Os apontamentos que se seguem pertencem ao advogado Dr. Alírio José de Sousa, personagem de muitas estórias acontecidas no Mindelo, abruptamente arrancado do convívio da cidade na tarde de um dia em que pretendia comemorar com rija festa um seu aniversário natalício. É por sua vontade que os mesmos são dedicados a todos os seus companheiros de ficção e também aos que se dignaram acompanhá-lo durante as horas do seu agitado velório. G. A. I 1 Morri precisamente às cinco da tarde de um dia 30 de Setembro. Calhou que justamente nessa manhã eu tinha completado mais um ano de vida e a Alda estava numa grande azáfama nos retoques finais de um jantar que queríamos oferecer aos amigos próximos e também a mais uns quantos esfomeados da cidade do Mindelo. Mas de repente caí no chão. Redondo, sem um ai, como um desamparado saco de batatas mal cheio. Lembro-me perfeitamente: nada daquelas confusões de tonturas que fazem uma pessoa agarrar-se aos móveis mais próximos e levar na cambalhota tudo que estiver à mão. Não senhor! Foi uma queda limpa, elegante, como se estivesse preparando um sessão de flexões de braços na alcatifa da sala. Felizmente! De contrário todo o nosso serviço de cristal, uma porradaria de copos de tamanhos variados que estava já sobre a mesa, teria tombado comigo, e agora é que se poderia dizer e com razão que por cima da queda, coice!, porque seria um prejuízo bastante considerável e eu mesmo ficaria cheio de pena, pois ainda que não seja particularmente bonito, está carregado de recordações pessoais e familiares, na medida em que há anos o tinha comprado na Casa Serradas, com pagamento a prestações, para oferecer à Alda como prenda de homenagem aos primeiros cem dias da nossa vivência. Nunca cheguei a dizer-lhe, mas na verdade foi uma espécie de indemnização e também um pedido de desculpas pela forma brusca como a tinha tratado no primeiro dia do seu retorno ao Mindelo. Se bem me recordo, terá sido cerca de pouco mais de ano e meio depois do fim do seu meteórico namoro com o João Nuno. Na altura em que a coisa terá começado eu ainda não a conhecia pessoalmente, mas lembro-me muito bem de que quando se espalhou a novidade de que, depois de muitos e muitos anos de um cerco mais que desencantado e já prosseguido apenas por hábito, João Nuno e Alda estavam finalmente de caso, pensando inclusivamente em vivência em comum, se calhar mesmo em casamento de papel passado, logo entre os amigos começaram a multiplicar-se as apostas: quem desta vez acabará por sair vencedora, a Alda ou a Luísa? Quem está a par das estórias da pequena burguesia da cidade do Mindelo sabe certamente que a Luisa era a sua empregada de longos anos, fiel como um cachorro, mas conhecida por ter conseguido afastar da casa do João Nuno todas as candidatas ao lugar de mulher a tempo inteiro, não poucas vezes com a ajuda do próprio. Mas era também do domínio público que a Alda era a sua paixão mais antiga e permanente, dizia-se até que apenas para poder ficar próximo dela ele tinha recusado grandes propostas de trabalho não só na Praia como também no estrangeiro, de modo que se previa que a luta entre as duas seria necessariamente mais renhida que as anteriores em que se tinham envolvido. No entanto, por qualquer razão não explicada, a maioria estava convencida de que mais uma vez a Luisa acabaria por levar a melhor, e o próprio Vasco, que era quem se mos trava mais bem informado acerca dessas disputas, tinha apostado com o Manco três contra um a favor da empregada, com vitória garantida no espaço máximo de um mês, assegurava convicto. E de facto assim viria a acontecer, não num mês, é verdade, porém sem ter chegado a três: João Nuno preteria a sua velha paixão pela Alda a favor da perene comodidade oferecida pela Luísa. E vale a pena dizer, para completar a estória, que a coisa acabou por não ficar só assim porque a Luísa, já veterana e mais que farta dessas trocas e baldrocas de mulheres entrando-lhe pela casa adentro e perturbando-lhe, ainda que só por dias, a paz doméstica, dessa vez não se contentou com apenas despejar a Alda, antes logo exigiu do seu patrão casamento de papel passado. De contrário ia-se embora de vez, disse, não só tinha muitas e boas ofertas de