ACERVO LITERÁRIO: ORGANIZAÇÃO E ESTUDO DA MEMÓRIA DA
DRAMATURGIA DE JOÃO AUGUSTO
Ludmila Antunes de Jesus (UFBA/CAPES)1
Rosa Borges dos Santos (UFBA/Coautora/Orientadora)2
1 O TEXTO TEATRAL COMO DOCUMENTO LITERÁRIO E HISTÓRICO
Durante o período da ditadura militar, escrever um texto teatral não era
exclusivamente construir uma narrativa dramática ou um roteiro com personagens,
cenários, diálogos, conflitos, era necessário, também, construir tais textos nos “moldes”
do clive da censura, ou seja, que não representassem nenhum tipo de ameaça seja na
conjuntura política, seja nas conjunturas sociais e moral do país.
Nesse contexto, era mais constante, na construção do texto dramático, o uso de
recursos linguísticos e literários como: metáforas, simbologias, paródias, paráfrases,
adaptações de textos clássicos, de textos populares etc, que “camuflariam” as ideologias
do autor ou de uma classe teatral, e por fim, após a avaliação dos censores, seriam
representados ao público. No entanto, infelizmente, não é possível, hoje, resgatar o
momento da encenação desses textos teatrais, da recepção do público, da euforia dos
atores e dos diretores, enfim de todos os que participaram da construção do espetáculo.
Porém, felizmente, os vestígios da memória da dramaturgia baiana na época da censura,
os textos teatrais encaminhado para o departamento de Censura, ou os textos de ensaios
dos atores, os folhetos dos espetáculos, os certificados de Censura e outros documentos
administrativos, estão salvaguardados nos Acervos do Espaço Xisto Bahia, do Teatro
Vila Velha, e nos arquivos particulares dos atores, dos diretores, dos parentes e dos
amigos dos autores.
1
Aluna da pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Bahia. Mestre em Letras e Linguística,
formada pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]. Autora.
2
Professora Titular no Departamento de Ciências Humanas, Campus I, na Universidade do Estado da
Bahia (UNEB) e Professora Adjunta no Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras do
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Orientadora, coordenadora do
Grupo de edição e estudo de textos teatrais censurados. E-mail: [email protected]..
ISBN: 978-85-7395-211-7
Entretanto, é preciso salientar que, no momento atual, pós-moderno, preservar
esses documentos em acervos não significam configurá-los como museu expositório de
textos, mas sim como um locus do constante vir-a-ser de diversas significações
artísticas, históricas, culturais e, principalmente científicas. Nesse sentido Bordini
(2001, p. 32) afirma que,
Um acervo, em literatura, é um local tanto quanto é um conjunto de
documentos escritos ou de objetos. Como lugar no espaço, é um
endereço que contém a reunião de vestígios deixados por um escritor,
mas também pelos outros escritores que com ele se relacionaram e, em
última instância, pelos contatos estabelecidos por ele com sua
comunidade e sua sociedade. [...]. Como agregado – sempre dinâmico
– de documentos, forma uma rede de informações potenciais, com
desdobramentos incontáveis, à espera de pesquisa ou simples contato,
suplementando a literatura da obra de um escritor com
esclarecimentos genéticos, biográficos, geracionais, históricos,
filosóficos, enfim, de toda sorte (BORDINI, 2001, p. 32).
Nessas circunstâncias, ou seja, compreendendo o texto como lugar da memória,
como espaço revisitado em que todos os dados são susceptíveis para transferência nos
diversos campos do saber, inserem-se os trabalhos do Grupo de edição e estudo de
textos teatrais censurados que, desde 2006, vem trabalhando nos textos teatrais
censurados na Bahiai, com o objetivo de: reunir, em um acervo único e digital, todos os
documentos encontrados nos acervos de Salvador; organizar, por autor, tais textos e
documentos administrativos; editar, segundo os critérios da Crítica Textual e conforme
os testemunhos encontrados, estudar diversos campos linguísticos e literários, tudo isso
a fim de preservar e caracterizar a memória literária dramática da Bahia produzida no
período da ditadura militar.
