Os apontamentos que se seguem pertencem
ao advogado Dr. Alírio José de Sousa,
personagem de muitas estórias acontecidas no Mindelo,
abruptamente arrancado do convívio da cidade
na tarde de um dia em que pretendia comemorar
com rija festa um seu aniversário natalício.
É por sua vontade que os mesmos são dedicados
a todos os seus companheiros de ficção
e também aos que se dignaram acompanhá-lo
durante as horas do seu agitado velório.
G. A.
I
1
Morri precisamente às cinco da tarde de um dia 30 de Setembro.
Calhou que justamente nessa manhã eu tinha completado mais um
ano de vida e a Alda estava numa grande azáfama nos retoques finais de um jantar que queríamos oferecer aos amigos próximos e
também a mais uns quantos esfomeados da cidade do Mindelo. Mas
de repente caí no chão. Redondo, sem um ai, como um desamparado
saco de batatas mal cheio.
Lembro-me perfeitamente: nada daquelas confusões de tonturas
que fazem uma pessoa agarrar-se aos móveis mais próximos e levar
na cambalhota tudo que estiver à mão. Não senhor! Foi uma queda
limpa, elegante, como se estivesse preparando um sessão de flexões
de braços na alcatifa da sala. Felizmente! De contrário todo o nosso
serviço de cristal, uma porradaria de copos de tamanhos variados
que estava já sobre a mesa, teria tombado comigo, e agora é que se
poderia dizer e com razão que por cima da queda, coice!, porque
seria um prejuízo bastante considerável e eu mesmo ficaria cheio de
pena, pois ainda que não seja particularmente bonito, está carregado de recordações pessoais e familiares, na medida em que há anos
o tinha comprado na Casa Serradas, com pagamento a prestações,
para oferecer à Alda como prenda de homenagem aos primeiros cem
dias da nossa vivência.
Nunca cheguei a dizer-lhe, mas na verdade foi uma espécie de indemnização e também um pedido de desculpas pela forma brusca
como a tinha tratado no primeiro dia do seu retorno ao Mindelo. Se
bem me recordo, terá sido cerca de pouco mais de ano e meio depois
do fim do seu meteórico namoro com o João Nuno. Na altura em
que a coisa terá começado eu ainda não a conhecia pessoalmente,
mas lembro-me muito bem de que quando se espalhou a novidade
de que, depois de muitos e muitos anos de um cerco mais que desencantado e já prosseguido apenas por hábito, João Nuno e Alda
estavam finalmente de caso, pensando inclusivamente em vivência
em comum, se calhar mesmo em casamento de papel passado, logo
entre os amigos começaram a multiplicar-se as apostas: quem desta
vez acabará por sair vencedora, a Alda ou a Luísa?
Quem está a par das estórias da pequena burguesia da cidade do
Mindelo sabe certamente que a Luisa era a sua empregada de longos anos, fiel como um cachorro, mas conhecida por ter conseguido
afastar da casa do João Nuno todas as candidatas ao lugar de mulher a tempo inteiro, não poucas vezes com a ajuda do próprio. Mas
era também do domínio público que a Alda era a sua paixão mais
antiga e permanente, dizia-se até que apenas para poder ficar próximo dela ele tinha recusado grandes propostas de trabalho não só
na Praia como também no estrangeiro, de modo que se previa que a
luta entre as duas seria necessariamente mais renhida que as anteriores em que se tinham envolvido. No entanto, por qualquer razão não
explicada, a maioria estava convencida de que mais uma vez a Luisa
acabaria por levar a melhor, e o próprio Vasco, que era quem se mos
trava mais bem informado acerca dessas disputas, tinha apostado
com o Manco três contra um a favor da empregada, com vitória
garantida no espaço máximo de um mês, assegurava convicto. E de
facto assim viria a acontecer, não num mês, é verdade, porém sem
ter chegado a três: João Nuno preteria a sua velha paixão pela Alda
a favor da perene comodidade oferecida pela Luísa.
