DOCUMENTO “Agonia da missão – ruína do Estado”: uma carta do padre João Felipe Bettendorff (1674) Karl-Heinz Arenz* A Missão do Maranhão constituiu, entre 1639 e 1759, a circunscrição administrativa da Companhia de Jesus no então Estado do Maranhão e Grão-Pará.1 Fundada pelo Padre Luís Figueira, ela não conseguiu, no entanto, desenvolver-se de imediato por causa das invasões que os holandeses infligiram ao litoral maranhense até 1644. Somente a chegada do Padre Antônio Vieira, conselheiro do reirestaurador D. João IV, fez com que a Missão não só se consolidasse, mas também expandisse de maneira significativa. A presença do famoso inaciano na Amazônia Portuguesa, entre 1653 e 1661, deixou marcas profundas nesta colônia tardia e precária.2 Além de estimular a fundação de mais de cinqüenta aldeamentos ou missões em lugares estratégicos3, ele obteve, em 1655, uma lei que instaurou o monopólio dos jesuítas sobre a população ameríndia do Estado4; abolindo, desta maneira, a legislação indigenista anterior que deixara brechas para uma escravidão camuflada. Sem se conformar com o acesso restrito à mãode-obra indígena, conforme as disposições da nova lei, os colonos se revoltaram abertamente a partir de maio de 1661. Em setembro, Antônio Vieira foi, junto com a maioria dos missionários inacianos, expulso para o Reino. Dois anos depois, em setembro de 1663, o novo monarca, D. Afonso VI, decidiu interditar a volta de Vieira e restringir a atuação jesuítica à esfera pastoral.5 Um grupo reduzido e, em grande parte, composto de missionários jovens e inexperientes, se viu forçado a adaptar a Missão do Maranhão a esta conjuntura pouco favorável ao seu projeto evangelizador. Entre estes jesuítas “sobreviventes” se destacou o jovem sacerdote João Felipe Bettendorff. Nascido em 1625, em Lintgen, no então Ducado de Luxemburgo, este jovem missionário havia entrado, já diplomado em filosofia e direito, na Companhia de Jesus, em 1647.6 * Professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará. Vol. IV, n° 1, 2009, p. 145-164 Revista Estudos Amazônicos 145 Logo após a sua ordenação sacerdotal, em 1659, ele viajou a Portugal para se preparar ao trabalho missionário no Maranhão, onde ele aportou, junto com seu compatriota Gaspar Misch, em 20 de janeiro de 1661. O fato de os dois terem sido atribuídos, ainda pelo Padre Vieira, a missões remotas no vale amazônico, explica que eles não fizeram parte dos jesuítas deportados. No final da insurreição, ainda em 1662, Bettendorff foi nomeado superior da casa de Belém e, um ano mais tarde, de São Luís. Em setembro de 1668, ele tornou-se Superior da Missão, permanecendo por dois turnos trienais neste cargo, até 1674.7 De fato, Bettendorff ocuparia, quase sem interrupção, postos administrativos importantes até o ano de 1693, o que mostra a sua importância ao longo da segunda metade do século XVII. No final de seu segundo triênio à frente da Missão, o padre luxemburguês escreveu, em 25 de março de 1674, uma breve carta que resume, de forma emblemática, as principais mazelas que, na época, afligiam a Missão e o Estado. Propomo-nos aqui a apresentar esta missiva tanto em sua forma transcrita (em latim) quanto traduzida (em português).8 Antes de comentarmos o conteúdo propriamente dito, vale ressaltar que Bettendorff, como qualquer outro superior maior da Companhia de Jesus, manteve um contato epistolar direto com o Superior Geral em Roma que, na época, era o padre Gian Paolo Oliva (1661-1681). De fato, desde 1542, quando Francisco Xavier partiu para as Índias, os missionários jesuítas enviaram regularmente cartas e relatórios minuciosos à cúria geral da ordem em Roma. Todas as informações sobre as novas paragens e povos foram lidas e analisadas em vista do objetivo da evangelização. Quanto mais promissoras as perspectivas e condições para a conversão ao catolicismo, mais escritos circularam. Vivendo como astrônomos na corte imperial chinesa; adotando o estilo de vida dos monges hindus na Índia; sistematizando a estrutura gramatical da língua vietnamita; remando em canoas pelos rios e lagos do Canadá; ensinando cantigas barrocas aos meninos das reduções paraguaias; supervisionando os descimentos e resgates de índios na Amazônia – tudo foi devidamente registrado, enviado, lido, interpretado e arquivado.9 Entre a central romana da ordem e as regiões mais distantes dos diferentes continentes, teceu-se, assim, uma rede densa, feita do papel dos relatórios, cartas, gramáticas, mapas e tratados 146 Revista Estudos Amazônicos (quase) científicos. Sobretudo as cartas ânuas, isto é, os relatórios anuais ou trienais dos superiores, tiveram uma função primordial. Muitas vezes, elas foram adaptadas a uma leitura pública nos refeitórios dos colégios da Companhia de Jesus, visando despertar o interesse missionário dos alunos. Mais tarde, já na segunda metade do século XVIII, as cartas jesuíticas fizeram muito sucesso nos salões dos adeptos das idéias iluministas.10 A presente carta constitui um exemplo de uma missiva breve que objetivou sensibilizar, de forma franca e direta, a cúria central da Companhia de Jesus para a situação difícil da Missão do Maranhão que precisava com urgência de mais apoio. Por isso, Bettendorff aplica duas vezes – no início e no fim da carta – a expressão latina animam agere, que significa “estar em agonia”. A missiva deve ser lida a partir desta pista hermenêutica que o autor estabelece com uma determinação mais acentuada do que em cartas semelhantes de sua autoria da mesma época. Mas, tudo indica que o padre luxemburguês teve também uma motivação pessoal para escrever estas linhas. Ante a sua