Processo Civilizador, Interdisciplinaridade e Controle da Violência José Luís Simões Universidade Metodista de Piracicaba/CNPQ RESUMO Este trabalho reflete a interdisciplinaridade como fator que contribui para o debate da temática do controle da violência, à luz da teoria do processo civilizador. Nossa reflexão a respeito do controle da violência norteia-se a partir da interlocução com diversos autores, de diversas áreas do saber, mas, principalmente, com a contribuição acadêmica de Norbert Elias que, pelo seu estilo e estratégia de se utilizar de diversas áreas para refletir as relações sociais, auxilia-nos a pensar a questão do controle da violência enquanto um dos componentes fundamentais da civilização. Palavras-chaves: violência, interdisciplinaridade, processo civilizador, educação. Nosso tema de pesquisa para a tese de doutorado centra-se na teoria do processo civilizador, mais especificamente, o papel da educação participando na evolução dos processos humanos de controle da violência física. Sem dúvida, é um tema que requer profundidade de análise e uma visão interdisciplinar para um melhor entendimento desse fenômeno que é, ao mesmo tempo, histórico, social, político, antropológico/cultural e psíquico. Portanto, a questão da interdisciplina permeia em todo momento nosso esforço de análise acerca da temática do controle da violência. A referência teórica principal utilizada é a produção acadêmica do sociólogo alemão Norbert Elias. Este autor tem uma grandiosa obra sociológica a respeito dos processos de formação da civilização. Assim, a teoria do processo civilizador teve importante contribuição de Elias. Particularmente, a questão do controle da violência é uma das preocupações principais da teoria do processo civilizador. De fato, o controle da violência é um dos pilares da civilização. Porque Norbert Elias estudou a violência Há uma passagem no prefácio à obra A Busca da Excitação na qual Eric Dunning, um dos principais colaboradores de Elias, ressalta que o interesse deste sobre o tema violência não se restringe apenas ao universo acadêmico. Vejamos, ainda, que Dunning define Elias como um humanista que detesta a violência e que o seu interesse constante pelas relações entre violência e civilização não é só acadêmico ou intelectual. Para ser mais exato, surge pelo menos em parte, da sua experiência na Alemanha, na década de 1920 e inícios de 1930, do fato de sua mãe ter morrido em Auschwitz e do seu exílio, primeiro na França e mais tarde em Inglaterra. O que significa que o seu interesse sociológico pela violência – em todas as suas formas e manifestações – radica num profundo desejo de alargar o conhecimento sobre as suas raízes sociais e psicológicas, na esperança de que essa compreensão ajude as pessoas a conciliar suas vidas – os seus padrões de vida em comum – segundo formas que lhes permitam evitar toda espécie de 2 tragédias violentas com que a humanidade tem sido particularmente afetada.1 O estudo da obra de Norbert Elias, além de subsidiar as reflexões acerca do controle da violência, permite-nos pensar sobre a importância da visão interdisciplinar no trabalho científico. Elias é um crítico daqueles cientistas que têm visão estreita do trabalho científico, ou seja, aqueles pensadores que circulam em apenas uma ramo ou área do pensamento científico e não se arriscam em ampliar, buscar conexões com outras áreas do conhecimento a fim de refletir suas respectivas problemáticas. Enfim, Elias defende a visão interdisciplinar para a reflexão acerca dos fenômenos sociais. E assim fez para refletir a temática da violência. As questões trabalhadas por Elias vêm sendo discutidas e investigadas por psicanalistas, antropólogos e historiadores. Heloísa Pontes ressaltara que “os temas propostos, as fontes utilizadas e os objetos analisados por Elias não só permitem como também exigem essa empreitada interdisciplinar”.2 Para elaborar um modelo de análise que permitiria refletir a questão do controle da violência, Elias apoiou-se na Filosofia, na Psicologia, na História e na Sociologia. Valorizou os pensamentos de Max Weber, Freud, Durkeim, Karl Marx etc., sem, contudo, aderir a este ou aquele pensador. Norbert Elias teve luz própria. Na verdade, nos inspiramos no modelo de análise sociológica de Norbert Elias para refletir a questão do controle da violência. Esse modelo, além de privilegiar a visão interdisciplinar dos processos sociais, valoriza a observação empírica dos fenômenos sociais sem se esquecer de situar os fatos numa perspectiva histórica, que Elias chama de visão histórica de longa duração. Possivelmente, esteja