E vale a pena dizer, para completar a estória, que a coisa acabou por não ficar só assim porque a Luísa, já veterana e mais que
farta dessas trocas e baldrocas de mulheres entrando-lhe pela casa
adentro e perturbando-lhe, ainda que só por dias, a paz doméstica,
dessa vez não se contentou com apenas despejar a Alda, antes logo
exigiu do seu patrão casamento de papel passado. De contrário ia-se embora de vez, disse, não só tinha muitas e boas ofertas de emprego, como estava a perder não poucas oportunidades de arranjar
um marido que a considerasse, aliás não tivera antes porque não
tinha estado para aí virada, mas de qualquer modo já não estava
em idade para suportar mais borracheiras de cada mulher que ele
resolvesse apanhar na rua e meter dentro de casa. Parece que o João
Nuno nunca antes tinha considerado a hipótese de casar com a sua
própria doméstica e por isso ficou completamente desorientado com
esse pedido, que a princípio achou mais que insólito mas que depois
acabou por aceitar in extremis quando viu a Luísa arrumando as
suas bugigangas para partir de vez. Dizem que João Nuno fez a Luísa sentar-se na sala como uma verdadeira dama, pela primeira vez
ofereceu-lhe uma bebida, vermute com gelo e limão, explicou-lhe a
situação difícil em que se encontrava, disse-lhe que sim, que concordava com a decisão que ela havia tomado, e terminou pedindo-lhe
com toda a humildade que ela lhe concedesse o favor do adiamento do casamento para dali a dois ou três anos. A Luísa, porém, foi
sempre uma rapariga esperta, e logo viu que aquele pedido não passaria provavelmente de um expediente dilatório, o rapaz apenas a
querer ganhar tempo, pelo que terá concordado, porém na condição
de passarem imediatamente a viver em união de facto e economia
comum. Essa parte não seria difícil, lembrou-lhe, porque desde há
muito que era ela a fazer a gestão familiar. E assim na realidade
passou a acontecer, e é do conhecimento público que ainda perdura.
Mas há que dizer que se essa solução tendia a satisfazer eventuais aspirações matrimoniais da Luísa, ela foi no imediato extremamente penosa para a Alda que, desgostosa com a forma como tudo
tinha acontecido, e se calhar até um tanto envergonhada perante a
caricata situação de se ver rejeitada a favor de uma marçana que o
próprio João Nuno devia em tempos ter achado cheirar a sovaco, se
tinha de novo afastado de todas as pessoas das relações de ambos e
tempos depois mudado para a Praia, onde passou a ganhar a vida
trabalhando em traduções junto de organizações estrangeiras com
sede na capital.
Naquele tempo o que mais me levava à Praia era o prazer de estar
com a Lídia. Se tiver tempo ainda hei-de falar dela com algum pormenor, ela bem o merece. Mas o certo é que de tempos a tempos me
enchia de coragem para enfrentar os mosquitos e o calor opressivo
da capital e os cheiros das ruas sujas para visitar a Lídia e a sua mesa
e a sua cama. Ora, calhava que já havia meses que não sabia dela,
porque nenhum de nós se preocupava em dar notícias ao outro nos
intervalos dos nossos encontros, mas eis que chego à cidade e ela me
diz muito candidamente e com um grande sorriso brincalhão, como
se essa pudesse ser uma boa notícia, que, contra todos os seus hábitos que eu tão bem conhecia, tinha permitido a alguém, um homem,
imagina!, amanhecer na sua cama e agora estavam os dois numa
experiência de união de facto a ver se daí poderia resultar um filho
que ambos estavam desejosos de ter.
Eu sempre contava com a Lídia para matar as horas chatas da
Praia onde realmente conhecia muito pouca gente, e essa inesperada
vivência afigurou-se-me mais que desastrosa para os meus interesses
particulares. Nunca me passou pela cabeça que uma mulher como tu
pudesse fazer um disparate dessa natureza, disse-lhe com azedume,
mas Lídia foi inteligente o suficiente para reparar na minha consternação. Ainda estou longe de esgotar o quinhão de asneiras a que
tenho direito enquanto ser humano, ripostou, e de qualquer modo
ficaste a ganhar porque tens agora uma nova família que te convida
para jantar hoje na sua casa, assim vais já conhecer o dito cujo, não
resisto a saber a tua opinião sobre a pessoa dele. Mais: não precisas
preocupar-te com companhia, até porque nunca irei admitir a ideia
de quereres levar alguma outra quando me apetecer estar contigo,
de modo que chamarei uma amiga minha que certamente conheces
e é muito boa rapariga, felizmente para todos que um bom bocado
esquiva para o teu gosto.
