estava
convencido de que o Agente Consular Alemão, Max Putler, tinha solicitado
e obtido o apoio da polícia local:
“De Itajaí, 399, – 14 palavras, 26 de novembro 1905, 2h p. m.
Ao Sr. Renaux – Brusque.
Rogo-lhe apoiar a prisão do marinheiro Hasemann. A polícia
está informada. – Conde Saunna.
Eis o texto original alemão do telegrama, que acabamos de
traduzir.
Bitte unterstulzung des festnahme des Matrosen Hasemann.
Polizei benachrichtig. – Graf Saurma.”
77
CADERNOS DO CHDD
Como seria possível pedir a demissão desse comandante e
responsabilizá-lo pelo encervejamento de quatro tenentes e doze
sargentos e cabos nas hospedarias de Itajaí?
___________________________________________________________________
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
– Jornal do Commercio, 13 jan. 1906.
– O Paiz, 13 jan. 1906.
– Gazeta de Notícias, 13 jan. 1906.
78
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
A SOLUÇÃO DIPLOMÁTICA NO CASO DA PANTHER*
Temos a seguinte nota:
A primeira opinião, aqui formada, sobre os acontecimentos de
Itajaí, baseou-se nas notícias bastante exageradas, cheias de confusões
e enganos, telegrafadas depois de leituras rápidas e desatentas, por
um jovem correspondente de Florianópolis, cujo critério deve ser mais
ou menos igual ao do correspondente argentino que há dias nos quis
impingir a notícia de que um ex-diplomata russo – anônimo, já se sabe
– vira no Estado-Maior alemão certo mapa do Brasil meridional, onde
estavam marcados os distritos conquistáveis pela Alemanha, como se
nas salas do Estado-Maior em Berlim tivessem entrada diplomatas,
repórteres ou quaisquer pessoas estranhas ao serviço, e documentos
reservados andassem ali rolando pelas mesas!...
Na Europa, também, foram as notícias do jovem correspondente
as que produziram a primeira impressão.
Diz o Journal des Débats de 16 de dezembro:
“Brasil – O Jornal do Commercio publica o resumo do inquérito
oficial sobre o incidente de Santa Catarina. Os depoimentos das
testemunhas, tanto alemãs como brasileiras, confirmam os fatos
já conhecidos. Um alemão naturalizado brasileiro, antigo combatente
de 1870, refere que reconheceu o comandante da canhoneira
Panther entre os oficiais que acompanhavam os marinheiros quando
estes se apoderaram de Fritz Steinhauf...”
Esse veterano de 1870, em cujo testemunho, único e isolado, se
apoiou a Vária de 11 do corrente, é Antonio Maluch, que pelo nome
não se perca – respeitável sexagenário –, segundo o amável crítico,
mas maníaco, como declara o depoente Leocádio Baptista de Medeiros,
mais competente para o qualificar, porque o conhece pessoalmente.
Já mostramos que a acusação feita ao comandante, com o menos
que frágil fundamento de um testemunho nulo em direito, não podia
autorizar o Sr. Ministro das Relações Exteriores a pedir ao Governo
alemão que punisse administrativamente o Conde Saurma, o qual
* Publicado em A Notícia. Rio de Janeiro, 13 jan. 1906.
79
CADERNOS DO CHDD
solenemente declarara em relatório oficial não ter autorizado os atos
de força praticados em terra pelos oficiais e inferiores licenciados.
Também já ficou provado que o comandante deu prova de respeito
à soberania territorial pedindo ao Agente Consular que obtivesse o
apoio da polícia brasileira para a apreensão do retardatário Hasmann,
ainda não declarado desertor. Às 2 horas da tarde de 26, o Conde
Saurma telegrafava de Itajaí ao nosso compatriota Carlos Renaux, em
Brusque, dizendo: “A polícia está prevenida”. O requerimento à polícia
devia ter sido feito pelo Agente Consular; se este não o fez, a culpa
não foi do comandante.
Ficou igualmente demonstrado que o veterano maníaco disse ter
visto o comandante no Hotel do Commercio às 9 horas da noite, e não
às 2 horas da madrugada, quando dali foi retirado Steinhauf, por uns
seis inferiores que obedeciam a um oficial, cujos sinais característicos,
dados pelo proprietário Heil, não correspondem de modo algum aos do
Conde Saurma.
O Journal de Débats foi induzido em erro, quando do Rio lhe
telegrafaram que todos os depoimentos, nos inquéritos de Itajaí,
confirmavam os fatos aqui publicados e espalhados pelo mundo.
O autor da Vária do dia 11 também foi induzido em erro, acreditando
em tudo quanto lhe telegrafaram de Florianópolis e sem estudo dos
inquéritos, que só na tarde desse dia foram aqui publicados.
O Jornal, porém, muito antes do dia 11, teve notícias mais exatas,
que lhe foram dadas por um velho amigo da casa, amigo que a
freqüenta desde 1851, que para ela tem trabalhado muito e que,
apesar disso, mereceu menos confiança nestas circunstâncias que
reclamavam a maior ponderação, do que novos colaboradores, nem
sempre capazes de avaliar bem os perigos a que pode expor um país
a falta de calma quando se examinam assuntos em que anda envolvida
a dignidade nacional.
Temos considerado, nos dois precedentes artigos, quanto aos7
pontos em que tocou a Vária. Não podemos deixar de acentuar hoje
que não foi o ministro da Alemanha, Sr. von Treutler, quem fez as
declarações que ela resumiu, quem disse que os envolvidos no caso
não tinham a intenção de ofender a soberania brasileira, que os
responsáveis pelos excessos em terra seriam entregues à justiça militar
7
Anotação manuscrita à tinta pelo barão do Rio Branco, substituindo o trecho impresso “quanto
aos” por “quase todos os”.
80
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
(les responsables seront traduits devant la justice militaire, tal foi a
fórmula afinal proposta e aceita em Berlim); não foi o ministro quem
nos disse que o seu Governo tem em grande apreço a perfeita
manutenção das boas relações com o Brasil, quem afirmou que o
Governo Imperial deseja por todos os modos fortalecer os laços de
amizade existentes entre os dois países e quem nos exprimiu, em
nome do seu Governo, profundo pesar pelo que se tinha passado.
Não foi o ministro, Sr. von Treutler, quem nos disse tudo isso: foi o
Governo Imperial, isto é, foi o próprio Imperador da Alemanha quem
mandou dizer tudo isso ao Brasil e ao seu Governo em uma declaração
escrita em Berlim e que aquele ministro não fez senão transcrever e
transmitir-nos em nota, como de estilo.
O Sr. Barão do Rio Branco não pediu mais ao Governo alemão
porque em sua consciência de brasileiro entendia que não podia pedir
mais, ele que estudou os documentos e sabe guardar a calma precisa
em todas as ocasiões, por mais difíceis e desagradáveis que sejam.
O Governo preveniu-se sem estrépito para tudo, para as mais
graves hipóteses. O pessoal da Legação Brasileira em Berlim, desde o
dia 12 de dezembro, ficou pronto para deixar a Alemanha dentro de
24 horas se fosse necessário. Aqui, desde o dia 8, foram tomadas
reservadamente as disposições preventivas necessárias para que
Steinhauf fosse tirado de bordo da Panther se lá estivesse e se a sua
entrega fosse recusada.
Mas, diante da atitude cordialmente amigável do Governo alemão,
que desde o primeiro momento afirmou os seus sentimentos de nunca
desmentida amizade ao Brasil e, que, sendo forte e poderoso, mostrava
uma vez mais que não regateia satisfações aos menos fortes, não
havia lugar para as estraladas que desejavam os nacionais e os
estrangeiros que neste país querem semear ódios contra nações amigas,
e os que se deixam levar pelas impressões desses agitadores.
O Jornal do Commercio, quando o seu ilustre diretor e proprietário
aqui estava, em 9 de fevereiro de 1895, disse o seguinte do atual
Ministro das Relações Exteriores, pela pena de um brilhante brasileiro
que também o conhece desde os tempos de estudante:
“O Barão do Rio Branco, pode-se dizer, era até ontem muito
mais conhecido em nosso país pelo reflexo do nome paterno do
que pelo que ele mesmo já tinha feito... desde muito moço o que
81
CADERNOS DO CHDD
lhe interessava era a história do nosso país, as suas coisas militares
antigas, o seu prestígio exterior, as glórias da nossa bandeira...
Estão aí os traços característicos do segundo Rio Branco:
genuíno patriotismo, culto amoroso do pai, organização conservadora,
entusiasmo militar, afastamento da política interna, paixão da glória
do país...
Há talvez nesse homem, talhado para os primeiros lugares e
de uma coragem pessoal indiscutível o defeito da timidez, desde
que se trata de um interesse seu...”
E foi desse homem sempre zeloso defensor da dignidade da terra
em que nasceu, do seu “prestígio no exterior” que um escritor amigo
falou com reservas e insinuações bem significativas, em dias como os
que acabamos de atravessar, em que a opinião pública andava
transviada por notícias falsas ou exageradas!
Felizmente, a borrasca que outros preparavam e para a qual os
telegramas de Florianópolis e a Vária forneceram elementos, está
passada.
O país conhece hoje em toda a sua luz o incidente de Itajaí.
___________________________________________________________________
Publicado nos seguintes periódicos:
– O Paiz, 14 jan. 1906.
– Gazeta de Notícia, 14 jan. 1906.
– Jornal do Commercio, 14 jan. 1906.
82
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
A SOLUÇÃO DIPLOMÁTICA DO CASO DA PANTHER*
Temos a seguinte nota:
Foi-nos mostrada uma interessante “Carta do Rio”, no Estado de
S. Paulo, de 13 do corrente, escrita pelo seu ativo e talentoso
correspondente “Fígaro”, também combatente na imprensa da nossa
boa capital.
Por essa carta ficamos conhecendo qual o procedimento que alguns
censores fluminenses desejariam tivesse tido, no caso da Panther, o
Sr. Ministro das Relações Exteriores.
Diz textualmente “Fígaro”:
“Saímos disto envergonhados, não pela pequenez da
satisfação que a Alemanha nos deu, mas pela confissão de que
nós fomos mentirosos. Nós! As autoridades de Santa Catarina, é
claro....
Nada disso se daria se houvéssemos procedido de outra
forma. Perdoe-me a lição o mestre diplomata Sr. Paranhos do Rio
Branco. Se o sapateiro sobe além dos sapatos é porque Homero
também cochila às vezes...
Se S. Ex. dissesse ao Sr. Treutler que o Governo do Brasil,
dada a ofensa que foi grave, não podia entrar em estudo do caso
e queria singelamente satisfações, visto que não podia discutir,
pôr em dúvida e desmentir as informações das suas autoridades;
se S. Ex. tivesse mandado sair de Berlim o Sr. Costa Motta e
entregar ao Sr. Treutler os passaportes; se, numa palavra, o
Brasil tivesse cortado relações com a Alemanha, tudo estaria a
estas horas linda e brilhantemente resolvido, as explicações viriam
plenas e satisfatórias e a gente estaria confiando na palavra das
autoridades de Santa Catarina.
Assim, quem mentiu foi o Brasil.”
“Fígaro”, como Homero, estava de certo caindo de sono – jam
dormitante lucerna –, quando escreveu e mandou para a velha
acadêmica Paulicéia aquela extraordinária lição de direito diplomático...
* Publicado em A Notícia. Rio de Janeiro, 16 jan. 1906.
83
CADERNOS DO CHDD
Ou melhor, estava gracejando.
Onde e quando se viu um governo pedir satisfação a outro, declarar
que a reclama antes do estudo do caso, e que somente
as informações das suas autoridades – que ele próprio não quer
examinar – devem ser tidas em consideração? Não percebe “Fígaro”
que a outra parte também ficaria com o direito de exigir que somente
os seus documentos e informações devessem ser tidos em conta?
Onde e quando se viu um governo formular reclamações, dizendo
que as formula sem base segura e rompendo relações diplomáticas
antes que o outro possa examinar o caso e dizer se quer ou não
atender à reclamação?
Não, mil vezes não! Essa linha de proceder que alguns raros
diplomatas da rua do Ouvidor desejariam ver adotada pelo Sr. Rio
Branco, estamos certos que ele a não seguiria nem mesmo se tão
ferozes patriotas lh’a quisessem impor sob a ameaça de imediato
fuzilamento.
O Brasil tem a indeclinável obrigação de proceder sempre de acordo
com as suas honrosas tradições, com as práticas das demais nações
cultas e os princípios do direito das gentes.
Já citamos o procedimento da França em 1887, num caso muito
mais grave do que este nosso de Itajaí: o Ministro dos Negócios
Estrangeiros da República Francesa telegrafou à embaixada em Berlim,
incumbindo-a de “convidar o Governo alemão a verificar os fatos, e
quando a sua exatidão fosse reconhecida...” (pelos inquéritos e
indagações das autoridades alemãs) “a dar, conforme os princípios do
Direito, as reparações devidas à França, pela violação do seu território”
(...d’inviter le Gouvernement Allemand à controler les faits et lorsque
leur exactitude aurait été reconnue, à donner, conformément aux
principes du droit les réparations dues à la France pour la violation du
territoire et les torts causé à ses nationaux).
Invertamos as posições. Suponhamos que um governo estrangeiro
nos apresentasse uma reclamação do mesmo gênero, baseada em
resumos telegráficos e nos dissesse: “Não preciso examinar e estudar
os documentos a que se referem os telegramas das vossas autoridades.
Tudo quanto está nesses resumos é necessariamente exato e não
merecem crédito algum as informações do comandante e oficiais do
vosso navio de guerra. Queremos satisfação imediata e a demissão
84
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
do comandante brasileiro. Se o Brasil não estiver pelo que exigimos,
romperemos imediatamente relações diplomáticas.”
Perguntamos a “Fígaro”, que sempre conhecemos tão razoável,
se ele se animaria a aconselhar o Governo brasileiro a demitir o seu
comandante e dar satisfações a tão desaforado governo estrangeiro?
Decerto que não. O que o Governo do Brasil teria de fazer nesse
caso seria, não esperar que o atrevido rompesse relações, mas cortar
imediatamente relações com esse governo de insensatos, capaz de
nos dirigir tão grande afronta.
“Em todo caso”, diz Lafayette Pereira e dizem todos os mestres
do Direito Internacional, “o Estado que recebe a ofensa não pode
exigir do ofensor um gênero de satisfação que seja para este uma
desonra ou humilhação, porque nisso iria ofensa à sua dignidade e
honra, tão respeitáveis como as do Estado ofendido.”
E ensina mais:
“A satisfação consiste em explicações, escusas, amende
honorable, protestos, declarações solenes em atos públicos de
deferência, saudação da bandeira nacional, visitas oficiais, na
repreensão e punição dos funcionários ou autores da ofensa. Tudo
isso depende da natureza da ofensa e dos usos.”
Diz “Fígaro” que, como se passaram as coisas, confessamos que
“as autoridades de Santa Catarina foram mentirosas”, e acrescenta:
“quem mentiu foi o Brasil.”
O Brasil é representado perante o estrangeiro pelo Governo Federal
e não por um Juiz de Direito de Comarca ou pelos governos particulares
dos diferentes Estados da União.
Está claro que ninguém poderia atribuir “mentiras” ou mesmo
erros propositais ao Juiz de Direito de Itajaí e ao Governo do Estado
de Santa Catarina. É fora de dúvida, porém, que pela leitura rápida
dos inquéritos o juiz, referindo-se a eles, mandou ao Governador e
este transmitiu ao Ministério das Relações Exteriores algumas
informações que não têm base nos depoimentos. É certo também
que o Governador, ao receber os inquéritos que imediatamente expediu
pelo primeiro vapor, fiou-se nos extratos que lhe fez algum auxiliar
menos cuidadoso.
85
CADERNOS DO CHDD
Os telegramas expedidos de Santa Catarina ao Ministério das
Relações Exteriores, entre coisas exatas, extraídas dos inquéritos, diziam
as seguintes, que a leitura atenta desses papéis deixa de confirmar:
a)
Primeiro, que uma força armada desembarcou da Panther,
às 2 horas da madrugada de 27 de novembro; depois, que
não fora só um destacamento, mas dois destacamentos que
desembarcaram;
b)
Que os oficiais e marinheiros bateram em várias casas e
cercaram, “entre elas as de Gabriel Heil e Jacob Zimmermann”;
c)
Que prenderam durante a noite e levaram para bordo o
desertor Hasmann;
d)
Que ficara averiguado no terceiro inquérito que o próprio
comandante estava entre os oficiais e marinheiros que
desembarcaram.
Mesmo sem levar em conta os inquéritos alemães, vê-se pela
leitura dos nossos:
86
a)
Que já na tarde de 26 os oficiais e marinheiros alemães
estavam em terra, procurando o retardatário Hasmann, o
qual não podia ainda ser chamado desertor, e que nos inquéritos
brasileiros não há um só depoente que fale em desembarque
de força à noite e diga que esses homens estavam armados;
b)
Que os oficiais e marinheiros só bateram em duas casas: a
de Gabriel Heil (Hotel do Commercio) e a de Jacob Zimmermann,
e que só cercaram esta última;
c)
Que nenhum depoente declara ter sido Hasmann preso à
noite e levado para bordo, cumprindo notar que o Comissário
de Polícia, em ofício, diz ter sabido que esse indivíduo voltou
voluntariamente para bordo no dia 27, pouco antes da partida
da Panther;
d)
Que, no terceiro inquérito, só um velho maníaco, Antonio
Maluch, disse ter visto o comandante da canhoneira no Hotel
do Commercio mas às 9 horas da noite de 26, e não depois
da meia noite, quando oficiais e marinheiros da Panther
voltaram a esse hotel, para fazer sair Steinhauf, e foram
depois à casa de Jacob Zimmermann; e, mais, que os sinais
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
do oficial que dirigia os que foram ao Hotel do Commercio,
constantes do mesmo terceiro inquérito, bastam para mostrar
que não era ele o comandante da canhoneira;
e)
Que nenhum depoente disse ter visto Fritz Steinhauf ser levado
para bordo;
f)
Que, no primeiro inquérito, o 4º depoente, Arthur Bargmann,
declarou que “Kormann dissera que na segunda-feira (27 de
novembro, quando os oficiais e inferiores que estiveram em
terra já haviam voltado para bordo) vira Steinhauf nas
proximidades da casa dos atiradores”; e que, depondo depois
o citado Alois Kormann, o promotor público não achou
necessário fazer-lhe pergunta alguma;
g)
Que, no segundo inquérito, a 6º testemunha, Guilherme
Groschang, declarou ter encontrado no caminho de Itajaí
para Tijucas um indivíduo cujos sinais pareciam concordar
com os de Steinhauf e que lhe dissera estar em viagem para
Florianópolis; que o deixara dormindo em uma venda no lugar
denominado Tapera; e que, ao regressar, ele, Groschang, de
Tijucas, no dia 28, para tomar uma barcaça em Porto Belo,
aí lhe contou Carlos Abrahão que na noite anterior tinha dormido
em sua casa um alemão “que lhe dissera ter havido barulho
em Itajaí”, e que, “como estava cansado de carregar malas
nas costas, tinha deixado a sua no hotel de Gabriel Heil”;
acrescentou Groschang que os sinais dados por Abrahão eram
os do alemão que deixara dormindo em Tapera.
Outras informações de origem brasileira, recebidas de Itajaí pelo
Ministério das Relações Exteriores, vieram confirmar o exagero e a
inexatidão das primeiras notícias. Assim, Hasmann, que estas diziam
ter sido preso e levado para bordo durante a noite, foi visto chegar de
carro a Itajaí com o brasileiro nato João Gaersner e seguir com este
para a canhoneira Panther, quando ela já suspendia o ferro. Gaersner
recebeu mesmo a gratificação de 20$ que o comandante prometera a
quem conseguisse que Hasmann voltasse para bordo, seguro de que
apenas sofreria a pena de oito dias de prisão simples.
Também teve o Ministério das Relações Exteriores, no telegrama
que o Conde Saurma passou às 2 horas da tarde de 26 de novembro
ao nosso compatriota Carlos Renaux, superintendente municipal em
87
CADERNOS DO CHDD
Brusque (“A polícia está prevenida”) prova brasileira incontestável de
que o comandante acatava a soberania territorial.
Com todos esses elementos, tirados dos inquéritos e de outras
fontes brasileiras, oficiais e particulares, o Sr. Barão do Rio Branco não
podia manter tudo quanto havia firmado na reclaração inicial de 9 de
dezembro. Confiando nas primeiras informações oficiais que recebera
de Santa Catarina e que lhe foram dadas como suma dos nossos
inquéritos, ele telegrafou ao ministro do Brasil no dia 9: “Diante da
ofensa sem precedente feita a nossa soberania, estou certo de que o
Governo Imperial se não demorará em dar-nos, espontaneamente,
as demonstrações de amizade que dele esperamos e que devem ser
acompanhadas da ordem para a entrega de Steinhof” (assim era
ortografado o nome nos telegramas do Governo de Santa Catarina) “e
da reprovação solene desse atentado. Trata-se de uma diligência militar
em país estrangeiro e que não podia ser efetuada sem ciência ou
ordem do comandante...”
Efetivamente, se tivesse havido um desembarque de
destacamentos armados, às 2 horas da madrugada ou mesmo de
dia, e a prisão de um homem em Itajaí por essa força estrangeira –
sendo ele levado ou não para bordo –, a ofensa à soberania nacional
seria sem precedente na história do Brasil, e o desembarque não teria
podido operar-se sem ordem e ciência do comandante.
Mas, foi muito diferente o que se deu e o Sr. Ministro das Relações
Exteriores não só expediu telegrama à Legação Brasileira em Berlim
dando-se pressa em corrigir as inexatidões da primeira exposição, mas
apresentou outra, rigorosamente exata, e a anexou à sua Nota de 31
de dezembro em que se exprimiu assim:
“À vista dos documentos examinados, não podemos manter
que houve um desembarque militar de homens em armas;
podemos, porém, afirmar que houve operações de polícia,
executadas durante a noite, por oficiais, inferiores e marinheiros
de um navio de guerra estrangeiro, com menoscabo da soberania
nacional...”
Esses atos de polícia não foram praticados por ordem do
comandante da Panther, como ele declarou solenemente ao chefe do
Estado-Maior da Armada Imperial e ficou demonstrado em inquérito
feito a bordo, debaixo de juramento. Não era possível, portanto, que
88
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
o Brasil pedisse a punição administrativa desse comandante pelo que
não fez, e pelo que não mandou fazer. Os oficiais e inferiores que
estavam licenciados em terra e praticaram excessos no Hotel do
Commercio e na casa Zimmermann vão ser submetidos à justiça militar.
Desaprovados eles pelo comandante e pelo Governo da Alemanha,
desapareceu qualquer ofensa a nossa soberania.
Quanto a Steinhauf, a declaração feita ao chefe do Estado-Maior
da Armada, pelo comandante da Panther, de que não estava e nunca
havia estado a bordo, era suficiente, segundo os juristas internacionais,
para que não pudéssemos insistir na reclamação da sua entrega. Se
um governo estrangeiro ousasse pôr em dúvida afirmação semelhante
feita por um comandante de navio de guerra brasileiro ao chefe de
Estado-Maior da nossa Armada, consideraríamos com toda a razão
que haveria nisso injúria à honra da Marinha e da nação brasileira.
“Fígaro” mostra-se muito incomodado por não ter aparecido até
agora o famoso Fritz Steinhauf (ortografia do nome nos inquéritos e
no cartão postal de 1 de dezembro). Sabe, porém, se a polícia de
Santa Catarina e de outros lugares o tem seriamente procurado?
Em Itajaí, o comissário de polícia só tinha às suas ordens dois
soldados, para a guarda da polícia. Em 26 de novembro havia apenas
oito ou dez dias que ali chegara Steinhauf. Pouca gente o conhecia.