iminente saída do cargo de superior, na segunda metade do ano de 1674, ele pretendia justificar a situação desoladora na qual se encontrava a Missão, manifestando a sua convicção de ele ter feito o seu dever apesar de tantos reveses. Com a dramaticidade própria do estilo barroco da época, ele pintou, num primeiro momento, um cenário muito sombrio. Um dos assuntos principais diz respeito ao grupo dos missionários. Bettendorff deplora o desinteresse e a desmotivação de muitos padres – fato que se explica, em parte, à “má fama” da Missão11 –; ele lamenta a falta de pessoas aptas e preparadas (sobretudo na área de administração e pastoral) para suprir as precariedades; ele aponta para as doenças e a idade avançada de muitos missionários; finalmente, ele revela, de forma implícita, a disparidade do grupo no que se refere às origens nacionais.12 A estas preocupações internas, ele acrescenta a rivalidade com as outras ordens religiosas que visaram aproveitar a progressiva fragilização da Companhia de Jesus, desde 1663, para substituí-la na administração espiritual dos aldeamentos e no acompanhamento de tropas de descimento ou resgate. De maneira mais ampla, a carta nos fornece um quadro interessante com respeito às intrigas e conchavos que envolviam as diferentes autoridades civis e eclesiásticas. Nas quatro páginas, Revista Estudos Amazônicos 147 Bettendorff menciona nada menos do que nove entidades cujos interesses ora se entrechocaram, ora se conjugaram. São elas: o governador, o capitão-mor, o ouvidor, o juiz, os vereadores (das duas câmaras), o vigário geral, as outras ordens, além da Junta das Missões – uma comissão mista que deliberava sobre todos os assuntos relativos aos índios e que mais refletia as dissensões. Sem entrar em detalhes, o padre luxemburguês queria transmitir ao Superior Geral, a imagem de uma situação confusa, sobretudo em termos jurídico-políticos; haja vista que a “luta” contra uma interpretação arbitrária das leis régias constituía uma das maiores preocupações dos religiosos da Companhia de Jesus. Conforme a lógica das cartas barrocas, Bettendorff relata também fatos que ele considerava como positivos. Neste sentido, ele realça o sucesso pastoral junto aos moradores, sobretudo graças ao aparente efeito da pregação – reforçando assim o lugar-comum de que o verbo era o principal instrumento, para não dizer arma, dos jesuítas. Neste sentido, o missionário luxemburguês faz questão de enaltecer a popularidade dos jesuítas. Esta constatação parece desmentir as tendências historiográficas que sublinham a existência de um constante clima de rivalidade entre inacianos e colonos. Sobretudo, devoções barrocas de caráter moralizante, como a oração das Quarenta Horas (adoração da hóstia sagrada nas igrejas urbanas), e a confraria de leigosassociados sob orientação espiritual dos jesuítas são destacadas como meios que ligavam os moradores mais estreitamente à Companhia. Quanto às confrarias, elas detinham também um potencial econômico considerável, pois muitos membros de irmandade instituíram a Companhia como herdeira de (parte de) seus bens ou fizeram-na participar de seus empreendimentos (geralmente, de engenhos de açúcar), como Bettendorff elucida ao relatar um caso exemplar. Na época, o padre luxemburguês não teve condições de saber que a grave crise econômica que atingiu o mundo colonial, a partir dos anos 1670, estava na origem da maioria dos problemas sentidos por missionários e moradores, sobretudo a escassez de alimentos e a irregularidade dos navios de abastecimento.13 Para ele, a raiz de todos os males encontrava-se ainda nas expulsões de 1661 e 1662. É incontestável que aqueles eventos deixaram um trauma muito grande na colônia – até um clima de incerteza e desconfiança. Hoje sabemos que 148 Revista Estudos Amazônicos as dificuldades daquele momento eram, em grande parte, efeitos da dita crise que afligiu, sobremaneira, o Reino de Portugal e a sua rede comercial que se estendia, naquele século, do Oceano Índico ao Atlântico. Mesmo assim, a presente carta contém uma alusão interessante a um fato sócio-econômico de longa duração. Bettendorff é um dos primeiros a evocar o deslocamento do peso econômico do litoral maranhense para o vale amazônico, ao referir-se à mudança da sede do governador de São Luís para Belém. De modo geral, faltam ainda estudos aprofundados acerca deste período complexo que liga a história amazônica à história global seiscentista. Com efeito, em comparação com a década de 1650, muito pesquisada por causa da presença do padre Vieira, os anos 1660 e 1670 foram pouco trabalhados, também em razão da relativa escassez de fontes. A presente carta constitui somente um modesto exemplo daquilo que ainda aguarda apuração e interpretação historiográficas. [f. 35r] 25/03/1674 Bettendorf Jo. Phil. XX IHS Admodum Rev.de in X.o Pater Px. Ch.i Missionis Maranhonii animam agentis postrema verba R.dæ P.ti V.