. Tiros na tarde O som dos tiros ecoou na Confeitaria Glória. Parecia o estouro de bombas tardias das festas de São João. Com intervalos mínimos, três balas entraram quentes no corpo do homem que sentiu um arrepio e começou a morrer. Sábado, 26 de julho de 1930. Estendido no chão e indiferente à dor tecida no peito, ele olha as pessoas a seu redor. Nada mais lhe importa. Nem a derrota na eleição para vice-presidente da República nem a revolução que será iniciada em sessenta e nove dias. Enquanto agoniza, confunde as vozes que o cercam. Um garçom se aproxima, toca-lhe a palma das mãos e se afasta com nojo. Mulheres ficam ao largo, suspensas em sapatos altos, uma limalha de medo brilhando nos olhos. Quando um menino tenta ver de perto o homem caído, a mãe o puxa pelo braço, e tanto puxa, e puxa, que alguma coisa se desloca dentro da criança, um osso, um músculo, um pedaço da infância que jamais será a mesma. Há uma conspiração para matá-lo, grita uma voz de mulher. É um crime político, diz um homem com os nervos estragados. Uma cor de vinho borbulha, viscosa, à medida que a carne, ainda viva, tem espasmos. O paletó o aperta, mesmo que seu corpo esteja diminuindo. As medidas deixam de corresponder à realidade. A gola se estreita, as ombreiras murcham, a largura das costas e do peito se modifica. Um outro homem começa a sair de seu corpo, lentamente, um outro homem, um outro corpo, um corpo sem tronco, uma coisa estranha assim. Um homem de corpo dividido, meio ectoplasma, sem veias, veia cava, veia safena. Irrompe de algum lugar um homem cujos braços e mãos conduzem as próprias pernas, duas máquinas sem o ranger de rodas dentadas, os pés girando, cantando e andando no próprio eixo. Ele é um homem, composto pelo delírio de quem morre, duas pernas que funcionam, firmes. Quem é ele? Ele é alguém saindo do nada, uma figura que sai de coisa nenhuma, um estranho trabalhador de construção que transporta um pedaço de si mesmo num carrinho de mão. Ele tem vergonha de estar prostrado, mendigando a vida. Sente-se humilhado por morrer. Vencido, vê o que está a poucos metros de distância no chão, debaixo das mesas. Capítulo 1 Uma pequena bola de papel feita de jornal, uma tira de barbante, um pedaço de bolo de chocolate que rolou de cima de um prato na hora do desespero. Essa é a última visão que levará do mundo, rasteira e simples. Vestido num terno de casimira escura, pensa que estica os braços, mas não estica o direito na direção do teto nem o esquerdo que parece o contraforte da manga do paletó. Quando os recolhe, sem os recolher, indaga por qual lado a morte transita melhor, se através da sua mão direita ou da esquerda. Ele já respira mal e se entrega ao sono. Alguém lhe afrouxa a gravata vinho com listas brancas e azuis. Não me afrouxem a gravata, imagina que pede, sem pedir, os pés bem calçados com botinas de verniz, cano de flanela marrom, fileiras de botões atacando-as. Na cena anterior aos disparos, João Dantas saca um revólver, apresentando-se, sou quem eu sou. Está disposto a matar quem mandou publicar nos jornais as cartas íntimas e os poemas de amor trocados entre ele e sua amante, Anayde Beiriz, saqueados de seu escritório de advogado. Fará um assassinato límpido, documento com fé pública. Premeditado, quer, ele mesmo, matar às cinco horas da tarde. Move-se com firmeza e assinará o crime, embaixo, como um pintor assina um quadro. Ele vem de Olinda. Carrega consigo um Colt emprestado. Entra pela porta lateral da Confeitaria Glória. Quarenta e dois anos e calvo, magro, sobrancelhas bem desenhadas, feio, corpo e olhos de toureiro, um matador minúsculo de um metro e sessenta e quatro de altura. Estamos vingados, Anayde. Não diz, apenas pensa. Estamos, João. Anayde também não diz estamos vingados, João. Sequer pensa nisso, em algum lugar, distante dali, as pupilas dilatadas como um sol. Ela fala em beijo e ele também. Beija-me, João. Beijo-te, Anayde. O primeiro tiro o