Não há dele retrato algum. Sabe-se, apenas, pelo segundo inquérito,
que não tinha dinheiro para pagar o hotel e retirar a sua mala, e nem
mesmo “para comprar uma caixa de fósforos”. Quem pode saber se
Steinhauf tem motivos para se ocultar e mudar de nome?
O comandante ouviu dizer que ele esteve em Florianópolis, que ali
chegara em navio de vela, que depois partira para Buenos Aires.
Também o Governador do Estado ouviu dizer isso e mandou a notícia
ao Ministério das Relações Exteriores. O nome de Steinhauf não foi
encontrado entre os dos passageiros dos navios entrados e saídos.
Nem podia ser encontrado.
Ele não tinha dinheiro para comprar uma passagem. Poderia,
porém, ter chegado a Florianópolis em alguma falua, como a barcaça
que no dia 28 de novembro partiu de Porto Belo conduzindo Groschang
para Itajaí. Não consta que as faluas e pequenas embarcações figurem
nas listas de entradas e saídas de navios. E não é exato, como parece
pensar “Fígaro”, que um pescador, ou amigo de pescador, que saia
deste porto para Ponta Negra ou Sepetiba pague imposto de passagem
89
CADERNOS DO CHDD
em qualquer repartição, nem que as tenhamos em cada praia ou
enseada do Estado de Santa Catarina.
Que Steinhauf tenha seguido como criado, foguista, varredor ou o
que quer que seja “trabalhando a bordo pela passagem”, para Buenos
Aires, Rio Grande ou qualquer outro porto; que esteja na Ilha de Santa
Catarina ou na terra firme, pouco nos importa. O de que não podemos
duvidar, diante da declaração do Governo da Alemanha, é que ele
nos não foi entregue, porque não estava e nunca esteve a bordo da
Panther.
___________________________________________________________________
Artigo também publicado nos seguintes periódicos:
– Jornal do Commercio, 17 jan. 1906.
– O Paiz, 17 jan. 1906.
90
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
CONFIAR DESCONFIANDO*
NEMO
Sobre a presente rebelião da nossa maruja de guerra disse o
Patriarca da República, General Quintino Bocayuva, do alto da sua
curul, no Senado, com o tom solene, que lhe é habitual, e autoridade
do seu caráter e da sua experiência, que, naquela manifestação
anárquica, não existe nenhum pensamento político, e que nenhum
homem de responsabilidade pode tê-la inspirado ou favorecido.
S. Ex. deve ter para isso razões, que não conhecemos; mas
devemos respeitar.
Desde, porém, que as ignoramos, S. Ex. nos deverá perdoar a
liberdade inócua de fazer uma resenha dos fatos antecedentes e
concomitantes daquela inqualificável manifestação, senão de hostilidade
política, ao menos de indisciplina militar.
Entre os motivos, com que se pretende explicá-la, figura, sobre
todos, a existência do castigo corporal na armada que, segundo a
Imprensa, tinha sido atenuado pelo ex-Ministro da Marinha, e que ela
pretende ter-se agravado, nestes escassos sete dias de governo do
seu sucessor.
Daí se deixa entrever que o movimento da maruja foi uma
manifestação de saudade, pelo que saiu, e de desespero contra o que
entrou.
Também ignoramos se algum fato justifica a pretendida agravação,
em tão curto período, posto que nos não pareça verossímil.
Mas, com o devido respeito ao ausente, não cremos que ele
mereça tantas saudades dos revoltosos, porque atenuou um castigo,
há muito abolido, de modo positivo, por um decreto, largamente
divulgado e aplaudido, e que o Governo Provisório tentou, mais tarde,
restabelecer, por outro ato, que nunca foi publicado no Diário Oficial,
que nunca chegou a ser decreto e, que, portanto, nunca pôde revogar
a lei que aboliu aquela pena. A referência vaga do nº XIII do quadro
do artº 5º do decreto nº 509, de 21 de junho de 1890, ao suposto
decreto nº 328, de 12 de abril do mesmo ano (que brilha pela ausência
* Publicado no Correio da Noite. Rio de Janeiro, 24 nov. 1910.
91
CADERNOS DO CHDD
nas coleções da nossa legislação) também não poderia revalidar o que
nunca valeu.
Por conseqüência, para que o ex-Ministro da Marinha merecesse
a saudade da maruja, revoltada pelo castigo corporal, era preciso que
ele tivesse cumprido a lei, proibindo a sua aplicação, porque, mais ou
menos chibatadas, tudo é chibatada, e a questão não era nem é da
quantidade; mas da qualidade da pena.
Foi isto, se bem nos lembramos, o que disse mais de uma vez o
deputado José Carlos de Carvalho, que sempre cortejou, em tudo, a
classe a que pertenceu, nas suas longas e repetidas objurgatórias
contra o Almirante Alexandrino de Alencar.
E tanta consciência tem disso o operoso deputado, que, na sua
recente e oficiosa intervenção, perante os revoltosos, teve o cuidado
de não lhes oferecer chibatadas, em doses, mesmo inferiores, ao
máximo da posologia alexandrina.
Essa história, pois, de saudades póstumas, se não é, parece um
conto do vigário.
Mas concedamos que não o fosse; bastará ela para explicar a
explosão daquela saudade feroz, no próprio dia em que partiu o ex–
ministro, com a comissão, tão pingue como satírica, a ele confiada por
um sucessor de quem fora inimigo até a véspera daquela nomeação?
Não parece.
Se saudades houve, como causa de feroz explosão, é preciso
procurá-las em outros corações.
Mas onde estariam eles?
Volvamos os olhos ao passado, que é o pai do presente e avô do
futuro.
Enquanto o Marechal Hermes esteve na Europa, depois de eleito
presidente da República, alguns dos seus amigos dedicados, para
aliviá-lo dos cuidados do Governo, formaram aqui o seu ministério, um
ministério conservador das caras velhas, que deviam dar ao novo
período presidencial o caráter de mera continuação do anterior;
uma coisa assim como la suite au prochain numéro dos folhetins dos
jornais.
Uma das três, ou quatro, figuras obrigadas dos ministros passados,
era o da Marinha, sobretudo depois que o malogro da empreitada
92
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Sá Peixoto fez dificultar sua volta ao Senado, como embaixador do
Amazonas.
Sucedeu, porém, que o marechal, ignorando o cuidado dos seus
amigos, que lhe preparavam aqui um governo do Padre João sem
cuidados, e lembrando-se talvez do conselho do Evangelho sobre o
perigo “de meter vinho novo em odre velho”, também pensou lá na
organização do seu ministério, convidou para ele algumas pessoas da
sua confiança e trouxe da Europa a sua lista, com um só dos anteriores.
Este era naturalmente o Chanceler do exterior que é, como um
Pombal, através de dois D. José, e sem perspectiva de alguma Maria 2ª.
Isto, porém, parece que não satisfez nem ao próprio Pombal e,
muito menos, poderia satisfazer aos substituídos e aos seus padrinhos.
Daí as dificuldades da gestação do ministério atual, e a guerra
surda, que começou, desde o primeiro dia, contra o seu organizador;
apesar da complacência, quase evangélica, do Marechal Hermes.
Seus amigos, os mais dedicados ostensivamente, ressentiram-se
da pouca eficácia do seu zelo, porque são insaciáveis; mas, fazendo
boa cara ao mau jogo, têm procurado por todos os meios e modos
vencê-lo, à força de manifestações as mais variadas, desde os
banquetes até os presentes, uns alusivos, outros simbólicos, e aos
discursos perenes de elogios, e ocos de significação literal; de modo
que a saúde do marechal está correndo riscos de indigestão, de surdez
e de contusões, por excesso de abraços.
Para atenuar esses riscos, alguns há que lhe procuram minorar o
trabalho, dividindo com ele até o de deliberar em conselho de ministros,
sobre os assuntos mais reservados.
Alguns desses amigos têm outros, que tais, procurando agir e
falar por eles, até sitiá-los dentro do próprio lar.
O deputado José Carlos é um dedicado incondicional a alguns
amigos do primeiro grau, e como é de natural obsequioso e ativo,
quando soube das exigências dos revoltosos, lembrou-se da defesa,
que antecipadamente lhes tinha feito, e supôs-se, por isso, o mais
insuspeito e o mais autorizado intermediário, para tratar com eles.
Os fatos parecem ter confirmado, ao menos por enquanto, a sua
presunção e não seremos nós que lhe levaremos a mal o seu
oferecimento espontâneo; pois o seu caráter é naturalmente impulsivo,
93
CADERNOS DO CHDD
até na dedicação. Só nos falta ver agora os resultados práticos e a sua
duração, para lhe darmos os nossos parabéns sem por isso acreditar
que tenham faltado aos revoltosos sugestores hábeis, e malévolos.
Conscientemente ou não, aquele deputado foi um desses
sugestores, com os seus discursos, que lhe serviram de passaporte à
intervenção entre os revoltosos e o Governo, a qual não foi a primeira,
nem será talvez a última.
Pedisse o Governo o estado de sítio, fizesse um inquérito sério,
longe da reportagem, que tudo estraga, com sua fome de furos, e
sem ciência dos sobreministros, que podem mais do que os
infraministros, e talvez se encontrasse o rastilho de uma conspiração
muito mais vasta, perigosa e antipatriótica do que a dos marinheiros
revoltados.
É mesmo possível que nela se encontrassem muitos hermistas
insuspeitos, e nem um civilista suspeitado.
Os marinheiros não se meteriam nisso sem recursos pecuniários,
que não tinham, nem poderiam ter, sem lhes serem fornecidos de
fora.
Como, pois, atreve-se a afirmar que não há política na revolta, o
nosso patriarca, que já viu conspiradores no seio do próprio Senado?
Como se explica também esse furo do Diabo a quatro, que
anunciou de véspera a segunda edição do bombardeio de Manaus?
Deus livre S. Ex. e mais o Chefe do Governo dos seus inimigos e,
sobretudo, dos seus amigos zelosos, a começar daquele que distribuía
as cadeiras no Congresso, como cadeaux d’anniversaire, e que agora
se distribui, comme pour boire sie des garçons sages.
Voltamos hoje àquela triste situação, em que o Marechal Floriano
era obrigado a “confiar desconfiando sempre”.
94
O RETORNO DO BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
O retorno do Barão do Rio Branco
ao Brasil: a leitura da imprensa
SANDRA M. L. BRANCATO*
Este trabalho tem por objetivo não propriamente examinar as
matérias dos jornais citados, mas sim reunir o que neles foi publicado
sobre o retorno do Barão do Rio Branco ao Brasil, em 1902, quando
veio assumir o Ministério de Relações Exteriores. Apresenta também
uma contextualização do momento histórico brasileiro relacionado com
o conteúdo das notícias selecionadas. Para realizar o trabalho foram
utilizados somente os recortes de jornais que se encontram no Arquivo
de Rio Branco que está sob a guarda do Arquivo Histórico do Itamaraty,
no Rio de Janeiro. Utilizou-se esse critério numa tentativa de apresentar,
ao pesquisador interessado, apenas as matérias que o Barão ou seus
assessores tiveram o cuidado de arquivar. Para melhor organizá-las,
foram criados alguns campos que reúnem os principais enfoques
abordados por jornais, que podem ser identificados no decorrer do
texto. Resta ainda esclarecer que não estão incluídos os do Rio de
Janeiro, então capital do país, entre os jornais pesquisados, pois o que
se pretendeu foi apresentar a repercussão do retorno do Barão fora
do principal centro dos acontecimentos.
A carreira do Barão anterior ao Ministério
Quando, em 2 de dezembro de 1902, o Barão do Rio Branco
chegou ao Brasil para assumir a pasta de Ministro das Relações
Exteriores, sua situação era bem diversa daquela que tinha em 1876
ao sair do país para exercer o cargo de cônsul brasileiro em Liverpool.
Para conquistar esse primeiro cargo diplomático foi preciso muito
empenho e até mesmo driblar a resistência do Imperador D. Pedro II
que não aprovava a indicação feita pelo Gabinete. A nomeação de Rio
Branco só sairia em 27 de maio de 1876, quando, por ocasião da
viagem de D. Pedro II à Europa, a princesa Isabel estava na regência
do Império. Álvaro Lins, que escreveu uma das mais completas e
* Professora titular do Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul – PUC-RS. As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade
exclusiva da autora.
95
CADERNOS DO CHDD
documentadas biografias do Barão1 , relata que mesmo a Princesa
Regente tinha algumas ressalvas quanto à nomeação2 de Rio Branco e
que não teria sido fácil conseguir efetivá-la.
É sabido que no início de sua carreira política Rio Branco não
ostentava grande projeção pessoal. Estava muito atrelado ao pai,
José da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, situação essa que ele
mesmo reconhecia. Foi assim, quando entrou para a Câmara dos
Deputados (1869), quando exerceu a função de secretário de seu pai
na Missão ao Rio da Prata (1870-1871) e, especialmente quando,
como jornalista e deputado, apoiou o Visconde, chefe do Gabinete do
Império (1871/1875). Nessa gestão foi aprovada a lei do Ventre Livre
(1871) que daria grande notoriedade ao Visconde, embora também o
filho tivesse defendido a mesma causa.
A atividade intelectual do Barão, antes da partida para Liverpool,
também não lhe deu grande destaque. Em mais de uma oportunidade,
ele próprio admitiria que sua produção da juventude mereceria reparos.
Mais tarde sim, na Europa, em contato com intelectuais, com grandes
livrarias e bibliotecas, pôde aprimorar seus conhecimentos e elaborar um
conjunto invejável de obras, especialmente de cunho geográfico e histórico.
Foi ainda durante o período em que esteve na Europa que surgiram
as grandes oportunidades que revelariam aos contemporâneos do Barão
seus méritos como estrategista e como político. Em março de 1893 foi
convidado pelo governo brasileiro para defender os direitos do Brasil
sobre a região de Palmas que era reclamada pela Argentina. A questão
já se arrastava desde 1890, pois a divisão do território litigioso entre as
duas partes interessadas não fora aceita pela maioria dos parlamentares
brasileiros.3
1
Rio Branco (O Barão do Rio Branco): História pessoal e História política, São Paulo: Editora Alfa
Omega, 1996. Embora sejam muitos os estudos realizados sobre Rio Branco, tomaremos como
referência básica para a parte introdutória do presente trabalho a obra de Lins, utilizando,
especialmente, alguns documentos citados pelo autor, decisivos para encaminhar as questões
abordadas pelos jornais.
2 Em depoimento recolhido por Lins, consta que Cotegipe ao levar a indicação do nome de
Rio Branco à princesa Isabel dissera: “Hoje, ou sai a nomeação de Paranhos, ou sai a demissão
do Gabinete. O rapaz tem valor, tem merecimentos para o cargo, e que não os tivesse: é filho do
Visconde do Rio Branco, e recusá-lo chega a ser um desaforo que não admitimos.” (Cf., op. cit.,
p. 94)
3 A tutela do Visconde sobre seu filho era tão notória, que os periódicos satíricos da época
registravam com freqüência essa situação. Um deles, de nome Tupi, publicou uma caricatura do
Visconde “chocando dois ovos dos quais saíram, com cabeça de gente e corpos de pinto, Taunay
e Paranhos Júnior,” o primeiro também impulsionado em sua carreira política pelo chefe do
Gabinete. (Cf. Lins, 1996, p. 75)
96
O RETORNO DO BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
Criado o impasse, o caso foi encaminhado para arbitramento do
Presidente Grover Cleveland, dos EUA. Como delegado brasileiro junto
à Missão Especial em Washington, coube ao Barão redigir a Exposição
que apresentava os direitos brasileiros sobre o território litigioso. Graças
a um minucioso e erudito trabalho, acompanhado de uma
impressionante coleção de documentos e mapas, a sentença do
Presidente norte-americano foi favorável ao Brasil. Começava, a partir
de então, o Barão a ganhar brilho próprio. A repercussão no Brasil da
vitória obtida foi imensa, sendo divulgada fartamente pela imprensa
que não poupou elogios ao Barão, contribuindo assim para criar um
clima de euforia nacional.
O crédito estava dado; ao deixar Washington e voltar para Paris,
em 1895, já recebia duas novas missões: examinar os limites do Brasil
com a Guiana Francesa e discutir com o governo britânico a posse da
ilha de Trindade. Em ambas, a competência de Rio Branco foi
amplamente reconhecida. Para a primeira redigiu Memórias que
solidificariam seu prestígio como profundo conhecedor de geografia e
direito internacional. Baseado nessas Memórias, o Presidente do Conselho
Federal Suíço, Walter Hause, garantiu ao Brasil, em 1900, o limite com
a Guiana Francesa no rio Oiapoque; para a segunda questão, redigiu
uma série de cartas ao ministro brasileiro em Londres, João Artur de
Souza Correia, encarregado de discutir com os ingleses a posse de
Trindade. Em 1896, finalmente, os ingleses desistiram de Trindade.
Ainda em relação à Inglaterra, Rio Branco escreveu uma Memória
sobre a Questão de Limites entre os Estados Unidos do Brasil e a
Guiana Britânica que serviu de base para argumentação usada por
Joaquim Nabuco na discussão mantida para decidir os limites entre o
Brasil e a Guiana.
A notoriedade adquirida pelo Barão não ficou circunscrita ao meio
oficial.4 É ainda Lins que esclarece:
4
Quintino Bocaiúva, Ministro das Relações Exteriores do Brasil, reunido na capital uruguaia,
assinou em 1890 com seu colega argentino Estanislao Zeballos o Tratado de Montevidéu que
propunha a citada divisão de territórios. Vale referir que, segundo Zeballos, o Tratado foi precedido
de algumas circunstâncias que teriam condicionado Bocaiúva a aceitá-lo, apesar de trazer prejuízos
territoriais para o Brasil. Em 1914, Zeballos, na ocasião Deputado, fez a seguinte declaração em
plenário: “apenas proclamada la República brasileña, teniendo yo el honor de ser ministro de las
Relaciones Exteriores del gobierno del doctor Juárez Celman, en 1889, me trasladé a su despacho
y al darle la noticia de la caída del Imperio, le dije: ‘¡Al fin hemos concluido la cuestión de Misiones!
Vamos a ser los primeros en reconocer la nueva República del Brasil en un decreto grandilocuente,
escrito en estilo frondoso y que ha de causar placer en Río de Janeiro. Invitaremos luego a
97
CADERNOS DO CHDD
A imaginação popular começava a criar um culto em torno dessa figura
que, distante da pátria, conquistara, sem sangue, dois territórios. A própria
circunstância da sua ausência aumentava-lhe o prestígio do nome,
acrescentando-lhe um caráter de mistério. De longe, sem ser vista, a figura
do triunfador crescia como entidade mística no sentimento popular.5
Todas essas circunstâncias explicam que o nome do Barão – já
uma referência nacional – fosse lembrado em 1902 para assumir o
Ministério de Relações Exteriores no governo de Rodrigues Alves.
O que chama a atenção é o contraste do comportamento de Rio
Branco ante essa indicação, com aquele que tivera nos momentos
que precederam a sua nomeação para cônsul em Liverpool. Para
alcançar esse cargo menor precisou mobilizar amigos que o apoiassem
a demover as fortes resistências que havia em aceitá-lo; já quando foi
lembrado para o Ministério, com uma aprovação praticamente unânime,
fez uma cerrada campanha para não ter de assumir o cargo. Desta
vez os amigos influentes seriam procurados para ajudá-lo a afastar-se
do poder.
Em carta a Rodrigues Alves, depois de alegar razões de saúde,
falta de vocação política e problemas de ordem financeira, foi muito
claro: não desejava estar à testa do Ministério. Chegou a sugerir Joaquim
Nabuco como a pessoa mais indicada para ocupar o cargo. Rodrigues
Alves, contudo, estava irredutível. Em 29 de agosto de 1902 enviou ao
Barão praticamente um ultimato através de um telegrama: “Valiosas
ponderações cartas não me convenceram. Nome V. Excia. será muito
bem recebido não podendo negar país sacrifício pedido”.
As resistências foram, por fim, vencidas. Já no dia seguinte, o
Barão respondia, também por telegrama, a Rodrigues Alves: “Farei
sacrifício que V. Excia. julga necessário, contente de o fazer, pelo muito
que devo à nossa terra e a V. Excia.” 6
Bocayuva a que venga al Río de la Plata a recibir nuestros agasajos y le propondremos que
dividamos fraternalmente el territorio de Misiones.’ Bocayuva vino, y el territorio disputado fue
dividido por mitad.” (Cf. FERRARI, Gustavo. Apogeo y crisis del liberalismo (1886-1890), Buenos
Aires: Editorial Astrea, 1978, pp. 150-151).
5 Os prêmios concedidos ao Barão são evidências do reconhecimento oficial pelos serviços que
prestara à nação. É significativo registrar que pelo decreto no. 754, de 32/12/1900, o Poder
Legislativo e o Poder Executivo concediam a Rio Branco a dotação anual de 24:000$000,
transmissível a seus filhos, e mais o prêmio de 300:000$000 pela sua atuação em Washington e
Berna (Cf. LINS, 1996:235).
6 Op. cit. p. 234.
98
O RETORNO DO BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
O ambiente que cercaria o seu retorno ao Brasil já era, então,
altamente previsível e não surpreende que a nomeação para o Ministério
repercutisse muito além do Rio de Janeiro, principal centro político do
país, como atesta o amplo espaço que ocuparam as notícias sobre ele
na imprensa dos diferentes estados brasileiros.
O retorno do Barão
Como a maioria dos jornais que circulavam no país tinha um caráter
predominantemente noticioso, foi comum a todos incluir em suas edições
matérias que anunciavam a chegada do Barão ao Rio de Janeiro com
grande destaque. Até os detalhes mais prosaicos, como a decoração
das ruas e praças por onde circularia o Barão depois de desembarcar
do navio Atlantique, foram descritos à exaustão. O Jornal de Notícias
(São Paulo), em 4/12/1902, foi um dos que mais se ocupou em divulgar
tais detalhes:
As praças Rio Branco, do Estácio, Quinze de Novembro e S. Francisco
de Paula amanheceram garridamente empavesadas com bandeiras, festões
e galhardetes, além de inúmeros vasos contendo delicados arbustos. De
todas as praças a que apresentava mais belo aspecto foi a de S. Francisco
de Paula, onde a comissão encarregada da festa da recepção mandou
construir um belo e artístico arco triunfal de estilo dórico e de 16 metros de
altura. Essa peça artística, cuja base suportava de cada lado 4 colunas
sobre que assentava a arqueação, foi construída na embocadura da rua do
Ouvidor. Nessa face do majestoso arco, lia-se sobre a platibanda: ‘Salve!
Barão do Rio Branco!’ Sobre o grupo das colunas, à direita, lia-se: ‘As Missões
– 5 de fevereiro de 1895’: à esquerda: ‘Amapá – 1 de dezembro de 1900’.
Na face que dá para o edifício da Escola Politécnica, lia-se também sobre a
platibanda: ‘A quem tão bem serviu à Pátria – A Pátria agradecida’; sobre o
grupo das colunas, à esquerda: “1 de dezembro de 1902’ ; à direita: ‘20 de
abril de 1845’. Esta é a data do nascimento do barão do Rio Branco.7
A República (2/12/1902), de Curitiba, além do que já publicara o
Jornal de Notícias, consegue acrescentar: “o antigo largo da Glória –
hoje Rio Branco – achava-se artisticamente enfeitado; a estátua do
Visconde estava coberta de flores naturais e à noite cercada de focos
elétricos.”
7
Confira a resistência do Barão em assumir o Ministério, as tratativas feitas para convencê-lo a
ocupar o cargo e, finalmente, a aceitação do posto em Lins, op cit., pp. 243-247.
