A CIDADE E SUAS METÁFORAS EM “OS DRAGÕES”, DE MURILO RUBIÃO
Vinícius Ferreira dos Santos (PG-UEL)
Profª Drª Vanderléia da Silva Oliveira (Orientadora – UENP/UEL)
RESUMO:
O presente trabalho apresenta uma leitura do conto “Os Dragões”, publicado no livro O
Pirotécnico Zacarias (1974), de Murilo Rubião. A análise pretende identificar e traçar uma
reflexão a respeito de questões da vida do homem, discutindo, pois, a densa relação deste com
a cidade e o caos existencial, fruto de tal relação, expressa por meio do fantástico. Para tanto,
são utilizadas as discussões teóricas de Jorge Schwartz (1981), que auxiliam na compreensão
da tessitura literária muriliana, bem como alertam para a presença do fantástico em tal
narrativa. Além disso, para conceituação do fantástico, as ideias do crítico e teórico David
Roas (2011), que tem se dedicado ao estudo desse gênero, também são abordadas. O estudo
demonstra que os contos de Murilo Rubião propiciam ao leitor o contato com um mundo
ficcional que reestrutura a realidade, solapada por situações insólitas, representando, a partir
das metáforas, o absurdo que é a vida do homem em contraste com a sua realidade.
PALAVRAS-CHAVE: Murilo Rubião; Cidade; Fantástico
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INTRODUÇÃO
A posição que ocupa Murilo Rubião, um dos precursores do realismo
fantástico na literatura brasileira, é a mesma que Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges e Gabriel
García Marques ocupam na literatura da América-Latina. O escritor, nascido no ano de 1916,
em Silvestre Ferraz, hoje Carmo de Minas, criou o primeiro Suplemento Literário de Minas
Gerais e, envolvido sempre em política, foi Oficial de Gabinete do Governador Juscelino
Kubitschek. Morreu em 1991 com 33 contos produzidos, sendo três desses publicados
postumamente.
Mesmo com produção parca, em comparação a outros escritores, a presença
de Murilo Rubião na Literatura Brasileira é significativa. O escritor mineiro teve sua estreia
literária com o livro de contos O Ex-mágico, de 1947, um ano após a publicação de Sagarana,
de João Guimarães Rosa, ambos publicados pela Editora Universal.
Nos anos de glória do romance nordestino, Rubião, que se esperava realista
dado o período em que publica seu primeiro livro, revela-se na contramão dessa corrente,
pois retrata a realidade por meio da fantasia, por um viés do realismo maravilhoso. Por um
lado, a preferência pela escrita fantástica, em detrimento aos aspectos da geração de 1940,
cujas narrativas se voltavam para a discussão das questões mais sociais, levou-o a figurar de
modo ínfimo nas tradições critico-literárias no Brasil. Todavia, atualmente, os contos de
Rubião constam em antologias – como em Os cem melhores contos brasileiros do século,
reunidos por Ítalo Moriconi, – e em apresentações em congressos ao redor do país. Os contos
são carregados de questões concernentes à contemporaneidade, partindo de narrativas
fantásticas que apontam para o absurdo da vida contemporânea.
O conto,
objeto desta análise, foi publicado no livro O pirotécnico
Zacarias, de 1974. Nele, são mencionados os primeiros dragões que apareceram em uma
cidade sem nome. A população dessa comunidade aparentemente tenta coexistir com as
criaturas, tentando dar-lhes nomes em pia batismal, alfabetizá-los e fornecer-lhes trabalho.
Porém, muitos morreram devido às doenças provenientes do homem, sobrando apenas dois
dragões: Odorico e João. Ambos, movidos pelos vícios do homem, seguem rumos distintos
no desenrolar da história.
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Para mais bem definirmos o nosso objeto, serão considerados os
apontamentos de David Roas e seus estudos sobre o realismo maravilhoso no livro Tras dos
limites de ló real (2011). Já em A poética do Uroboro, Jorge Schwartz, considera que o efeito
do fantástico nos contos de Murilo Rubião ocorre por meio de uma organização da sintaxe
narrativa permitindo fundir e dar vida “a qualquer série de entidades, por mais antagônicas
que elas se mostrem na sua realidade concreta ou convencional” (1981, p.63).