Não conhecia a Alda muito bem. Durante o breve reinado do
João Nuno tínhamo-nos encontrado uma ou outra vez em casa de
amigos comuns, porém sem grandes intimidades ou sequer conversas, quando muito um bom-dia-boa-noite, ela não parecia pessoa de
muitas palavras. Mas lembrava-me bem do almoço da sua apresentação social enquanto noiva do João Nuno, porque tinha passado
todo o tempo a disputar as funções de anfitriã com a Luisa, naquele
tempo ainda empregada. Certamente que esse facto tinha contribuído para que se apresentasse sempre com um ar tenso e arisco, de
nariz espetado e algo constrangida. Mas eu, que não conhecia os
factos, cataloguei-a imediatamente: Pessoa desagradável, pensei, é
daquelas que deve estar convencida de que não vai à casa de banho!
E por isso resolvi que arranjaria maneira de me meter com ela com
uma parvoíce qualquer.
Um pequeno grupo de convidados tinha resolvido ficar sentado
no quintal da casa onde estava mais fresco, de modo que de quando
em quando a Alda aparecia a servir-nos alguma coisa de comer ou
beber, tanto mais que a Luísa parecia ocupar-se exclusivamente do
pessoal que tinha ficado dentro de casa. Ela aproximava-se timidamente de tabuleiro na mão, sempre de cara fechada, mais parecendo
ser ela a empregada do que a outra que afinal das contas conhecia
toda a gente, um ar de quem cumpre a obrigação social de dona
de casa, porém sem qualquer espécie de agrado ou à vontade. De
todo o modo, aquela pose irritou-me. E quando ela me foi oferecer
umas fatias de peru numa travessa, perguntei-lhe com o ar mais sério
do mundo se aquilo era mesmo cabrito como estava a parecer. Mas
não, respondeu ela olhando-me com um ar de espantado enfado,
isto aqui é peru! Sorrindo agradeci a informação, disse que não estava acostumado a essas comidas finas servidas no meio do ano, para
mim peru era iguaria exclusiva de Natal. Ela ouviu-me com atenção, porém não fez qualquer comentário e pouco depois chegava
com um pratinho com o recheio do dito. Desta vez não posso estar
enganado, disse-lhe, é claro que isto aqui que mais parece bosta de
cabra é certamente friginato, aliás quase que ainda se vêem os pêlos
do porquinho...
Bem, finalmente ela acabou por sorrir, certamente que da minha
total ignorância em matéria de comeres. Reparei por acaso que sorrindo ficava quase humana e sobretudo muito bonita, mas parecia
apostada em manter o rosto fechado porque rapidamente se recompôs e se afastou. De modo que ao despedir-me dela disse-lhe que lhe
sugeria com todo o respeito que procurasse sorrir mais vezes, aconselhava-a a que fosse ver ao espelho o quanto sorrindo ficava bonita.
Por isso eu esperava muito pouco desse jantar da Lídia, para além
do facto de saber que iria comer bem. Mas essa parte não era uma
novidade, porque a Lídia tinha prazer em caprichar em duas situações: na mesa e na cama! Era uma mulher que parecia retirar toda a
sua volúpia do gozo que conseguia proporcionar ao macho, de modo
que fazer amor com ela era sobretudo um deixar-se levar pela fertilidade da sua lúdica imaginação. Ora, ao contrário do que esperava, o
serão com ela, o companheiro e a Alda foi extremamente agradável,
passado à luz de velas verdes e vermelhas e um agradável perfume
de um incenso qualquer ardendo na barriga de um buda majestoso,
no meio de uma conversa animada por um frutado vinho branco do
Fogo, muitas gargalhadas e um belo cabrito estufado acompanhado
de mandioca fervida e depois salteada em manteiga de terra.
Porém, o que mais me encantou foi ter descoberto que no fim do
jantar já não restava em mim qualquer animosidade contra a Lídia, e portanto também contra o seu companheiro, e estava pronto a
desejar-lhes as melhores felicidades. E isso porque estava particularmente maravilhado com a descoberta de uma Alda jovial e descontraída, um alegre rabo de cavalo prendendo-lhe o cabelo, ela que eu
sempre tinha visto penteada como uma matrona, e que logo de entrada me cumprimentou com dois beijinhos, um agradável sorriso de
velhos conhecidos que se reencontram e depois a contar anedotas e
as fofocas políticas e sociais da cidade em desafio com o companheiro da Lídia, com quem aliás rapidamente simpatizei, já esquecido
que praticamente me tinha roubado a seminamorada.