99
CADERNOS DO CHDD
Outros jornais, como o Diário de Pernambuco (3/12/1902),
Jornal de Piracicaba (3/12/1902) e A Federação de Porto Alegre
(3/12/1902), restringiram-se a repetir as mesmas informações
anteriores. Curiosa foi a notícia publicada pelo Correio do Povo
(2/12/1902), de Porto Alegre, que além de especificar que houve
iluminação nas ruas da cidade, nos edifícios e nos navios surtos no
porto, passava a seus leitores o detalhe destoante da festa:
“infelizmente, sobreveio ligeira chuva, que prejudicou os festejos.”
Outro aspecto da chegada do Barão que a imprensa preocupouse em informar foi que não só havia grande número de autoridades
para recebê-lo, como também de populares. Na versão de todos essa
presença massiva era a prova mais contundente do expressivo apoio
que o novo Ministro recebia. No Diário de Pernambuco (3/12/1902),
de Recife, e de duas pequenas cidades interioranas de Minas Gerais,
São José do Paraíso e Ouro Fino, encontra-se praticamente a síntese
do que foi publicado nos jornais que enfatizavam a presença popular
na festa.8
No primeiro:
A recepção no mar foi brilhantíssima. Grande número de lanchas e
escaleres conduziam milhares de pessoas até a bordo do paquete, desejosas
de saudar o notável brasileiro. Em outras embarcações iam bandas de
música militares. Ao saltar em terra o barão do Rio Branco, redobraram as
aclamações e estrugiram vivas demorados e entusiásticos. É impossível
descrever o delírio que se apoderou do povo.
Na Folha do Sul (2/12/1902), de São José do Paraíso:
O Brasil inteiro se agitou para recebê-lo. Desde os altos representantes
dos poderes constitucionais da República, até o mais obscuro filho desta
terra que saiba querê-la, e saiba venerá-la, todos sentem-se (sic) no dever
patriótico de ir dar uma saudação festiva, um abraço de agradecimento,
um viva de entusiasmo...
Na Gazeta de Ouro Fino (7/12/1902):
S. Exc. teve no Rio, por ocasião de sua chegada, a prova positiva de
quanto o seu nome, já de si venerando, é venerado por todos os seus
8
A grafia dos jornais citados foi atualizada, com exceção dos títulos dos mesmos.
100
O RETORNO DO BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
compatriotas, sem distinção de cor política, pois as manifestações de apreço
e homenagens que ali lhe foram prestadas assumiram o caráter de uma
verdadeira consagração popular, porque era a alma brasileira toda inteira
que saudava num delírio o filho ilustre desta terra.
Para ter uma idéia sobre a presença de autoridades na festa,
tanto do meio político, como de representantes de diversas entidades,
basta acompanhar o trajeto percorrido por Rio Branco no Rio de
Janeiro descrito pelos jornais para identificá-las: do cais Pharoux até
o Clube Naval foi acompanhado por diplomatas, senadores, militares
e acadêmicos; ao sair do Clube Naval dirigiu-se à Associação Comercial,
onde foi recebido pela diretoria, ouvindo, ainda, uma saudação que o
comércio do Rio de Janeiro lhe dirigia; seguiu depois para a Escola
Politécnica, onde presidiu uma sessão da Federação dos Estudantes
em sua homenagem; a próxima parada foi no Arsenal de Marinha,
onde o aguardavam vários oficiais.9
Associada à descrição da festa e das homenagens a Rio Branco
aparecem praticamente em todos os jornais referências a estreita
ligação do Barão com seu pai. Nessas referências um tema bastante
recorrente foi a Lei do Ventre Livre, que o Visconde conseguira aprovar
em 1871 com o apoio do filho, vencendo à época fortes resistências.
A Folha do Sul (São José do Paraíso), em 2/12/1902, lembrava que os
méritos do pai abolicionista não obscureciam os do filho:
O pedestal da estátua que mostra o Visconde do Rio Branco como o
símbolo do amor da liberdade, foi argamassado com as lágrimas de gratidão
de uma raça inteira oprimida e que ele libertou. O nome que o Visconde do
Rio Branco deixou na história de nossa pátria foi tão grande que parecia
que não podia ser excedido; e, no entanto, o sucessor desse nome, que
tinha sobre seus ombros o peso enorme das glórias de seu pai, ergue-se
tanto e tanto que, se não as excedeu, realçou-as e enalteceu-as porque os
seus triunfos, as suas vitórias, são filhos daquele que herdou do velho
estadista brasileiro o grande amor desta terra, o santo fervor do
engrandecimento de nossa pátria.
A Tribuna de Santos (3/12/1902), não foi menos enfática. A
manifestação popular que recebera Rio Branco fora:
9
Veja também: Jornal de Piracicaba, 3/12/1902; Gazeta de Uberaba, 3/12/1902; O Rebate (São
Paulo), Comarca de Batataes (São Paulo), 7/12/1902; Lavoura e Commercio (Uberaba), 7/12/
1902; A República (Curitiba), 2/12/1902; Correio do Povo (Porto Alegre), 2/12/1902; Echo do Sul
(Porto Alegre), 2/12/1902; A Federação (Porto Alegre), 2/12/1902.
101
CADERNOS DO CHDD
Sincera, fremente, como quem vitoria ainda no filho o grande batalhador
da redenção dos cativos [...] que santificou na mulher escrava o culto da
maternidade, tem o seu ponto característico e culminante neste fato, que
todos os jornais relatam.
O Diário da Manhã (Ribeirão Preto), em 5/12/1902, já no título da
matéria sobre Rio Branco – “Ave Salvator” – começava a enaltecer o
Barão, recordando logo após o pai abolicionista:
... sua personalidade representa uma grata esperança, pois também constitui
a tradicional memória do seu ilustre progenitor, o visconde de Rio Branco,
cujos serviços prestados ao país são de um valor inestimável e se acham
vinculados nos corações agradecidos de uma raça, até então oprimida no
mais aviltante cativeiro.
Para o Correio Mercantil (Porto Alegre, 3/12/1902), a carreira política
e de jornalista de Rio Branco ficara marcada pela sua atenção aos
problemas sociais “como o da libertação dos nascituros quando
colaborou com o visconde do Rio Branco, seu pai, na lei de 28 de
setembro.”
Contudo, os periódicos não deixaram de assinalar que o Barão
ganhara brilho próprio a partir da atuação nas questões diplomáticas
em que defendera os interesses brasileiros nas discussões de limites
com os países vizinhos. O tom laudatório foi então, mais uma vez, a
tônica do discurso dos jornais.
Na Gazeta de Ouro Fino (7/12/1902):
... o sr. Barão do Rio Branco pisa de novo o solo da Pátria como um
conquistador feliz e amado, mas um conquistador que teve por únicas armas
o seu saber e o seu patriotismo e que do fundo de seu gabinete fez mais
por sua terra natal do que o poderiam fazer milhares de soldados aguerridos
e valentes incendidos pelo amor pátrio.
No Diário de Santos, em 30/11/1902, antevendo a festa que
ocorreria no dia seguinte:
O filho tornou-se digno do pai, e até parece que se lhe avantajou de
certo modo, no raro esforço que desenvolveu em prol das causas que o
Brasil confiou à sua competência, no desusado brilho com que se bateu a
favor da integridade de seu berço, na assombrosa dedicação de que deu
sobejas provas nesses pleitos feridos à barra dos tribunais arbitrais criados
para elevar o nível dos povos cultos e evitar o flagelo das guerras.
102
O RETORNO DO BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
No Diário da Manhã (Ribeirão Preto, 30/11/1902), também na
expectativa da festa:
Deve estar no domínio de todos o modo por que a Pátria recebeu os
laudos arbitrais de Cleveland e de W. Hauser e a culminância a que atingiu
o nome do Barão do Rio Branco, quer no Brasil, quer no mundo civilizado, a
par da mais alta gratidão dos seus compatriotas e das maiores honras que
a Pátria jubilosa procurou dispensar ao notável concidadão. No atual
momento Rio Branco se nos apresenta como um general vitorioso em mil
torneios que vem receber da Pátria agradecida o galardão e as justas
homenagens a que fez jus, não um general triunfante nas lutas sangrentas
e mortíferas das batalhas, e sim um general avigorado nos certames pacíficos
da solidão dos gabinetes de estudos, em prol de um direito sacrossanto tão
sabidamente disputado em benefício da extensão territorial do Brasil.
No Correio Mercantil (Porto Alegre, 3/12/1902):
A sua superior individualidade firmou-se, destacando-se gloriosamente,
nas recentes vitórias diplomáticas das Missões e do Amapá pleiteando junto
dos árbitros o nosso direito à posse desses territórios contra as pretensões
argentina e francesa, revelando em ambas essas questões um profundo
conhecimento do direito das gentes, da história dos tratados, da geografia
física e política, de todos os ramos da ciência, enfim, necessários a ilustrar
o debate internacional, logrando um triunfo extraordinário para o seu nome,
para a Pátria e para as aspirações liberais de concórdia e paz que animam
o espírito contemporâneo.
Na Folha do Sul (São José do Paraíso, 2/12/1902):
... surgiu o Barão do Rio Branco, filho de um servidor da monarquia, que
veio dar à República, com o laudo de Cleveland, a decisão vitoriosa do
secular litígio das Missões! [...] Foi ele, o batalhador intemerato, buscar no
coração da Europa, o laudo da Confederação Helvética, que faria o Brasil
triunfar numa contenda com a França, a grande França. [...] Grande pátria
a nossa, que tem filhos como o Barão do Rio Branco! [...] Bem haja o povo
brasileiro, que alcatifa de flores as ruas por onde vai passar o vencedor do
Amapá.
Na Tribuna de Santos, 3/12/1902:
Coincidência auspiciosa, S. Ex. chegou exatamente no dia em que,
dois anos antes, era lido em Berna o laudo arbitral do Conselho Federal
Suíço favorável ao Brasil na questão de limites com a Guiana Francesa,
103
CADERNOS DO CHDD
ficando assim o território do Amapá pertencente de uma vez para sempre
à nossa pátria.
No Jornal de Notícias, (São Paulo, 4/12/1902):
... Rio Branco defendeu os sagrados direitos da sua Pátria, manteve
inatacável o prestígio de seu berço, arrancando, das garras aguçadas dos
abutres gananciosos, grandes partes, já quase dilaceradas, do corpo de
seu Brasil amado; volta [...] ao seio de sua mãe Pátria que o cobre de
bênçãos como o mais digno de seus filhos, estreitando-o num amplexo da
mais reconhecida gratidão. O brasileiro ilustre que se reporta hoje às águas
da Guanabara, traz sobre sua fronte a auréola majestosa composta dos
louros triunfantes da conquista pela reivindicação dos direitos sacrossantos
de seu torrão.
No República (Florianópolis, 3/12/1902):
... o governo da República foi buscá-lo para defender os interesses brasileiros
no Tribunal Arbitral de Washington. Depois foi o erudito e valente defensor
dos direitos do Brasil na questão de limites do Oiapoque. Os assinalados
serviços prestados à Pátria nestas duas gloriosas missões exaltaram ainda
mais o seu nome que já era um patrimônio nacional.
Finalmente, no Monitor Sul-Mineiro (Campanha, 7/12/1902):
... o seu amor e a sua dedicação pelo Brasil foi evidenciada e comprovada
(sic) por inúmeras vezes e especialmente nas duas importantes questões
do Amapá e das Missões, em que brilhante e patrioticamente firmou e
garantiu os nossos direitos, nas questões de arbitragem então calorosamente
discutidas e disputadas pela República Francesa e pela Confederação
Argentina.
É interessante, ainda, assinalar que, além da festa, o retorno do
Barão e sua posse no Ministério terminaram abrindo uma brecha para
que os jornais tecessem uma série de críticas ao governo de Campos
Sales que terminava seu mandato e ao próprio rumo que tomara a
república brasileira.
Efetivamente, em fins de 1902, a crise política, econômica e
financeira do país alcançava um ponto crítico. Campos Sales já assumira,
em 1898, com as finanças nacionais abaladas. A Revolta da Armada e
104
O RETORNO DO BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
a Revolução Federalista, somadas à luta pelo poder em diferentes
estados, haviam contribuído para uma inflação galopante agravada, a
partir de 1896, pela crise do café. O recurso ao funding loan (1898)
para atender aos compromissos externos e apoiar o plano de
estabilização financeira interna frustrou as expectativas de algumas
oligarquias regionais, o que levou a um clima de grande enfrentamento
político. As eleições para a Câmara e o terço do Senado no final de
1900, com a aplicação da “política dos governadores”, agravou o já
conturbado ambiente político, quando através das alterações feitas no
Regimento da Comissão de Verificação de Poderes o governo procurou
aparar as arestas com as oligarquias dominantes, garantindo seu apoio.
Ao final do governo de Campos Sales, nem a crise política, nem
a crise econômica estavam satisfatoriamente resolvidas. A inflação
fora contida, mas a classe média e os trabalhadores enfrentavam a
alta do custo de vida, além da crise industrial e comercial de 1900. As
dissidências oligárquicas nos estados engrossavam as fileiras de
oposição ao governo que se tornava cada vez mais impopular.
Ante esse quadro de crise generalizada, o tão festejado retorno
do Barão ao Brasil transformava-se, para alguns jornais, em um meio
para atingir o governo. O Pharol, de Juiz de Fora, em 4/12/1902,
especialmente, foi bastante contundente em seus comentários. Chegava
a conjeturar que o Barão talvez até se arrependesse por ter voltado
ao país:
Acostumado a discutir os mais transcendentes assuntos, afeito a vencer
questões como as do Amapá e Missões, o novo Ministro vai passar pela
sensaboria de se ver envolvido nas questiúnculas de politicagem, aborrecido
pelos peditórios de empenho, descendo, pois, [...] até ao deplorável terra à
terra em que se debatem, em prélios liliputianos, os governichos que a
fraude das urnas não cessa de nos dar...
As acusações do jornal continuavam visando o círculo político:
“o engrossamento de um lado, o interesse de corrilhismo de outro; no
centro, a presidência do país a manter as poderosas oligarquias nos Estados”.
Por fim, concluía O Pharol : “O Barão do Rio Branco, se é o espírito
superior de que tem dado mostras, há de se sentir, convencido de si
para si, que passou por tremenda decepção, e que o seu Brasil não é
a terra de outros tempos.”
105
CADERNOS DO CHDD
Não ficava atrás, na virulência dos ataques ao governo, o Diário
de Pernambuco (Recife 2/12/1902), também usando o retorno do
Barão como motivação:
O novo governo do país recebeu um inventário pesado de erros e
desastres de toda a espécie, em todos os terrenos. Na ordem administrativa,
o atual chefe do Estado encontrou a mais completa desorganização pelo
império absoluto e exclusivo do favoritismo pessoal e de relações estranhas
à esfera especial do governo. No terreno financeiro, o desbarato ainda era
maior. [...] Foram tantas as anomalias desse monstro, que o quatriênio
infecundo do sr. Campos Sales desenvolveu e criou, que não há linguagem
que as possa devidamente caracterizar e exprimir. Muito pior de que a ditadura
financeira, foi semelhante período a ditadura do impudor e da má fé.
Em face de um quadro de tantos desacertos, exultava o Diário de
Pernambuco :
A grandiosa e imponente recepção, que foi atribuída ao Barão do Rio
Branco por todas as classes sociais, é a mais evidente prova do quanto é
apreciado o seu valor e quanto são necessárias na atualidade a sua atividade
e o seu empenho na louvável consecução da integridade da Pátria para a
defesa de seu território.
Outros jornais, embora não priorizassem em seu discurso as críticas
ao governo, também não deixaram de aproveitar o momento que se
apresentava. O Diário do Povo (Porto Alegre, 3/12/1902) foi um deles:
... no regressar de Rio Branco ao país, há uma predominante, de valor
altamente moral: volve ao seio da mãe Pátria não com o caráter solapado,
corroído pela lava do servilismo que impera no nosso mundo político-social;
não com a alma extenuada, gasta pelo choque das bastardas e vis paixões,
no arrastamento do mercenarismo da época; não com o coração corrompido
pelos embates das torpes ambições do partidarismo, que entre nós tudo
estraga e perverte.
Na mesma linha argumentava A Época (São Paulo, 23/04/1903):
Praza aos céus [...] que S. Exc. justamente acolhido como o Salvador
da Pátria, num momento histórico e de excepcional dificuldade, se conserve
por muitos anos à cabeceira do seu doente, carinhoso e desvelado, não se
deixando jamais dominar pela influência nefasta de nossa pequenina
politicagem...
106
O RETORNO DO BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
Por curiosos, vale ainda transcrever os comentários de A Tribuna
(Santos, 3/12/1902), que comparou as aclamações a Rio Branco com
o que recebia o governo que findara:
Manifestações desta ordem [a Rio Branco] são o contraste intenso,
formidável das manifestações feitas a Campos Sales e outros. Ninguém
compra a estima do povo e bem poucos são os que a merecem. A população
do Rio de Janeiro o mostrou assim como se aplaude e como se vaia...
Com certeza o jornal fazia referência à desastrosa despedida que
recebera Campos Sales, no Rio de Janeiro, ao deixar a presidência em
15/11/1902: na estação onde tomou o trem para São Paulo, recebeu
acintosa vaia do povo que ali se acumulava, vaia essa repetida ao
longo dos subúrbios por onde passava o trem.
As expectativas na gestão de Rio Branco
O entusiasmo que foi a tônica na recepção ao Barão, não só por
sua ascendência famosa, mas já de há algum tempo pelo seu próprio
desempenho, sinalizava, praticamente, em uma única direção: a gestão
de Rio Branco, na expectativa de quase todos, só acumularia acertos.
Uma questão – a do Acre – já lhe estava destinada e o esperado
era que a partir daí iniciaria para o Brasil a reconquista de uma projeção
internacional que, segundo a maioria dos jornais, o país vinha perdendo.
Tal referência foi fartamente aproveitada para formular mais uma série
de críticas ao governo de Campos Sales. O Patriota (Poços de Caldas,
31/12/1902), foi um dos periódicos que optou, sem subterfúgios, por
essa linha:
Em boa hora aceitou o benemérito diplomata o espinhoso encargo de
dirigir o departamento do exterior, onde a questão do Acre – presente de
gregos do governo passado – tratada com descaso e imprevidência ou com
inépcia e descaso, solicitou desde muito a atenção esclarecida de um ministro
patriota que colocasse acima das comodidades de secretário da oligarquia
dominante o legítimo orgulho de prestar serviços ao Brasil, de defender a
sua integridade e os seus brios...
E completava o jornal com mais críticas e renovadas esperanças:
... apesar dos maus governos que não têm sabido ser previdentes;
apesar do afastamento do povo; apesar do profundo desgosto que se
107
CADERNOS DO CHDD
apodera de nós ante a oligarquia erigida em governo, rotulada de República,
confiamos no futuro dos Estados Unidos do Brasil.
Dois outros jornais, Monitor Sul Mineiro (Campanha, 7/12/1902) e
Diário da Manhã (Ribeirão Preto, 30/11/1902), foram tão coincidentes
nas críticas feitas à situação política brasileira e na expectativa de
que o Barão poderia começar a mudar esse quadro com um bom
desempenho na questão do Acre, que chegaram a produzir textos
quase idênticos. O primeiro, depois de afirmar que a pasta que assumira
o Barão era “excepcionalmente dificultosa”, justificava: “Nela encontrará
o emérito brasileiro a melindrosa e intricada questão do Acre, cujos
governos anteriores insensatamente dela se descuidaram.”
E na versão do Diário da Manhã:
Neste momento, em que o espírito de dúvidas e incertezas perturbam
a alma nacional em conseqüência da litigiosa questão do Acre, tão mal
encaminhada pelos governos transatos, todas as vistas dos patriotas
brasileiros e de todos aqueles que habitam o nosso abençoado torrão, se
convergem confiantemente para o notável estadista que vai ocupar a pasta
das Relações Exteriores.
Ainda para ambos jornais citados, o êxito no Acre estaria
assegurado: para o Monitor Sul Mineiro, pelo “grande talento e a
esclarecida ilustração do benemérito Barão do Rio Branco, aliada ao
seu imenso patriotismo” e, para o Diário da Manhã, pelas suas “luzes e
patriotismo” que garantiriam ao Brasil “a extensa zona territorial do
Acre, tão heroicamente disputada pelos nossos irmãos do norte.”
A Época (São Paulo, 23/4/1903), por sua vez, não hesitava em
afirmar que o Barão vinha fazendo pela questão do Acre, “mais do
que todos os seus antecessores na sua pasta desde o ano da nossa
independência”.
Em comentários mais concisos, mas nem por isso menos
entusiasmados ante a esperada vitória no Acre, mais três jornais se
manifestaram. O Diário do Povo (Porto Alegre) , em 2/12/1902: “... a
Pátria necessita da competência, da consumada orientação de tão
prestigioso e preclaro filho, maxime, quando se trata de tão graves
assuntos, como esses que se vinculam à sua integridade territorial.”
A República (Curitiba), em 2/12/1902: “...Rio Branco, que é um
vencedor até hoje, vem para de novo vencer na questão do Acre.”
108
O RETORNO DO BARÃO DO RIO BRANCO AO BRASIL: A LEITURA DA IMPRENSA
A Gazeta de Uberaba, em 3/12/1902: “A ele está confiada uma
última e talvez a mais espinhosa das missões – a salvação do Acre.”
A questão do Acre ficaria resolvida com a assinatura do Tratado
de Petrópolis entre o Brasil e a Bolívia, no ano seguinte à posse do
Barão que, desta forma, não frustrava a expectativa que nele depositara
a Nação, desde a primeira hora, como o Diário de Pernambuco fez
questão de especificar, em 2/12/1902:
O caso do Acre preocupa seriamente pela sua gravidade todos os
espíritos. Para ele convergem no momento as atenções dos escritores e as
vistas do país. Questão que interessa profundamente os créditos do Brasil
no estrangeiro e a sua integridade no interior, deve e pode ter a solução
mais cabal e mais digna.
Vencida a questão do Acre, consolidava-se a posição do Barão à
frente do Ministério de Relações Exteriores conforme já previam alguns
jornais, como O Pharol, de Juiz de Fora, em 4/12/1902: “...aí está o
Acre – temeroso problema, cuja solução poderá, qual ela seja, destruir,
num momento, ou toda a popularidade do diplomata ou aumentá-la...”
Entre as expectativas que suscitou o retorno do Barão, resta
indicar aquelas que manifestavam grande confiança na sua gestão
sem relacioná-la a nenhuma questão específica. Também nesse caso
ficava mais uma vez registrado o descrédito no governo de Campos
Sales e a esperança de que Rio Branco fosse um verdadeiro “salvator”
como preconizava o Diário da Manhã (Ribeirão Preto, 5/12/1902).
Já para o Diário de Santos (30/12/1902), o Barão vinha para
redimir “um povo que assiste, desiludido, ao funeral das suas melhores
esperanças”, enquanto que, para O Diário da Manhã (Ribeirão Preto,
5/12/1902), o mesmo vinha para provar que o “lânguido torpor
asfixiante que envolve o país não é senão uma manifestação latente
de reivindicações futuras, em prol do lugar que o Brasil deve ocupar na
política internacional”. A Época (São Paulo, 23/4/1902), entendia que
não caberia qualquer temor de que o Barão, “desviado das alturas da
sua missão diplomática”, chamado à política ativa do país, “se deixasse
pouco a pouco influenciar, mesmo a contragosto, pelos elementos
nefastos do novo meio em que ia agir.” O Correio Mercantil (Porto
Alegre, 3/12/1902), assegurava, ainda, que o Barão retornava ao país
para “zelar pelo bom nome da nacionalidade tão prejudicada com a
orientação do governo hoje decaído”, ao que completava o Diário do
Povo (Porto Alegre, 2/12/1902):
109
CADERNOS DO CHDD
A república não podia prescindir da alta competência e da investidura
científica do notável servidor, e por isso o foi buscar lá no estrangeiro para
vir colaborar na solução dos graves problemas de internacionalidade que a
nação preocupadamente enfrenta.