æ perscribo. Anni sunt duodecim quibus misera hæc Missio, partim operariorum expulsione a malevolis facta, partim copiarum auxiliarium negatione, imo ad eam pertinentium in alias Regiones dispersione, aliisque corporis animique non paucis incommodis affligitur. Per litteras multoties apud R.dam P.m V.m conquæsta hactenus, nescio quo suo infortunio, non est audita cum proventu; nec audiendam puto, nisi R.da P.tas V.a sub obedientia iubeat saltem ad eam pertinentes quantocyus sine replica huc reverti. alios sex vel octo ad Regimen, conciones, cæteraque idoneus submittat. quod nisi fiat impossibile est amplius iis qui hic degimus Missioni ut decet succurrere, tenebimurque summo cum Societatis dedecore cum Fratribus relinquere. Dixi cum Societatis dedecore; quia ex omnium animis, delebitur existimatio zeli animarum Revista Estudos Amazônicos 149 quo nos præ cæteris flagrare existimant. Mirantur omnes, tum Gubernator, tum Præfecturarum Præfecti, tum alii nobiliores, atque adeo ipsi plebei, nullum hactenus nobis submissum esse auxilium. Nos non solum miramur, sed quasi scandalizarmur et erubescimus nescientes quid responsi dari oporteat cum a me Gubernator ac Senatores postulant Missionarios necessarios suppeditari; aut partem Missionis aliis Religiosis tradi. Iam pagos aliquot Mercedariis commisi, qui toti missioni inhiant. religioni enim mihi duxi Parochi mihi munus assumendum in locis ad quos vix semel per annum liceret cuiquam e nostris accedere, morientibus interea aliis sine baptismo, aliis sine sacramentis Confessionis et Communionis. annis ab hinc quinque cum dimidio, totius missionis curam suscepi, eamque pauculis illis qui hic degimus semper integram hactenus conservavi et conservare pergo, sed cum nullum violentum sit perpetuum, iam major Patrum pars laboribus et miseriis fracta, Non animum, sed vires omnino sibi deficere sentit. Quidam in morbos immedicabiles inciderunt. nec tamen desistimus … [f. 35v] … sed duplicantes spiritum, crescente populo Lusitano, honorem, famam et existimationem Societatis, cum admiratione e laude omnium sustinemus. Status Lusitanorum et Indorum multitudine nonnihil auctus est, unum illum perturbat, nimirum varia incolarum circa leges studia, nunquam enim in legibus Indorum Regimen et mancipiorum emptionem attingentibus omnes conveniunt. quod Senatus unus servandum statuit, idipsum alter servandum negat. Quidam omne Regimen Gubernatoribus, alii sibi servandum asserunt. hinc dissidia et status ruinæ, quibus et nos quandoque nolentes fere involvimur, quod in his nos omnino indifferentes habeamus. mensibus ab hinc novem circiter vocatus ad Senatum, me excusavi partim quod licet omnes Religionum Prælati cum Vicario g.li adessent non adessent Præfectus Capitaniæ et Auditor, partim quod res politicas et legem concernentes tractaturos audirem. offensi sunt admodum, e decreto facto statuerunt contra omne fas, nunquam se Patres Societatis missuros as missiones. ut audivi quæ ab illis gesta fuerant, adivi singulos, et pristinam amicitiam redintegravi, et D.nus Gubernator Bethlemiam magni Paria appellens, in publico Senatu decrecum iniustum abrogari, et abrogationis causas magna mei Nominis, ut mihi 150 Revista Estudos Amazônicos ipsemet dixit, laudes apponi curavit. haud diu post, Deo ita volente, omnes mei inimici exilio sunt mulctati et in Regnum ablegati. Adeo tamen paucis diebus interiectis inter nos amicitia redintegrata fuerat, ut quidam, me Judici primario qui postea Gubernatori adversatus est, in legis publicatione, explicatione dico, ut nec ut nimis addictum Gubernatori deferrent. Erat Judex ille unus ex illis qui nostram expulsionem causaverant. et licet esset mihi amicissimus, tamen pœna talionis a Deo est castigatus, nam is qui Patres in Regnum captivos miserat, in compedibus captivus eodem est missus. et quia ob acceleratum discessum de Comeatu ei providere uxor non potuit, licet opibus magnis polleat, ego qui rem suboderatus fueram, eumque monueram ut sibi caveret vino, carne, dulciariis illum adiuvi, et per litteras ad navim missas ac per patrem nostrum illi delatas eum sum consolatus. Dici non postest quantum hoc charitatis opus, antea inimicissimo, monstratum apud plebem, omnesque boni exempli fuerit. quantum illum et uxorem nobis devicerit. nec immerito, quia omnes noverant illum fuisse unicum ex expulionibus nostris primariis, et adhuc paulo antea nobis fuisse adversum … [f. 36r] … nec nisi familiari conversatione a me in benevolentiam nostram attractum. In S.ti Ludovici in Maranhone, anno elapso ob defectum pluviæ per totum fere annum, summa fuit rerum omnium penuria, et siccatis fontium terris multi boves perierunt. atque ob illam etiam causam templum nostrum quod ex lapide novum et amplum molimur ædificari non potuit. P. Rector Franciscus Vellozo nihilomnius materialia omnia congessit, et proxime operarii manum operi admovebunt. P. Petrus Aloysius Gonsalvi ad longinquam missionem Indos adducturus cum Luistanis perrexit. in templo nostro eius urbis solemnitas quadraginta horarum, magno populi concursu ac devotione peracta, et eadem quadragesimam totam transegerunt Patre Francico Vellozo diebus Veneris stationes magno fructu et populi fletu habente. est hic Pater magni Nominis Concionator apud omnes et ait Gubernator noster hoc tempore nullus illi parem etiam inter Concionatores Capellæ Regiæ. Verum quinquagenarius cum sit, et iam otctodecim et amplius annis in Revista Estudos Amazônicos 151 iisdem urbibus concionetur, etsi popluo quotidie magis placeat, tamen munus illud amplius obire detrectat nec nisi a Senatu rogatus illud obit. P. Petrus Pedroza etiam suas Conciones habuit, estque acceptus. Collegium quoad spiritualia et temporalia laus Deo bene habet. Pagi illi subiecti Indis ad mancipia missis Missionarum unicum habuerunt mensibus aliquot, scilicet Patrem Petrum Francisco Genuensem sexagenarium virum rectem et integrum. Caaétensi Residentiæ Novæ, præest P. Gonzalus de Veras. Vir quidam Senatorius eius loci Residentiam illam ex asse hæredem scribit et serviculus apud Patres moratur. eo decedente missioni illi utrumque provisum erit quoad temporalia. Templum Novum ædificandum curavi cum Bethlemidipus temperi accommodatis. Villa illa cum tota sua Præfectura alios non habet nec vult Parochos, sumusque omnibus acceptissimi. Bethelmiæ do Gran Pará ut vocant, Collegium nostrum S.ti