emprego, como estava a perder não poucas oportunidades de arranjar um marido que a considerasse, aliás não tivera antes porque não tinha estado para aí virada, mas de qualquer modo já não estava em idade para suportar mais borracheiras de cada mulher que ele resolvesse apanhar na rua e meter dentro de casa. Parece que o João Nuno nunca antes tinha considerado a hipótese de casar com a sua própria doméstica e por isso ficou completamente desorientado com esse pedido, que a princípio achou mais que insólito mas que depois acabou por aceitar in extremis quando viu a Luísa arrumando as suas bugigangas para partir de vez. Dizem que João Nuno fez a Luísa sentar-se na sala como uma verdadeira dama, pela primeira vez ofereceu-lhe uma bebida, vermute com gelo e limão, explicou-lhe a situação difícil em que se encontrava, disse-lhe que sim, que concordava com a decisão que ela havia tomado, e terminou pedindo-lhe com toda a humildade que ela lhe concedesse o favor do adiamento do casamento para dali a dois ou três anos. A Luísa, porém, foi sempre uma rapariga esperta, e logo viu que aquele pedido não passaria provavelmente de um expediente dilatório, o rapaz apenas a querer ganhar tempo, pelo que terá concordado, porém na condição de passarem imediatamente a viver em união de facto e economia comum. Essa parte não seria difícil, lembrou-lhe, porque desde há muito que era ela a fazer a gestão familiar. E assim na realidade passou a acontecer, e é do conhecimento público que ainda perdura. Mas há que dizer que se essa solução tendia a satisfazer eventuais aspirações matrimoniais da Luísa, ela foi no imediato extremamente penosa para a Alda que, desgostosa com a forma como tudo tinha acontecido, e se calhar até um tanto envergonhada perante a caricata situação de se ver rejeitada a favor de uma marçana que o próprio João Nuno devia em tempos ter achado cheirar a sovaco, se tinha de novo afastado de todas as pessoas das relações de ambos e tempos depois mudado para a Praia, onde passou a ganhar a vida trabalhando em traduções junto de organizações estrangeiras com sede na capital. Naquele tempo o que mais me levava à Praia era o prazer de estar com a Lídia. Se tiver tempo ainda hei-de falar dela com algum pormenor, ela bem o merece. Mas o certo é que de tempos a tempos me enchia de coragem para enfrentar os mosquitos e o calor opressivo da capital e os cheiros das ruas sujas para visitar a Lídia e a sua mesa e a sua cama. Ora, calhava que já havia meses que não sabia dela, porque nenhum de nós se preocupava em dar notícias ao outro nos intervalos dos nossos encontros, mas eis que chego à cidade e ela me diz muito candidamente e com um grande sorriso brincalhão, como se essa pudesse ser uma boa notícia, que, contra todos os seus hábitos que eu tão bem conhecia, tinha permitido a alguém, um homem, imagina!, amanhecer na sua cama e agora estavam os dois numa experiência de união de facto a ver se daí poderia resultar um filho que ambos estavam desejosos de ter. Eu sempre contava com a Lídia para matar as horas chatas da Praia onde realmente conhecia muito pouca gente, e essa inesperada vivência afigurou-se-me mais que desastrosa para os meus interesses particulares. Nunca me passou pela cabeça que uma mulher como tu pudesse fazer um disparate dessa natureza, disse-lhe com azedume, mas Lídia foi inteligente o suficiente para reparar na minha consternação. Ainda estou longe de esgotar o quinhão de asneiras a que tenho direito enquanto ser humano, ripostou, e de qualquer modo ficaste a ganhar porque tens agora uma nova família que te convida para jantar hoje na sua casa, assim vais já conhecer o dito cujo, não resisto a saber a tua opinião sobre a pessoa dele. Mais: não precisas preocupar-te com companhia, até porque nunca irei admitir a ideia de quereres levar alguma outra quando me apetecer estar contigo, de modo que chamarei uma amiga minha que certamente conheces e é muito boa rapariga, felizmente para todos que um bom bocado esquiva para o teu gosto. Não conhecia a Alda muito bem. Durante o breve reinado do João Nuno tínhamo-nos encontrado uma ou outra vez em casa de amigos comuns, porém sem grandes intimidades ou sequer conversas, quando muito um bom-dia-boa-noite, ela