pega de frente, a camisa de seda palha ajustada por suspensórios, o sangue escorrendo para as costas. O segundo, mais embaixo. O terceiro perfura-lhe o antebraço. O paletó é atingido três vezes à altura do peito direito, na face externa da manga esquerda e na parte traseira direita. Para matá-lo, teria bastado o tiro de pouco menos de Boa Terra de Ódios Paulo Fernando Craveiro Capítulo 1 nove gramas que lhe atingiu o coração. Junto ao paletó, a camisa é sete vezes perfurada na frente e atrás, balas que entraram e saíram. Estamos vingados, Anayde. Ele não diz, apenas pensa. Estamos, João. João Dantas toma e retoma o fôlego. Já se vê igualmente morto na memória de sua morte. Sexta-feira, 3 de outubro de 1930. Sangra pela jugular na Casa de Detenção do Recife. Depois será um nome colocado em uma lápide. João. João que é ele e não o outro João. Ele guarda na memória as imagens de antes e posteriores aos tiros. João Pessoa levanta-se quando João Dantas está perto dele. Em seguida contrai-se, desfeito, e principia a cair. Alvoroço a seu redor. Levam-no, baleado, para o outro lado da rua. Na Drogaria Brasil, aplicam-lhe uma injeção de adrenalina. Tarde demais. Um guarda-costas entra em luta com o homem que atirara. O chofer do político chega rápido. Atira com um revólver, ferindo-o de raspão na fronte. Nunca mais conduzirá João Pessoa para o lugar que ele pedir, pensa o chofer. O carro parado na rua lateral da Confeitaria Glória. Dera a volta para estacionar a fim de recebê-lo quando saísse do chá. De algum modo, na lembrança antecipada, o chofer pode vê-lo voltando. Com reverência, abre a porta do carro negro. Para onde, chefe? Para lugar nenhum. Lugar nenhum, chefe? Estou morto, Antônio. Não é um fim de tarde comum, como tantos outros, embora as coisas estejam estabelecidas normalmente. Mesas prontas para o chá com torradas. Cardápio de pão de mel, bolo de nozes, sorvetes de baunilha. Pessoas fincadas sobre as cadeiras. Conversas banais. A poucos passos, na igreja da Conceição dos Militares, um aroma de incenso. João Pessoa chegara com a ênfase dos políticos, uma ondulação dos bemaventurados, a nuca fortalecida pelo colarinho. Sentimentos políticos e amorosos se agitavam nele. No bolso, o presente comprado na Joalheria Krause para a cantora lírica Cristina Maristany, vinte e quatro anos, futuro rouxinol do Brasil em Berlim. Ele tem Boa Terra de Ódios Paulo Fernando Craveiro Capítulo 1 cinqüenta e um anos, pálpebras em declive cavando as órbitas, olhos melancólicos. A tristeza ficara documentada nos últimos retratos tirados no estúdio de Louis Piereck, onde acabara de posar. Vaidoso, dera um jeito no cabelo com um pente providencial que aplainara a cabeleira grisalha. Pareço um artista de cinema? Não, não parece, João. Olha retratos de outros rostos espalhados pelas paredes, crianças arredondadas, noivas sorridentes no cio, velhos com bigodes de torcer numa fotografia 14,1 x 9,8 cm, de 1914, perdida numa gaveta. São eles Lourenço Bezerra Vieira de Mello, João e José Lins Cavalcanti de Albuquerque, dois velhos com o mesmo sobrenome dele. Sentado diante da câmera, observa a movimentação do fotógrafo por trás da máquina fotográfica protegida por um pano negro. Avista daguerreótipos, ambrótipos, ferrótipos e talbótipos, tantos modelos de técnicas fotográficas sobre prateleiras de estantes mal iluminadas. Louis Piereck o fotografa para a morte. Não me deixem morrer. Somente se conformaria com a morte depois de baleado. Não me deixem morrer. Setenta e três dias depois, Louis Piereck estará diante da morte do homem que vai matar daqui a pouco João Pessoa, o outro João, a fim de documentar o ferimento na garganta e a posição do cadáver. São seis horas e trinta minutos da noite quando uma ambulância sai das imediações da Confeitaria Glória e leva o cadáver de João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque para o necrotério. Boa Terra de Ódios Paulo Fernando Craveiro