*
*
*
Nos 10 anos em que o Barão permaneceu à frente do Ministério
de Relações Exteriores, é praticamente consenso, não frustraria as
expectativas nele depositadas, o que bem justificava a festa e as
homenagens que recebera em dezembro de 1902. Não se concretizou
o temor que O Pharol (Juiz de Fora) chegara a levantar em
4/12/1902: “Praza a Deus que ele não regresse à Europa [...] tão
obscuramente como quando, vai para muitos anos, para lá partiu...”
110
ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
Testamentos de Francisco Adolfo
de Varnhagen
Encontra-se nos arquivos do Itamaraty, na documentação recolhida
do Vice-Consulado do Brasil em Viena, o termo de abertura, no dia
seguinte ao de seu falecimento a 29 de junho de 1878, do testamento
de Varnhagen, feito em Lisboa, a 12 de maio de 1868.
Ao publicá-lo, desejamos oferecer este documento aos estudiosos
do grande historiador, de quem – não é descabido lembrar – o Palácio
Itamaraty, no Rio de Janeiro, abriga, no Arquivo Histórico, os arquivos
particulares, e, na Biblioteca, a coleção de livros, adquirida aos herdeiros
por iniciativa do Barão do Rio Branco, quando Ministro das Relações
Exteriores.
Pareceu interessante publicar, simultaneamente, rascunho de
testamento, datado do Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 1861, que
não sabemos se foi formalizado, mas que o autor declara substituído
por ato semelhante, feito em Caracas, “em setembro do mesmo
ano”. Não há indicação do ano, que poderia ser 1861, 62 ou 63.
Acha-se este entre seus papéis particulares, no AHI. O maior
interesse deste documento está, talvez, na avaliação de suas obras,
quando alude ao serviço que teria prestado “às letras e ao Brasil”. As
correções do texto indicam suas hesitações quanto ao valor de alguns
de seus trabalhos e a importância atribuída ao “Memorial Orgânico”,
cuja inclusão não é objeto de dúvidas.
O Editor
111
CADERNOS DO CHDD
PROJETO DE TESTAMENTO DE FRANCISCO ADOLPHO
DE VARNHAGEN FEITO EM 22/2/1861
(AHI – Parte III (34) – Arquivos Particulares – Fundo Francisco
Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. Lata: 351. V.
[Nota autógrafa na parte superior do documento: “Substituido pelo de
Caracas de setembro deste anno em poder do S.r C........”]
Em nome de Deus: Amen. Eu abaixo assignado, achando-me de
perfeita saude e em meu inteiro juizo, resolvi fazer o meu testamento
pela forma seguinte: Sou catholico, apostolico romano, filho legitimo do
Coronel Frederico Luiz Guilherme de Varnhagen e de D. Maria Flavia de
Sá Magalhães, ambos fallecidos. Nasci em 17 de Fevereiro de 1816 e
fui baptisado na igreja de S. João do Ipanema aos 19 de Março desse
mesmo anno.
Nomeio por meus testamenteiros em 1.º logar o S.r Bras da
Costa Rubim, empregado do Thesouro Publico; em 2.º o S.r Coronel
Henrique de Beaurepaire Rohan; em 3.º o S.r guarda-roupa Antonio
Pinto Netto dos Reys; em 4.º o S.r Manuel Caetano da Cruz, da
Secretaria de Negocios Estrangeiros; em 5.º o S.r Eduardo de Faria,
genro do Exmo Visconde de Campos; e desejo que dois destes
senhores, conjunctamente, se encarreguem de dar cumprimento a
estas minhas disposições, como espero de sua piedade e da sincera
amisade que sempre me manifestaram.
Declaro que sou solteiro, e que se assim e sem filhos fallecer,
constituo por meus principaes herdeiros, por partes iguaes, cada um
dos meus sobrinhos, filhos (de um e outro sexo) de minhas duas
irmãs D. Gabriella Francisca de Varnhagen e D. Margarida Frederica de
Varnhagen, nascidas na Provincia de S. Paulo e casadas em Portugal ,
ficando porém ambas durante sua vida com o usofructo do juro do
capital que corresponder a seus filhos respectivos, e que a seu pedido,
deverá ser investido pelos meus testamenteiros de modo que ellas
possam receber os mesmos juros com mais facilidade, com tanto que
não fiquem habilitadas a entrar pelo capital. Se porém eu me casar, e
Nota do Editor: foram matidos os parênteses do texto original. Os trechos entre colchetes estão
suprimidos na versão original.
112
TESTAMENTOS DE FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN
não deixar filhos, minha mulher será a primeira usufructuaria do dito
juro, em quanto viver e se conservar viuva e não poderá alhear ou
vender ou empenhar nada, e por sua morte tudo passará aos d.os
meus sobrinhos.
{Peço que meu corpo seja sepultado em cemiterio publico no
logar onde eu fallecer fazendo-se um tumulo pela forma que parecer
conveniente a meus testamenteiros, com a condição de se dever
gastar nelle menos da decima parte do legado que corresponda a
meus principaes herdeiros, na forma do parrapho(sic) anterior.}
Declaro que tenho depositados no Banco de S. Fernando em
Hespanha os titulos da Serie A n.os 11 043, 12 288, 15 552, 19 105; –
da Serie B os n.os 116 e 6 509; da Serie C os n.os 2 982, 11 444 e 12
933; da Serie D os n.os 1 853, 1 854, 7 712, 14 915, 14 916, e 16 473,
no valor (nominal) de quatrocentos mil reales de vellon, cujo resguardo,
n.º 3 096, com a clausula de intransmissiveis ficou a cargo dos banqueiros
A. Regueiro e J. R. Gonzalez de Madrid.
It. Tambem tenho em Madrid dez mil reales postos em meu
nome na sociedade de seguros Porvenir de Famílias.
Outro sim {tenho} ficaráõ em deposito no Banco do Brasil
vencendo juros que se iráõ successivamente capitalisando as quantias
que constará(sic) da escripturação do mesmo Banco e da caderneta
respectiva que confiarei á casa de Collaço Magalhães & Comp.ª ou á
que lhe succeder. {Esta quantia penso augmentar com novos depositos,
e se lhe acumularáo os juros capitalisando cada seis mezes pelo menos.}
No banqueiro Souto tenho actualmente {a quantia} apenas cinco
contos e 600$000 reis, vencendo juros competentes, {cujos interesses
se devem ir gradualmente capitalisando, devendo-se abater as quantias
sobre que eu passar recibos ou lettras posteriormente a esta data.}
Alguns objectos que estão em liquidação, taes como a prata que
deixei no Paraguay, ficam ao cuidado da casa de Collaço de Mag.es &
Comp.ª.
Légo toda a minha livraria á Bibliotheca da Academia de Historia
em Madrid, onde parte della se acha ja depositada; e isto não só pela
gratidão que lhe devo, como pela certeza de que nesse clima se
conservaráõ melhor algumas das preciosidades {bibliographicas} que
contem.
113
CADERNOS DO CHDD
Offereço ao meu collega D.r Joaquim Caetano da Silva os dez mil
francos que lhe emprestei, estando na Europa; devendo-se rasgar
{pelo que se devolver destruir ou devolver-se-lhe} o recibo desta
quantia, ou de qualquer outra delle, que venha a achar-se entre meus
papeis {e que nem sei onde páram}. Este offerecimento ficará porém
sem effeito si, de parte do dito meu collega, se apresentar reclamação
por qualquer {pequena quantia ou} pagamento, que por mim haja
satisfeito.
Deixo á disposição do meu cunhado Frederico Augusto de Moraes,
{juiz dos órfãos em Lisboa,} as chapas das gravuras de aço da minha
Historia do Brasil que se acham em Paris, em poder do gravador A.
Lemaitre; e mais dois contos de reis (fracos) para elle fazer reimprimir
aquelles dos meus escriptos, (emmendados como os deixo) e
correspondencias que elle creia menos insignificantes
{, y(sic)cartas etc.}se eu ainda não houver publicado a 2.ª edição da
m.ª Historia do Brasil transmitto-lhe os direitos p.ª o fazer na conformi.de
do contracto q. a este respeito tenho com a casa de Laemmert do Rio
de Janr.º.
Disponho tambem que se offereçam tres contos de reis (fracos)
de premio a quem (dois annos depois de ser publicada esta minha
disposição) apresentar o melhor trabalho ajuizando os meus fracos
escriptos {em correspondencias}, e o {pequeno} serviço que a minha
consciencia me diz que prestei {ás lettras e} ao Brazil, principalmente
pelo {meio das Reflexões Criticas e da edição de Pero Lopes; dos
Epicos Brasileiros e do Florilegio, e principalmente do} Memorial Organico,
{da Historia Geral, da primeira Epistola de Colon (Valencia 1858)} e da
Visão Segunda de Itajurú e Parabolas annexas; e constituo juizes para
decidir dessa melhoria, á pluralidade de votos, alem dos dois meus
testamenteiros conjunctos, o dito meu cunhado e os Snrs.
{bibliographos} Innocencio Francisco de Souza, e Jorge Cesar de
Figanière, {meus amigos.}bem conhecidos como escriptores
bibliographos.
Em casa do mencionado S.r Eduardo de Faria ficam, em deposito,
uma colleção de {uns cem} quadros {, incluindo quarenta} (uns cem)
e duas espingardas que offereço aos meus dois testamenteiros.
{Aos meus amigos peço que encommendem minha alma ao
Senhor.} Quanto ao meu corpo prefiro que {o} não {removam de
onde elle descanse, quando isso seja possivel} seja elle removido do
logar onde elle ja esteja enterrado quando se abrir este test.º. Somente,
114
TESTAMENTOS DE FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN
se tiver tido sepultado no mar ou em terra estranha, peço aos meus
testamenteiros que sobre um dos penedos ilhados ou pequenas ilhas
de pedra da bahia do Rio de Janeiro mandem levantar uma cruz de
granito de duas braças de altura com uma inscripção aberta em uma
das faces do penedo, em que se declare que {esse é o cenotaphio
que leguei a patria, em vez do {pelo representa e por meio do qual em
vez de o fazer onde}} meu corpo {que} ficou no sitio em que
{onde}aprouve a D.s chamar deste mundo a minha alma: mas {....}
que por essa cruz da redempção {peço aos meus} do genero humano
peço aos meus amigos e aos que o forem dos {bons cidadaos} meus
pequenos trabalhos que me encommendem a Deus.
E desta forma dou por encerrado este meu testamento que
escrevo de minha letra, declarando nullo o anterior que fiz em 1853; e
rogo ás justiças do Imperio que lhe façam dar execução na forma das
leis. Escripto nesta cid.e do Rio de Janr.º hoje 22 de Fev.º de 1861 –
F. A. V.
[Do verso do documento consta a seguinte nota: “Em poder de
Dovey Benjamin – alem do q. conste das Contas Correntes deixo
288$ R.s v.m em titulos a saber:
Serie D – 1805, 1806, 32.288
= 144$
Serie C – 2011, 15.854, 18.812, 23.175
= 96$
Serie A = 12 titulos (8, 664, 8665, 8666
17.917, 17.312, 19.994, 21.790,
21. 791, 21.792, 92.244,
= 48$
100.342, 142.922)
228$
No 1.º de Julho de 1865 devo mandar ao Porvenir de Fam.as
certidão de vida.”]
115
CADERNOS DO CHDD
TERMO DE ABERTURA DE TESTAMENTO
(AHI – Parte V (40) – Arquivos das Repartições Consulares Brasileiras
– Consulado do Brasil em Viena – Livro de Registro. Volume 8 1874-1899.)
Protocolos – 1874 –1899. Vice-Consulado do Brazil.
Página: 16.
Documento: 49.
Vice Consulado do Imperio do Brazil em Vienna.
Aos trinta dias do mez de Junho do anno do Nascimento de
Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oito centos e setenta e oito compareci
na Legação Imperial do Brazil nesta Monarchia e a Ilustrissima e
Excellentissima Senhora Carmen Ovalle de Varnhagen, Viscondessa de
Porto-Seguro, declarou que me apresentava para ser aberto o
testamento com que a vinte nove de Junho de mil oito centos e
setenta oito nesta cidade, a Riemergasse N.º 8, havia fallecido seu
marido Francisco Adolfo de Varnhagen brasileiro, filho legitimo de Frederico
Luiz Guilherme de Varnhagen e de Dona Maria Flavia de Sá Magalhães.
E assim requerido perante as testemunhas Joao Amadeo Marcorig e
João Cycio, que certificáram a morte do testador, e a competencia do
apresentante do testamento para proceder a esse acto, examinei
minuciosamente aquelle documento, e reconheci que elle estava intacto,
cosido com linhas verde amarellas; fechado em cinco differentes lugares
com lacre encarnado, sem emenda, rasura, ou outro qualquer vicio da
escripta, e era do teor seguinte: Exteriormente – Testamento solemne
do Ex.mo Francisco Adolfo de Varnhagen, feito nesta cidade de Lisboa,
e por mim approvado aos 13 de Maio de mil oito centos e sessenta e
oito. – Consulado Geral do Imperio de Brazil nesta Côrte era ut supra –
assignado. Manoel de Araujo Porto-Alegre, Consul Geral do Brazil.
Interiormente: – Em nome de Deus omnipotente amen: eu Francisco
Adolpho de Varnhagen, achando-me de boa saude e em meu perfeito
juizo, resolvi fazer o meu testamento pela forma seguinte: Sou Catholico
apostolico romano, filho legitimo de Friderico Luiz Guilherme de Varnhagen
e de D. Maria Flavia de Sá Magalhães, baptisado em 19 de março de
1816 na freguezia de S. João de Ipanema. Desejo que o meu corpo
fique sepultado no logar em que succeder o meu fallecimento; mas
116
TESTAMENTOS DE FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN
disponho que, antes de decorridos dois annos depois de meu
fallecimento, no alto do morro de Arasoyava, proximo do logar em que
nasci, se levante uma cruz tosca, quer de granito, quer de marmore
preto (pedra de cal) das immediações, tão grande quanto seja possivel,
com uma pequena inscripção na base em que se declare que fiz della
voto ao Senhor, por me haver concedido nascer no Continente de
Colombo, e na paragem em que meu Pai levantou um estabelecimento
monumental. Constituo por minha testamenteira e por tutora e curadora
de meus filhos a minha mulher D. Carmen Ovalle de Varnhagen, de
cuja virtude e abnegação espero que não tornará a casar-se para,
como viuva, melhor se votar á criação e educação de nossos filhos. A
seu cuidado fica tambem a protecção que possa dispensar á minha
irmã Margarida e a meu sobrinho e sobrinha, se vierem a ficar
desamparados, o que Deus não permitta. Declaro que não deixo dividas
e que, pelos papeis que ficam na minha carteira constará quanto
possuimos: 1.º no Rio de Janeiro em poder dos Snrs. Netto dos Reys
e Comp.ª; 2.do no Chile em poder de Minha Sogra, como Cabeça do
Casal, dos bens de meu Sogro, e no Banco Nacional em Valparaiso;
3.º no Perú no Banco em Lima, alem das duas acçoes do Dique do
Calláo; 4.to em Londres em poder dos Snrs. Ant Gibbs e Filhos, Forey
Benjamin e Comp. alem dos bonos chilenos N.os 186,187 e 1204 a
1225 na Casa de Morgan e Comp.; 5.º em Madrid em poder do
banqueiro D. Jose Remigio Gonzales, encarregado de cobrar os coupons
dos titulos que estão em deposito intransmissivel no Banco de S.
Fernando. Devo declarar tambem que em Abril deste anno me matriculei
no Montepio dos Servidores do Estado no Rio de Janeiro, pagando a
quantia de quatro contos de reis, cujo recibo provisorio deixei na Casa
dos Snrs. Netto dos Reys e Companhia. Lisboa aos doze de maio de
mil oito centos e sesenta e oito – assignado Francisco Adolpho de
Varnhagen. – Saibam quantos este presente instrumento de approvação
de testamento virem, que no anno do Nascimento de Nosso Senhor
Jesus Christo de mil oito centos e sessenta e oito, nesta Chancellaria
do Consulado Geral em Lisboa, compareceo o Ex.mo Francisco Adolfo
de Varnhagen, Ministro Residente do Brazil em Vienna d’Austria, de
passagem nesta côrte, reconhecido por mim pelo proprio, com saúde
e em seu perfeito juizo e entendimento, o que mostrava pelo bom
acerto de suas palavras, e por elle, na presença de cinco testemunhas,
que presentes estavam, me forão entregues das suas ás minhas
mãos uma folha de papel escrita de todos os lados pelo seo proprio
punho, á qual addicionei esta, disendo era o seo testamento autographo,
117
CADERNOS DO CHDD
e que por estar em tudo á sua vontade, o havia por bom, firme e
valioso, e que pedia ás Justiças, a quem o conhecimento deste pertencer,
lh’o cumpram, e a mim Consul Geral lh’o approvasse; e pelo o achar,
sem vicio e apenas com a emenda na décima sexta linha. – disponho
– pelo mesmo testador rubricada, lh’o approvei, numerei, e rubriquei
com a minha rubrica que diz – Porto-Alegre.
Em fé de que me pedio este instrumento que leo, e assignou com
as testemunhas presentes a todo este acto, maiores e pessoas
reconhecidas por mim, que o mandei escrever pelo Chanceller deste
Consulado Geral, e o assignei em publico e razo – (assignado) Francisco
Adolpho de Varnhagen – visconde de Condeixa – Jozé Maria de
Albuquerque Cunha Th[...]redo – Luiz do Souto Rodrigues – Marcelino
Antonio de Senna e Azevedo – Francisco José Faria Rego, Chanceller –
Manuel de Araujo Porto Alegre, Consul Geral. – (As Armas Imperiaes
ao lado das assignaturas)
Em fé do que lavrei o presente termo, que fica registrado no
archivo deste Vice Consulado a fol 16.17.18 do livro competente; e o
assignei com a apresentante do testamento, e as testemunhas acima
mencionadas, no mesmo dia, mez, e anno acima referidos. V.esse Porto
Seguro.
João Amadeo Marcorig
Testemunhas
Johann Cycio.
118
“I HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO RIO…” REVENDO AS NOTAS DO SR. CHRISTIE SOBRE O BRASIL
“I have no thought of returning
to Rio…” Revendo as notas do
Sr. Christie sobre o Brasil
EUGÊNIO VARGAS GARCIA*
Em 1863, depois de haver deixado o Brasil sob os protestos
indignados da população, o controvertido Ministro plenipotenciário britânico
no Rio de Janeiro, William Dougal Christie, dedicou-se a escrever artigos
e comentários sobre as relações anglo-brasileiras, posteriormente
reunidos em livro publicado pela Macmillan & Co. de Londres sob o
título Notes on Brazilian questions. O livro, hoje muito difícil de ser
encontrado, foi recentemente relançado nos Estados Unidos pela Elibron
Classics em reedição fac-similar do texto integral de 1865.1
Esse relançamento, muito bem-vindo, é uma boa oportunidade
para revisitar alguns dos temas que permearam o debate sobre a
chamada Questão Christie, a desinteligência bilateral que resultou no
único caso de rompimento diplomático na história do relacionamento
entre o Brasil e a Grã-Bretanha.
VISÃO
GERAL DA OBRA
A experiência de Christie como chefe de Legação no Rio havia
terminado de forma abrupta e traumática. O ex-Ministro havia sido
escarnecido de todas as maneiras no seu último posto e, mesmo na
Grã-Bretanha, sua atuação havia suscitado críticas nos setores mais
diversos, das indústrias têxteis de Manchester e Liverpool a membros
da oposição ao governo de Lord Palmerston, então Primeiro-Ministro
britânico. Christie precisava não só justificar suas ações para a
posteridade, mas também convencer seus contemporâneos, por força
de argumentos próprios ou citações de terceiros, de que a perspectiva
* Diplomata e Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. As
opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor.
1 William D. Christie, Notes on Brazilian questions (Cambridge, MA: Elibron Classics, 2001).
Somando-se a Introdução, os textos dos capítulos e o Apêndice, o livro totaliza 307 páginas. O
idioma original foi mantido nas citações deste artigo para que o leitor possa melhor apreciar a
exata linguagem usada na época.
119
CADERNOS DO CHDD
por ele defendida era a correta e que, ademais, ele não estava só em
seu julgamento.
A longa Introdução de Notes on Brazilian questions foi redigida na
forma de uma carta aberta a Palmerston, na qual Christie, pretendendo
associar seu livro ao nome do Primeiro-Ministro, tentou se defender
das acusações de hostilidade para com o Brasil:
I have been accused of hostility to Brazil, but I have your lordship
[Palmerston] for a partner in the honours of this accusation. It is well known
to your lordship, and many others, that I entered on my mission in Brazil
with opinions favourable to its government, formed, before I knew the country,
under the same influences which have so favourably impressed the general
English public. The hostility of which I am accused is the conviction which I
came to slowly and reluctantly, from a long and various experience, that the
British public was misled and deceived, – that the Brazilian government
would not do justice except through fear, – that all reasonable demands
were met by excuses and delays, and in Lord Russell’s words, “evasions,
subterfuges, and unfounded assertions”. This is my firm conviction, slowly
and unwillingly arrived at.2
O livro em si é um documento histórico, além de conter excertos
de correspondência diplomática e de outras fontes primárias (debates
parlamentares, artigos de imprensa, etc.). A maior parte de Notes on
Brazilian questions compõe-se de cartas que Christie fez publicar apenas
com a assinatura “C.” no jornal Daily News, entre 2 de julho e 5 de
outubro de 1864. Christie pretendia “contar a verdade” sobre o Brasil a
fim de rebater o que ele achava serem calúnias e distorções espalhadas
por “agentes brasileiros” na Grã-Bretanha. Esse “agentes”, segundo
ele, recebiam subvenções da Legação brasileira e veiculavam
propaganda para ludibriar o público britânico, em geral indiferente ou
mal-informado sobre assuntos da América do Sul. Christie se referia
particularmente (embora sem mencionar o nome) a W. H. Clark,
correspondente do Jornal do Comércio em Londres, que também
publicava regularmente matérias no Daily News, assinadas por “Um
Amigo dos Dois Países”.3 As cartas de Christie pretendiam ser um
2
Notes on Brazilian questions, Introdução, p. LXVII. Ao longo do livro, Christie fará recurso
freqüente ao argumento de autoridade, citando o Primeiro-Ministro e outros nomes de peso em
várias oportunidades na esperança de reforçar sua própria posição junto ao público britânico.
3 Ibid. Introdução, p. XXII et seq.
120
“I HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO RIO…” REVENDO AS NOTAS DO SR. CHRISTIE SOBRE O BRASIL
contraponto aos artigos de Clark e ambos protagonizaram ferrenha
polêmica nas páginas daquele jornal.
Os oito primeiros capítulos do livro tratam da escravidão no Brasil
(I a VIII), com reflexões sobre a situação dos africanos livres e temas
correlatos. Três capítulos analisam as relações comerciais (IX a XI),
dois capítulos abordam as reclamações britânicas contra o Brasil (XII e
XIII) e ainda outro, um tanto deslocado dos demais, trata brevemente
das relações do Brasil com “Buenos Aires e Montevidéu” (XIV). No
último capítulo, sob o título “As represálias no Brasil” (XV), Christie
defende sua atitude em dez. 1862-jan. 1863, criticando em particular
um artigo de Robert Cecil publicado no Quarterly Review.
O Apêndice traz quase 50 páginas de extratos de correspondência
trocada entre o Foreign Office e postos britânicos no exterior sobre o
tráfico de escravos. A seleção de despachos, segundo Christie, serviria
para ilustrar como o tema havia sido tratado por sucessivos Ministros
britânicos, em especial as “grandes dificuldades” que eles teriam tido
nas tratativas com o governo brasileiro. Os exemplos de tom e linguagem
não seriam “menos severos” do que aqueles encontrados na
correspondência recente (assinada por Christie). Um despacho de
Palmerston, por exemplo, escrito pouco depois da aprovação da Lei
Eusébio de Queiroz de extinção do tráfico negreiro em 1850, enaltece
os resultados obtidos com as pressões da Grã-Bretanha sobre o Brasil:
[...] I must confess that nothing which has passed conveys to my mind
any other impression than that the Brazilian government felt that Brazil is
powerless to resist the pressure of Great Britain; that they saw clearly that
this pressure must, if continued, fully accomplish its purpose of putting down
slave-trade, and that they were endeavouring, by every device they could
think of, to obtain the greatest amount of diminution of that pressure, with
the smallest amount of real concession on the part of Brazil. [...]