localizado neste ponto o argumento central de nossa pesquisa: se pensarmos a violência numa perspectiva histórica de longa duração, podemos dizer que a civilização procura cada vez mais controlar a violência física em função do incessante interesse em pacificar as relações humanas. Todavia, esse movimento da civilização é um fenômeno não-planejado, casual, fruto de um processo que não podemos datar e muito menos prever um ponto final desse desenvolvimento das relações sociais, enfim, a teoria de Elias sugere que o processo civilizador é interminável. Historicamente, as sociedades humanas foram construindo mecanismos de controle da violência. Contraditoriamente esses mecanismos várias vezes acabaram produzindo mais violência. Pensemos no propósito da formação dos exércitos. Na verdade, os grupos de combate (exército, tropas de resistência, polícia etc.) de uma cidade, região ou Estadonação compõe o principal mecanismo de defesa de suas propriedades e dos indivíduos que fazem parte dos respectivos grupos sociais. O exército e\ou a polícia são equipamentos humanos de contra-violência. Paradoxalmente, são os exércitos que, obedecendo às ordens de quem está no poder, fazem guerras e exterminam vidas humanas (inimigas). A instituição exército (ou polícia) é um instrumento de controle da violência externa aos indivíduos, ou seja, independe das vontades individuais, pois é o controle do coletivo sobre 1 2 Eric Dunning, prefácio à obra A Busca da Excitação , de Norbert Elias, 1992, p. 20. Heloísa Pontes, Elias, Renovador da Ciência Social , in: Dossiê Norbert Elias , 1997, p. 20. 3 os indivíduos. E é o Estado que têm o monopólio desse mecanismo de controle da violência e se serve dele tanto para promover a pacificação interna, ou seja, para solucionar disputas, desentendimentos ou manifestações de violência entre indivíduos de um mesmo grupo social, quanto para se proteger de outros Estado-nações que queiram invadir suas fronteiras ou ameaçar a vida da população que vive no interior do seu território. Esse é um mecanismo de controle da violência fundamental, pois garante a defesa dos indivíduos pertencentes ao grupo, assim como pacifica ou media as disputas internas. Associe-se a esse mecanismo o autocontrole das emoções e afetos humanos: uma maneira mais sutil e, certamente, mais recente na história humana. Mas, o que significa esse autocontrole das emoções e afetos? Grosso modo, o autocontrole das emoções e afetos, segundo a ótica de Elias, seria um componente da segunda natureza do indivíduo, que é adquirida por meio do convívio social, da cultura e educação. O autocontrole das emoções é o mecanismo interno, que age dentro do próprio indivíduo, evitando que as paixões ou instintos primários gerenciem o comportamento humano. Norbert Elias, especialmente na obra A Sociedade de Corte, ressalta a importância de se controlar as emoções e afetos no interior de uma sociedade distinta, mais refinada, como a sociedade cortesã francesa à época de Luiz XIV. Nessa sociedade, segundo Elias, uma das regras de sobrevivência previa que os homens deviam “conhecer a fundo suas próprias paixões para poder, na verdade, encobri-las.” 3 Tendo como referência principal um manual de boas maneiras intitulado “De Civilitate Morum Puerilium”, escrito por Erasmo de Roterdam ainda no início do século XVI, Norbert Elias identifica um marco importante na história da humanidade em termos de controle dos comportamentos e emoções. No manual escrito por Erasmo há um conjunto de regras e normas que regulam o comportamento à mesa, o sono, a vida sexual etc., a fim de servir como um indicativo de refinamento e civilidade. O autocontrole das emoções se tornaria, portanto, um princípio de saúde mental e física. “Em comparação com épocas anteriores, a capacidade dos homens de dominarem as suas emoções relacionadas com a sua vivência da natureza, assim como a própria natureza, aumentou.”4 Todavia, é importante destacar que a passagem do guerreiro ao cortesão, ou seja, a transformação de um homem educado para a arte da guerra num indivíduo “civilizado”, educado para a arte da política, de disputar poder por meio da retórica e persuasão, foi um processo lento, moroso, e que só é identificado se olharmos a história sob as lentes da longa duração. É bom lembrar que há resquícios de sociedades humanas que não incorporaram padrões de comportamento que a sociedade ocidental julga ser “civilizado”. Ainda há nichos ou momentos de barbárie, mesmo nas sociedades mais avançadas, que se julgam mais civilizadas. A civilização é um processo e, como o próprio termo “processo” sugere, não há civilização acabada, pronta, que tenha atingido o final de seu desenvolvimento ou evolução. 