não parecia pessoa de muitas palavras. Mas lembrava-me bem do almoço da sua apresentação social enquanto noiva do João Nuno, porque tinha passado todo o tempo a disputar as funções de anfitriã com a Luisa, naquele tempo ainda empregada. Certamente que esse facto tinha contribuído para que se apresentasse sempre com um ar tenso e arisco, de nariz espetado e algo constrangida. Mas eu, que não conhecia os factos, cataloguei-a imediatamente: Pessoa desagradável, pensei, é daquelas que deve estar convencida de que não vai à casa de banho! E por isso resolvi que arranjaria maneira de me meter com ela com uma parvoíce qualquer. Um pequeno grupo de convidados tinha resolvido ficar sentado no quintal da casa onde estava mais fresco, de modo que de quando em quando a Alda aparecia a servir-nos alguma coisa de comer ou beber, tanto mais que a Luísa parecia ocupar-se exclusivamente do pessoal que tinha ficado dentro de casa. Ela aproximava-se timidamente de tabuleiro na mão, sempre de cara fechada, mais parecendo ser ela a empregada do que a outra que afinal das contas conhecia toda a gente, um ar de quem cumpre a obrigação social de dona de casa, porém sem qualquer espécie de agrado ou à vontade. De todo o modo, aquela pose irritou-me. E quando ela me foi oferecer umas fatias de peru numa travessa, perguntei-lhe com o ar mais sério do mundo se aquilo era mesmo cabrito como estava a parecer. Mas não, respondeu ela olhando-me com um ar de espantado enfado, isto aqui é peru! Sorrindo agradeci a informação, disse que não estava acostumado a essas comidas finas servidas no meio do ano, para mim peru era iguaria exclusiva de Natal. Ela ouviu-me com atenção, porém não fez qualquer comentário e pouco depois chegava com um pratinho com o recheio do dito. Desta vez não posso estar enganado, disse-lhe, é claro que isto aqui que mais parece bosta de cabra é certamente friginato, aliás quase que ainda se vêem os pêlos do porquinho... Bem, finalmente ela acabou por sorrir, certamente que da minha total ignorância em matéria de comeres. Reparei por acaso que sorrindo ficava quase humana e sobretudo muito bonita, mas parecia apostada em manter o rosto fechado porque rapidamente se recompôs e se afastou. De modo que ao despedir-me dela disse-lhe que lhe sugeria com todo o respeito que procurasse sorrir mais vezes, aconselhava-a a que fosse ver ao espelho o quanto sorrindo ficava bonita. Por isso eu esperava muito pouco desse jantar da Lídia, para além do facto de saber que iria comer bem. Mas essa parte não era uma novidade, porque a Lídia tinha prazer em caprichar em duas situações: na mesa e na cama! Era uma mulher que parecia retirar toda a sua volúpia do gozo que conseguia proporcionar ao macho, de modo que fazer amor com ela era sobretudo um deixar-se levar pela fertilidade da sua lúdica imaginação. Ora, ao contrário do que esperava, o serão com ela, o companheiro e a Alda foi extremamente agradável, passado à luz de velas verdes e vermelhas e um agradável perfume de um incenso qualquer ardendo na barriga de um buda majestoso, no meio de uma conversa animada por um frutado vinho branco do Fogo, muitas gargalhadas e um belo cabrito estufado acompanhado de mandioca fervida e depois salteada em manteiga de terra. Porém, o que mais me encantou foi ter descoberto que no fim do jantar já não restava em mim qualquer animosidade contra a Lídia, e portanto também contra o seu companheiro, e estava pronto a desejar-lhes as melhores felicidades. E isso porque estava particularmente maravilhado com a descoberta de uma Alda jovial e descontraída, um alegre rabo de cavalo prendendo-lhe o cabelo, ela que eu sempre tinha visto penteada como uma matrona, e que logo de entrada me cumprimentou com dois beijinhos, um agradável sorriso de velhos conhecidos que se reencontram e depois a contar anedotas e as fofocas políticas e sociais da cidade em desafio com o companheiro da Lídia, com quem aliás rapidamente simpatizei, já esquecido que praticamente me tinha roubado a seminamorada. Alda parecia já ter superado e bem o período João Nuno porque a meio do jantar permitiu-se contar do que ouvia dizer do seu doentio relacionamento com as suas empregadas domésticas, tendo acabado por