Alda parecia já ter superado e bem o período João Nuno porque a
meio do jantar permitiu-se contar do que ouvia dizer do seu doentio
relacionamento com as suas empregadas domésticas, tendo acabado
por concluir que, bem vistas as coisas, ele ter-se casado ou juntado
com a Luísa era o desfecho natural de uma relação de cumplicidade
forjada entre os dois durante anos e anos de uma permanente luta
comum para impedir que qualquer estranho, sobretudo mulher, fosse perturbar o equilíbrio que tinham conseguido estabelecer entre
eles.
No fim, acabámos por sair juntos porque ela amavelmente se ofereceu para me deixar no hotel, mas eu tinha gostado tanto da companhia que não resisti a convidá-la para no dia seguinte visitarmos
uma tasca que tinha conhecido na Achada de Santo António e sabia
ser especializada em peixe grelhado na brasa, particularmente barriga de atum, acompanhado de cerveja fria, fatias de pão e malagueta
de fazer arder a boca. Ela aceitou com alegria, disse que não eram
muitas as oportunidades que tinha de sair de casa e assim, durante
longas horas, pudemos continuar a conversar, a contar estórias e a
rir enquanto petiscávamos ora olho largo ora cavala, porque por
azar naquele dia não havia atum. Acabei por perguntar, lembras-te
de umas perguntas tolas que te fiz certa vez confundindo cabrito e
peru e o resto? Já não via interesse em manter o meu nome ligado
a uma evidente tontice, mas ela respondeu rindo que se lembrava
perfeitamente, porém, honra fosse feita à sua inteligência, à segunda
tinha visto que tudo aquilo não passava de uma tentativa de meter
conversa, aquelas confusões tinham que ser claramente propositadas.
Lídia viria a dizer-me tempos depois que insisti em namorar a
Alda apenas por maldade e para me vingar do facto de ela ter arranjado um companheiro, mas na verdade isso é completamente falso.
Lembro-me ainda que foi já perto do fim do nosso encontro de peixe
grelhado, e bastante eufórico por todo o ambiente, pela conversa e
pela malagueta feroz, que lhe sugeri a ideia de nós próprios um dia
grelharmos o nosso peixe e mesmo outras coisas numa casa conjunta: Até que pode não durar para sempre, disse-lhe rindo, mas certa-
mente será bom enquanto durar e sobretudo será uma experiência
interessante, pelo menos para mim que até hoje não tive coragem
de tentar morar com nenhuma mulher, sequer com uma empregada
porque duram-me sempre muito pouco tempo. Nesse momento ela
estava no meio de uma saborosa gargalhada, os seus dentes estavam
agradavelmente à mostra, os seus lábios levemente pintados pareciam pedir carícias de beijos, mas voltou rapidamente a ficar séria,
por momentos fez-me mesmo evocar a antiga Alda que julgara já de
todo perdida. Porém, recompôs-se rapidamente, tinha sido apenas
uma nuvem: Já tive a minha dose suficiente de experiências nessa
matéria, disse tentando sorrir, acho que ao meu coração não apetece
mais reincidir, afinal das contas tenho o dever de o poupar às coisas
más.
Mas se é certo que a minha aproximação da Alda nada teve a ver
com a Lídia, o mesmo não posso dizer dessa resposta, e muitas vezes
durante os anos que vivemos juntos cheguei a dizer-lhe não poucas
vezes que o nosso destino tinha sido determinado pelo meu absurdo
desejo de lhe dobrar a vontade. Porque a partir daquele momento
convencê-la e conquistá-la transformou-se num imperativo pessoal,
sem já mesmo me lembrar da motivação inicial que era a estória das
grelhadas conjuntas. Comecei a procurá-la e a fazer-me encontrado com ela quase diariamente e por conseguinte a desafiá-la para
toda a sorte de acontecimentos, fossem inaugurações de qualquer
coisa, fossem recepções para as quais era convidado, fossem exposições. Também acabámos procurando e conhecendo todas as tascas
da cidade da Praia e arredores onde se faziam bons churrascos de
frango de terra, sem contar com os restaurantes ditos finos onde se
comia pior e se pagava caro. A verdade é que não me custava fazer
tudo isso, tanto mais que quando dei por mim estava completamente
apaixonado por ela.