1 - As transfigurações do real
Antes de adentrarmos nas análises do conto “Os Dragões”, faz-se necessário
compreender as definições sobre o fantástico e sua relação com a ideia do real.
O olhar sobre a realidade, conforme aponta Schwartz (1981), traz discussões
em torno de questões culturais e sociais. Toda cultura tem sua forma de observar o mundo ao
redor. Roas (2011) parece apontar para a mesma concepção de que o fantástico tem uma
relação intertextual com outro discurso que é o da realidade.
A norma que constitui o real tem caráter arbitrário e constitui-se pelo
referencial do leitor: “Seus valores culturais, que se atualizam através da história, forjam
padrões de julgamento (juízo) que caracterizam os aspectos normativos” (SCHWARTZ,
1981, p.54). Assim, o fantástico transgride o universo do concreto, do real e do cotidiano,
contrapondo-se às normas solidamente estruturadas, residindo a partir da linguagem.
A linguagem, com seu caráter referente, é puramente linguística criando
assim um paradoxo em relação ao mundo real que a constitui. Fundamenta-se em um universo
empírico, existindo apenas na dimensão da escritura “tornando-se paradoxal pela sua
capacidade de nomear aquilo que é e não é ao mesmo tempo” (SCHWARTZ, 1981, p.55,
grifo do autor). O fantástico, por essas condições, parte do ponto de referência do leitor e o
repertório normativo deste.
As palavras têm existência, ou seja, uma funcionalidade no momento em
que adquire status na sua região de uso: “Esse status é totalmente dependente dos efeitos da
diacronia, já que é através de sua “história” que a palavra consegue cristalizar-se, tornar-se
inteligível e usável” (SCHWARTZ, 1981, p. 57). Apesar de irreal, portanto, seres imaginados
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– como: dragões, elfos, duendes, gnomos, fadas, vampiros etc. – são aceitos graças ao fato de
possuírem status linguístico: “Este mecanismo integrador do irreal ao repertório do cotidiano
está muito próximo do modo de existência dos signos linguísticos” (SCHWARTZ, 1981, p.
58).
Dessa maneira, ao refletirmos sobre o momento da criação da metáfora,
possivelmente, ela não possuía o status que a linguagem do cotidiano atribuía-lhe: “Já na
linguagem poética o processo é inverso: a metáfora se enriquece na medida da força do seu
“estranhamento”. Aquilo que a valoriza é o seu (sic) anti-status, ou seja, seu efeito insólito”
(SCHWARTZ, 1981, p. 58). Na medida do avanço da leitura, as ações e os atributos vão se
enriquecendo e a personagem fantástica, e o mundo que a circunda, vão tornando-se
convincentes e autônomos. No nível da narrativa, o tom corrente com que o narrador se
coloca frente a situações fantásticas, Roas (2011) complementa nosso conceito:
A todo ello contribuye, como dijes antes, la labor del narrador: los recursos que
emplea van encaminados a integrar lo ordinario y lo extraordinario en una única
representación del mundo. No solo no muestra asombro alguno ni opina sobre los
fenómenos que narra, sino que los presenta al lector como si fueran algo corriente
(ROAS, 2011, p.61)
O leitor, portanto, contagiado pelo tom familiar com que o narrador se
posiciona, e a falta de assombro do mesmo, e dos personagens, acaba aceitando com
naturalidade.
A linguagem que define esse universo torna as situações ali presentes
verossímeis, criando assim o status necessário para que o leitor dê credibilidade à narrativa:
“O inverossímil conta com seu tempo de integração ao discurso verossímil” (SCHWARTZ,
1981, p.60). Ao recorrermos ao conto “Os Dragões” o aparecimento dos dragões na pequena
comunidade causa questionamentos pelas personagens do conto, não por serem dragões, mas
por sua repentina presença entre os homens. Vão, ao longo da narrativa, sendo inseridos
dentro do efeito do real do discurso, até que a verossimilhança deste integre-se nos dragões e
os iguale aos seres humanos.
Para Schwartz (1981) o fantástico na narrativa de Murilo Rubião se
apresenta na organização da sintaxe da narrativa, fundindo e dando vida a entidades
sobrenaturais, por mais antagônicas que pareçam, em relação à realidade concreta ou
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convencional. Nas palavras do crítico: “O discurso fantástico identifica-se, então, com a
função poética da linguagem, não apenas por pertencer ao universo da ficção, mas pelo
caráter autônomo de sua irrealidade” (1981, p. 65).