concluir que, bem vistas as coisas, ele ter-se casado ou juntado com a Luísa era o desfecho natural de uma relação de cumplicidade forjada entre os dois durante anos e anos de uma permanente luta comum para impedir que qualquer estranho, sobretudo mulher, fosse perturbar o equilíbrio que tinham conseguido estabelecer entre eles. No fim, acabámos por sair juntos porque ela amavelmente se ofereceu para me deixar no hotel, mas eu tinha gostado tanto da companhia que não resisti a convidá-la para no dia seguinte visitarmos uma tasca que tinha conhecido na Achada de Santo António e sabia ser especializada em peixe grelhado na brasa, particularmente barriga de atum, acompanhado de cerveja fria, fatias de pão e malagueta de fazer arder a boca. Ela aceitou com alegria, disse que não eram muitas as oportunidades que tinha de sair de casa e assim, durante longas horas, pudemos continuar a conversar, a contar estórias e a rir enquanto petiscávamos ora olho largo ora cavala, porque por azar naquele dia não havia atum. Acabei por perguntar, lembras-te de umas perguntas tolas que te fiz certa vez confundindo cabrito e peru e o resto? Já não via interesse em manter o meu nome ligado a uma evidente tontice, mas ela respondeu rindo que se lembrava perfeitamente, porém, honra fosse feita à sua inteligência, à segunda tinha visto que tudo aquilo não passava de uma tentativa de meter conversa, aquelas confusões tinham que ser claramente propositadas. Lídia viria a dizer-me tempos depois que insisti em namorar a Alda apenas por maldade e para me vingar do facto de ela ter arranjado um companheiro, mas na verdade isso é completamente falso. Lembro-me ainda que foi já perto do fim do nosso encontro de peixe grelhado, e bastante eufórico por todo o ambiente, pela conversa e pela malagueta feroz, que lhe sugeri a ideia de nós próprios um dia grelharmos o nosso peixe e mesmo outras coisas numa casa conjunta: Até que pode não durar para sempre, disse-lhe rindo, mas certa- mente será bom enquanto durar e sobretudo será uma experiência interessante, pelo menos para mim que até hoje não tive coragem de tentar morar com nenhuma mulher, sequer com uma empregada porque duram-me sempre muito pouco tempo. Nesse momento ela estava no meio de uma saborosa gargalhada, os seus dentes estavam agradavelmente à mostra, os seus lábios levemente pintados pareciam pedir carícias de beijos, mas voltou rapidamente a ficar séria, por momentos fez-me mesmo evocar a antiga Alda que julgara já de todo perdida. Porém, recompôs-se rapidamente, tinha sido apenas uma nuvem: Já tive a minha dose suficiente de experiências nessa matéria, disse tentando sorrir, acho que ao meu coração não apetece mais reincidir, afinal das contas tenho o dever de o poupar às coisas más. Mas se é certo que a minha aproximação da Alda nada teve a ver com a Lídia, o mesmo não posso dizer dessa resposta, e muitas vezes durante os anos que vivemos juntos cheguei a dizer-lhe não poucas vezes que o nosso destino tinha sido determinado pelo meu absurdo desejo de lhe dobrar a vontade. Porque a partir daquele momento convencê-la e conquistá-la transformou-se num imperativo pessoal, sem já mesmo me lembrar da motivação inicial que era a estória das grelhadas conjuntas. Comecei a procurá-la e a fazer-me encontrado com ela quase diariamente e por conseguinte a desafiá-la para toda a sorte de acontecimentos, fossem inaugurações de qualquer coisa, fossem recepções para as quais era convidado, fossem exposições. Também acabámos procurando e conhecendo todas as tascas da cidade da Praia e arredores onde se faziam bons churrascos de frango de terra, sem contar com os restaurantes ditos finos onde se comia pior e se pagava caro. A verdade é que não me custava fazer tudo isso, tanto mais que quando dei por mim estava completamente apaixonado por ela. Buscava-a com a obstinação de um fatalista e mesmo certa vez que nos encontrámos «muito por acaso” numa rua e numa hora mais que improvável, ela não conseguiu impedir a admirada exclamação de que era uma coincidência extraordinária, ainda que maravilhosa, eu aparecer sempre na rua onde ela estava, e por sinal sempre desejosa de me ver. Diante dessa confissão, tive muito honestamente que lhe