Alexandri, est bonis temporalibus auctum, defunctus enim quidam Præfectus major frater noster ob chartam fraternitatis omnia sua nobis reliquit, et tamen lege ut uxor ad vitam exim sit usufructuaria. Illa utpote soror nostra videtur vidua permansura, est enim admodum pia, et Societatis amantissima. Ingenium ut vocant, seu officinam saccario conficiendo destinatam, nobis auxiliantibus exstruxit. et Deo iuvante, annis singulis triginta aut quadraginta caixas saccari pro parte nostra in proventum annuum deducerunt dabuntque annuatim mille quingentos cruzados ut minimum. Omitto alia emomolumenta [sic] quæ inde hausturi sumus. Benefactor Vocatur Joannes de Pereira da Fonsequa [sic], et illius pars nobis relicta æstimata est voto cruzadorum millibus. videat Paternitas V.a quæ suffragia indicenda. notandum hic quantum quodvis multum valendum. [f. 36v] In hac urbe videntur posthac Gubernatores sedem fixuri. Toto hoc anno is qui nunc statui præest hic moratus est. Rogavit me ut feriis sentis sub noctem meditationes populi proponerem. Negare non potui. A. R. Vicarius g.lis sub pœna excommunicationis incolas omnes tempore quadragesimali adesse in urbe iussit. fuit ad Templum nostrum S.ti Xaverii ingens virorum ac mulierum, quæ hic admodum purpure vestiunt et Comitatæ reti deferuntur, concursus. gentem illam nec Pater 152 Revista Estudos Amazônicos Antonius Vieira ad flendum movere poterat, cum in Maranhone omnia fletibus compleant ilis diebus. nihilominus Deo iuvante, etsi nonnisi pictas easque vix ulnam excedentes imagines proponerem, in uberrimas semper lachrymas prorumpere feci fere toto concionis tempore, flebantque tanto animi impetu ut me finem imponente verbis, lachrymis necdum finem posssent imponere. Concionabantur hic duo insignes concionatores. Lusitani, unus Carmelitarum Provincialis, qui etiam nescio an ex alia pia invidia sub finem Concionis passim aliquem monstrabat. sed nullus illorum vix unquam unicam lachrymam expressit, etsi postremo, hic figuras insignes proponeret essetque vir eloquens et subtilis in suis conceptibus. ego esistimo Deum me indignum peccatorem iuvisse quod nec linguam perfecte noverim, nec memoria polleam, nec conceptus, sed spiritum et affectus ad Dei gloriam et animarum bonum sector. Verbo Societas omnibus palmam præripuit sine ulla controversia et est omnium. Hoc anno ob defectum Navigii e regno adventantis, vinum, farina, cera aliaque omnia desunt. omnibus, nobis solis non desunt, et nos de nostro aliis prospicimus. moderatur Societatis providentiam et Regimen, maxime in secreto regendi modo quo nostrorum defectus si qui sint corriguntur, nemine in cognitionem nec defectuum, nec correctionis nisi dimissio sit veniente, cum aliorum Religiosorum omnia lippis sint et tonsoribus nota. Ob ceræ defectum sepulchra vix ullius sunt momenti, industria usus sum et nostrum omnibus retro annis visis sepulchris augustius et splendius exhibui cum omnium stupore. Veniam det R.da P.tas Vestra quod huc adeo candide perscribam. id facio, non ut plausum inanem obtineam, sed ut glorificetur Deus, et cogno[s]cat R.da P.tas V.a quomodo sese habeat inter pauculos hosce derelictos filios Societa[ti]s JESU. Quatuor Residentiæ huic Collegio subiectæ et ad ducentas leucas extensas obeunt missionarii summo labore ac diligentia. Patre Gaspari Misch Nheengaibarum natio ac totus Amazonum fluvius est commissus, facitque solus quod octo aut decem missionarii insignes præstarent. quæso. R.da V. Paternitas missioni animam agenti succurrat antequam magno nostro dedecore exspiret et fratribus Mercedariis, Carmelitisque ac D. Antonii cedat. Graviter dissidentem Gubernatorem cum Carmelitarum Provinciali composui, indicavi enim Provincialem, ut finita concione cum omnis populus intererat, me præsente, ad Revista Estudos Amazônicos 153 Gubernatoris pedes accederet. res fuit magni exempli videri ambos in genua provolatos, e factos eodem momento amicissimos. Bethlemiæ magni Para, 25 Martii 1674 Adm. R.de P.tas V.a Humillimus subditus, ac filius in X.to Joannes Philippus Bettendorff IHS [f. 35r] 25/03/1674 Bettendorff Jo. Phil. IHS14 XX Muito Reverendo Pai em Cristo, A paz de Cristo, Escrevo em pormenor à Vossa Reverenda Paternidade as últimas palavras da Missão do Maranhão que está agonizando. São doze anos que esta pobre Missão está vivendo em desolação, em parte por causa da expulsão dos obreiros executada por pessoas malévolas15, em parte devido à negação dos recursos absolutamente necessários, e mais ainda, em razão da dispersão por outras regiões dos que a ela pertencem16, e por causa de outros não poucos incômodos que afligem o corpo e a alma. O que até agora foi tantas vezes implorado junto à Vossa Reverenda Paternidade por cartas – e não sei qual o infortúnio delas17 – não foi atendido com êxito. E penso que não pode ser atendido, se Vossa Reverenda Paternidade não ordene, com base no voto da obediência, que ao menos aqueles que pertencem à Missão voltem o mais rápido possível para cá sem reclamar. Que nos envie também seis ou oito que sejam aptos em administração, pregações e outras áreas. Caso isso não acontecer, é impossível amparar de maneira mais ampla – como deveria ser feito – àqueles que somos nós e estamonos gastando pela Missão; e assim nós asseguraremos a sobrevivência, com grande vergonha para a Companhia de Jesus, por termos sido deixados com os irmãos.18 Eu disse “com vergonha para a Companhia”, porque será apagada das mentes de todos a estima pelo zelo das almas ao qual – assim eles pensam – estamos inteiramente dedicados, antes de qualquer outra coisa. Todos se admiram, tanto o governador, quanto o capitão-mor ou os outros