Por coabitarem em um mundo real, ou melhor, apontado como semelhante
ao real, sob os estudos de Roas (2011), poderíamos denominar o gênero de que Murilo
Rubião faz parte como realismo maravilhoso/mágico:
El realismo mágico plantea la coexistencia no problemática de lo real y lo
sobrenatural en un mundo semejante al nuestro. Una situación que se consigue
mediante un proceso de naturalización y de persuasión, que confiere status de
verdad a lo no existe. Así, los fenómenos prodigiosos son presentados como si
fueran algo corriente. Y eso lo distingue, por un lado, de la literatura fantástica,
basada en el enfrentamiento siempre problemático entre lo real y lo imposible, y, por
otro, de la literatura maravillosa, al ambientar las historias en un mundo cotidiano
hasta en sus más pequeños detalles, lo que implica un modo de expresión realista
(ROAS, 2011, p. 57-58)
A cidade, em que os dragões aparecem no conto, é semelhante ao
mundo que habitamos simplesmente por mostrar traços de “efeito do real”.
Após a inserção dos conceitos sobre o fantástico partiremos das proposições
apontadas em A poética do Uroboro, de Jorge Schwartz, livro este que estuda os contos de
Murilo Rubião. Para o crítico, o fantástico presente nos textos murilianos é uma máscara que
acoberta profundas questões ideológicas. A presença de uma linguagem conotativa nos contos
de Rubião integra textos que seriam passíveis de desvendar uma leitura ideológica “revelando
presenças culturais latentes” (SCHWARTZ, 1981, p. 75). O crítico ainda afirma: “A
linguagem do fantástico adquire funções que se projetam além do nível do texto ficcional,
para vincular-se a séries culturais de ordem universal” (SCHWARTZ, 1981, p. 76).
Utilizaremos, pois, subdivisão adotada do livro de Schwartz para analisarmos o conto “Os
Dragões”.
2 O fantástico ideológico: o cristão e o social
2.1 – As marcas de um texto cristão
Ao nos referirmos a um aparente subtexto cristão nos contos de Murilo
Rubião, logo nos remetemos à presença das epígrafes bíblicas. Desvinculadas de seu texto
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original, as epígrafes, aparentemente, perdem sua função e ressignificam seu sentido primeiro.
Uma peculiaridade, contudo, na presença das epígrafes bíblicas nos contos do autor mineiro
que essas remetem a uma dupla função. A epígrafe, afirma Schwartz (1981), reside em um
jogo de tensões temporais, ou seja, seu aparente isolamento no canto da página, não
demonstra apenas, ou somente, autonomia. Ao que tudo indica, parece depender tanto do
texto que o antecede quanto daquele que virá.
No conto de “Os Dragões” a epígrafe diz respeito ao livro de Jó capítulo 30
versículo 29, em que segue: “Fui irmão de dragões e companheiro de avestruzes”. Os dragões,
presentes tanto na epígrafe quanto no conto, na cultura judaica representam os bestiários
ligados a Jó – assim como os derivados: chacais, monstros marinhos, avestruzes e corujas.
Dessa forma, inseridos no conto, os dragões possuiriam um caráter de estranheza, de
desconhecido e, assim, estando por perto, não são aceitos. As criaturas representam a
manifestação do bem e do mal, ao mesmo tempo uma energia criadora e outra destruidora.
A presença do verbo no passado na epígrafe bíblica (“Fui...”) revela o
sofrimento de uma personagem rememorando as condenações a que lhe foram impostas no
passado. Ao iniciarmos a leitura do conto, o narrador, também em primeira pessoa, aponta
para verbos no passado, no caso o pretérito perfeito do indicativo (“...apareceram...”;
“...sofreram...”; “Receberam...”) dando a ideia de que aquilo que aconteceu se estagnou.
Com a chegada das criaturas na pequena cidade, muitas teorias foram
discutidas pela população. Primeiro o vigário: que acreditava serem dragões enviados do
demônio. Já o velho gramático negava “a qualidade de dragões, “coisa asiática de importação
europeia”(RUBIÃO, 1998, p.59). Enquanto o jornalista via nas criaturas monstros
antediluvianos, referindo-se ao dilúvio e a arca que figuram do Antigo Testamento.