The plain fact is, that nothing can be effected with the Brazilian
government on this matter, except by compulsion. Arguments and reason
have long been used in vain. If a mere sense of duty and a regard for the
engagements of treaties could have swayed the conduct of the Brazilian
government, the Brazilian slave-trade would many years ago have entirely
ceased. But it is manifest that the slave-traders have been able to exert
over the Brazilian government, either by corruption or by intimidation, an
influence which has overridden all sense of right and wrong, and all regard
for legal and international obligations. That influence can be overcome only
by some counteracting pressure, and it seems clear that the proceedings
121
CADERNOS DO CHDD
lately adopted by the Admiral [Reynolds] in concert with yourself [Hudson],
have produced precisely the sort of pressure which is calculated to
counterbalance and overcome the influence of the slave-traders.4
A correspondência selecionada por Christie traça um retrato
amplamente desfavorável ao Brasil. Entre os assuntos abordados podem
ser citados os seguintes: efeitos econômicos e morais da escravidão,
“conivência” das autoridades brasileiras com o tráfico de escravos,
tratamento desumano dispensado aos africanos livres, acusações de
corrupção de funcionários alfandegários, “violação contínua” pelo Brasil
de compromissos assumidos em tratados com a Grã-Bretanha,
desconfiança britânica em relação às promessas do governo brasileiro,
defesa da continuidade da Lei Aberdeen e importância da “ajuda” de
cruzadores britânicos na supressão do comércio ilegal de escravos.
ORIGENS
DA
QUESTÃO CHRISTIE
As razões mais imediatas da Questão Christie são bem conhecidas.
Primeiro, o naufrágio em 1861 da barca mercante Prince of Wales em
local ermo da costa do Rio Grande do Sul, cuja carga havia sido pilhada
e os tripulantes encontrados mortos, vítimas de afogamento ou, segundo
o laudo das autoridades brasileiras (contestado pelo Cônsul Vereker),
“asfixia por submersão”. As perdas sofridas e suspeitas de assassinato
(nunca comprovadas) motivaram um pedido britânico de indenização
pecuniária pela “dilapidação dos salvados e dos corpos”, que o governo
brasileiro depois pagaria, sob protesto, encaminhando ao Foreign Office
um cheque nominal ao Banco da Inglaterra no valor de 3.200 libras.
Segundo, o desentendimento em junho de 1862 com a polícia do
Rio de Janeiro e a subseqüente prisão por curto período de tempo de
três oficiais da fragata H.M.S. Forte, entre eles o capelão do navio,
todos à paisana e sob efeito de álcool. Christie exigiu a punição das
autoridades e dos policiais envolvidos, bem como uma retratação pelo
ocorrido, sob a alegação de que teria havido ofensa à Marinha britânica.
O caso seria posteriormente levado ao arbitramento do Rei dos Belgas,
Leopoldo I, que apresentou laudo favorável ao Brasil.5
4
Palmerston a Hudson, Londres, 15 out. 1850. Ibid. p. 193-195.
A correspondência apresentada ao Parlamento britânico sobre os dois incidentes foi publicada
em 1863 com uma introdução escrita por Christie: The Brazil correspondence in the cases of the
‘Prince of Wales’ and officers of the ‘Forte’ (London: William Ridgway, 1863).
5
122
“I HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO RIO…” REVENDO AS NOTAS DO SR. CHRISTIE SOBRE O BRASIL
Claro está que os dois incidentes, tomados isoladamente, não
seriam capazes de produzir a incrível celeuma criada em torno do
assunto, culminando no rompimento de relações diplomáticas, em 25
de maio de 1863, depois que Londres havia recusado a dar satisfações
pela violação da soberania territorial brasileira durante as represálias
levadas a cabo por navios de guerra britânicos em águas jurisdicionais
do Império. O jornal The Morning Herald, por exemplo, usando de
certa ironia, acusou o governo britânico de ir à guerra contra o Brasil
por conta de “três marinheiros bêbados e a abertura de algumas
caixas lançadas ao litoral por um naufrágio”.6 É lícito supor que não
teria havido uma Questão Christie se não fosse o longo histórico de
atritos e frustrações nas relações entre os dois países.
O problema da escravidão era central nesse contexto. Christie
defendia a liberdade tanto dos escravos trazidos ilegalmente ao Brasil
desde 1831 quanto dos emancipados, africanos livres que por vários
motivos ainda viviam em regime de maus-tratos e servidão. O caso
mais comum era o dos escravos encontrados a bordo de navios
negreiros e posteriormente declarados “livres” pelo tribunal da comissão
mista no Rio de Janeiro, criada por Convenção de 1826. Já nas primeiras
páginas de Notes on Brazilian questions, ansioso por mostrar que um
deputado brasileiro também via a “questão servil” sob o mesmo ângulo
visto de Londres, Christie inseriu uma nota de destaque à edição de
Cartas do Solitário, de autoria de Tavares Bastos, político e escritor
alagoano sensível ao destino dos africanos livres, estimados naquela
época em torno de 10 mil no Brasil.
Para Christie, o Brasil agia na questão dos emancipados usando
as mesmas táticas protelatórias empregadas anteriormente no caso
do tráfico negreiro. Além disso, na sua opinião, o direito britânico de
ingerência teria sido assegurado por tratado com o Brasil:
The course of the Brazilian Government about the emancipados has
been like that which it pursued about the slave-trade. Left to itself, it did
nothing; it treated for a long time with neglect representations of the
English Government; it did not answer notes. When obliged to reply, it
protested that its dignity did not allow it to act while pressed by a foreign
Government; it resented interference, and claimed to be left free to execute
its own laws, forgetting that treaty-stipulations gave a right to England to
interfere. At last, after force had been used, and the English Government
6
Ibid. p. XVII.
123
CADERNOS DO CHDD
was known to be serious, and there seemed no help for it, it has done
what it ought to have done long before; and it is now contended that this
has been done spontaneously, and that all past reproaches are unjust.7
Christie, contrariando os desejos brasileiros, opunha-se também à
revogação da famosa Lei Aberdeen, aprovada pelo Parlamento britânico
em 1845, a qual dava poderes extraordinários à Marinha britânica para
reprimir como pirataria o tráfico ilegal de escravos direcionados ao
Brasil.8 Mesmo com a diminuição quase absoluta do tráfico na década
de 1850, ele entendia que a Lei Aberdeen era essencial como garantia
para prevenir eventual retorno daquela prática. Segundo seus cálculos,
haveria 3 milhões de escravos no Brasil em uma população total de 7,5
milhões de habitantes. Christie acreditava basicamente na idéia de que
“onde prevalece a escravidão, o comércio de escravos é provável”.9
Baseando-se em sua própria análise dos antecedentes da questão
do tráfico, Christie concluiu que o governo brasileiro não era confiável e
poderia estar agindo de “má-fé” com relação à Grã-Bretanha nos
incidentes do Prince of Wales e dos oficiais do Forte. Christie seguia,
mais uma vez, o exemplo de Palmerston, que em 1845 afirmara de
modo contundente:
I am sorry to say that it is impossible to state in exaggerated terms
the just accusation against Brazil of bad faith as to the Conventions agreed
to by it respecting the slave-trade. All our inducements, all our arguments,
all our persuasions, were utterly fruitless, and whenever the subject of
the slave-trade has been discussed here, the notoriously bad faith of the
Brazilian Government has been on all hands admitted and deplored.10
Ao reviver velhos problemas das relações bilaterais, Christie
pretendia dar solução às questões pendentes adotando uma postura
severa de cobrança com sentido de grave urgência. Entretanto, seu
estilo agressivo e direto talvez não fosse exatamente o que o Foreign
Office esperava naquele momento de seu representante no Rio de
Janeiro. Em despacho de fevereiro de 1861, o Secretário do Exterior,
Conde John Russell, autorizou Christie (a pedido deste último) a solicitar
7
Notes on Brazilian questions, Introdução, p. XXXV.
A Lei Aberdeen só seria revogada em 1869. Cf. Leslie Bethell, The abolition of the Brazilian slave
trade: Britain, Brazil and the slave trade question, 1807-1869 (Cambridge: Cambridge University
Press, 1970), p. 387.
9 Notes on Brazilian questions, Introdução, p. XLV-XLVI.
10 Sessão de 24 jul. 1845 na Câmara dos Comuns. Ibid. p. 57-58.
8
124
“I HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO RIO…” REVENDO AS NOTAS DO SR. CHRISTIE SOBRE O BRASIL
ao governo brasileiro uma lista detalhada dos africanos livres e do
paradeiro de cada um deles. Russell recomendou, não obstante, que
se evitasse “tanto quanto possível” qualquer discussão que pudesse
contribuir para o “sentimento de irritação” que há tanto tempo existia
no Brasil contra a Grã-Bretanha em matéria de tráfico de escravos.11
Outra área antiga de dificuldades envolvia as relações comerciais
bilaterais. A principal queixa britânica residia na ausência de um acordo
de comércio entre o Brasil e a Grã-Bretanha, visto que o Tratado de
1827 havia expirado em 1844, a despeito dos esforços da missão de
Sir Henry Ellis para renová-lo. Ainda como reflexo da experiência negativa
da época da Independência, o Brasil mantinha uma posição de princípio
desfavorável à celebração de tratados com as grandes potências. No
caso específico da Grã-Bretanha, o governo brasileiro condicionava a
abertura de negociações para a assinatura de novo tratado comercial
à revogação da Lei Aberdeen. O Brasil pleiteava também a concessão,
em caráter de reciprocidade, de melhores condições de acesso das
exportações brasileiras ao mercado britânico (sobretudo açúcar e café),
mas tal demanda era sistematicamente rejeitada por Londres.12
Paralelamente à questão do acordo comercial estava a defesa
constante pela Grã-Bretanha de práticas eficientes de gestão econômica
e administrativa (que hoje seriam chamadas de “boa governança”),
incluindo o respeito aos contratos, o combate à corrupção, o tratamento
“justo e liberal” aos estrangeiros e a adesão brasileira aos princípios do
livre comércio. Na ótica de Christie, a expansão do intercâmbio bilateral
viria naturalmente como conseqüência da adoção pelo Brasil de políticas
de cunho liberal que, teoricamente, redundariam no próprio benefício
do país. Nas suas palavras:
[We] must remember, too, that Brazil stands, even at this moment,
towards England, in the face of the world, in the unhappy position of violator
of existing treaty obligations, and that she evaded and violated the stipulations
of the former Treaty of Commerce. It is Brazil that must change her policy.
If she will observe the faith of treaties and comity of nations, she will have
no trouble from England; and the expansion of commerce must come from
11
Ibid. p. 11.
O governo britânico, entre outros motivos, não queria expor o comércio de suas colônias (em
especial das Índias Ocidentais Britânicas) à concorrência dos produtos brasileiros. Alan K.
Manchester, British preeminence in Brazil: its rise and decline. New York: Octagon Books, 1972.
p. 293-295.
12
125
CADERNOS DO CHDD
a change in the policy of Brazil, which it is her own interest to make, and
which can be made without Treaty or Convention.
Moderate import duties, no export duties or very low ones, Customhouse regulations as little vexing as possible, honest Custom-house
administration, fair and liberal treatment of foreigners, pure justice, a
treatment of immigrants which will encourage immigration, – these are
the cardinal points of a policy which will expand Brazilian commerce, which
involves issues for Brazil much larger than a treaty with England, and
which need not wait for the repeal of the “Aberdeen Act”.13
Havia, ainda, a questão das reclamações pendentes entre os dois
países. Os pleitos britânicos alcançavam até 300 mil libras. O Apêndice
de Notes on Brazilian questions apresenta uma lista das reclamações
contra o Brasil, extraída da edição de 21 de julho de 1864 do jornal
Brazil and River Plate Mail. A lista contém alguns pleitos curiosos e
outros bastante antigos, como aqueles referentes a prejuízos de
comerciantes britânicos durante revoltas regionais no Brasil, algumas
delas remontando a 1824 (Pernambuco), 1835 (Pará) e 1837 (Bahia).
Boa parte das reclamações se refere a perdas totais ou parciais de
navios e cargas por diversas razões e tarifas cobradas em excesso
pela alfândega brasileira.
Por insistência britânica, uma comissão mista havia sido criada em
2 de junho de 1858 para tratar exclusivamente do tema, mas seus
resultados foram muito reduzidos. Depois de breve período de
funcionamento, a comissão teve seus trabalhos suspensos em 1860
devido a divergências sobre sua esfera de competência. O Brasil havia
apresentado inúmeros pleitos relativos a capturas por navios britânicos
de embarcações brasileiras acusadas de traficarem escravos. O governo
britânico, no entanto, não queria reabrir casos considerados “resolvidos”
em definitivo pelos tribunais mistos de Serra Leoa e do Rio de Janeiro.14
Em resumo, as relações anglo-brasileiras pareciam estar sofrendo
de uma dissintonia crônica no campo político, que Alan Manchester
qualificou de “fricção cumulativa”.15 Mesmo que no plano econômico
o Brasil e a Grã-Bretanha estivessem ligados por laços crescentes de
comércio e investimentos, por trás das cortesias diplomáticas de praxe
13
14
15
Notes on Brazilian questions, p. 131-132.
Ibid. p. 140 et seq.
Manchester, British preeminence in Brazil, p. 273-274.
126
“I HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO RIO…” REVENDO AS NOTAS DO SR. CHRISTIE SOBRE O BRASIL
persistia um estranhamento surdo, alimentado por ressentimentos
históricos e incompreensões de parte a parte.
Além de todos esses fatores, as origens da Questão Christie podem
ser analisadas também do ponto de vista mais geral das peculiaridades
do imperialismo britânico no século XIX e da ameaça de coerção sempre
presente em relações marcadas pelas disparidades de poder. A GrãBretanha vitoriana nutria uma auto-imagem benevolente, confiante
em seu papel de nação líder do mundo, baluarte do livre comércio e da
civilização, dedicada a sua missão imperial de educar os povos atrasados
e ensinar-lhes o caminho do progresso e do adiantamento moral. Muitos
acreditavam sinceramente no caráter salutar de intervenções destinadas
ao “melhoramento” daqueles que estavam sendo precisamente o objeto
dessas medidas corretivas.
Existia, porém, uma distância considerável entre as causas nobres
que os britânicos diziam perseguir e a percepção que os demais povos
tinham das ações realizadas contra eles em nome daqueles mesmos
ideais. Como bem assinalou um estudioso nigeriano, o que se
convencionou chamar de “palmerstonianismo” representava aos olhos
dos outros países uma política de expansão dos interesses britânicos
no exterior “pela força sempre que necessário”, justificada internamente
por apelos a “imperativos morais”.16
Com efeito, Lord Palmerston notabilizou-se por sua defesa
intransigente dos interesses britânicos e pelo recurso freqüente e sem
remorsos dos instrumentos de poder à sua disposição para fazer valer
esses interesses em qualquer circunstância. O caso Dom Pacífico foi
um típico exemplo. Em 1850, à frente do Foreign Office, Palmerston
enviou navios da Marinha Real para bloquear o porto de Atenas e exigir
indenização do governo grego por danos à propriedade sofridos por
um cidadão britânico, nascido em Gibraltar, que havia pedido a proteção
do governo de Sua Majestade. Palmerston aproveitou a ocasião para
fazer uma ampla justificação de sua política na Câmara dos Comuns,
comparando os direitos de um súdito britânico em qualquer lugar do
mundo com a presumida proteção que um indivíduo na Roma Antiga
teria se exclamasse: Civis Romanus sum (“Sou um cidadão romano”).17
16
Martin Lynn, British policy, trade, and informal empire in the mid-nineteenth century. In:
Andrew Porter (ed.), The Oxford history of the British Empire, vol. III, The nineteenth century.
Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 106.
17 Muriel E. Chamberlain, ‘Pax Britannica’? British foreign policy, 1789-1914. London: Longman,
1988. p. 98.
127
CADERNOS DO CHDD
Chauvinista e belicoso, o nome de Palmerston ficou associado à
diplomacia das canhoneiras. A tática de intimidar os mais fracos provou
dar bons resultados para seus partidários também na política interna,
explorando os sentimentos populares na Grã-Bretanha. Em geral, a
população tendia a apoiar gestos de afirmação do poderio britânico no
estrangeiro, no melhor estilo jingoísta. Com o tempo, consolidou-se
uma regra usual de procedimento segundo a qual violências cometidas
por elementos nativos contra nacionais britânicos deveriam ser
respondidas com demonstrações inequívocas de força. Assim, em
abordagem muito comum no trato com povos da periferia, não eram
poucos os que no governo britânico advogavam expedições punitivas
com o objetivo de “dar uma lição” a quem desafiasse de frente os
interesses da metrópole imperial. Havia sido assim na brutal reação
britânica à Revolta dos Cipaios na Índia (1857) e na destruição do
Palácio de Verão na China (1860), para citar apenas dois casos notórios
ocorridos alguns anos antes da Questão Christie.18
WILLIAM D. CHRISTIE:
VILÃO IMPERIALISTA?
Christie pertencia à escola palmerstoniana e ele não escondia seu
modo de pensar, conforme testemunham seus escritos e incontáveis
passagens de Notes on Brazilian questions. Um pequeno exemplo
entre tantos pode servir de ilustração. Exasperado com a obstinada
recusa brasileira em conceder por tratado determinados privilégios
consulares à Grã-Bretanha, Christie em dado momento expressou de
uma vez só seu repúdio aos princípios da reciprocidade e da igualdade
entre os Estados, duas regras primárias das relações internacionais:
Why should Brazil make difficulties when other South American states
make none? Literal reciprocity after all is not essential equality. There is “no
perfect equality” in the circumstances and conditions of the two nations.
England derives no advantage from the residence of Brazilians equivalent to
the gain of Brazil from English merchants, engineers, and artisans who go
thither. There are no complaints of corruptions and abuses of our Court of
Probate, as there is an [sic] universal outcry in Brazil against the abuses of
Brazilian Courts of Orphans. It is the strong interest of Brazil to encourage
foreigners. She ought not to insist, as a matter of pride, on a formal literal
reciprocity when Brazilian subjects have no grievance in England to be rid
of, and British subjects have great cause of complaint in Brazil.19
18
19
Ibid. p. 111-112.
Notes on Brazilian questions, p. 121.
128
“I HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO RIO…” REVENDO AS NOTAS DO SR. CHRISTIE SOBRE O BRASIL
Caberia diante dos fatos um veredicto da História de condenação
sumária das atitudes de Christie no Brasil? Difícil dizê-lo e este artigo
tampouco é o lugar apropriado para tanto. Não obstante, alguns pontos
podem ser brevemente levantados para reflexão.
Na questão mais controversa das represálias, deve-se reconhecer
desde logo que Christie não agiu inteiramente sozinho nem excedeu
suas instruções, como alguns chegaram a imaginar. O comando das
operações navais coube ao Almirante Warren, chefe da esquadra
britânica no porto do Rio de Janeiro, com quem Christie discutiu o
modo de ação mais adequado. As fatídicas represálias haviam sido
devidamente autorizadas pelo Secretário do Exterior, que indicou ainda
a forma preferida pelo Foreign Office para cumpri-las: retenção de
propriedade privada como garantia até que o governo brasileiro acedesse
às exigências britânicas. Por sua relevância histórica, seria oportuno
reproduzir aqui o texto completo desse importante documento:
Conde Russell a Christie, Londres, 8 de novembro de 1862.
Sir,
In my despatch of the 4th instant I have informed you that if the Brazilian
Government refuse the demands of Her Majesty’s Government in the case
of the Forte and Prince of Wales, those demands will be enforced by reprisals,
in case no proposal is made by Brazil for arbitration.
These reprisals might be in the shape of the seizure of some ship, or
of some portion of the public property belonging to Brazil, to be held as a
security until the Brazilian Government did justice in the respective cases,
and then restored to them uninjured. But as such a course might lead to
collision between the two Governments, it may be preferable that the property
seized should be private property. On this point, you will, however, consult
with Admiral Warren, to whose discretion Her Majesty’s Government will
leave it to decide as to the steps to be taken, should it unfortunately be
necessary to have recourse to reprisals.
I am, etc. (signed) Russell.20
Russell concebia o uso das represálias como “último recurso”,
cabendo a Christie avaliar se a situação demandaria que se chegasse
a tal extremo. O Ministro britânico tinha assim certa margem de
manobra, mas se quisesse seguir o caminho da confrontação o sinal
20
The Brazil correspondence…, op. cit., p. 200.
129
CADERNOS DO CHDD
verde já lhe havia sido dado. Neste momento, falou mais alto o desejo
de Christie de aproveitar o ensejo para enfim “dar uma lição” no Brasil,
como ele próprio antecipara em comunicação a Russell em 8 de
dezembro de 1862:
I have already had some conversation with Admiral Warren on the
best course to be pursued, should it be necessary to proceed to reprisals.
Your Lordship may feel assured that full deference will be paid to your
suggestion that private rather than public property should be seized. I observe
your Lordship’s desire to avoid proceeding to reprisals, if it is possible. Your
Lordship may depend on my doing all that is in my power, consistently with
what I believe to be due to our dignity and general interests, to avoid a
recourse to the violent measures which your instructions authorize; but
your Lordship will not have failed to perceive from my late despatches,
including several which will have reached you since the last instructions
before me were penned, that the general proceedings of the Brazilian
Government are most unsatisfactory, and show a great indisposition to do
justice, and I anticipate much benefit for British interests in Brazil from the
lesson which may now be administered, and may teach them that Her
Majesty’s Government, though patient and forbearing, will not in the end
allow themselves to be trifled with.21 (grifos do autor)
As represálias ocorreram do modo como Russell havia sugerido.
Dois navios de guerra britânicos, o Stromboli e o Curlew, zarparam em
silêncio no dia 31 de dezembro de 1862 para interceptar navios brasileiros
a uma distância segura do litoral. O Almirante Warren postou-se na
entrada do porto carioca com sua fragata Forte, auxiliado por mais
dois navios, Satellite e Dotterel. Produziu-se um virtual bloqueio da Baía
de Guanabara. A operação durou seis dias e resultou no apresamento
de cinco navios mercantes brasileiros, carregados de café e outros
produtos. No entender de Christie, as represálias eram “um modo
entendido e reconhecido pelas nações de obter justiça quando é esta
de outro modo recusada” e tal não constituiria, por conseguinte, um
“ato de guerra”.22
Contudo, a repercussão negativa havia sido tão intensa que a
permanência de Christie no Rio se tornara insustentável. A população o
hostilizava e o Imperador se recusava a recebê-lo. A multidão furiosa
21
Christie a Conde Russell, Rio de Janeiro: 8 dez. 1862. Ibid. p. 217.
Nota da Legação de S. M. Britânica ao Governo Imperial, Rio de Janeiro, 30 dez. 1862.
Relatório do Ministério das Relações Exteriores, 1862 (publicado em 1863), Anexo I.
