A estrutura do mito e o mito de uma clínica: considerações sobre as hiâncias e os
efeitos de um diálogo entre a antropologia estrutural e a psicanálise.
João Felipe Domiciano
Considerada “um dos tópicos mais intratáveis, fascinantes e persistentes”1 da obra do
antropólogo Claude de Lévi-Strauss, a fórmula canônica pela qual este tratou da estrutura mítica foi
também a noção através da qual tomou formas mais concretas o intercâmbio teórico entre a
antropologia estrutural e a psicanálise. Lacan, em O mito individual do neurótico - seu escrito de
maior inspiração lévi-straussiana e um dos momentos originários da assimilação do ideário
estrutural - realiza a aplicação de tal fórmula ao relato do caso do Homem dos ratos. Trataremos
aqui de mostrar a especificidade e as condições de possibilidade de tal importação conceitual,
destacando tanto sua funcionalidade quanto as modificações derivadas da peculiar posição
lacaniana na sustentação da irredutibilidade da categoria de sujeito. Comecemos por observar de
que se trata a fórmula desde sua concepção, no início dos anos 50, por Lévi-Strauss.
No engendro de tal formulação a noção de transformação tem um papel central.
Acreditamos que sua emergência não teria sido possível se o conceito de estrutura não tivesse
entrado em consonância com a prevalência retórica desta noção. Decorre daí uma mudança no
estatuto de formalização da estrutura, bem notada por Viveiros de Castro, que seria então de que
natureza? Entre os artigos metodológicos de 45 e 52, encontramos definições díspares de estrutura.
Se no primeiro, em harmonia com as EEP, de 1949, ela aparece como um modelo morfológico,
estático que trataria, através da redução dos fenômenos a termos presumivelmente universais, de
explicitar a sistematicidade de elementos aparentemente ininteligíveis; no segundo artigo, a noção
de transformação encontra-se como condição sine qua non para a determinação de uma estrutura,
aqui entendida como “ordem de determinação subjacente” à sistematicidade de uma série fatos
heteróclitos. Este movimento encontrado na obra de Lévi-Strauss é também tributário da
1
ALMEIDA, M. (2005) A fórmula canônica do mito, In: Lévi-Strauss: Leituras brasileiras
formalização do “excesso do simbólico em relação ao mundo a simbolizar”, tal como vemos pela
sua revisão da noção maussiana de mana. Ao postulá-la como marca desta hiância entre o
significante e significado, com o primeiro prevalecendo e determinando o segundo, Lévi-Strauss
encontrará em seu horizonte a possibilidade de construção de um meta-modelo que abrangeria à
totalidade potencial da lógica combinatória significante, transcendendo assim, eis um ponto
importante, a mais de uma categoria de fenômenos em seu escopo.
Um modelo em harmonia com tais pretensões é encontrado na fórmula canônica do mito.
Antes de tratarmos de tal construto, que a despeito de seu longo eclipse na obra do antropólogo
“nunca deixou de guiá-lo”, notemos alguns deslocamentos constitutivos relacionados ao
entendimento comum do conceito instrumental de mito. Resumidamente, este será dissociado de
sua narrativa e terá como unidade constitutiva mínima, como mitema, a relação diferencial entre
conjuntos de elementos provenientes de diferentes narrativas que se relacionam entre si. Deste
modo, a construção lógica de um mito pressupõe uma dupla permutação de funções: a um conjunto
de elementos a constituído pela função x associado por oposição a um conjunto ‘b’ função de y
equivalem-se outros dois conjuntos que trazem além das ‘trocas de parceiros’(a,b,x,y), uma situação
definida, cito Lévi-Strauss, por uma “inversão de termos e relações, sob duas condições: 1º que um
dos termos seja substituído pelo seu contrário [a  a-1]. 2º que uma inversão correlativa se produza
entre o valor de função e o valor de termo de dois elementos [Fy (a-1)  Fa-1 (y)]”2. Central para o
valor da fórmula, a dupla torção [double twist] existente no último membro, extraído das
considerações sobre o mana, permite tanto escapar do simples analogismo quanto formalizar o
passo transcendental que permitiria ao mito, para além do dados positivos e auto-contidos de uma
dada versão, a integração de elementos geográfica e historicamente distantes, de elementos de
códigos distintos; não sem que subsista, palavras de Lacan, “um resíduo irredutível [...] [que]
2
LÉVI-STRAUSS (1955), p. 246 ; Fórmula completa:
STRAUSS, 1955, Idem)
(LÉVI-
marcaria a impossibilidade de resolução total da problemática do mito” 3. A fórmula, portanto, ao
invés de nos trazer regras positivas para a formação de um mito, mantém em sua notação um
mínimo necessário de condicionantes para o engendro de uma transformação própria das variantes
das narrativas míticas.