Buscava-a com a obstinação de um fatalista e mesmo certa vez que
nos encontrámos «muito por acaso” numa rua e numa hora mais
que improvável, ela não conseguiu impedir a admirada exclamação
de que era uma coincidência extraordinária, ainda que maravilhosa,
eu aparecer sempre na rua onde ela estava, e por sinal sempre desejosa de me ver. Diante dessa confissão, tive muito honestamente que
lhe explicar que sem dúvida havia nisso muita sorte, mas também
um bom bocado de empenho da minha parte. É que na altura tinha
acontecido a feliz coincidência de ter sido eleito deputado e essas
funções obrigavam-me a passar bastantes dias na Praia. E muitas vezes acontecia eu estar no Parlamento em plena reunião ou discussão
de um qualquer projecto de lei, e de repente ocorrer-me que a Alda
poderia estar em tal ou tal lugar. Invocava um pretexto plausível e
partia disparado, e a verdade é que muito poucas vezes deixei de a
encontrar. Sim, certamente que sabia que estava relaxando os meus
deveres de deputado, mas não só a causa era nobre como também
era gratificante, porque ela me recebia com evidente prazer, mostrando sempre muito pouca vontade de se separar de mim. E quando um dia acabei por lhe dizer muito francamente que gostaria de
fazer amor com ela, não se mostrou nem um pouco escandalizada,
mas pediu muito simplesmente que tivesse mais algum tempo de paciência para esperar. Porquê mais algum tempo?, perguntei. Porque
ainda não me sinto completamente liberta e limpa das marcas do
João Nuno, disse com desarmante sinceridade.
Confesso que essas palavras foram um balde de água fria no meu
entusiasmo. Mas ainda bem, porque serviram para revigorar o meu
orgulho de macho que não se deixa abater por um qualquer. Pelo
que passei a exercer sobre ela um cerco mais apertado e insistente,
por carta, pessoalmente, por telefone, na verdade com tanto mais
à-vontade quanto era certo que as suas palavras já me convenciam
que nunca cederia a regressar a São Vicente. Até àquele dia em que
me surpreeendeu dizendo que viria passar comigo o fim-de-semana
seguinte, e bem podia acontecer que ficasse por cá, pelo menos por
algum tempo.
Nunca tinha experimentado viver com uma mulher dentro de
casa, e passar a ter companhia permanente, e ainda por cima única, desesperou-me um bocado. Depois da sua chegada passei alguns
dias nervoso e um tanto irascível, mas Alda foi de uma perspicácia
bem feminina: suportou-me com um tacto admirável, fingiu não reparar no meu humor contrafeito, e quando dias depois me ofereceu
ao almoço a mais saborosa ervilha verde com linguiça que comi em
toda a minha vida e nunca mais voltei a comer, senti que ficava completamente rendido às delícias das refeições em casa e a horas certas;
a confusão dos restaurantes onde tinha comido anos e anos a fio sem
nunca me habituar sempre me tinha exasperado.
Os anos seguintes foram realmente de pacato deleite, os dois tacitamente de acordo em seguir o conselho de uma tia da Alda que
certa vez nos visitou: Vocês têm uma vida tão calma e harmoniosa,
disse ao despedir-se, não deixem que alguma criança a venha estragar! Não deixámos. Nem cometemos a outra estupidez das confidências um ao outro, não poucas vezes fonte de grandes exasperações e não poucos ciúmes e desavenças; eu tinha alguma experiência
a respeito. De tal modo que nunca cheguei realmente a saber o que
se passou entre ela, João Nuno e Luísa, da mesma forma que nunca
lhe falei das mulheres que antes dela cruzaram a minha vida. Mas
foram tempos de grande sabura que chegaram, no entanto, ao seu
fim natural às cinco da tarde daquele 30 de Setembro. Creio que
caí inteiriçado e de frente porque quando da cozinha a Alda ouviu
o barulho foi com perfeita displicência que perguntou o que é que
tinha acontecido, que zaragata era aquela. E como não obtivesse
resposta, porque eu já não estava em condições de responder que
tinha morrido de repente, ela espreitou da porta que dá para a sala
de jantar. Nesse momento eu já saía por uma das janelas da sala e,
coisa estranha, entrava num bosque desconhecido mas de maravilhosa beleza. Imensas árvores de fruto, animais que sempre tinha
visto como selvagens e que agora ali viviam docilmente domesticados. Mas o que mais me surpreendeu foi reencontrar o «meu» veado,
um animal atlético, possante, de enormes chifres encaracolados. Eu
e ele éramos conhecidos desde há mais de trinta anos, desde uma
manhã no Norte de Angola quando tinha surgido do meio do capim, tão elegante e majestoso, mais ondeando que saltando sobre o
mato rasteiro como se fosse um deus alado, tão belo que um pelotão
inteiro ficou sobre os unimogues de espingardas aperradas e apontadas, porém sem ninguém ter coragem de disparar, até ele desaparecer
de novo na savana e então todos nós descansámos as armas com um
suspiro de alívio, teria sido um massacre se tivéssemos disparado
sobre ele. De há muito tinha deixado de o ver nos meus sonhos dos
tempos da guerra e agora reaparecia flutuando entre as flores e as
muitas mulheres nuas e belas que entre risos inutilmente gritavam o
meu nome...