Após o abandono dos dragões, por não terem serventia para a população, o
personagem narrador, um professor, decide alfabetizá-los e dar-lhes um nome. Porém, era
sabido por ele que eram dragões e deveriam ser tratados como tal. Muitos, assolados por
moléstias e doenças provenientes dos homens, vieram a falecer, ficando apenas dois
“infelizmente os mais corrompidos” (RUBIÃO, 1998, p.60): João e Odorico.
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Ao serem perguntados sobre o passado, ambos não se lembravam, a não ser
sobre a entrada na cidade: “Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se
confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a
escalada da primeira montanha” (RUBIÃO, 1998, p.60). Tanto “montanha” quanto
“precipício” são figuras que ecoam no Antigo Testamento. A primeira é lembrada enquanto
fortaleza, protegida por Deus e simboliza segurança; e a segunda sinaliza perigo, devido à
profundeza onde habita o desconhecido.
A preocupação maior do professor é a iniciação à maioridade de João: “João
acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade”
(RUBIÃO, 1998, p.61). O fogo remete a figurações dúbias: pode significar tanto uma força
criatura quanto destruidora; e pode, também, significar a iluminação pela sabedoria e
purificação da compreensão; já a destruição de Sodoma e Gomorra, presente no livro de
Gênesis no Antigo Testamento, foi a partir do fogo e do enxofre.
A presença de subtextos bíblicos também remete a uma possível finitude da
cidade no conto: “Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município [...]”
(RUBIÃO, 1998, p.62). No conto, os habitantes esperam a chegada de outros dragões, talvez
por já estarem condenados ao fim. Enquanto a já referida cidade bíblica fora condenada a
destruição, a cidade de “Os Dragões” é condenada a eternidade, dando esse caráter de
reiteração, voltando assim novamente à epígrafe.
O subtexto bíblico parece revelar um paradoxo que acompanha a maioria
dos contos de Murilo Rubião. Ao que tudo indica, ao preferir a eternidade na própria vida,
nega a integridade católica, amplamente difundida na cultura da América-Latina.
2.2 – Uma possível leitura: o texto social
A linguagem nos contos de Murilo Rubião, altamente simbólica, revela-se
como um filtro em que passam elementos que possibilitam uma conotação social, projetando
além do nível textual. Para Schwartz (1981), o elemento social é representado pela imagética
fantástica “mimese inverossímil do universo” (1981, p. 77). Recorrendo a Antonio Candido,
em Literatura e Sociedade, o sociólogo aponta:
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a criação literária corresponde a certas necessidades de representação do mundo, às
vezes como preâmbulo a uma práxis socialmente condicionada. Mas isto só se torna
possível graças a uma redução ao gratuito, ao teoricamente incondicionado, que dá
ingresso ao mundo da ilusão e se transforma dialeticamente em algo empenhado, na
medida em que suscita uma visão do mundo (CANDIDO, 2006, p. 64).
Assim, nos contos de Rubião, o elemento mascarado se faz presente na
medida em que suscita a necessidade de representação, dando sentido a sua existência. Deste
modo, amplia a necessidade de representação do mundo, socialmente condicionado.
Os dragões, no conto, cumprem sua função na sociedade ao ativar
preconceitos e intolerâncias na comunidade que se instalam: “Poucos souberam compreendêlos e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em
contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer” (RUBIÃO, 1998,
p.59). O homem necessita de um referencial e de um contexto, uma história, para
compreender-se enquanto existente em um mundo. Os dragões, contudo, são sujeitos ahistóricos e sem contexto, por isso enfrentaram repreendas de alguns habitantes na cidade,
pois, uma comunidade coesa tem dificuldade em aceitar o diferente em seu meio.
Somente as crianças aparentavam não se importar com a presença dos
dragões na cidade, talvez por não serem corrompidas, como os adultos o são: “Apenas as
crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos
companheiros eram simples dragões” (RUBIÃO, 1998, p.60).
Para residirem na cidade, os dragões necessitariam ter uma “utilidade” à
serventia da comunidade: “Serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões
na tração de veículos” (Idem). Dessa forma, a reificação condicionada aos dragões denota o
caráter exótico e diferente, e não como iguais.