22
130
“I HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO RIO…” REVENDO AS NOTAS DO SR. CHRISTIE SOBRE O BRASIL
ameaçava atacar lojas e estabelecimentos britânicos. Forças policiais
tiveram de ser mobilizadas para proteger a Legação e o Consulado da
Grã-Bretanha. O próprio Christie relataria a atmosfera de ódio que se
criou contra ele:
In the meantime the newspapers had been generally busy in trying to
fix the odium of our proceedings on me personally, and in representing that
Her Majesty’s Government would disavow them; and the official journal had
also held this language. There was a general excitement against me. I was
threatened with assassination.23
É conhecido o fato de que Christie foi ridicularizado pela imprensa
brasileira e sua imagem identificada pelo povo nas ruas com a face
perversa do imperialismo britânico. Deve-se lembrar que, já afastado
do Brasil, Christie fora também muito criticado na Grã-Bretanha, o que
obrigou tanto Palmerston quanto Russell a saírem em defesa do exMinistro plenipotenciário em debates no Parlamento em Westminster.
Palmerston sustentou em várias ocasiões que Christie havia agido “com
grande julgamento”, demonstrando moderação no desempenho de
sua missão. Eis um trecho transcrito por Christie de um dos
pronunciamentos do Primeiro-Ministro na Câmara dos Comuns:
It is a well-known practice in countries which are in that peculiar state
of progress in which Brazil happens at the present moment to find itself,
that, when their injustice or misconduct obliges a foreign government to
use compulsion in order to obtain the redress which has been denied to
friendly representations, they endeavour to take their revenge by pouring
forth every sort of calumny on the agent who has been the instrument of
the government using these means.24
Outra linha de ataque a Christie partiu dos comerciantes e
empresários britânicos no Rio e no Brasil, os quais teriam sido “unânimes”
em desaprovar o curso seguido pelo governo britânico, como afirmara
Richard Cobden em março de 1863. 25 Christie acusou esses
comerciantes de se alinharem ao Brasil e de esnobarem a “proteção”
23
Christie a Conde Russell, Rio, 8 jan. 1863. The Brazil correspondence…, p. 232.
Notes on Brazilian questions, Introdução, p. LXVIII. Na mesma linha, Russell declarou na
Câmara dos Lordes que Christie havia atuado em “inteira conformidade” com as instruções
recebidas. Ibid. p. 176.
25 Ibid. Introdução, p. LIV.
24
131
CADERNOS DO CHDD
oferecida pela Marinha britânica, em clara exortação do ex-Ministro às
virtudes do emprego de uma diplomacia armada, baseada na coerção
e no medo:
English merchants in Brazil need the strong arm of their government
to protect them. None know better than the traders of Manchester and
Liverpool, or at any rate than their agents and correspondents in Brazil, that
fear is the only effectual security for justice, and that the British navy is the
right arm of British merchants.26
Christie procurou mostrar que as represálias teriam tido um efeito
“positivo” sobre o Brasil. O aumento no número de emancipados
efetivamente libertados pelo governo brasileiro em 1864 foi interpretado
por ele como resultado direto das represálias. O Ministro dos Negócios
Estrangeiros brasileiro, Marquês de Abrantes, estaria agora respondendo
“prontamente” às notas da Legação britânica...27
A leitura de Notes on Brazilian questions induz a acreditar que a
Grã-Bretanha não teria tido outra alternativa a não ser punir o Brasil
em função da recusa do governo do Rio de Janeiro em atender com
presteza às “justas” reclamações britânicas. Na visão do ex-Ministro,
o Brasil dependia economicamente da Grã-Bretanha em vários aspectos,
tais como importações de manufaturados, investimentos diretos,
construção de ferrovias, empréstimos da City, capital, tecnologia e
assistência técnica britânica em projetos de modernização no país. Por
isso, o governo brasileiro “devia” comportar-se bem, fazendo o que
lhe cabia fazer a fim de mostrar o respeito devido para com o governo
de Sua Majestade.
Parece difícil imaginar, todavia, como a escalada do conflito poderia
resultar em benefício para as relações econômicas bilaterais. Ao
contrário, o sentimento antibritânico podia produzir efeitos indesejáveis,
prejudicando os negócios de comerciantes britânicos com interesses
no Brasil. Havia fundado receio entre eles de que um importante cliente
poderia estar sendo alienado sem motivo convincente.
Do ponto de vista brasileiro, as demandas de Christie, apresentadas
como exigências de “justiça”, representavam intromissão nos assuntos
internos de um país mais fraco ou implicavam muitas vezes concessão
26
27
Ibid. Introdução, p. LIII.
Ibid. p. 22.
132
“I HAVE NO THOUGHT OF RETURNING TO RIO…” REVENDO AS NOTAS DO SR. CHRISTIE SOBRE O BRASIL
unilateral de privilégios por parte do Brasil. No entanto, a posição brasileira
em relação à presença da Grã-Bretanha no país era ambígua. O Marquês
de Abrantes assinalou que uma nação, “embora comparativamente
fraca em relação a outra”, não podia ser indiferente a “atos que se
traduzem em humilhação de sua soberania e de sua dignidade”. Ao
mesmo tempo, porém, Abrantes destacava as “importantíssimas
relações que ligam a Grã-Bretanha ao Brasil”, reconhecidamente de
grande relevância para a economia brasileira.28
Nesse contexto, atacar pessoalmente e demonizar a figura de
Christie, ao invés de colocar a questão em termos de choque frontal e
generalizado entre os dois países, era uma forma de extravasar
sentimentos nacionalistas de revolta e indignação enquanto se mantinha
preservada a esfera econômica do relacionamento bilateral, claramente
posta à margem da refrega. Acusado de ser irascível, rude e insolente,
Christie se transformou no bode expiatório perfeito.29 Uma vez separadas
as dimensões política e econômica, abriu-se o caminho que levaria o
Ministro brasileiro em Londres, Francisco Inácio de Carvalho Moreira, a
comunicar ao Foreign Office o rompimento de relações diplomáticas.
O governo britânico decerto não esperava que a questão tivesse esse
desfecho, o que apenas atesta o limitado grau de influência política que
a Grã-Bretanha pensava então exercer sobre o Brasil, em contraste
com a magnitude de seus interesses econômicos no país.30
O reatamento, como se sabe, ocorreu em 23 de setembro de
1865, em meio (literalmente) à Guerra do Paraguai, quando Edward
Thornton apresentou a D. Pedro II, em Uruguaiana, a declaração
solene do governo britânico de que não teria havido a intenção de
“ofender a dignidade do Império do Brasil” em 1863. Durante a fase
de rompimento, os vínculos econômicos entre os dois países não
sofreram interrupção e o Brasil chegou a obter dois empréstimos em
Londres por intermédio do banqueiro Rothschild. Dizia-se também que
28 Nota do Governo Imperial à Legação de S. M. Britânica, Rio, 29 dez. 1862. Relatório do MRE,
1862, Anexo I.
29 Ross Forman chamou a atenção para esse fenômeno ao assinalar que, no Brasil, Christie havia
sido um “peão” usado para externar “de modo controlado” queixas maiores contra a Grã-Bretanha.
R. G. Forman, Harbouring discontent: British imperialism through Brazilian eyes in the Christie
Affair. In: Martin Hewitt (ed.), An age of equipoise? Reassessing mid-Victorian Britain. Aldershot:
Ashgate, 2000. p. 234.
30 A crise diplomática de 1863 foi interpretada por Manchester como um sinal claro de que a
tradicional preeminência britânica no Brasil estava politicamente em declínio. Manchester, British
preeminence in Brazil, p. 283.
133
CADERNOS DO CHDD
os comerciantes britânicos sequer se preocupavam em fazer campanha
pela volta imediata dos contatos diplomáticos, pois eles estariam
convencidos da “hostilidade inveterada” de Palmerston e do Foreign
Office em relação ao Brasil.31
A impaciência do governo britânico com a demora brasileira em
dar encaminhamento satisfatório a suas reivindicações não era um
fato novo. Seria assim talvez muito forte afirmar que a Grã-Bretanha
vinha procurando pretextos para criar um incidente com o Brasil. De
qualquer modo, se de fato havia um ambiente propício a uma
demonstração de força, premeditada ou não nos círculos oficiais em
Londres, parece inegável que o temperamento, o perfil linha-dura e as
atitudes pouco diplomáticas de Christie terão ajudado a compor o quadro.
Embora Christie tenha tentado vender a idéia de que a “lição”
aplicada ao Brasil dera resultados, para muitos ele teria apenas prestado
um desserviço às relações bilaterais. Ele se tornou o grande vilão da
estória e, ao que tudo indica, Notes on Brazilian questions não foi
suficiente para convencer do contrário seus detratores. Longe das
terras brasileiras, restava-lhe por assim dizer o recolhimento altivo dos
ex-combatentes:
I have no thought of returning to Rio. Holding a diplomatic pension, I still
eat the bread of the public.32
*
*
31
32
Notes on Brazilian questions, p. 108.
Ibid. Introdução, p. LXVI.
134
*
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SOBRE AS
R EPÚBLICAS
DO
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DE
D UARTE
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Um olhar brasileiro sobre as
Repúblicas do Pacífico. Memória de
Duarte da Ponte Ribeiro – 1832
LUÍS CLÁUDIO VILLAFAÑE G. SANTOS*
Em abril de 1832, ao término dos quase três anos de sua primeira
missão em Lima, Duarte da Ponte Ribeiro escreveria um longo relatório
ao Secretário das Relações Exteriores, Carneiro de Campos, sobre a
situação política, militar, econômica e social não só da república do
Peru, mas também do Chile, da Bolívia e do Equador. O conjunto
destes países, acrescido da Colômbia, era tratado pela diplomacia
brasileira como um subsistema à parte, distinto daquele constituído
pelos países do Prata, foco do interesse prioritário brasileiro. Ainda que
com atenção incomparavelmente menor à dedicada ao Prata e às
relações com as potências européias e os Estados Unidos, as “Repúblicas
do Pacífico” não podiam ser ignoradas e, em alguns momentos, foram
objeto de políticas específicas por parte da Secretaria dos Negócios
Estrangeiros do Império.
A primeira manifestação de uma política brasileira para a porção
ocidental do continente sul-americano foi, precisamente, a designação,
em 1829, de Duarte da Ponte Ribeiro e de Luiz de Souza Dias como
representantes do Império no Peru e na Grã-Colômbia, respectivamente.
A presença de Souza Dias em Bogotá explica a não inclusão da Colômbia
no relatório de Ponte Ribeiro sobre as Repúblicas do Pacífico.
O envio dos dois diplomatas brasileiros respondia a iniciativas
anteriores dos Governos peruano e colombiano. A imagem do Império
brasileiro nas repúblicas vizinhas era, nos anos que se seguiram às
guerras de independência, bastante negativa. O Brasil era visto
equivocadamente como uma possível ponta-de-lança da Santa Aliança
em um eventual esforço de reconquista. Seu regime monárquico,
ademais, era visto como um corpo estranho em uma América que
* Diplomata, com pós-graduação em Ciência Política na New York University. Doutor e Mestre em
História do Brasil pela Universidade de Brasília. Autor de “O Império e as Repúblicas do Pacífico:
as Relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia – 1822/1889”. As opiniões
expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor.
135
CADERNOS DO CHDD
buscava se fazer republicana, como contraponto às monarquias
européias. A Guerra da Cisplatina e o incidente de Chiquitos serviam
para reforçar essa idéia de uma monarquia hostil às repúblicas. A
noção do Brasil como um inimigo comum às repúblicas vizinhas servia
ao discurso dos revolucionários hispano-americanos ao preservar a
idéia de um inimigo externo, para cujo enfrentamento seria indispensável
a unidade ou pelo menos a confederação das repúblicas. No entanto,
os projetos de unidade logo mostraram-se irrealistas e, a partir daí, foi
facilitada a busca de uma aproximação com o Brasil.
Terminada a guerra de libertação, Bolívar permaneceria em Lima
até 1826 e faria, em 1825, seu fiel aliado Sucre presidente do Alto-Peru
(Bolívia), que governaria até 1828. Ao mesmo tempo, Bolívar mantevese até 1830 na presidência da Grã-Colômbia — englobando os atuais
territórios do Panamá, Colômbia, Venezuela e Equador. Bolívar imaginava
reunir todas estas regiões em uma “Federação Andina”, projeto que
acabou por se mostrar inviável.
Em junho de 1826, o Governo bolivariano de Lima indicou José
Domingo Cáceres como seu Encarregado de Negócios na corte imperial.
Cáceres tinha como principal objetivo “investigar a cumplicidade do
Imperador em conspirações reacionárias contra as repúblicas”1.
Cáceres, ademais, deveria iniciar a discussão da questão de limites
com o Brasil. O Governo imperial, alegando não possuir ainda os
elementos necessários para tanto, não quis discutir a fronteira comum.
Bolívar, já em Bogotá, insistiu na aproximação com o Rio de Janeiro e
enviou, em 1827, Leandro Palacios como seu representante junto ao
Império. Este também tinha instruções para iniciar as negociações de
limites, o que foi negado pela mesma razão apresentada a Cáceres.
Em janeiro de 1828, no entanto, um golpe levou ao poder no Peru
um Governo hostil à idéia de confederação com a Grã-Colômbia e foi
criado um clima de tensão entre os dois países, que passariam a
disputar o território da antiga Audiência de Quito (atual Equador). A
mudança na posição peruana foi acompanhada, na Bolívia, pela deposição
do presidente Sucre. Cortejando as Províncias Unidas, que ainda
estavam em Guerra com o Brasil pela posse da Província Cisplatina, o
Peru e a Bolívia assinariam o “Tratado de Piquiza” em 6 de junho de
1828, pelo qual as duas repúblicas comprometeram-se a não estabelecer
relações com o Império do Brasil até que terminasse a guerra contra o
1
Seckinger: 1984. p. 128.
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Governo de Buenos Aires. Em conseqüência, o representante peruano,
Cáceres, foi retirado do Rio de Janeiro.
A Guerra da Cisplatina terminaria em agosto de 1828, com a
independência uruguaia, e em resposta às missões de Cáceres e
Palacios o Governo brasileiro decidiu enviar representantes a Lima e
Bogotá. As instruções de Ponte Ribeiro incluiam também o Chile, o que
foi revogado em despacho posterior 2.
Como foi ressaltado por Soares de Souza:
Era a missão de Ponte Ribeiro ao Peru, principalmente, em retribuição
à de Cáceres, que o Imperador D. Pedro I muito apreciara, como consta
das instruções. Ia o diplomata brasileiro autorizado a negociar um tratado
de comércio e navegação, ‘fundado — escrevia o Marquês de Aracati — em
princípios liberais, ou, para melhor dizer, de Política Americana’. Mas, sobre
os limites, prevalecia ainda a idéia de se mendigarem elementos e, enquanto
os não obtivessem, devia o representante brasileiro de se ater às razões de
1827 [quando da proposta de Cáceres], dadas por [Marquês de] Queluz,
assegurando todavia ‘que o governo imperial está cuidando em tomar todos
os esclarecimentos, para entrar na negociação de um tratado’.3
Ponte Ribeiro, nomeado em 10 de fevereiro de 1829 Cônsul-Geral
e interinamente Encarregado de Negócios na República do Peru, chegaria
a Lima em 27 de agosto do mesmo ano. Em 29 de novembro de 1831
foi decidido o fechamento da Legação brasileira em Lima sob a alegação
de economia de recursos. A instrução sobre seu retorno ao Rio de
Janeiro, no entanto, só chegou a Lima em 2 de abril de 1832.
O objetivo principal de sua missão, a assinatura de um tratado de
comércio e navegação, logo seria abandonado em vista da inexistência
de fluxos comerciais entre os dois países e da identidade de produtos.
Ponte Ribeiro, ademais, logo se mostrou pouco otimista sobre o interesse
peruano em tal tratado, pois o Peru “não tem mais tratados de comércio
que uma declaração feita em favor da Colômbia em 1826 quando aqui
estava Bolívar”.4
2
Despacho de 14/5/1829. In: “Depachos de Aracati a Ponte Ribeiro”, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro – Arquivo Histórico do Itamaraty/RJ (268/3). As instruções de Duarte da
Ponte Ribeiro, datadas de 9/03/1829, estão no volume intitulado “Relatórios e Documentos
sobre Navegação Fluvial”.
3 Soares de Souza: 1952. p. 13.
4 Legação Imperial do Brasil em Lima, Ofício nº 7, de 24 de abril de 1830. Arquivo Histórico do
Itamaraty/RJ (212/2/4).
137
CADERNOS DO CHDD
As relações entre o Peru e a Grã-Colômbia haviam se deteriorado
ao ponto de os dois países travarem uma guerra, de agosto de 1828 a
junho de 1829. Sobre este conflito, que resultou na independência do
Equador, o diplomata brasileiro informou ao Governo imperial que “a
razão porque os peruanos têm diligenciado apossar-se de Guaiaquil, é
por ser o único porto aonde há madeiras de construção, e também o
mais seguro do Mar Pacífico. É pela mesma razão que Bolívar pretende
que seja província de Colômbia, porque dessa maneira dominará estes
mares”.5 O Império manteria sua neutralidade neste conflito e, na
prática, as relações com seus vizinhos da costa ocidental do continente
permaneceriam pouco densas até o Segundo Reinado, quando o próprio
Duarte da Ponte Ribeiro seria encarregado pelo Ministro Paulino Soares
de Souza da Missão Especial nas Repúblicas do Pacífico e Venezuela.
Antes disso, o mesmo Duarte da Ponte Ribeiro voltaria ao Peru
em 1836 como Encarregado de Negócios perante a Confederação
Peruano-Boliviana, presidida pelo General Santa Cruz. Em 1841, assinaria
dois tratados com o Governo peruano: um de “Paz, Amizade, Comércio
e Navegação” e um convênio de “Limites e Extradição”. Ainda que
estes tratados de 1841 não tenham sido ratificados pelo Governo
imperial, suas linhas gerais constituem-se em importantes antecedentes
de políticas que seriam seguidas como doutrinas a partir da década de
1850: a utilização do princípio do uti possidetis nas discussões de fronteiras
e autorização da navegação dos rios interiores a partir de tratados
bilaterais.
Em 1842, após breve passagem pela Secretaria de Estado no Rio
de Janeiro, Ponte Ribeiro seria designado Ministro Residente em Buenos
Aires. Acabaria exonerado deste posto em 1844 e, em 1851, enviado
como Plenipontenciário em Missão Especial às Repúblicas do Pacífico e
Venezuela. Esta missão acabaria sendo desdobrada em 1852, sendo
nomeado Miguel Maria Lisboa para a parte relativa ao Equador, à
Colômbia e à Venezuela. Nesta ocasião, Ponte Ribeiro assinaria com o
Peru uma “Convenção Especial de Comércio, Navegação Fluvial,
Extradição e Limites”, que retomava as teses dos tratados firmados
em 1841 e que, desta vez, seria ratificada pelos dois Governos. De
volta ao Rio de Janeiro, Ponte Ribeiro receberia o título de Barão da
Ponte Ribeiro e seria aposentado em 1857.
5
Legação Imperial do Brasil em Lima, Ofício s/n de 14 de setembro de 1829. Arquivo Histórico do
Itamaraty/RJ (212/2/4).
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Nascido em 1794, em Portugal, e chegado ao Brasil com a
transmigração da corte portuguesa, Duarte da Ponte Ribeiro foi, sem
dúvida, um dos mais influentes diplomatas do Império, profissão que
abraçou tardiamente (sua primeira missão foi em 1826, quando foi
indicado Cônsul-Geral na Espanha) em virtude de um acidente com
arma de fogo que lhe feriu a mão, afastando-o de sua carreira de
cirurgião. O Barão da Ponte Ribeiro, o “Fronteiro-Mor do Império”,
seria responsável ainda pela organização da Mapoteca do Itamaraty,
fonte para os elaborados estudos que realizou sobre as fronteiras
brasileiras.
Seus comentários sobre a situação das Repúblicas do Pacífico
são, portanto, o resultado da inteligência, reflexão e estudos do maior
e mais qualificado especialista da diplomacia imperial nestes países.
Seu olhar reflete as idéias e as percepções do Império brasileiro. Tratase do testemunho de uma época e fonte privilegiada para pesquisas e
interpretações sobre a diplomacia brasileira no século XIX e também
sobre a própria história das Repúblicas do Pacífico.
*
*
*
139
CADERNOS DO CHDD
MEMÓRIA SOBRE AS REPÚBLICAS DO PACÍFICO – 1832
(AHI – Parte III (34) – Arquivos Particulares – Fundo Duarte da
Ponte Ribeiro. Lata 269, março 3 pasta 1)
“[...] Persuadido de que acabada a minha Missão devo levar ao
conhecimento de V. Ex. as observações e notícias que adquiri sobre o
número de habitantes, sua qualidade, costumes, indústria, comércio,
agricultura, finanças, força armada, política, etc., não só da República
do Peru, aonde residi por espaço de três anos, mas ainda daquelas
por onde transitei ou estive em contato, vou cumprir este dever
apresentando o incluso Relatório [...]”
PERU
A República peruana tem aproximadamente 1.400 mil habitantes;
sendo 300 mil brancos, 100 mil de cor, e 1.000 mil indígenas, mais ou
menos civilizados. Está dividida em 58 Províncias, e estas concentradas
em 7 Departamentos; dos quais três, Lima, Trujillo, e Arequipa, abraçam
o terreno compreendido entre os Andes e o Mar Pacífico; e os outros
quatro, Cusco, Pumo, Ayacucho, e Junin, o que está além destas
montanhas. O Departamento de Lima tem 180 mil habitantes, 100 mil
brancos, 50 mil de cor e 30 mil indígenas; Trujillo 220 mil; 70 mil brancos,
40 mil de cor, e 110 mil indígenas; Arequipa 150 mil; 70 mil brancos, 5
mil de cor, e 75 mil indígenas; Cusco 260 mil; 20 mil brancos, 240 mil
indígenas; Puno 195 mil; 5 mil brancos, 190 mil indígenas; Ayacucho
190 mil; 10 mil brancos, 180 mil indígenas; Junin 200 mil; 25 mil brancos,
5 mil de cor e 170 mil indígenas. Em cada um dos três primeiros e em
Cusco, há uma Corte Superior de Justiça: as causas judiciais de Puno
são julgadas em Arequipa; as de Ayacucho em Cusco; e as de Junin
em Lima. Aqui há uma Corte Suprema ou de Apelações. Há também
uma Universidade para formatura em Direito, Matemática e Medicina:
quatro colégios preparam os candidatos; em dois se ensina bastante
regular as duas primeiras ciências; a terceira tem colégio separado, e
não merece elogios; o Militar promete pouco, e é o único com que o
Governo faz despesa. Em todos os Departamentos, menos Puno, há
colégios científicos, porém sem crédito, e todos os jovens vêm estudar
a Lima. Nas cidades principais há escolas bem dirigidas; mas nas outras
estão descuidadas, e são quase desconhecidas nas povoações interiores.
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A natureza, a linguagem, e os costumes, parecem dividir o Peru
em duas Nações distintas e sempre rivais; uma que ocupa a costa,
outra que habita além dos Andes; a primeira despreza a segunda,
esta odeia aquela: ali se fala castelhano melhor que em parte nenhuma
da América; há bastante civilização, demasiado luxo, e extremados
vícios; só nas capitais do interior se usa aquele idioma. Os indígenas
não sabem mais do que o quéchua, são menos civilizados, pouco
viciosos e não gastam luxo. Os primeiros se ocupam muito de religião,
mais por hábito e conveniência do que virtude; os segundos, com
dificuldade cumprem com a Igreja, e a maior parte só vêm a ela na
ocasião dos enterros; ato mais solene para eles, e em que gastam
quanto têm. Até o terreno tem diferente aspecto: ainda que geralmente
montanhoso, tem verdura e arvoredo a leste dos Andes; enquanto
que a parte de oeste oferece a triste perspectiva de áridos e decrépitos
rochedos, terminados em terras de areia em toda a extensão da
costa desde 3 até 22 graus de latitude sul. Tem pouco vales; e desses,
unicamente apresentam vegetação os que são atravessados por rios;
o resto é absolutamente despido dela. Aqui não chove nunca, e apenas
cai orvalho quando é inverno. Durante o verão chove na cordilheira, e
a água que se escapa deste lado vem fertilizar os vales por onde
passa: é tão aproveitada que a maior parte dos rios não chega ao
mar. É neste trabalho de canais para regar, que mais faz admirar o
engenho dos antigos peruanos. Desde muitas léguas, e pela encosta
de morros, abriram acéquias para conduzir água a todo terreno suscetível
de cultura. Estes canais são os mesmos que ainda hoje servem; e
existem para testemunhar o saber daquele povo em mecânica e
agricultura; assim como também o grande número que então havia.