Como parte desse grande projeto liderado pela Profa. Dr. Rosa Borges, destacase, nesse trabalho, as atividades nos estudos da dramaturgia de João Augusto (19561979), carioca, ator, diretor, professor da Escola de Teatro da Universidade da Bahia
(1959), um dos fundadores do Teatro Vila Velha (1964), e grande mensageiro da luta da
classe teatral, da organização de um organismo cultural em função da cidade, da
importância da criação de um teatro nacional, da popularização do teatro, do maior e
melhor diálogo entre o teatro e o público, enfim da importância do Teatro na sociedade
baiana. Na carta Isso é aquilo: a arte o enfarteii, endereçada ao governador Lomanto
4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013.
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Junior, João Augusto expõe os questionamentos, as indignações com relação ao descaso
dos órgãos públicos para o investimento no Teatro a nas manifestações artísticas.
Que força de persuasão deverei ter (ou alguém possuir) para falar com
um homem público a importância do Teatro? De qualquer Arte?
Quantos autores terei de citar para repetir que toda sociedade
(industrial, socialista ou capitalista) coloca no número dos problemas
sociais mais importantes o problema do “lazer ativo”, das horas vaga?
Quantas vezes dizer que o teatro ultrapassa os compartimentos sociais
e ideológicos? Quantas vezes lembrar que não existe problema do
Teatro que possa ser focalizados sem referencia à sociedade, ao futuro
de uma sociedade de um regime? Quantas vezes, e de que maneira
fazer claro consequentemente que qualquer orçamento que se dedique
ao teatro não representa para o Estado, para a Cidade, para o Povo um
luxo que vai sacrificar imperativos mais urgentes do Estado, da
Cidade, do Povo? Quantas vezes?
Dessa forma, em prol do prestígio do teatro na sociedade, por mais de vinte
anos, João Augusto, sujeito atuante, escreveu e produziu diversos espetáculos para o
público infantil e adulto, além de musicais e festivais com os alunos da Escola de Teatro
da UFBA, com os companheiros do Teatro da Sociedade dos Novos e do Teatro Livre
da Bahia, seja no Teatro Vila Velha, Teatro Castro Alves, ou nas ruas de Salvador, na
capital e no interior da Bahia. Entre os grandes sucessos de público e crítica citam-se:
Eles não usam bleque-tai (1964), Estórias de Gil Vicente (1966), Pinóquio (1972),
Prova Final (1975), Teatro de Cordel (1966), Cordel 2 (1972/73), Cordel 3 (1973), Um,
Dois, Três Cordel (1974), Cordel 3 (1975), Gracias a la vida (1976/1978), Teatro de
Rua (1977), entre tantos outros.
É lastimável que não se tenham, nos acervos, os textos e os paratextos de todos
os espetáculos desse autor, e dos outros autores que produziram nessa época. Entretanto,
todo e qualquer vestígios da memória artístico-intelectual de João Augusto, é importante
para se tentar reconstituir a obra literária desse autor. Dessa forma, organizam-se,
atualmente, em um acervo digital, os testemunhos desses espetáculos com o objetivo de
editá-los e estudá-los nos âmbitos, históricos, políticos, sociais, linguísticos e,
principalmente, literários.
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2 A ORGANIZAÇÃO DO ESPÓLIO DE JOÃO AUGUSTO
Nos arquivos do Teatro Vila Velha, do Espaço Xisto Bahia encontram-se dezenas
de textos teatrais, monotestemunhais e/ou politestemunhais entre ele citam-se: A
Chegada de Lampião no Inferno, A História de Adão e Eva ou O Direito de Encher; A
Mulher que engoliu um par de tamancos com ciúmes do marido; A Mulher que se casou
dezoito vezes; Antonio, Meu Santo; As Artes do crioulo doido; Catimbó; Cordel 5,
Felismina, Engole Brasa; Grrr; História da Paixão do Senhor; Maria Cilivana; O
Barulho de Lampião no inferno; O Filho do assassino; O Marido que Passou o
Cadeado na Boca da Mulher; Os Sete Pecados Capitais; Oxente gente, cordel;
Pinóquio; Quem não morre num vê Deus; Quincas Berro D’Água. Além disso, têm-se,
também, documentos administrativos da gestão de João Augusto no Teatro Vila Velha,
cartas pessoais enviadas a amigos e parentes, artigos de jornal escrito por João Augusto
ou sobre os espetáculos dirigidos por ele, folhetos de Cordel, folhetos dos espetáculos,
rascunhos de textos teatrais, fotos dos ensaios dos espetáculos e cadernetas de
anotações.