explicar que sem dúvida havia nisso muita sorte, mas também um bom bocado de empenho da minha parte. É que na altura tinha acontecido a feliz coincidência de ter sido eleito deputado e essas funções obrigavam-me a passar bastantes dias na Praia. E muitas vezes acontecia eu estar no Parlamento em plena reunião ou discussão de um qualquer projecto de lei, e de repente ocorrer-me que a Alda poderia estar em tal ou tal lugar. Invocava um pretexto plausível e partia disparado, e a verdade é que muito poucas vezes deixei de a encontrar. Sim, certamente que sabia que estava relaxando os meus deveres de deputado, mas não só a causa era nobre como também era gratificante, porque ela me recebia com evidente prazer, mostrando sempre muito pouca vontade de se separar de mim. E quando um dia acabei por lhe dizer muito francamente que gostaria de fazer amor com ela, não se mostrou nem um pouco escandalizada, mas pediu muito simplesmente que tivesse mais algum tempo de paciência para esperar. Porquê mais algum tempo?, perguntei. Porque ainda não me sinto completamente liberta e limpa das marcas do João Nuno, disse com desarmante sinceridade. Confesso que essas palavras foram um balde de água fria no meu entusiasmo. Mas ainda bem, porque serviram para revigorar o meu orgulho de macho que não se deixa abater por um qualquer. Pelo que passei a exercer sobre ela um cerco mais apertado e insistente, por carta, pessoalmente, por telefone, na verdade com tanto mais à-vontade quanto era certo que as suas palavras já me convenciam que nunca cederia a regressar a São Vicente. Até àquele dia em que me surpreeendeu dizendo que viria passar comigo o fim-de-semana seguinte, e bem podia acontecer que ficasse por cá, pelo menos por algum tempo. Nunca tinha experimentado viver com uma mulher dentro de casa, e passar a ter companhia permanente, e ainda por cima única, desesperou-me um bocado. Depois da sua chegada passei alguns dias nervoso e um tanto irascível, mas Alda foi de uma perspicácia bem feminina: suportou-me com um tacto admirável, fingiu não reparar no meu humor contrafeito, e quando dias depois me ofereceu ao almoço a mais saborosa ervilha verde com linguiça que comi em toda a minha vida e nunca mais voltei a comer, senti que ficava completamente rendido às delícias das refeições em casa e a horas certas; a confusão dos restaurantes onde tinha comido anos e anos a fio sem nunca me habituar sempre me tinha exasperado. Os anos seguintes foram realmente de pacato deleite, os dois tacitamente de acordo em seguir o conselho de uma tia da Alda que certa vez nos visitou: Vocês têm uma vida tão calma e harmoniosa, disse ao despedir-se, não deixem que alguma criança a venha estragar! Não deixámos. Nem cometemos a outra estupidez das confidências um ao outro, não poucas vezes fonte de grandes exasperações e não poucos ciúmes e desavenças; eu tinha alguma experiência a respeito. De tal modo que nunca cheguei realmente a saber o que se passou entre ela, João Nuno e Luísa, da mesma forma que nunca lhe falei das mulheres que antes dela cruzaram a minha vida. Mas foram tempos de grande sabura que chegaram, no entanto, ao seu fim natural às cinco da tarde daquele 30 de Setembro. Creio que caí inteiriçado e de frente porque quando da cozinha a Alda ouviu o barulho foi com perfeita displicência que perguntou o que é que tinha acontecido, que zaragata era aquela. E como não obtivesse resposta, porque eu já não estava em condições de responder que tinha morrido de repente, ela espreitou da porta que dá para a sala de jantar. Nesse momento eu já saía por uma das janelas da sala e, coisa estranha, entrava num bosque desconhecido mas de maravilhosa beleza. Imensas árvores de fruto, animais que sempre tinha visto como selvagens e que agora ali viviam docilmente domesticados. Mas o que mais me surpreendeu foi reencontrar o «meu» veado, um animal atlético, possante, de enormes chifres encaracolados. Eu e ele éramos conhecidos desde há mais de trinta anos, desde uma manhã no Norte de Angola quando tinha surgido do meio do capim, tão elegante e majestoso, mais ondeando que saltando sobre o mato rasteiro como se fosse um deus alado, tão belo que um pelotão inteiro ficou sobre os unimogues