notáveis, e até o 154 Revista Estudos Amazônicos próprio povo, que até agora nenhum auxílio nos foi enviado. Nós não ficamos somente admirados, mas quase escandalizados e envergonhados, não sabendo que resposta deve ser dada quando o governador e os vereadores pedem que haja os missionários necessários à disposição ou que parte da Missão seja entregue a outros religiosos. Já confiei alguns aldeamentos aos mercedários que cobiçam toda a Missão.19 Na verdade, eu me dirigi à ordem, para que me seja atribuída a competência de um pároco concernente aos lugares aos quais um dos nossos tenha a permissão de ir aproximadamente uma vez por ano no intuito de assistir àqueles que, neste intervalo, estão agonizando, a outros que são sem batismo e a outros que são sem os sacramentos da confissão e comunhão.20 Há agora cinco anos e meio, eu assumi a administração de toda a Missão, e guardei-a e continuo a guardá-la sempre inteira com os pouquíssimos que aqui estamos labutando até agora.21 Mas como nada que é forte é também perpétuo, a maior parte dos padres já está abatida por causa dos trabalhos penosos e da extrema pobreza. Eles sentem que não lhes falta o ânimo, mas somente as forças. Alguns contraíram doenças irremediáveis. E, mesmo assim, não desistimos, … [f. 35v] …, mas dobrando o espírito, mantemos – junto à crescente população portuguesa – a honra, a fama e a estima da Companhia, com a admiração e o elogio de todos. O Estado não se desenvolveu nada, apesar do grande número de portugueses e índios. Um determinado assunto cria confusão; trata-se evidentemente dos diferentes posicionamentos dos moradores acerca das leis. Na verdade, nunca todos estão de acordo no que diz respeito às leis concernentes à administração dos índios e ao resgate de escravos. O que uma câmara decide que tem que ser observado, a outra – apesar de ser a mesma matéria – nega que tem que ser observado.22 Certos moradores reivindicam que toda a administração deveria ficar com os governadores, já outros com eles mesmos. Daqui nascem as divisões e a ruína do Estado, nas quais estamos sendo cada vez envolvidos, e geralmente contra a nossa vontade, porque nestes assuntos nós nos mantemos estritamente neutros. Faz agora mais ou menos nove meses que fui chamado à câmara23; desculpei-me, em parte, porque todos os Revista Estudos Amazônicos 155 superiores com o vigário geral deveriam estar presentes – mas o capitão-mor e o ouvidor não estavam presentes –, em parte, porque ouvi que eles tratariam de assuntos políticos concernentes à lei. Eles se sentiram muito ofendidos e baixaram um decreto, feito contra o espírito da lei, que nunca se enviaria padres da Companhia às missões. Quando ouvi o que foi feito por eles, fui ter com cada um deles e restabeleci a relação amigável anterior. E tendo o Senhor Governador partido para Belém do Grão-Pará, eu suprimi em sessão pública da câmara o decreto injusto, e ele, o governador, mandou acrescentar as razões pela ab-rogação com um grande elogio referente ao meu nome, como ele mesmo me falou. Não muito tempo depois, Deus assim o quis, todos os meus inimigos foram condenados a multa e desterrados para o Reino. Contudo, até que a amizade foi restabelecida entre nós dentro de poucos dias, aconteceu que alguns, naquele intervalo, me denunciaram ao juiz principal – que mais tarde simpatizou com o governador – no que diz respeito à publicação, digo interpretação, da lei, de tal maneira que nada de significativo pudesse ser atribuído ao governador.24 O dito juiz era um daqueles que haviam defendido a causa da nossa expulsão. E ele costumava ser muito amigável para comigo, contudo ele foi castigado por Deus com a pena do talião25, pois aquele que mandara os padres presos ao Reino, foi mandado como prisioneiro, em peias e correntes, para o mesmo lugar. E por causa da saída apressada, a esposa não podia provê-lo de víveres, e grandes esforços foram necessários para consegui-lo. Eu, que estava seguindo de perto o caso, o advertira que cuidasse de si e o ajudei com vinho, carne e coisas doces; ainda o consolei por meio de uma carta mandada ao navio e entregue a ele por um padre nosso. Não se pode dizer o quanto esta obra de caridade em relação a alguém que era antes um grande inimigo, serviu, uma vez conhecida, de bom exemplo junto ao povo e a todos; o quanto ela nos submeteu, tanto ele quanto a esposa. E não foi imerecido, porque todos sabiam que ele foi o único que, desde as nossas primeiras expulsões, era nosso adversário, até há muito pouco tempo, … [f. 36r] …, a não ser se ele não tivesse sido levado por mim, mediante uma conversa familiar, à benevolência em relação a nós. 156 Revista Estudos Amazônicos Em São Luís no Maranhão houve no ano passado uma extrema penúria de todas as coisas em razão da falta de chuva. Como as terras das nascentes secaram, muito gado pereceu. Também por causa disso, não pôde ser acabada a edificação do nosso templo que estamos construindo, novo e amplo, de pedra. Mesmo assim, o Padre Reitor Francisco Velloso ajuntou todos os materiais e, dentro de pouco tempo, os operários principais empregarão a mão-de-obra. O Padre Pedro Luís Gonsalvi [Consalvi] partiu com os portugueses para uma missão distante para fazer o descimento de índios.26 No nosso templo da dita cidade foi realizada a solenidade das Quarenta Horas27 com grande afluxo e devoção do povo; sendo que estas devoções se mantiveram, por causa da referida prática delas, durante toda a quaresma. O Padre Francisco Velloso teve às sextas-feiras as estações [da Via Sacra]28 com muito proveito e lágrimas do povo. Este padre é um pregador de grande renome junto a todos