Na organização desse acervo supracitado, a presente pesquisa encontra-se em
processo de digitalização e elaboração de um inventário dos documentos de João
Augusto, disperso nos acervos e arquivos particulares. Diante do viés literário, os
documentos do espólio do autor “[...] permitem, a partir de sua análise, entender os
caminhos que levaram a elaboração do texto final – o processo de criação do autor”
(SANTOS, 1995, p. 105-106), optou-se organizar esses documentos conforme a
natureza dos textos: documentos textuais, documentos iconográficos e documentos
bibliográficos, baseado nos critérios adotados no Centro de Estudos Literários (CEL)
conforme se vê abaixo:
Documentos textuais
1) Textos teatrais
1.1) Textos adaptados da Literatura de cordel
1.2) Textos adaptados da Literatura infantil
1.3) Textos adaptados da Literatura Brasileira
1.4) Textos adaptados da Literatura Inglesa
1.5) Textos religiosos
1.6) Outras produções artísticas (diversos)
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2)
3)
4)
5)
Correspondências
Documentos administrativos
Artigos de jornais
Folhetos dos espetáculos
Documentos iconográficos
1)
2)
Fotos de ensaios dos espetáculos
Xilogravuras
Documentos bibliográficos
1)
Folhetos de cordel utilizados pelo autor para a construção dos seus espetáculos do
Teatro de Cordel
A importância dessa organização deve-se ao fato de que todos esses documentos
são peças fundamentais para a construção da edição e da interpretação da obra de João
Augusto, que se caracterizava a partir da adaptação de textos clássicos, religiosos, e dos
folhetos dos cantadores de cordel.
Para exemplificar toma-se, como primeiro exemplo, a adaptação do texto Quinca
Berro d’água (1972). Nota-se, que havia cumplicidade entre autor do texto fonte e autor
do texto adaptado para o teatral, conforme documento pertencente ao Acervo do Espaço
Xisto Bahia (figura 1), em que se tem uma foto de João Augusto e de Jorge Amado, em
conversa sobre adaptação dessa obra para o Teatro iii (1972).
Figura 1 – À direita Texto teatral Quincas Berro d’água, à direita foto de João Augusto e Jorge
Amado em conversa sobre a adaptação da novela Quincas Berro d’água para o teatro Fonte:
Acervo Espaço Xisto Bahiaiv
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Em outro exemplo sobre a importância da organização do espólio de João
Augusto, vê-se que, na análise do Teatro de Cordel, os textos teatrais e os paratextos
como artigos de imprensa, folhetos do espetáculo e folheto de cordel adaptado para o
teatro, são parte integrantes para a construção da interpretação do processo de criação
desses espetáculos, e da análise literária da dramaturgia desse autor (Cf. Figura 2).
Figura 2 – Sobre o Teatro de cordel (acima, texto de imprensa, folheto do espetáculo, abaixo,
folheto de cordel, texto teatral). Acervo do Teatro Vila Velhav
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Por fim, um terceiro e último exemplo, mostra como um documento,
considerado paratextual, no caso o certificado de censura, foi importante na datação e
escolha do testemunho a ser editado. Observa-se, na figura 3, que o número 7905 deste
certificado é o mesmo encontrado no carimbo do texto O Barulho de Lampião no
inferno, figura 4. Logo, conclui-se que este testemunho é, seguramente, datado de 1977.