3 4 Norbert Elias, A Sociedade de Corte , p. 143. Norbert Elias, Envolvimento e Dista nciamento , p. 21. 4 Processo significa recuos e avanços, retrocessos e progressos, porém, não significa que haverá continuísmo. Principalmente, no que concerne à formação do Estado, podemos dizer que é um processo infindável. Os indivíduos, que compõem a sociedade, vivem num constante processo de adaptação e mudanças. É nesse ponto que a obra “O Processo Civilizador” (vols. I e II) dá uma direção para pensarmos a respeito do aspecto central da mudança no padrão de conduta social que podemos identificar no decorrer dos séculos, ou seja, a mudança da estrutura psicológica dos indivíduos está decisivamente associada às mudanças estruturais da organização social. É nessa perspectiva que o processo de transformação do nobre guerreiro em nobre cortesão é apresentado como uma das principais referências desse fenômeno. Violência e civilização não são antíteses. A civilização comporta em si muita violência. As disputas seculares por territórios e espaços de poder e influência promoveram diversas formas de violência, mas principalmente a violência física, o combate físico, a eliminação do “inimigo”. A história das civilizações pode ser analisada, entre outras maneiras, por meio das inúmeras tragédias, guerras, genocídios etc. que marcaram o devir da humanidade. Violência, portanto, é um fenômeno de manifestação de existência humana, presente em todos os períodos históricos, porém, de maneiras distintas. Queremos dizer que há formas de violência que se extinguiram no cotidiano das sociedades humanas. Por exemplo, os rituais de suplício por que passavam os condenados pelo Estado Francês do século XVIII – como destacou Michel Foucault em Vigiar e Punir5 – já não são aceitos nessa mesma sociedade, nos dias de hoje. Na sociedade francesa de até fins do século XVIII, o condenado passava por humilhações e sofria torturas em praça pública, antes de ser morto pelo carrasco – representante do Estado – e esse evento era rotineiro, fazia parte do cotidiano daquela sociedade. Hoje, o condenado pelo Estado é punido de maneira diferente, ou seja, a violência ao corpo do condenado não encerra o processo de condenação, mas a reclusão e o isolamento social constitui-se no principal fator de punição. A formação do Estado-nação e sua prerrogativa de controlar o monopólio da violência física e o da arrecadação de tributos também é um indicador importante do desenvolvimento da organização dos grupos sociais. Só o representante do Estado, incumbido de promover a “ordem social”, tem a o direito legal de usar a força física contra os indivíduos. O Estado, portanto, detém o monopólio da violência física e os indivíduos que não seguirem as disposições legais (fruto de decisões políticas), ou seja, praticarem violência contra outros indivíduos, serão punidos pelo Estado através de suas instituições criadas para manter a ordem social (penitenciárias, instituições jurídicas, anicômios etc). Retomamos aqui a importância do conceito de interdisciplinaridade, afinal, o processo de formação do Estado detentor dos monopólios da violência física e da arrecadação de tributos exige uma análise que compreende múltiplas perspectivas. Notadamente, as Ciências Políticas, a História, a Filosofia e a Sociologia seriam complementares para entendermos esse processo. E podemos dizer que há algo em comum, de interesse, e que é 5 Para maior aprofundamento acerca da história da violência nas prisões, ver: Vigiar e Punir . Este trabalho de Foucault é uma referência importante para entendermos o desenvolvimento dos processos de punição dos condenados, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista da filosofia e da psicologia para reflexão da temática 5 objeto de estudo destas áreas do saber supracitadas: as formas de organização humana em coletividade. E quando há algo em comum nas diversas áreas do saber, reside, portanto, a possibilidade de uma perspectiva interdisciplinar se desenvolver. Civilização, Controle da Violência e Educação Ó processo civilizador criou instrumentos cada vez mais sofisticados de controle da violência. Além do autocontrole do indivíduo ter emergido em relação às táticas de controle da violência a partir da ação de forças externas, novas instituições foram criadas para administrar conflitos entre nações. A criação de organismos internacionais – a Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo – talvez seja o principal indicador de que os