e nosso governador diz que neste momento ninguém lhe é igual, até entre os pregadores da Capela Régia. Ainda que ele seja um quinquagenário e já esteja pregando há dezoito e mais anos nas mesmas cidades, ele agrada, mesmo assim, cada dia mais ao povo.29 Contudo, ele se esquiva de assumir esta tarefa e não a aceita, se não for rogado pela câmara. O Padre Pedro Pedroza fez também as suas pregações, e ele é bem aceito. Por enquanto, o colégio, graças a Deus, gerencia bem os assuntos espirituais e temporais.30 Os aldeamentos que lhe são sujeitos e que recebem os índios que lhes são mandados como escravos31, tiveram, há alguns meses, um único missionário; trata-se evidentemente do Padre Pedro Franciso [Cassali], genovês, sexagenário, um homem correto e íntegro. O Padre Gonçalo de Veras está à frente da residência nova de Caeté. Um certo homem, que é vereador, escreve que aquela residência é herdeira única de seu terreno; e um simples escravo dele mora com os padres. Quando ele falecer, os dois objetos, cujas condições foram previamente definidas, serão da missão, tornando-se bens temporais. Eu cuidei da construção do novo templo com pessoas vindas de Belém, que se prontificaram no momento certo. Aquela localidade com toda a capitania não tem e nem quer outros párocos; nós somos muito bem aceitos por todos. O nosso Colégio de Santo Alexandre em Belém do Grão-Pará, como se diz, cresceu em bens temporais. De fato, faleceu um certo capitão-mor, irmão nosso, e nos deixou todas as suas posses Revista Estudos Amazônicos 157 com base no estatuto da fraternidade.32 Contudo, por lei tem que ser assim que a esposa possa usufruir delas daqui para frente para viver. Ela é nossa irmã e tudo indica que ela vai permanecer viúva, pois ela é muito piedosa e realmente uma grande amiga da Companhia. Ela construiu, com nosso auxílio, um engenho, como se chama a oficina destinada à produção de açúcar. E, com a ajuda de Deus, todos os anos, trinta ou quarenta caixas de açúcar, no que diz respeito à nossa participação [na exploração do engenho], poderão ser tiradas num ano de bom proveito; e elas darão anualmente, no mínimo, mil e quinhentos cruzados. Omito aqui outras vantagens das quais nos teremos que dar ainda conta no futuro. Há um benfeitor chamado João de Pereira da Fonseca; e a parte dele que nos foi deixada é estimada, conforme ao que foi prometido, em mil cruzados. Parece que é Vossa Paternidade que tem que avaliar as propostas. Aqui tem que ser sublinhado que qualquer uma [das duas] está valendo muito.33 [f. 36v] Tudo indica que os governadores irão doravante fixar residência nesta cidade.34 Aquele que está atualmente à frente do Estado morou durante todo o ano aqui. Ele me pediu para que propusesse ao povo meditações nos dias terríveis35 à tarde. Eu não pude negar. O Muito Reverendo Vigário Geral ordenou a todos os moradores, sob pena de excomunhão, que ficassem na cidade durante o tempo da quaresma. Houve uma grande afluência de homens e mulheres – sendo que estas se vestem aqui sobretudo de vermelho e, acompanhadas, são transportadas em redes – à nossa Igreja de São Xavier. E nem o Padre Antônio Vieira poderia ter comovido esta gente ao ponto de chorar, da maneira como, naqueles dias, tudo no Maranhão encheu-se de prantos e choros. Não obstante, com a ajuda de Deus, ainda que eu lhes tivesse apresentado somente aquelas imagens pintadas que malmente ultrapassam a medida de uma braça, fiz com que eles prorrompessem constantemente em lágrimas muito copiosas durante todo o tempo da pregação; e choravam com tanta impetuosidade da alma que, quando eu impus um fim às palavras, eles ainda não podiam impor um fim às lágrimas. Pregavam aqui dois famosos pregadores. Portugueses, um é Superior Provincial dos carmelitas, que até – não sei 158 Revista Estudos Amazônicos se foi por causa de uma inveja legítima – denunciou, no fim da pregação, alguém de maneira muito vaga.36 Mas ninguém dos presentes derramou, quase em momento algum, uma única lágrima, embora ele apresentasse, bem no final, as grandes figuras e fosse um homem eloqüente e sutil em seus conceitos. Eu penso que Deus ajudou a mim, indigno pecador, porque eu não conhecia muito bem a língua, nem tive uma memória boa, nem estava com os pensamentos ordenados, mas segui o espírito e a intuição para a glória de Deus e o bem das almas.37 Em resumo, foi a Companhia que levou, na opinião de todos, a palma [da glória] sem contestação alguma; e ela é de todos. Este ano faltam a todos os moradores vinho, farinha, cera e todas as outras coisas, devido ao não comparecimento do navio de proveniência do Reino; somente a nós não faltam, e nós estamos provendo os outros daquilo que é nosso. Exercem-se a providência e a administração da Companhia, antes de tudo, na discrição do modo de governar no qual as falhas dos nossos, se acontecerem, são corrigidas. Ninguém chega ao conhecimento nem das falhas, nem da correção, se não tem disciplina; enquanto isso, tudo que é dos outros religiosos, torna-se conhecido por meio de cegos e barbeiros. Por causa da falta de cera, as sepulturas de quase ninguém recebem atenção.38 Fiz um esforço e mostrei, pela estupefação de todos, que aquilo que é nosso entre todos os sepulcros que foram vistos nos anos passados, é mais augusto e esplêndido. Vossa Reverenda Paternidade olhe com complacência àquilo que aqui escrevi até agora de boa-fé. Eu o faço não para que eu obtenha um aplauso vão, mas para que Deus seja glorificado, e para que Vossa Paternidade conheça o que está acontecendo entre estes poucos e abandonados filhos da Companhia de Jesus. Quatro residências dependem deste colégio