Figura 3 – Certificado de censura do texto O Barulho de Lampião no inferno
Fonte: Acervo Espaço Xisto Bahia
Figura 4 – Texto teatral O Barulho de Lampião no inferno
Fonte: Acervo Espaço Xisto Bahiavi
Nessa breve abordagem nota-se que, para a atividade filológica, por meio de
edição de textos, faz-se imprescindível, para a recuperação do patrimônio cultural
escrito e a preservação da memória e da história dos textos teatrais produzidos na Bahia
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no período da ditadura militar, em especial para os textos da obra de João Augusto, o
diálogo com os paratextos: textos publicados em jornal, folhetos dos espetáculos, cartas,
folhetos de cordel, fotos, certificados de censura, enfim todo e qualquer documento que
integre a obra dramatúrgica de um autor.
Desse modo, embora alguns documentos, pertencentes à obra de João Augusto,
tenham diferentes organizações em acervos distintos, é necessário, para a construção do
processo de criação desse autor, organizar tais documentos segundo o víeis do
pesquisador, no caso aqui, do crítico textual, que busca elementos vários para editar e
interpretar o texto. Assim, a organização dos documentos de João Augusto, com fins a
edição e estudo, tem por finalidade reunir, de forma digital, todos os documentos,
presentes nos acervos e arquivos particulares, da obra desse autor; para, enfim, construir
diálogos diversos entre textos e paratextos, e por fim caracterizar a dramaturgia de João
Augusto na época da ditadura militar.
NOTAS
________________________
i
Sobre os estudos linguísticos e literários do texto teatral censurado na Bahia cf. os
trabalhos do Grupo de edição e estudo de textos teatrais censurados, no site
www.textoecensura.ufba.br.
ii
Cf. Documento do acervo do Teatro Vila Vela.
iii
Cf. informação registrada no verso da fotografia.
iv
Fac-símile reproduzido por Ludmila Antunes de Jesus.
v
Fotografia digital por Ludmila Antunes de Jesus.
vi
Fac-símile reproduzido por Ludmila Antunes de Jesus.
RESUMO
O processo de arquivamento dos vestígios da memória da dramaturgia baiana na época
da censura e os estudos linguísticos e literários de tais documentos organizados no
Espaço Xisto Bahia, no Teatro Vila Velha e em arquivos particulares, servem de
fundamento à pesquisa do Grupo de edição e estudo de textos teatrais censurados.
Cabe, primeiramente, a esse grupo, tentar reunir todos os documentos presentes nesses
acervos, de forma digital, na tentativa de caracterizar a produção da literatura dramática
baiana na época da ditadura militar. Entre a organização dos documentos desse acervo,
destacam-se os textos de João Augusto e as produções de espetáculos teatrais liberadas
ou não pela censura para serem apresentadas nos palcos de Salvador ou das cidades do
interior da Bahia. Dessa forma, pretende-se mostrar a organização, parcial, do espólio
do dramaturgo João Augusto.
PALAVRAS-CHAVE: Acervo literário. Dramaturgia. João Augusto
4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013.
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REFERÊNCIAS
ESPAÇO XISTO BAHIA. Textos Teatrais, 1970-1979. Salvador, 2010.
ACERVOS DO TEATRO VILA VELHA, Textos Teatrais, 1970-1979. Salvador, 2010.
BORDINI, Maria da Glória. Memória Literária e novas tecnologias. Centro de
Pesquisas Literárias da PUCRS, Porto Alegre, v. 7, n. 2 p. 31-5, jun. 2001
JESUS, Ludmila Antunes de. A Dramaturgia de João Augusto: edição crítica de textos
produzidos na época da ditadura militar. 2008. 202 f. Dissertação (Mestrado em Letras)
– Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.
SANTOS, Silvana S. Acervo Privado. In: MIRANDA, Wander Melo (org.). A Trama do
arquivo. Belo Horizonte: Editora UFMG, Centro de Estudos Literários da Faculdade de
Letras da UFMG, 1995.
4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013.
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