diversos Estados-nações se organizaram para prevenir, coibir ou controlar conflitos interestatais. Aí entra o papel da diplomacia, da parlamentarização para solucionar confrontos ou desentendimentos entre nações. Na verdade, é a sutil substituição do confronto armado pelo confronto político. Esse refinamento na maneira de solucionar impasses que poderiam gerar guerras e, consequentemente, muita violência física entre nações – como as que já experimentamos em nossa história, especialmente na primeira metade do século XX – é um indício significativo de que há uma crescente sofisticação na intenção de controlar a violência ou, pelo menos, justificá-la. A título de ilustração, podemos citar o grande esforço diplomático dos Estados Unidos quando realizaram gestões junto às várias nações, procurando convencê-las da necessidade de eclodirem uma guerra contra um grupo terrorista, antes de lançarem o primeiro míssil no território do Afeganistão como resposta aos ataques em Nova Iorque, onde milhares de americanos morreram, no dia 11 de setembro de 2001. No atual estágio da pesquisa nossa reflexão indica que as sociedades humanas, particularmente as mais organizadas e desenvolvidas, principalmente por meio da educação, criam condições para um aumento cada vez maior do autocontrole dos indivíduos sobre si próprios. Esta é a maneira mais econômica e refinada de controlar a violência ou conflito de interesses. Mas esse fenômeno não é perceptível se nos abstermos de uma visão de processo e de que o desenvolvimento das sociedades se dá de maneira lenta e gradual. E nesse ínterim, a educação, transmitindo valores, crenças, conhecimento, informação e cultura, auxilia na formação de indivíduos que tendem a se comportar segundo padrões de conduta social previamente estabelecidos, consensuados, enfim, incorporados na vida cotidiana, formando o que Elias chama de segunda natureza, ou o que Sigmund Freud descreve como sendo o superego do indivíduo (mecanismo interno de controle das emoções e instintos). Talvez não seja por acaso que a primeira frase do primeiro capítulo de uma das grandes obras da Filosofia, conhecida como a Paidéia, registra que todas sociedades humanas ao atingirem um certo grau de desenvolvimento tendem a praticar a educação. Isso significa que muitos pensadores identificaram a educação como um dos pilares principais do desenvolvimento social. Não se trata de fazer simplesmente uma apologia da importância da educação no processo de desenvolvimento e construção de uma sociedade cada vez mais organizada e complexa, mas, sobretudo, de destacar que o processo de incorporação de hábitos, assimilação de determinados padrões de conduta e comportamentos fazem parte do processo educativo pelo qual os indivíduos são submetidos, mesmo aqueles que nunca 6 freqüentaram a escola, afinal, entendemos aqui o conceito de educação para além da perspectiva escolar. Feitas estas considerações, indicamos que a educação participa, compõe, reforça, enfim, é um elemento fundamental no processo de controle da violência física, mas, principalmente, no que diz respeito ao aumento do autocontrole das emoções e afetos, visa pacificação das relações sociais. A idéia que pretendemos aprofundar, por conta da produção da tese, indica que a educação auxilia na construção de hábitos e padrões de comportamento e conduta social que nortearam e continuarão a nortear a vida dos indivíduos e suas relações. Entretanto, se em algum momento a educação serviu, ou se servirá para a guerra, é uma questão que requer maior aprofundamento. Quanto ao futuro, podemos registrar que coloca-se aí uma escolha sociológica, com conseqüências históricas, que deve ser feita a cada dia, em todos os lugares e nas diversas sociedades humanas. Referências Bibliográficas BOURDIEU, Pierre. Contrafogos – Táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ELIAS, Norbert. A Busca da Excitação. Lisboa: Difel, 1992. ____________. A Sociedade de Corte. Lisboa, Difel, 1990. ___________. Envolvimento e Distanciamento. Lisboa: Dom Quixote, 1997. FEATHERSTONE, Mike. O Desmanche da Cultura: Globalização, pós-modernismo e identidade, São Paulo: Nobel, 1997. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 23 ed., Petrópolis: Vozes, 1998. GALLO, Sílvio. Conhecimento, transversalidade e educação. In: IMPULSO – Revista de Ciências Sociais, vol. 10, Piracicaba: Editora UNIMEP, 1997, pp. 115-34. JANTSCH, Ari & BIANCHETTI, Lucídio (orgs.). Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995. PONTES, Heloísa. Elias, Renovador da Ciência Social, in: Dossiê Norbert Elias. São Paulo: Edusp, 1997.