e os missionários percorrem a extensão de duzentas léguas com o máximo de trabalho e diligência. Ao Padre Gaspar Misch é confiada toda a nação dos Nheengaíbas e todo o rio das Amazonas. Ele faz sozinho o que caberia a oito ou dez missionários eficientes realizar. Eu suplico: Vossa Reverenda Paternidade socorra esta missão que está entrando em agonia antes que, para a nossa grande vergonha, ela expire e seja cedida aos frades mercedários, carmelitas ou aos de Santo Antônio.39 Eu fiz o governador, que está abertamente de desacordo conosco, aliar-se com o provincial dos carmelitas. Na verdade, eu avisei o Provincial logo que ele terminou a pregação, quando todo o povo ainda estava; e na minha Revista Estudos Amazônicos 159 presença, ele lançou-se aos pés do governador. A coisa foi de grande exemplo e, ao que parece, ambos, ajoelhados num gesto rápido [um diante do outro], tornaram-se, a partir do mesmo instante, grandes amigos.40 Em Belém do Grão-Pará, aos 25 de março de 1674. De Vossa Muito Reverenda Paternidade o servo muito humilde e filho em Cristo João Felipe Bettendorff IHS 160 Revista Estudos Amazônicos NOTAS Em 1727, a Missão do Maranhão foi elevada à categoria de Vice-Província. Ver LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. T. 4. Rio de Janeiro/Lisboa: Livraria Portugalia/Instituto Nacional do Livro, 1943, pp. 219-110. 2 A colonização lusa iniciou somente em 1616 e, ao longo do século XVII, não se estendia muito além de alguns pontos estratégicos. Em termos econômicos, um modesto extrativismo florestal, que dependia do saber e fazer dos índios, garantiu uma modesta rentabilidade. 3 Dauril Alden fala de mais de cinqüenta missões fundadas por Vieira. Ver ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: the Society of Jesus in Portugal, its Empire, and Beyond (1540-1750). Stanford: Stanford University Press, 1996, p. 113. 4 “Lei sobre os Índios do Maranhão”, 09/04/1655. Anais da Biblioteca Nacional vol. 66 (1948), pp. 25-28. 5 Cf. ARENZ, Karl Heinz. De l’Alzette à l’Amazone: Jean-Philippe Bettendorff et les jésuites en Amazonie portugaise (1661-1693). Luxemburgo: Institut Grand-Ducal, 2008, pp. 109-148 (Publications de la Section historique, 120). 6 Cf. informações fornecidas nas disposições testamentárias de Bettendorff, Luxemburgo/Tournai/Dinant, 1647-1651. Archives nationales du Grand-Duché de Luxembourg, cx. A-XXXVIII-6, ff. 1r-10r. 7 Cf. BETTENDORFF, João Felipe. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves/Secretaria de Estado da Cultura, 1990 [1698]. pp. 248-253 (Coleção Lendo o Pará, 5). 8 Carta de Bettendorff a Oliva, 25/03/1674. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), cód. Bras 26, ff. 35r-36v. 9 Com respeito às missões jesuíticas no além-mar nos séculos XVI a XVIII, ver LÉCRIVAIN, Philippe. Les missions jésuites: pour une plus grande gloire de Dieu. Paris: Gallimard, 2001, pp. 23-127 (Découvertes Gallimard – Histoire, 110). 10 Na França foi publicada, entre 1702 e 1776, uma coleção de 34 volumes sob o nome de Lettres édifiantes et curieuses que fez circular as cartas mais interessantes das missões jesuíticas da Pérsia, China, Índia e Américas (Canadá e Paraguai). 11 Numa carta circular aos superiores da Europa, Bettendorff comenta os principais estereótipos referentes à Missão do Maranhão: poucos missionários com perfil intelectual, muitos religiosos leigos (jesuítas que não eram padres e, 1 Revista Estudos Amazônicos 161 por isso, inaptos para a tarefa da evangelização direta), muitos perigos para o “corpo” (epidemias, naufrágios) e a “alma” (dificuldades de viver a castidade), catequizandos “inconstantes e rudes” (os índios), pouca possibilidade de morrer mártir. Cf. “Carta circular de Bettendorff aos superiores da Europa”, 05/02/1671. ARSI, cód. Bras 9, ff. 279r-283v. 12 Nunca houve tantos estrangeiros entre os missionários inacianos da Amazônia como nos anos 1670. A porcentagem chega a 30%. Em 1671, havia três italianos, dois luxemburgueses, um flamengo e um francês. Cf. “Catálogo da Missão de Bettendorff”, 1671. ARSI, cód. Bras 27, f. 2r; “Catálogo da Missão de Consalvi”, 02/10/1679. ARSI, cód. Bras 27, ff. 3r-4v. Ver também LEITE, Serafim. “Expedições missionárias para o Maranhão no século XVII”. Archivum Historicum Societatis Iesu, vol. 10, nº 2 (1941), pp. 298-300. 13 A economia portuguesa sentiu fortemente os impactos da crise econômica em razão de suas finanças arruinadas (querelas com a Espanha até 1668), da perda sucessiva de entrepostos na Ásia e da concorrência inglesa, francesa e holandesa (produção de açúcar nas ilhas caribenhas). Ver ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “L‟économie politique des découvertes maritimes”. In: NOVAES, Adauto (dir.). L’autre rive de l’Occident. Paris: Métailié, 2006, pp. 6776; MAURO, Frédéric. Des produits et des hommes: essais historiques latinoaméricains (XVIe-XXe siècles). Paris: École Pratique des Hautes Études, 1972, p. 80. 14 O monograma dos jesuítas IHS – derivado dos iniciais gregos do nome de Jesus, ΊΗΣ – consta no cabeçalho de todas as cartas oficiais da Companhia de Jesus. 15 O autor se refere à expulsão dos jesuítas do Maranhão, em setembro de 1661, e do Grão-Pará, em março de 1662. 16 A má fama da Missão do Maranhão entre os próprios jesuítas (muitos perigos “para o corpo e a alma”, inconstância dos povos indígenas, querelas com colonos e autoridades, dissensões entre os missionários) fez com que muitos que partiram para outras Províncias, sobretudo Portugal e Brasil, não quisessem voltar tão cedo e que muitos, destinados a ela, adiassem a sua partida. A preferência ia claramente para as chamadas Missões do Oriente: Índia, China e, até 1639, Japão. 