de espingardas aperradas e apontadas, porém sem ninguém ter coragem de disparar, até ele desaparecer de novo na savana e então todos nós descansámos as armas com um suspiro de alívio, teria sido um massacre se tivéssemos disparado sobre ele. De há muito tinha deixado de o ver nos meus sonhos dos tempos da guerra e agora reaparecia flutuando entre as flores e as muitas mulheres nuas e belas que entre risos inutilmente gritavam o meu nome... Mas não, quem de facto gritava o meu nome era a Alda, olhando-me com o ar severo de quem se prepara para dizer, estas não são horas para brincadeiras de mau gosto! Fiquei, pois, à espera, só para ver como ela iria reagir àquela emergência inesperada, mas ainda se ria: Hoje não, disse enquanto me dava um leve pontapé na ilharga, hoje não está um bom dia para brincadeiras, estou cheia de trabalho, vem antes ajudar a Rosa a limpar os talheres. E baixou-se para me apertar o nariz, uma coisa que fazia sempre que me dava na cabeça fingir-me de morto. Foi só então que deve ter reparado nos olhos do meu corpo, porque foi nesse momento que gritou, um grito que certamente me teria assustado se ainda estivesse vivo. A Rosa estava no quintal, ouviu aquele brado medonho e veio logo a correr. Vi como as duas me abanavam e depois como a Rosa corria à cozinha e voltava com uma garrafa de água gelada que me despejou sobre a cara. Deve estar a aproveitar para se vingar das pequenas biquirias que lhe fazia, pensei, e despejar água gelada sobre a cara do patrão deve estar a dar-lhe um gozo particular. Mas o paraíso que tinha entrevisto estava de novo desaparecido e agora na varanda da minha casa parei um pouco a ver um pôr do Sol ainda a formar-se, um belo sol como uma bola incandescente a baixar vagarosamente para o mar. Vou perder isto tudo, porra, pensei infeliz, e entrei no escritório para fugir aos gritos que vinham da casa. Porém, mesmo ali continuava a ouvi-los, tanto mais que todos os vizinhos já vinham a correr. A Aninhas Maria foi a primeira a chegar. Entrou com o credo- -Deus-pai na boca, coitado, o quê que pode ter sido, um homem ainda novo, cheio de vida, uma coisa assim de repente, quem diria, bem que se diz que para morrer basta estar vivo... Sempre tonta, a pobre Aninhas! Nos últimos tempos deu-lhe para ficar beata, missa diária de manhã, terço à tardinha, novenas não sei a que horas. Quando eu soube disso não estranhei, era o lógico fim de uma mulher que, não contente com ter tido a infelicidade de se apaixonar por um louco como é o Natal, acabou tomando a decisão de ser escrava do idiota do Romualdo Cruz que se diz escritor e assina as maluquices que escreve com o pseudónimo de Rualdo Cru, que considera extremamente original e respeitável, embora seja mais conhecido entre a intelectualidade nacional pelo apodo de «O Caga-Vírgulas» por causa do gosto excessivo que tem no uso deste sinal de pontuação. A Aninhas, o Natal e eu éramos da mesma rua e tínhamos sido amigos desde crianças. Aninhas foi de pequena uma menina muito tímida e também muito magra, e francamente arisca com os desconhecidos. Também um bocadinho burra, diga-se francamente, pelo menos para o meu gosto. Muitas vezes a comparei a uma chibarra nervosa, daquelas que o pastor segura entre as pernas e sente todo o seu corpo a palpitar fremente num misto de terror, cansaço e desejo de se ver de novo livre, e de facto ela apenas se sentia bem ou entre os seus ou então sozinha. Ou então frente à comida, fosse ela qual fosse. Nunca vi uma pessoa comer tanto, melhor dizendo, enfardar-se tanto, embora pela vida inteira tivesse continuado magra que nem um espeto. Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, a Aninhas tinha vivido, isto é, «tinha sofrido» um desesperado caso de amor pelo Natal que por pouco não a levou do caixão à cova. Lembro-me, aliás, que a sua extrema magreza foi adquirida nessa altura e nunca mais ela se endireitou, não obstante o quase ódio com que devora tudo o que for comida que lhe passe pela frente dos olhos. Ela, coitada, nasceu de uma família de comerciantes abastados, mas sei por conhecimento directo que teve uma infância mais que infeliz. O pai, um homem áspero e um tanto tirano, pretendia ser descendente em linha direc-