Os montes de pedras miúdas ajuntadas por eles para limpar a terra, e
a situação das suas povoações em lugar estéril, segundo indicam as
minas, provam ainda quão populosa foi aquela Nação. Agora não se
cultiva a décima parte do terreno que os índios aproveitavam. Os
atuais mal se parecem com seus antepassados: como são poucos e
habitam as terras mais férteis, escolhem o melhor lugar, e nesse mesmo
apenas semeiam o que dá menos trabalho, e quanto basta para as
suas precisões. Geralmente se contentam com batatas e milho, que
lhes proporciona comida e bebida, com o último fazem também chicha
ou guarapo. Com estes dois gêneros, e algumas folhas de coca para
mascar, está completa a felicidade do índio. Enquanto ao vestiário,
usam grosseiras estopas que eles mesmo fazem. Daqui procede a
nulidade do comércio estrangeiro para o interior, e estar limitado ao
141
CADERNOS DO CHDD
consumo dos habitantes da costa, que contém o maior número dos
brancos, quase a totalidade da gente de cor, e ao todo 400 mil, pouco
mais ou menos. Só nesta parte da República há grandes propriedades;
que são engenhos de açúcar, arrozais, e vinhas. A cultura dos dois
primeiros gêneros está em abandono por falta de braços: não é possível
acostumar um índio a este trabalho; além disso a costa lhe inspira
terror pânico, e raras vezes baixam a ela porque de dez morrem sete,
de bexigas e disenteria. Os negros diminuem diariamente: os decretos
de San Martín, e de Bolívar, chamando-os às armas; declarando livres
os que pertenciam a espanhóis; mandando arbitrar preço e prazo aos
que quisessem mudar de senhor; despovoaram as fazendas, e
inundaram o país de malfeitores, que aumentaram no fim da guerra
da Independência quando acabaram as guerrilhas e reformaram o
exército. De 37 ladrões e assassinos fuzilados em Lima no espaço de
34 meses, 29 eram negros e mulatos; confessando alguns até 10
mortes. Não obstante esta decadência, o Peru exporta ainda açúcar,
arroz, e aguardente de vinho; todos estes gêneros de excelente
qualidade.
Manda a Chile os dois primeiros, recebendo em troca trigo, cevada,
e madeira; e todos três a Guaiaquil, cambiando-os por madeira, cacau,
chapéus de palha, soda, e tabaco. Tem muito salitre, porém o de fácil
exploração é de tão má qualidade que depois de refinado na Europa
fica reduzido à quarta parte do seu volume; operação que não pode
ser feita aqui por falta de lenha: abunda também o sal mineral, que
vende a seus vizinhos. Produz algodão; mas é de inferior qualidade, e
nenhuma extração: na vizinhança do rio Huallaza cresce o café, que
pode rivalizar com o de Moka; porém não se faz uso dele no país, e a
condução aos portos de mar é tão dispendiosa que torna a exportação
impossível. De todos os produtos agrícolas nenhum é tão lucrativo ao
proprietário como a aguardente feita de uva.
A indústria corre a par da agricultura: da preciosa filigrana, e
tapeçaria que outrora se trabalhava em Cusco, e Puno, apenas hoje
se fazem ali amostras imperfeitas. Com abundante e famosa lã, só há
no primeiro uma fábrica de baeta e pano grosso: e possuindo excelente
pelo de vicunha, somente no segundo fazem dele maus chapéus. A
fábrica da pólvora em Lima, é a única que merece este nome. A
abundância de ricos metais, não contribui pouco para a falta de
agricultura e indústria: nenhuma empresa promete tanto como as
minas; e quem tem algum capital disponível lhe dá este destino com
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preferência a outro. A extraordinária e rápida fortuna de alguns mineiros,
fascina o empreendedor, e não lhe deixa ver a miséria em que vive a
maior parte: consumindo o primeiro capital sem resultado efetivo, forçoso
é contrair dívidas para continuar os trabalhos; e se sobrevêm o grande,
e muito comum, inconveniente de inundar-se a mina, a ruína é certa.
Nesse estado estão quase todas as do Cerro de Pasco. Pode dizer-se
que esta ramificação dos Andes é um monte de prata; porém as
minas se inundam facilmente, porque chove ali muito, e tem encima
um vão. Para remediar este mal, mandou o Governo espanhol principiar
uma grande vala horizontal que devia penetrar a base do Cerro para a
filtração se fazer por ali. Muito tempo e dinheiro se gastou nesta obra,
que a revolução veio interromper; e o Governo patriota não podendo
continuá-la, também por falta de outros recursos, vendeu estas minas
a diversos. Para esgotá-las se organizaram em Londres duas diferentes
sociedades de ingleses e peruanos: uma e outra remeteu máquinas
calculadas sobre teoria e inadaptáveis à configuração irregular das minas;
que a cada passo mudam de direção, tanto horizontal como
perpendicular, porque o mineiro segue sempre a beta ou veio do metal.
É por estas escabrosas e escusas tortuosidades, que o índio conduz à
superfície o material escavado.
Depois de muitas desordens, e desenganos, convencionaram os
diretores das duas companhias e outros proprietários, em formar uma
sociedade por ações, para abrir no meio do cerro um poço de 160
palmos de profundidade e 20 de diâmetro, para receber a água das
minas, e esgotá-la dalí com máquina de vapor. Se a filtração destas
não fosse bastante e precisassem rasgos de comunicação, este trabalho
seria à custa de cada proprietário. A sociedade tem a receber por esta
empresa, a décima parte do metal que se extrair. A obra principiou em
1827; e tendo o terreno apresentado mil dificuldades, só agora pôde
concluir-se. Quase não há filtração; as minas estão no mesmo estado
que antes; são necessários os rasgos de comunicação; e estes além
de dispendiosos, hão de levar muito tempo. Entretanto continuará
sem utilização este foco da riqueza peruana. Cusco, e Puno, têm
também minas de prata, porém menos produtivas: por toda a parte
há de ouro; mas só no Departamento de Arequipa se trabalham com
vantagem. Nem todos os índios são próprios para trabalhar as minas,
particularmente as de prata; a cujo duro exercício só resistem os
acostumados a ele desde pequenos. Ainda que tenham minas de
cobre, não se ocupam delas.
143
CADERNOS DO CHDD
O Peru, e particularmente Lima, ademais de efeitos fabris, recebe
três gêneros coloniais que o Brasil possui em abundância. 1o Tabaco,
que só de Havana entram anualmente 6 mil quintais; mais do nosso
em rolo não se venderiam uma arrouba; 2o Cacau, que usam como
alimento; porém o de Guaiaquil é muito mais barato, passa por melhor,
e vem em troco de gêneros que o Brasil não recebe; 3o Café, o
consumo deste não excede a cem sacas por ano. Resulta que um
Tratado de Comércio fundado sobre reciprocidade de admissão de
produtos próprios, parece desnecessário. Contudo ele seria muito útil
aos súditos brasileiros, se acaso convém se estabeleçam aqui. No
Peru obrigam os estrangeiros a pegar em armas; não podem vender
por retalho se não estão naturalizados; fazem-lhe pagar 12 pesos de
seis em seis meses por uma patente de domicílio; já estiveram a
ponto de ser confinados aos portos de mar; e ultimamente havia na
Câmara dos Deputados uma indicação para que, à maneira do que se
pratica em Chile, sejam obrigados a consignar-se a um natural do país
para os seus carregamentos serem admitidos a despacho na alfândega.
Julgo que não seria difícil conseguir um tratado pelo qual o cidadão
brasileiro não fosse obrigado a pegar em armas, nem fazer serviço
algum; não pagar contribuições diretas, seja qual for o pretexto, e
possa estabelecer-se em toda a República, comerciando em grosso ou
por miúdo, e levando ante as alfândegas a gestão de seus negócios.
O único Tratado de Comércio que o Peru tem celebrado, é o que fez
ultimamente com Bolívia, e cuja aprovação está duvidosa. Antes só
existia entre estas duas repúblicas uma convenção informe, feita em
presença de Bolívar, para que continuassem entre si as relações
comerciais que estavam em prática, enquanto não celebrassem tratados
solenes. Há declaração do Congresso feita quando Bolívar era Presidente
Vitalício, considera os colombianos como nacionais; e gozam ainda
hoje as mesmas regalias comerciais. O tratado que devia seguir ao
preliminar de Paz ajustado entre estas duas Nações em 1829, não
teve lugar. Chile tem em diferentes épocas cruzado com esta
Plenipotenciários para fazer tratados de comércio; e jamais concluíram
um. O Governo dos Estados Unidos se havia contentado com uma
intimação de que se julgaria sempre com direito às prerrogativas que
gozar a Nação mais favorecida; porém agora cuidavam de fazer um
tratado de comércio. Para o mesmo fim acaba o Governo francês de
pedir informações ao seu Encarregado de Negócios. A Inglaterra não
reconheceu ainda legalmente a Nação peruana. O Cônsul que mandou
aqui retirou-se logo, deixando o Consulado entregue a dois indivíduos
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com o nome de Pró-Consules, porque não tinham título algum: este
Governo os reconheceu como autorizados, e se correspondeu com
eles até o acontecimento do Bergantim Hidalgo, em maio de 1830,
que declarou desconhecê-los; e cessou o Consulado.
O comércio marítimo se faz no Peru por sete portos, se pode darse este nome a ancoradouros sobre a costa abrigados do vento sul,
que sopra aqui constantemente. Estes são: 1o Callao, que é o melhor;
2o Arva, por onde se fazia antes todo o comércio exterior com Bolívia;
3o Islay, que serve para o de Arequipa, Puno e Cusco; 4o Paita, centro
comercial do Departamento da Libertad; 5o Pisco, só freqüentado por
barcos costeiros que conduzem aguardente ao Callao; 6o Huacho,
habilitado somente para exportar sal mineral, e arroz; 7o Huauchaco, a
duas léguas de Trujillo, que por muito mau, está hoje abandonado.
É deplorável o atual estado de finanças desta República; e promete
um futuro ainda mais triste: a despesa pouco pode diminuir; e não há
esperança de aumentar a receita. Aqui todos os indivíduos pagam
uma contribuição direta: aos indígenas, originários possuidores de terras,
é imposta a pessoal de 9 pesos anuais, mas estão livres de dízimos;
os índios arrendatários pagam estes e a metade daquela. Todos os
demais contribuem com 5 pesos, se não pagam maior quantia por
patente para exercer comércio, artes , indústria; ou 4 por cento sobre
o produto de prédios rústicos e urbanos, e capital em giro. O total de
contribuições diretas sobe a 1.200.000 pesos. As indiretas não chegam
a 2.000.000. A alfândega produz 1.200.000 compreendendo os direitos
de saída da moeda, que paga 5 por cento; o resto provêm de outras
administrações. Soma receita, aproximadamente, 3.200.000 pesos. A
despesa anda por 4.700.000 pesos; gastando o Poder Legislativo
320.000; o Judiciário 330.000; e o Executivo 4.050.000, sendo 1.110.000
com a lista Civil, e 2.940.000 com a Militar. A dívida externa monta a
30 milhões de pesos: o empréstimo de Inglaterra e juros, importa em
12; Chile reclama mais de 11, por dinheiro e gastos de expedições e
esquadras mandadas ao Peru para libertá-lo, Colômbia exige 6, por
indenização das despesas feitas com o Exército que veio completar-lhe
a Independência. A dívida interna está calculada em 12 milhões: os
bilhetes em giro e créditos reconhecidos, excedem a 5; deve-se aos
empregados civis a terça parte do seu soldo desde 1826, que se
mandou suspender enquanto durassem as urgências do Estado; há
imensidade de reclamações pendentes; e só as do Consulado, e Cabildo
sobem a mais de dois milhões. Em tempos dos espanhóis, estas duas
145
CADERNOS DO CHDD
administrações recebiam de particulares capitais a juro para empreender
obras públicas, e tinham rendas destinadas para esse pagamento: o
primeiro cuidava do necessário ao comércio como cais, pontes,
caminhos, e alfândegas, e percebia um tanto por cento sobre os
direitos de importação: o segundo tinha a seu cargo os estabelecimentos
de caridade, polícia, abastecimento, e recreação do público, e cobrava
impostos, de víveres, bebidas, e casas públicas. Todas estas rendas
estão presentemente incorporadas às demais do Estado. Os
Representantes da Nação hesitaram por muitos tempo reconhecer
esta dívida, e só o fizeram ultimamente, e de maneira que por largos
anos não terá efeito. Entretanto pedem esmola os órfãos e famílias
que ali tinham toda a sua fortuna.
O exército do Peru consta de seis mil homens, de todas as armas.
Tem pouca cavalaria, e quase nenhuma artilharia: o terreno é impróprio
para as evoluções daquela; esta carece de oficiais científicos. Antes
havia em Lima um bom parque, e escola prática de artilheiros, dirigida
por espanhóis; a guerra aniquilou este estabelecimento, e não tem
havido depois quem possa restabelecê-lo. Não há em todo o Peru
mais fortalezas do que os castelos do Callao; e esses mesmos têm
muito poucos artilheiros. A recente lei do Congresso para o exército ser
reduzido a três mil homens, de certo não terá efeito: tem contra o
Chefe do Executivo, e uma oficialidade extraordinamente numerosa.
Só Generais conta 34; é incrível a quantidade de Coronéis que há no
Estado-Maior, os que têm título de Comandantes de Corpos de Milícias,
e os que são Ajudantes de Campo. O Presidente pode dar este posto;
e o número aumenta porque é o único que goza de consideração. Há
uma infinidade de Majores e Tenentes-Coronéis: cada General tem um
às suas ordens; servem de Governadores subalternos de todas as
Províncias e Distritos; e até nas Câmaras Legislativas fazem as funções
de porteiros, com título de Ajudantes.
Consta a Marinha de uma corveta, um brigue, uma escuna; a
primeira em mau estado e os outros em bom uso: todos foram navios
mercantes. Há dois oficiais Generais, alguns Capitães-de-Mar-e-Guerra,
outros muitos oficiais, e quase nenhum marinheiro nacional.
Nesta República não há sistema de política; cada Administração
segue diferente marcha, segundo o seu capricho e interesses pessoais:
o exemplo da instabilidade dos primeiros funcionários, e sua expatriação
logo que cessam, é causa destes se empenharem pouco em fomentar
os interesses, crédito, e responsabilidade da nação. Só em dois pontos
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de política vão todos de acordo, e são: aborrecer os estrangeiros, e
desejar reunir a si outra vez as Províncias do Alto Peru, e Guaiaquil.
Conspiraram contra San Martín e seu exército, logo que se julgaram
livres dos espanhóis; fizeram outro tanto com o de Bolívar, depois que
lhes deu a Independência. Desde então puseram em prática as suas
idéias ambiciosas, invadindo Bolívia, declarando guerra a Colômbia, e
pretendendo ultimamente fazê-la àquela República. O Congresso
peruano anulou a Constituição de 1826, que dava a Presidência vitalícia
a Bolívar, e declarou na de 1828, que só pode ser Presidente um
natural do Peru: Lamar, que então ocupava a Presidência, era de
Guaiaquil; e não tanto para conservar-se nela, como para secundar as
vistas dos Representantes da Nação, empreendeu a guerra para adquirir
aquela Província. São bem conhecidas as desastrosas conseqüências
desta campanha. Mas nem estas, nem os posteriores sucessos de
Colômbia lhes têm feito renunciar a semelhante pretensão. Ela é
fundada na necessidade que tem de receber dali toda a madeira para
casas e navios; e na convicção de que dará a Lei nesta Costa quem
possuir este porto, o único de construção e seguro, que há em toda
ela. Havendo pertencido a este Vice-Reinado as Províncias hoje
bolivianas, é no conceito dos peruanos, um direito reuni-las novamente;
e considerar a separação como um roubo. Lamar, e Santa Cruz
pensavam assim: ambos estavam Presidentes; uma só presidência
devia resultar da união das duas Repúblicas, um e outro tinham prestígio;
o segundo é mais ambicioso que o primeiro. Santa Cruz não tendo
meios diretos para destruir o seu rival, buscou os dois chefes que por
sua colocação podiam efetuá-lo: Gamarra, Prefeito de Cusco, era
chamado por Lamar para seu imediato no exército; La Fuente
comandava uma divisão em Arequipa, e tinha ordem de marchar com
ela a unir-se-lhe, passando por Lima. Avistou-se com os dois, e
concertaram o plano que a todos prometia vantagens, e devia fixar
em Cusco a capital das duas Repúblicas. La Fuente tinha que apoderarse do Governo logo que chegasse a Lima com a sua divisão; Gamarra
depois de surpreender e desterrar Lamar ficava comandando o exército;
tocava a Santa Cruz intrigar para que os Departamentos dirigissem ao
mesmo tempo uma representação ao Governo mostrando a
necessidade de reformar a carta; e pedindo a convocação da Grande
Convenção Nacional, marcada para esse fim. Desta dependia o
desenlace do plano de Santa Cruz. Tudo se operou como tinham
ajustado: a revolução feita em Lima por La Fuente diminuía o exército
e o privava de recursos; os revezes que este acabava de sofrer lhe
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CADERNOS DO CHDD
faziam desejar a Paz. Lamar se empenhava em continuar a Guerra.
Gamarra o prendeu e embarcou para Centro-América; pôs-se a frente
do exército; entendeu-se com Bolívar; e conseguiu as Preliminares de
Paz. Quando La Fuente tomou posse do Governo estava próxima a
Sessão periódica do Congresso, e já se achava em Lima a maior parte
dos Deputados: era dever deste nomear no dia de sua instalação,
Presidente e Vice-Presidentes Provisórios, porque faltavam os
Constitucionais; e Gamarra, naturalmente desconfiado ou tendo motivos
para crer que La Fuente trabalhava para ser confirmado na Presidência,
apareceu aqui repentinamente, três dias antes da reunião do Congresso.
Ainda duravam os regojizos pela Paz obtida por ele; o seu manejo no
exército era ignorado, e revolta atribuída aos procedimentos de La
Fuente: resultou ser eleito Presidente Provisório, e La Fuente VicePresidente. Aquele foi então entender a este que deviam separar-se
de Santa Cruz, cuidar de prendê-lo, e a seu tempo levar a efeito o
mesmo plano, em benefício de ambos. Haviam chegado as
representações dos Departamentos inspiradas por Santa Cruz; e o
primeiro ato do Governo legal foi mandar vir presos os Prefeitos e
demais autoridades que as ativaram. Aquele, vendo-se traído pelos dois,
os ameaçou privadamente com a separação dos três Departamentos
Cusco, Puno, e Arequipa. Eles mandaram um Enviado Extraordinário
junto ao Governo de Bolívia a pedir satisfação da influência que teve
naquelas representações subversivas; protestar contra a continuação,
e apoio aos descontentes; e observar os passos do Presidente. O
Governo boliviano respondeu ao Enviado, que a sua queixa era destituída
de fundamento: este apresentou grosseiramente as cartas particulares
de Santa Cruz como prova. Foi mandado sair sob pretexto de promover
a discórdia entre os dois Governos. O do Peru mandou marchar tropas
para aqueles Departamentos; e apesar desta precaução, a revolução
estalou em Cusco; e se faria nos outros, se não fosse sufocada ali tão
prontamente. Gamarra marchou a tomar o comando do exército, que
já se achava na fronteira, e com a intenção de não voltar sem destruir
o seu rival e mesmo conquistar Bolívia. La Fuente ficou ocupando a
presidência, rodeado de um ministério e chefes criaturas de Gamarra;
e ademais desses, sua mulher para dirigi-los. Esta mulher varonil, sendo
contrariada por La Fuente em uma pretensão bizarra, declarou-se sua
inimiga; e tendo desconfianças de que ele estava de acordo com
Santa Cruz, e conspirava contra seu marido, deu parte a este, o qual
bem depressa enviou um Coronel com instruções para se fazer a
revolução que teve lugar contra La Fuente no dia 18 de abril de 1831.
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Este General está em Chile, e tem animado as duas conspirações
descobertas no 1o de janeiro, e 18 de março. O atentado cometido
contra ele, lhe ganhou um partido que não tinha; e ninguém duvida
que dentro pouco ocupará o lugar de Gamarra. Este conhece a sua
situação precária, e de antemão se prepara para em último caso se
escapar a Cusco, levantar o grito de Federação, e pôr-se à frente
daquele Estado. Com estas vistas tem feito ali um depósito de
armamentos e munições. Conta com seus patrícios cusquenhos; mas
é entre eles que Santa Cruz tem maior partido.
A política do Peru com respeito ao Brasil, consiste em conservar
boa harmonia, a fim de não encontrar dificuldades na navegação que
desejam se faça pelo Amazonas, para exportar por ele os frutos das
suas Províncias interiores. Desde que me foram comunicadas as boas
disposições do nosso Governo para que se encete aquela navegação
com o Pará, as dei a conhecer a este Governo; notícia que lhe causou
surpresa como inesperada, e por isso tanto maior contentamento. O
mesmo fiz com as pessoas interessadas, sempre que me falaram
deste assunto; mas tenho observado que só existem bons desejos, e
nada mais. O projeto de estabelecer fortins nos confluentes dos rios
Chinchamayo, Apurimac, e Benio, para conter e domesticar os índios
selvagens, fundar colônias, e navegar o Ucayali, depende de tantas
circunstâncias que não terá lugar por muito tempo. Não há dinheiro
para fazer os fortins e conservar neles uma guarnição capaz de oporse aos índios bravos, que abundam nestas paragens; falta gente para
ir estabelecer-se ali; e a aversão dos peruanos a todos os estrangeiros
não é própria a convidar colonos, ainda quando não estivesse tão
distante da Europa. A navegação do Huallaga se faz sem dificuldades
desde perto de Huanuco até entrar no Amazonas; mas deste lado só
esta Província merece consideração; porque as de Jaen e Mainas, são
quase nominais.
Tive ocasião de saber que a proposta de um Tratado de Limites
feita a nossa Corte pelo encarregado de Negócios desta República,
Cáceres, não foi mais que para cobrir o verdadeiro objeto de sua
missão. Este Governo conhece as dificuldades de um tal Tratado, e
sempre que houve conversação sobre este assunto, não me foi difícil
convencer que devia deixar-se para mais tarde.
A razão porque nunca propus um Tratado de Comércio e
Navegação, como indicam minhas Instruções, está desenvolvida neste
149
CADERNOS DO CHDD
Relatório, e antecedente correspondência; isto é, que o julguei
desnecessário por falta de transações mercantis.
BOLÍVIA
Os habitantes dessa República não excedem a 800.000;
conservam, em geral, a casta indígena, como as de Cusco e Puno; a
espanhola estava ali pouco cruzada, e não havia escravatura. É notável
a antipatia deste povo com os brancos; por vezes se tem amotinado
contra eles e feito mortandade, sem mais distinção que a cor: o último
levantamento foi na Paz em 1811, de que poucos escaparam. Não
obstante estes atos de ferocidade, esta Nação, como a peruana, se
distingue das demais suas irmãs, por um certo grau de civilização e
docilidade. São robustos, pouco viciosos, e só os das grandes cidades
gastam luxo. Tem uma Universidade em Chuquisaca, em que só é
regular o estudo de Direito; as demais ciências e belas artes, não
guardam proporção. O Presidente Sucre havia lançado as bases a
vários estabelecimentos de educação e científicos, para por os bolivianos
ao nível das luzes do século. Santa Cruz tem continuado alguns, mas
parece ocupar-se mais de fazer-lhes gozar bens práticos do que belas
teorias.