A perdição dos dragões começa pela imposição do narrador em tentar
educá-los: “Quando, subtraídos ao abandono em que se encontravam, me foram entregues
para serem educados, compreendi a extensão da minha responsabilidade” (RUBIÃO, 1998, p.
60). Após essa decisão os dragões começam a morrer devido às moléstias e doenças
ocasionadas pelo contado das criaturas com os homens: “Na maioria, tinham contraído
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moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer. Dois sobreviveram,
infelizmente os mais corrompidos” (Idem), no caso, João e Odorico.
Em uma possível interpretação, por muitas vezes paradoxal, podemos notar
que a educação foi a grande causa da perdição de ambos os dragões. A educação, pelo
pensamento de Rousseau (1973), deve ser determinada pela natureza do homem, o que, no
conto, isso é negado aos dragões. O filósofo francês vê no homem a sua necessidade constante
em modificar a natureza, da mesma forma em que tende a ensinar sobre virtudes e verdades
absolutas.
Vemos, espelhados no conto, preconceitos e verdades quando Odorico, em
suas fugas constantes das aulas, se apaixona por Raquel. Para o narrador-personagem, em seu
“exercício continuado do magistério” (RUBIÃO, 1998, p. 61), via na relação entre Raquel e
Odorico uma ligação pecaminosa, vendo em seu papel como educador um dever moral de
separá-los. Dever não concretizado devido ao assassinato de Odorico pelas mãos do marido
traído de Raquel.
Muitas foram às características apontadas no texto que sinalizam as
perdições das personagens graças ao ensinamento: roubo, embriaguez, desordem, vício,
vaidade, - dessa forma, características humanas. Assim, podemos concluir, partindo de uma
possível interpretação sobre o conto, que o mesmo caminho da aprendizagem também conduz
à perdição. No conto, o que vemos, tanto em Odorico quanto em João, é a perda gradativa da
individualidade perante a força destrutiva da necessidade de encaixá-los dentro da
comunidade.
CONCLUSÃO: O homem e sua existência
A linguagem do fantástico presente no conto “Os Dragões” remete ao
questionamento do homem e sua circunstância. A cidade na narrativa parece simbolizar um
contexto a qual o homem é prisioneiro. A entrada e a saída dos dragões da cidade revelam o
confronto entre o homem e o mundo. Sinaliza, dessa forma, a inadaptabilidade do homem em
meio à solidão e à falta de comunicação:
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A “entrada da cidade” é o limite entre o céu e o inferno, entre o paraíso e o mundo
terrenal. Nem os homens podem transpô-las, nem os dragões se atrevem a voltar,
sob a pena de que a maldição da existência recaia sobre eles, ao repetir o processo
irreversível de Adão e Eva. (SCHWARTZ, 1981, p. 41)
Ao prostrarem na entrada da cidade na angustiante espera de outros dragões,
a população se vê presa ao constante ato repetitivo a que estão condenadas. Assim como no
Mito de Sísifo, em que a figura mitológica é condenada a carregar uma pedra até o topo de
uma montanha e repetir incansavelmente esse ato. A cidade, portanto, é condenada ao eterno
fazer desprovido de sentido.
Murilo Rubião apresentava características peculiares nas construções de
seus contos. Reelaborava a linguagem dos seus escritos constantemente, refazia-os mesmo
depois de terem sido publicados. Nesse constante refazer, Rubião escreveu obras
esteticamente bem realizadas, apresentando uma poética própria num invólucro de intensa
sensibilidade. Para Andrade (1999), o processo de reelaboração do autor, representava a
própria expressão da metamorfose, presente no nível tanto da construção do texto quanto da
temática adotada pelo autor.
Ler os contos de Murilo Rubião é estar em um mundo que reestrutura a
realidade, solapada por situações insólitas representando, a partir das metáforas, o absurdo
que é a vida do homem em contraste com a sua realidade. Este homem é caracterizado por
personagens que “estão presos em si mesmos; alguns tentam escapar ao seu traçado, mas não
conseguem” (ZAGURY, 1993, p.3).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos (mitos, sonhos, costumes,
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ROAS, David. Tras dos limites de ló real. Madrid: Páginas de Espuma, 2011. (ano)
ROUSSEAU, J.-J.Emílio ou da educação. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
ZAGURY, Eliane. As marcas de um foragido. In:______. RUBIÃO, Murilo. A casa do
girassol vermelho. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1993.
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