Um dos primeiros textos lacanianos a extrair importantes elementos do pensamento
estrutural para a práxis psicanalítica, O mito individual do neurótico tem como um de seus focos
marcar as condições de possibilidade, dentro da ratio psicanalítica, da assimilação de uma ordem
globalizante de determinação cultural, portanto, pré-subjetiva, tal como postulada pela antropologia
estrutural à época. No entanto, Lacan, desde os primeiros instantes de seu escrito, assinala sua
recusa à dissolução da categoria de sujeito nos interstícios da estrutura. Frente ao risco da
eliminação à menção do sujeito, prenhe de conseqüências para a reflexão psicanalítica, Lacan, na
importação da fórmula canônica, não deixa de realizar uma densa e obscura consideração acerca do
valor da referência à dialética intersubjetiva hegeliana. Esta traz a possibilidade de se pensar um
sujeito com um estatuto de transcendência distinto do previsto pelos padrões epistemológicos
kantianos, uma vez que, à diferença de um certo condicionante da experiência sensível, o sujeito
aqui, primeiramente alienado num outro, toma consciência de si através de atos de negação, sendo a
fala um dos principais, podendo-se dizer que sua transcendência é essencialmente negativa 4. Em
outros termos, esta transcendência seria não-constitutiva da experiência sensível, de vez que se
definiria por um processo que não se traduz em concretude, pois “não é de realidade que se trata,
mas de verdade”5. A um sujeito prescindido pela lógica estrutural interpõe-se um sujeito précindido desde sua constituição.
Destas premissas, o mito individual será entendido como a reprodução, seguindo o padrão
de transformação das produções míticas, do drama encontrado na trama de relações que presidiu ao
nascimento do sujeito. Tomando principalmente o relato de análise do caso do Homem dos ratos,
3
4
Lacan, 1956
Cf. SAFATLE, V. Curso 2009
5
LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem
Lacan explicitará como tal mito matricia a vivência do neurótico, expressando-se em suas
manifestações mais contingentes. Atentemos para dois efeitos da importação lacaniana: o primeiro é
o desdobramento estrutural encontrado nos elementos de conjunto, essencial para entendermos a
impossibilidade em que se engendra o drama obsessivo; o segundo, considerando a presença de
uma teoria do sujeito, está na função da formulação e, principalmente, no estatuto do último
membro. Vejamos melhor este ponto. Na transposição lacaniana, como propomos, a dupla torção,
que insere a fórmula na dimensão intermediária entre a historicidade e a anti-historicidade, marcaria
para além das trocas dos membros de uma geração a outra, o próprio estatuto do Outro na neurose
obsessiva, fazendo com que um pai brando na primeira geração, passasse para a segunda como um
pai ignorante da falta, todo - bem representado pela figura do Mestre a que recorre Lacan n’O mito
individual e que Freud soube trazer à luz tanto em suas intervenções quanto na caracterização, e.g.,
do recuo ao pensamento realizado pelo obsessivo devido a tal matriz regulatória de gozo.
Se aqui salientamos as condições para a importação lacaniana da fórmula canônica neste
momento original do contato com a razão estrutural, é para marcar sua centralidade no persistente e
dinâmico jogo de forças entre a referência ao sujeito e à estrutura. Leitor atento de Lévi-Strauss,
Lacan, à revelia da grande parte dos antropólogos que hoje se dedicam a tal formulação, discerne
bem que antes de descrever positivamente todas as manifestações do neurótico/mito-narrativa, a
fórmula que as estrutura tem apenas - sem bem lembramos, de um lado, a peculiar inserção do
sujeito nestes meios e, de outro, a não redução do sistema à estrutura - o valor de marcar as suas
condições de possibilidade. Para Lacan, o sujeito aí encontra certos condicionantes estruturais no
qual, antes de eclipsá-lo, tão somente se apóia.
Por fim, diria a cuidadosa assimilação lacaniana é fruto de uma inspiradora apreensão da
obra lévi-straussiana a qual necessitamos agora operar um retorno para extrair os frutos ainda
intocados.
Download

A estrutura do mito e o mito de uma clínica: considerações sobre as