A agricultura está bem cuidada para suprir as necessidades
domésticas. Cada Departamento tem diferentes produções, segundo
a natureza do terreno e clima: os da Paz, Potosi, e Oruro, são menos
abundantes, e excessivamente frios; Cochabamba e Santa Cruz de la
Sierra, produtivos e quentes; Chuquisaca, o mais temperado e rico de
frutos. Produz tabaco e coca que vendem aos seus vizinhos peruanos;
café de que usam pouco, e não exportam; cana de açúcar, que
atualmente empregam em fazer aguardente para consumo, em lugar
da de uva que antes recebiam do Peru. Há grande parte da população
que se ocupa nas minas de prata, ouro, estanho, e cobre. A carestia
de azougue tem contrariado o trabalho das primeiras em estes últimos
anos; e ainda assim se cunhou ali mais do que no Peru: das de cobre
se está tirando grande vantagem, por ficarem perto de Cobija.
A indústria, ainda que pouco adiantada, é mais familiar ao Alto
Peru do que ao Baixo: ali se tece mais algodão, e lã para seu uso. A
distância dos portos de mar é causa desta diferença; os efeitos fabris
estrangeiros chegam com dificuldade e mais caros.
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O comércio estrangeiro se faz presentemente por Cobija, e mui
pouco por Arica. Antes recebiam parte pelo Rio da Prata, que apesar
da grande distância, rivalizava com as entradas pelo mar Pacífico.
Córdoba, Tucuman, e Salta, forneciam grande número de mulas a
todo o antigo Peru; e ao mesmo tempo que iam para vender-se,
conduziam gêneros de comércio, vindos de Buenos Aires até Córdoba
em carretas. Depois que a guerra civil assolou aquelas Províncias não
vieram mais mulas nem efeitos; e a falta daquelas tem sido sensível a
um e outro Peru, cujos caminhos são impraticáveis por outros animais
de carga; e estes se reproduzem pouco no país. Bolívia está de tal
forma situada que não pode receber de fora objetos cujo peso e
tamanho exceda a carga de uma mula. Por Cobija tem subir desde o
porto um caracol de três léguas, que mais é escada que caminho;
depois há 40 léguas por em cima da Cordilheira. A passagem desta
não é menos difícil indo por Arica, ou Arequipa, mas sim mais difícil,
indo por Arica, ou Arequipa, mas sim mais breve. Pelo lado de Buenos
Aires há os mesmos inconvenientes, e maior distância. É por esta
razão que Bolívia não pode ter máquinas e outros objetos estrangeiros,
que não possam dividir-se em peças. Para conduzir um piano a
Chuquisaca, vieram vários índios e gastaram quase dois meses para
carregá-lo.
A contribuição denominada de indígena, é a única direta que há na
Bolívia: a ela estão sujeitos os originários possuidores de terras, a
quem os espanhóis a impuseram com o pretexto de evitar questões
de dízimos, mas para obrigá-los a trabalhar. De tal maneira que se
habituaram a ela, que quando o Governo a pretendeu abolir, se resistiram
tenazmente julgando que pagariam mais em dízimos, e lhe imporiam
outras. Cada indivíduo de 16 a 50 anos paga 9 ½ pesos anualmente;
e a contribuição direta anda por 700.000 pesos.
Os direitos de alfândega; o imposto de 8 ½ por cento sobre a
prata extraída das minas; os dízimos; o produto da Casa da Moeda; e
outras alcavalas, monta a 100.000. Total das rendas do Estado
1.700.000 pesos. Elas fazem face à despesa ordinária.
Não reconhece dívida externa. Contudo o Governo do Peru se diz
credor de 400.000 pesos por gastos feitos com o exército que invadiu
Bolívia em 1828, a pretexto de liberá-la da opressão do Chefe e tropa
colombiana. A dívida interna é hoje de três milhões, em vales, e créditos
de giro. Procede de indenizações de perdas durante a revolução, soldos
atrasados, prêmio a militares, e gratificação ao Exército Libertador.
151
CADERNOS DO CHDD
O exército boliviano não chega a três mil homens e segundo o
tratado com o Peru, deverá ser reduzido a dois mil. Não há ali a
desproporcional oficialidade que se observa em outras repúblicas; e os
que cercam Santa Cruz tem crédito de bons militares. Não tem marinha;
nem mesmo um escaler em Cobija.
Desde a criação da república boliviana o seu Governo tem seguido
sempre a mesma política com respeito ao Peru, mas com diversos
fins: Bolívar tratou de debilitar esta república para tranqüilidade de
Colômbia, e poder exercer melhor sua influência sobre estes Governos:
o General Sucre pretendeu que ela diminuísse mais as forças e
recursos, cedendo o porto e a Província de Arica. Esta pretensão
envolvia a necessidade de um porto para Bolívia ter verdadeira
existência política, e procurava equilibrar as duas repúblicas. A política
de Santa Cruz variou ao princípio; mas sendo contrariado em seus
planos, voltou a ela: habilitou a todo o custo o porto de Cobija para
diminuir os recursos do erário peruano, que recebia mais de 400.000
pesos sobre o consumo anual de Bolívia; indispôs os habitantes do
Departamento de Arequipa contra o Governo, por falta de comércio
que se fazia ali; e fez-lhes desejar a união com Bolívia. É por vias
indiretas que ele pretende levar a efeito o projeto de unir o Alto e o
Baixo Peru. Sabe que um e outro povo, tem dele vantajosa opinião
de bem governar, e desinteressado; e para fortificá-la, e desvanecer
quanto se diz de sua ambição, não perde ocasião de mostrar que
nada anseia mais que a tranqüilidade fraterna. A mediação pedida a
Chile, não teve outro fim: e as ameaças de Querogas, lhe deram
mais uma oportunidade para fazer crer que só se ocupa do bem
geral, propondo uma aliança ofensiva e defensiva com Peru, Chile, e
Equador. Ele está persuadido que não há de efetuar-se semelhante
aliança, mas consegue aumentar o seu partido.
Desde que Quito se separou do centro de Colômbia, Santa Cruz
tem estado sempre de acordo com o Presidente Flores, para diminuir
a preponderância do Peru sobre as duas respectivas repúblicas. Quando
a guerra pareceu inevitável, mandou àquele um emissário secreto a
tratar com este a compra da fragata “Colômbia” para com ela destruir
a esquadra peruana. Em princípio de 1831 já Flores havia cedido; e
cuidavam dos meios para a saída de Guaiaquil, quando chegou ali a
notícia da sublevação da corveta Libertad. Os preparativos foram
suspensos; em seguida veio ordem de Santa Cruz para não se efetuar
a saída, como desnecessária. O encarregado desta missão foi um
alemão, Barão de Hein, Coronel ao serviço de Bolívia.
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Quando em 1826 se achava Bolívar no Alto Peru meditando invadir
o Brasil, chamou um tal Souto Mayor, engenheiro espanhol que
pertenceu à última comissão nomeada pelos Governos de Espanha e
Portugal para demarcação de limites, e lhe pediu informes sobre aqueles
trabalhos, e um plano para a marcha do exército. Então se apresentou
um italiano que acabava de chegar do Rio de Janeiro vindo por S. Paulo
e Mato Grosso, e se ofereceu para ensinar o caminho. Ele, e o
engenheiro foram postos à disposição do General Miller, que devia
comandar a vanguarda, e fizeram um itinerário que hoje se conserva
no Arquivo Militar de Bolívia. Em 1830 passou de Salta a Santa Cruz de
la Sierra, um dinamarquês fazendo observações e levantando mapas:
chegando ali tomou amizade com o engenheiro Souto Mayor, soube
da sua antiga comissão, e viu os mapas que ele ainda conservava.
Com estes correu depois toda a fronteira e levantou outros, que de
regresso apresentou ao Governo acompanhados de observações, em
que mostra que os brasileiros têm construído dois fortins na margem
esquerda do Madeira que não lhes pertence; e se tem adiantado em
outros muitos pontos do território de Bolívia.
O Vice-Presidente Velasco, foi de parecer que se mandasse
imediatamente demolir aqueles fortins; porém Santa Cruz não deu
inteiro crédito ao dinamarquês, e ordenou que se perguntasse por isto
ao Governador de Mato Grosso. Aquele não foi recompensado como
esperava, e voltou descontente para Santa Cruz de la Sierra.
Em Bolívia, como no Peru, desejam que se navegue o Amazonas:
além das comunicações que este lhe oferece pelo Ucayali, contam
também com as do Madeira.
CHILE
A república chilena tem quase um milhão de habitantes; dos quais
200.000 pouco mais ou menos, são índios convertidos que vivem
entre o Maule e o Biobio, e alguns em Valdívia, Chiloé, e Cordilheira.
Nenhuma das novas repúblicas têm povoação tão homogênea, robusta,
e laboriosa. A sua situação lhe dá ainda vantagens sobre elas: ocupa
um cordão de terra que não tem mais de 40 léguas de fundo desde o
mar até a Cordilheira, com muitos rios e portos que facilitam as
comunicações. O clima é excelente, e o terreno variado e fértil em
toda a qualidade de frutas, particularmente cereais e vinhas. O sul,
Chiloé e Valdívia, abunda em madeiras de construção; o centro produz
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CADERNOS DO CHDD
os frutos; e ao norte tem ricas minas de ouro, e cobre. As deste
último metal são trabalhadas em Coquimbo, e Copiapo, e delas saí
anualmente quinze mil quintais de cobre para a China e Europa, no
valor de 18 pesos cada um. A exportação de trigo e cevada não baixa
cem mil fanegas, a preço de um e um a meio peso cada uma; e vai
quase tudo para Lima. Estes dois artigos, e couros, são os mais
consideráveis da exportação de Chile, mas tem outros muitos, como
são madeira, carnes charqueadas, frutas secas. Atualmente estão
construindo moinhos na Província da Concepção, com o fim de fornecer
ao Peru e Guaiaquil a farinha que ainda compram aos norte-americanos:
também contam vendê-la ao Brasil.
Em todo Mar Pacífico, só a república chilena gasta gêneros do
Brasil. Recebe atualmente duzentas e quarenta mil arroubas de açúcar,
e vinte e quatro mil de mate, e o consumo aumenta todos os anos.
Os direitos que paga um e outro gênero andam por quatrocentos reis
cada arrouba de 25 libras. O mate se vende regularmente a dois mil
reis a mesma arrouba, e a de açúcar a mil e seiscentos; tudo na
alfândega. O açúcar do Brasil se vende com preferência ao do Peru,
por ser mais barato e vir em sacos acomodados para a condução ao
interior, entretanto que o do Peru vem em pães envoltos em palha, de
irregular tamanho, e por isso difícil a arranjar em cargas e sujeito a
perdas.
Todo comércio estrangeiro se faz em Valparaíso, e dali são os
efeitos conduzidos por terra, ou em barcos costeiros, a todas as partes
da república; este porto tem mau ancoradouro, e é perigoso durante
os meses de inverno, desde maio a agosto, que sobrevêm temporais
do norte e levam os navios à costa: porém é preferido por ser mais
próximo à capital, Talcahuano e Coquimbo, são muito melhores, mas
não são freqüentados se não pelos navios que vão receber cobre ao
primeiro, e raras vezes trigo ao segundo. As embarcações que vêm
ao Pacífico, além de não perder viagem tocando Vaparaíso, têm a
vantagem de saber notícias de toda a Costa, por ser o centro do
comércio dela; e ainda a probabilidade de vender seus carregamentos
a navios especuladores que dali navegam para o México, e CentroAmérica. A esta concorrência deve aquele porto o aumento de
povoação, e uma bonita cidade de 6.000 habitantes que tinha em
1820, conta hoje 20.000.
Por Lei, são os estrangeiros obrigados a consignar-se a um chileno
para serem admitidos a Despacho os seus carregamentos; e para
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remediar este inconveniente ajuntam com um negociante do país para
despachar em seu nome, mediante uma soma por ano.
Em Chile não há a contribuição chamada de Indígenas, mas tem
a de alcavala, imposta em lugar do dízimo, que aboliram: esta obriga
todos os chilenos a pagar a décima parte de suas rendas seja qual for
a origem. Os direitos de alcavala, alfândega, estanco, Casa da Moeda,
e correio, são as rendas do Estado; e produzem anualmente perto de
2.000.000 de pesos. O líquido produto do estanco é destinado ao
pagamento dos interesses e amortização do empréstimo de Inglaterra.
Não tem mais dívida exterior que esta, e passa de 5.000.000 pesos.
A dívida interior é pequena, e não está liquidada. Portales fez a
maior parte da despesa do exército de Prieto durante a última guerra;
e para seu pagamento recebe da alfândega uma consignação mensal.
As inúmeras demissões, e reformas militares e outros empregados,
pertencentes ao partido vencido, diminuíram extraordinariamente as
despesas do erário.
A tropa de linha são 1.200 homens de todas as armas; e está
quase toda na Província de Concepção: a de milícias, que recebe paga
e guarnece a capital e Valparaíso, excede a 2.000 homens.
A marinha consta de um brigue, e uma escuna; ambos excelentes
e bem armados. Tem mais navios mercantes que nenhuma das
repúblicas suas vizinhas: são empregados no comércio com o Peru,
Guaiaquil e Centro-América; e quase toda a equipagem é chilena.
O Chile está atualmente dirigido por Portales chefe do partido
Estanqueiro. Para dar melhor a conhecer este partido e sua influência
em diversas épocas, é necessário descrevê-lo desde sua origem. Os
monopolistas do tempo dos espanhóis quiseram restabelecer o mesmo
sistema no princípio da república, de baixo do título de estanco:
conhecendo em O’Higgins um caráter despótico, julgaram que era o
homem que lhes convinha para apoiá-los; e se uniram a ele; mas
quando manifestaram sua pretensão não só foram desatendidos, mas
ainda afastados dos negócios públicos. Com dinheiro, sua arma sempre
favorita, sublevaram a tropa contra aquele Presidente, que foi obrigado
a sair do país; deixando o lugar a outros que consentiram o estanco.
Quando os grandes proprietários quiseram defendê-lo por ser de sua
classe e abrigar as mesmas idéias aristocráticas, já era tarde; muitos
declararam-se inimigos dos seus perseguidores. Desde então foram
chamados Pelucões por imitarem os Wigs de Inglaterra; e os seus
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CADERNOS DO CHDD
contrários se designaram com o nome de Estanqueiros. Estes deram
a Lei desde 1824 até 1828, quando se levantou um terceiro partido a
que denominaram, Pipiolo, por entrar nele a baixa classe; o qual ganhou
preponderância nas eleições, e nomeou de entre os seus, o Presidente
da República, e os Deputados. Aquele suspendeu logo o estanco: o
Congresso mandou vender os bens do Clero; e iniciou uma Lei para
dividir as terras ao povo. Estanqueiros, Pelucões, e Clero, correram a
dar-se as mãos para sustentar os seus interesses e destruir o novo
partido, como inimigo comum. Os primeiros, para lisonjear aos segundos
e empenhá-los mais, lembraram chamar a O’Higgins para governar:
julgaram de boa fé esta proposição, e nesse sentido trabalharam até
o fim da guerra.
Depois de vencer e expatriar os Constitucionais, persuadiram os
Estanqueiros a Prieto, cabeça do partido Pelucão, que devia ser ele o
Presidente, e não O’Higgins. Prieto tomou esta resolução como prova
de amizade, e uma recompensa dos serviços que tinha feito; e não
conheceu que buscavam nele um homem débil, de curtas luzes, e fácil
a ser dirigido por eles. Portales, principal dos Estanqueiros, caixa do
clube que impulsionou a revolução, diretor de Prieto durante a guerra,
Ministro de Estado na época das eleições, fez recair a presidência em
Prieto, e nele a nomeação de Vice-Presidente. Em seguida convieram
em dar baixa a uma parte do exército; e para precaver a sedição do
resto, confinaram-no na Província da Concepção às ordens de Bulnes,
sobrinho do mesmo Prieto: criar corpos de milícias com soldados pagos,
para guarnecer a capital e Valparaíso; e que nestes corpos fossem
empregados os indivíduos sem ocupação, para entretê-los, e evitar
que se arranjem noutro partido. Estes corpos foram organizados
alistando-se os soldados à porfia; os Estanqueiros entraram de oficiais,
e Portales é o Comandante Geral.
Para diminuir a prevenção que há contra o estanco, foi restabelecido
como administração do Estado, e não em contrato como antes; mas
todos os principais empregados são os mesmos Estanqueiros, inclusive
o Ministro da Fazenda.
Sem entender-se privadamente com os monopolistas, ninguém
vende os objetos proibidos; por isso todos os desta classe são
consignados às casas daqueles, e nenhum recebe mais que a de
Portales. Este, para estar mais ao alcance de fazer ele mesmo o
monopólio, veio para Valparaíso, pretextando enfermidade; mas dali
dirige o Governo. Além da ganância que resulta da venda ostensiva
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feita a administração, há outros interesses na repartição aos estancos.
Porém a maior especulação destes monopolistas foi mandar comprar
em Inglaterra a maior parte dos vales do empréstimo, antes de saberse o restabelecimento de fundos para pagamento dele. Com uma
pequena soma são hoje acredores do Governo por principal e interesses;
e estão seguros de receber estes.
Trezentas a quatrocentas famílias possuem todas as terras: estas
são dividas em pequenas porções, trabalhadas por gente pobre. Um
proprietário faz construir uma casa de pouco custo; convida um casal
a viver nela, marca-lhe terreno, fornece instrumentos de lavoura, e
sementes. O arrendatário se constitui devedor de metade da colheita
que resultar de seu trabalho: o senhorio é obrigado a comprar a outra
metade pelo preço corrente sempre que o inquilino não encontre quem
lhe dê mais. Se a este vem a faltar sementes, gado ou instrumentos
de lavoura; aquele deve fornecer-lhe tudo, para ser descontado das
colheitas seguintes. Tudo quanto lhe deu no princípio não tem
pagamento. Também o arrendatário fica obrigado a concorrer com
seu gado, e família à debulha geral do proprietário, abertura de caminhos
e canais, e polícia do distrito. Desta maneira se liga ao senhorio por
utilidade, e mesmo por afeição, porque em geral, são bem tratados;
torna-se seu feudatário, e está pronto a obedecer-lhe ao primeiro sinal
dado. Daqui nasce a preponderância que em todo o tempo tem tido
os grandes proprietários ou Pelucões; os quais exercem em Chile uma
verdadeira oligarquia; sistema de Governo para que este povo parece
mais disposto.
EQUADOR
A nova República do Equador, é, de todas as desta costa, a mais
pequena, e falta de recursos. A sua povoação é escassamente de
500.000 habitantes, sendo a terça parte índios convertidos ou de pouca
civilização. O Departamento de Guaiaquil tem alguns escravos e gente
de cor; e é também o que tem mais brancos.
Todo o comércio estrangeiro com o Equador, se faz em Guaiaquil;
e é também por onde se exportam os produtos do país. É considerável
o número de chapéus de palha que saem daí para o Peru, Chile, Rio da
Prata, e Brasil: em nenhuma outra parte se fazem, e são de muito
valor. Tem excelente soda, bom cacau, e inferior tabaco, que fornecem
ao Peru e Chile; e vende ao primeiro grande quantidade de madeiras.
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CADERNOS DO CHDD
Antes exportava também cacau para Espanha, mas hoje é raríssima
uma semelhante especulação.
Os direitos da alfândega são a maior renda do Estado: muitos
ramos dela estão arrematados por contrato; e até para a introdução
de farinha, se faz um ultimamente. Não tem dívida exterior: a interna
é quase nula, e talvez limitada aos soldos atrasados.
Este Estado separando-se do Centro, encontrou-se com um
exército e armada que não pode sustentar: o receio, e distensões que
seguiram depois, tornaram necessária a conservação daquela força, e
mesmo de aumentá-la. Além da fragata “Colômbia” de 60 canhões,
tem um brigue, e uma escuna; e todos estão desarmados.
Até o presente não tem aparecido partidos contra o Presidente
Flores: à exceção do Dr. Olmedo, Presidente do Congresso, nenhum
indivíduo reúne opinião pública para formar um partido. Não obstante,
o espírito de provincialismo não esquece que ele nasceu em Caracas, e
que a Constituição dos seus vizinhos exclue da Presidência os que não
houverem nascido na República.
Consta-me que o Governo se queixa de que os brasileiros têm
feito estabelecimentos do outro lado do Amazonas, pouco abaixo do
Loreto, em terreno pertencente aquele Estado.
Lima, 7 de abril de 1832.
Duarte da Ponte Ribeiro
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BIBLIOGRAFIA
Guimarães, Argeu. Diccionário Bio-Bibliográphico Brasileiro de Diplomacia,
Política Externa e Direito Internacional. Rio de Janeiro: Edição do
autor, 1938. p. 394-397.
Santos, Luís Cláudio Villafañe G. O Império e as Repúblicas do Pacífico:
as Relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e
Colômbia – 1822/1889. Curitiba : Editora da UFPR, 2002.
Seckinger, Ron. The Brazilian Monarchy and the South American Republics
1822-1831: Diplomacy and State Building. Lousiana: Lousiana State
University Press, 1984.
Soares de Souza, José Antônio. Um Diplomata do Império (Barão da
Ponte Ribeiro). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952,
Brasiliana v. 273. Especialmente p. 24 a 34.
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Notícias do CHDD
Pesquisas em curso
– Correspondência oficial, expedida e recebida, da missão diplomática
de Francisco Adolpho de Varnhagen no Peru e Chile. Está concluída a
transcrição relativa aos anos de 1863 a 1865, devendo os documentos
relativos a 1866 e 1867 ser tratados no curso de 2003.
– Correspondência trocada entre a Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros e as missões diplomáticas no exterior sobre as tentativas
de formação de uma liga entre os países americanos e convocação do
Congresso Americano, previsto no Tratado do Panamá de 1826.
– Diplomacia e imagem no II Reinado. Está concluída a pesquisa na
“Revista Ilustrada” e na “Semana Ilustrada”; restam outros periódicos
da época.
– Correspondência oficial do Embaixador Luís Martins de Souza Dantas
de Paris e Vichy (1939-1942). A pesquisa está concluída e os documentos
sendo transcritos.
– Documentos de interesse para a história do Brasil nos Arquivos de Goa.
– Apoio à pesquisa no Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro,
de documentos diplomáticos e consulares relativos a marinheiros e
escravos fugidos, no quadro de pesquisa do Prof. Dr. Flávio dos Santos
Gomes, da UFRJ, “Entre fronteiras transatlânticas: marinheiros, tráfico
e movimentos sociais no Brasil escravista, 1790-1870”.
Publicações
– “Revista Americana – Uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual
(1909-1919)”, fruto de uma pesquisa realizada pelo CHDD foi publicada
pelo Senado Federal, em sua coleção Brasil 500 Anos.
CADERNOS DO CHDD
– “O Barão do Rio Branco visto por seus contemporâneos”, FUNAG,
2002.
– Encontra-se pronto para ser editado o Catálogo da Coleção Varnhagen
na Biblioteca do Itamaraty, Rio de Janeiro, fruto da cooperação entre
a FUNAG/CHDD e o Pnud. A Edusp se propõe editá-lo.
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ARTIGOS ANÔNIMOS E P SEUDÔNIMOS DO BARÃO DO RIO BRANCO
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Coordenação editorial:
Revisão:
Editoração eletrônica:
Formato:
Mancha gráfica:
Tipologias:
Alvaro da Costa Franco
Maria do Carmo Strozzi Coutinho
Samuel Tabosa de Castro
17 x 25 cm
12 x 19,8 cm
Tahoma corpos 11, 10 e 8 (texto)
Humanist 77BT corpos 18, 16, 14 , 13 e 8
(títulos, subtítulos e cabeçalho)
Tiragem:
Impressão e acabamento:
1.000 exemplares
Gráfica MRE
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