17 Por causa da precariedade dos transportes transoceânicos nos séculos XVII e XVIII (naufrágio, assaltos de piratas ou corsários), muitas cartas se perderam. Por isso, os jesuítas costumavam mandar, geralmente em naus diferentes, dois ou três exemplares da mesma missiva, sobretudo quando se tratava de um documento importante. 18 Os irmãos, ou coadjutores temporais, são religiosos que não receberam a ordenação sacerdotal. Geralmente bons profissionais, eles eram responsáveis 162 Revista Estudos Amazônicos pela parte “material” (oficinas, construções, administração, ensino básico), ficando a parte “espiritual” (sacramentos, catequese) aos cuidados dos padres. A porcentagem de irmãos na Missão do Maranhão, no século XVII, estava acima da média. Este fato a desacreditou nos olhos de muitos jesuítas, pois ela não parecia priorizar a evangelização, razão de ser da Companhia de Jesus. 19 Um exemplo é o mercedário Frei Teodósio da Veiga que viveu, nos anos 1680, na missão do Urubu sob jurisdição jesuítica. 20 Os chamados missionários itinerantes reduziram a sua atuação pastoral aos sacramentos considerados essenciais: batismo, confissão, eucaristia e extremaunção (hoje unção dos enfermos). 21 Bettendorff foi nomeado Superior da Missão no dia 16 de setembro de 1668, e reconfirmado no cargo no dia 9 de junho de 1671. No momento em que ele escreveu a presente carta, o fim de seu segundo triênio estava iminente. 22 Trata-se das câmaras de São Luís e de Belém. 23 Tudo indica que a convocação visava reunir a Junta das Missões, órgão deliberativo para assuntos relativos aos índios. 24 O governador naquela época era Pedro César de Meneses (abril de 1671 a fevereiro de 1678). Bettendorff parece fazer questão de não citar o nome dele. De fato, a relação do administrador da colônia com a Companhia de Jesus foi caracterizada por uma grande ambigüidade. 25 Talião é um termo comum na jurisdição antiga, significando a lógica da reciprocidade ou da retribuição por igual. 26 O “descimento” foi uma campanha de caráter religioso-militar para convencer os índios a deixarem suas terras (geralmente, nos cursos médio e superior dos rios) e, em seguida, estabelecerem-se em um aldeamento. Outras formas para conseguir índios foram o “resgate”, isto é, a aquisição de índios escravizados ou presos por outros índios, e a “guerra justa”, campanha militar defensiva – ao menos, oficialmente – em represália a um ataque ou desagravo supostamente cometido por um grupo indígena. Sobretudo os dois últimos métodos sofreram muitos abusos pela parte das autoridades. 27 Trata-se de uma devoção popular tipicamente barroca. Durante quarenta horas, a hóstia sagrada era exposta e adorada mediante orações e cantos, muitas vezes em tempos de penúria (epidemia, fome) ou de penitência (durante quaresma e advento ou na véspera de grandes solenidades). 28 Outra devoção barroca de caráter lúdico, a Via Sacra visou retraçar, em quatorze cenas, a última caminhada de Cristo do momento de sua condenação por Póncio Pilatos até o seu sepultamento. 29 A pregação era um dos principais métodos da pastoral jesuítica. Por isso, durante o processo de formação, a retórica e a homilética (ciência que aprofunda a arte de pregar) tiveram um peso extraordinário. Revista Estudos Amazônicos 163 Os colégios eram lugares de decisões que afetaram não somente a vida religiosa, mas também a vida social, política e econômica da região como um todo. Bettendorff realça aqui expressamente a importância dos colégios, haja vista que as casas jesuíticas em Belém e São Luís somente foram elevadas a esta categoria três anos antes, em 1671. 31 Os aldeamentos nas cercanias das cidades eram, na realidade, grandes fazendas para prover o sustento da comunidade urbana com seus numerosos religiosos e alunos. A mão-de-obra destes lugares compunha-se, geralmente, de índios legitimamente escravizados que não eram sujeitos à repartição anual. 32 Por meio das irmandades leigas acompanhadas por eles, os jesuítas conseguiram ligar muitas pessoas influentes a si, haja vista que os associados tinham que se confessar com um padre da Companhia e deixar seus bens – ou parte – em herança à respectiva comunidade local inaciana. 33 Este parágrafo foi visivelmente acrescentado posteriormente, além de se encontrar bem ao pé da página. 34 Em correspondência ao deslocamento do centro econômico do Estado do Maranhão e Grão-Pará do litoral atlântico ao vale amazônico, também a capital foi progressivamente transferida de São Luís a Belém na década de 1670. 35 Trata-se dos dias da Semana Santa. 36 Percebe-se entrelinhas a tensão que existia entre os jesuítas e as demais ordens; neste caso, os carmelitas. 37 O final da frase contém uma alusão ao lema da Companhia de Jesus em sua forma completa: Ad maiorem Dei gloriam et bonum animarum, isto é, “Para maior glória de Deus e o bem das almas”. 38 A iluminação das sepulturas, sobretudo às segundas-feiras (na devoção barroca, o dia das almas do purgatório), foi um costume comum, também nos aldeamentos. A falta de cera fez com que as visitas aos cemitérios diminuíssem. 39 Os Frades de Santo Antônio ou antoninos são os franciscanos pertencentes à Província de Santo Antônio em Portugal. Eles se estabeleceram no Estado do Maranhão e Grão-Pará no ano de 1617, bem antes dos jesuítas. Em português, eles são mais conhecidos com o nome de “capuchos”. 40 Devido à falta de espaço na página, Bettendorff resume sobremaneira o último assunto que trata da postura ambígua do governador Pedro César de Meneses em relação aos jesuítas. 30 164 Revista Estudos Amazônicos