Mas não, quem de facto gritava o meu nome era a Alda, olhando-me com o ar severo de quem se prepara para dizer, estas não são
horas para brincadeiras de mau gosto! Fiquei, pois, à espera, só para
ver como ela iria reagir àquela emergência inesperada, mas ainda se
ria: Hoje não, disse enquanto me dava um leve pontapé na ilharga,
hoje não está um bom dia para brincadeiras, estou cheia de trabalho,
vem antes ajudar a Rosa a limpar os talheres. E baixou-se para me
apertar o nariz, uma coisa que fazia sempre que me dava na cabeça
fingir-me de morto.
Foi só então que deve ter reparado nos olhos do meu corpo, porque foi nesse momento que gritou, um grito que certamente me teria
assustado se ainda estivesse vivo. A Rosa estava no quintal, ouviu
aquele brado medonho e veio logo a correr. Vi como as duas me
abanavam e depois como a Rosa corria à cozinha e voltava com uma
garrafa de água gelada que me despejou sobre a cara. Deve estar a
aproveitar para se vingar das pequenas biquirias que lhe fazia, pensei, e despejar água gelada sobre a cara do patrão deve estar a dar-lhe um gozo particular.
Mas o paraíso que tinha entrevisto estava de novo desaparecido
e agora na varanda da minha casa parei um pouco a ver um pôr do
Sol ainda a formar-se, um belo sol como uma bola incandescente a
baixar vagarosamente para o mar. Vou perder isto tudo, porra, pensei infeliz, e entrei no escritório para fugir aos gritos que vinham da
casa. Porém, mesmo ali continuava a ouvi-los, tanto mais que todos
os vizinhos já vinham a correr.
A Aninhas Maria foi a primeira a chegar. Entrou com o credo-
-Deus-pai na boca, coitado, o quê que pode ter sido, um homem ainda novo, cheio de vida, uma coisa assim de repente, quem diria, bem
que se diz que para morrer basta estar vivo... Sempre tonta, a pobre
Aninhas! Nos últimos tempos deu-lhe para ficar beata, missa diária
de manhã, terço à tardinha, novenas não sei a que horas. Quando
eu soube disso não estranhei, era o lógico fim de uma mulher que,
não contente com ter tido a infelicidade de se apaixonar por um
louco como é o Natal, acabou tomando a decisão de ser escrava do
idiota do Romualdo Cruz que se diz escritor e assina as maluquices
que escreve com o pseudónimo de Rualdo Cru, que considera extremamente original e respeitável, embora seja mais conhecido entre
a intelectualidade nacional pelo apodo de «O Caga-Vírgulas» por
causa do gosto excessivo que tem no uso deste sinal de pontuação.
A Aninhas, o Natal e eu éramos da mesma rua e tínhamos sido
amigos desde crianças. Aninhas foi de pequena uma menina muito
tímida e também muito magra, e francamente arisca com os desconhecidos. Também um bocadinho burra, diga-se francamente, pelo
menos para o meu gosto. Muitas vezes a comparei a uma chibarra
nervosa, daquelas que o pastor segura entre as pernas e sente todo o
seu corpo a palpitar fremente num misto de terror, cansaço e desejo
de se ver de novo livre, e de facto ela apenas se sentia bem ou entre os
seus ou então sozinha. Ou então frente à comida, fosse ela qual fosse. Nunca vi uma pessoa comer tanto, melhor dizendo, enfardar-se
tanto, embora pela vida inteira tivesse continuado magra que nem
um espeto.
Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, a Aninhas tinha vivido, isto
é, «tinha sofrido» um desesperado caso de amor pelo Natal que por
pouco não a levou do caixão à cova. Lembro-me, aliás, que a sua
extrema magreza foi adquirida nessa altura e nunca mais ela se endireitou, não obstante o quase ódio com que devora tudo o que for
comida que lhe passe pela frente dos olhos. Ela, coitada, nasceu de
uma família de comerciantes abastados, mas sei por conhecimento
directo que teve uma infância mais que infeliz. O pai, um homem
áspero e um tanto tirano, pretendia ser descendente em linha direc-
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As Memórias de um Espírito