A entrevista que se segue foi realizada a propósito da criação do espectáculo Face a Mur (Contra a parede) encenado por Hubert Colas e feito no Thêàtre National de La Colline, teatro nacional especificamente dedicado à dramaturgia contemporânea e que completa com outros seis teatros nacionais (e quarenta Centros dramáticos a que se juntam mais de sessenta Cenas Nacionais, estas de programação também de dança) o dispositivo dos teatros públicos franceses de criação. Na nossa opção de peças curtas Into the Little Hill está, por assim dizer, no lugar de Ciel bleu ciel mas os comentários aqui feitos aplicam-se-lhe de algum modo ressalvando as referências literais. De referir que Ciel bleu ciel é uma encomenda do encenador francês para completar o esquema da criação francesa nesse ano de 2008. Devo ainda aqui referir que foi o meu querido amigo Paulo Eduardo de Carvalho, que uma onda traiçoeira levou do nosso convívio, extraordinário e empenhado divulgador do teatro contemporâneo de língua inglesa que entre nós revelou este autor, que me falou de Martin Crimp pela primeira vez com um entusiasmo que não posso esquecer. Não será por acaso que agora o vamos tentar – Crimp é um autor de tentativas de escrita, na tradição do verdadeiro experimentalismo. Ainda tenho no ouvido o Paulo a dizer, em confirmação do seu entusiasmo e descobertas de tradutor, que ouvira, em conversa com um eminente professor de teatro e literatura anglo-saxão, que Crimp seria certamente a grande revelação dos próximos anos no teatro de língua inglesa. ENTREVISTA A MARTIN CRIMP A propósito da criação de Contra a parede no Thêatre National de la Colline (nesta criação, o encenador Hubert Colas pediu a Crimp uma terceira peça, para além de Menos emergências e Contra a parede, neste caso título genérico do espectáculo. Crimp escreveu então Ciel bleu ciel) Élisabeth Angel-Perez: o que é que gosta numa trilogia de peças curtas? M. Crimp : gosto da ideia de uma trilogia como gosto de um fragmento de música em três movimentos: o argumento de cada secção deve ser denso mas as secções em si podem interligar-se de uma forma apenas indirecta. E.A.-P : Se tivesse que dizer em poucas palavras de que trata esta trilogia… M. C. : Diria que cada uma destas peças se concentra numa “crise” diferente: uma crise privada, um crime, uma crise política. Cada um delas explora diferentes estados de espírito no interior desta “cultura do contentamento” [daquilo que eu chamaria uma/nossa “cultura do contentamento” ?]. A primeira ( Ciel…) é o retrato de uma mulher que opta pelo conforto material em detrimento do seu bem-estar emocional. Na segunda, o narrador procura (em vão) as causas psicológicas de um acto de violência “irracional”: o massacre das crianças de uma escola. Em Menos emergências o narrador imagina um mundo em que os ricos se vingam violentamente dos não ricos (em cenas que fazem lembrar acontecimentos recentes na periferia parisiense). Entretanto gostaria de insistir de que se trata de textos para o teatro e não de tratados políticos. As peças são na realidade articuladas por imagens da infância: em cada uma delas as crianças são testemunhas de acontecimentos que não compreendem e são olhadas com desconfiança e hostilidade pelos protagonistas. O olhar da infância é algo que os adultos acham insuportável. E.A.-P : O que é que o levou a escolher este formato? M. C. : Uma mistura de acaso e necessidade. Formalmente estas peças partilham uma mesma técnica: um drama é contado e não interpretado. É um tipo de escrita que caracteriza também (A)tentados ( Attemps of her life, tradução de Paulo Eduardo de Carvalho para a Campo das Letras, 2000). E.A.-P : Deu às personagens números em vez de nomes, porquê? Pensa que é necessário repensar o conceito de personagem no teatro? M. C. : Não o repensar, apenas pensá-lo. Umas vezes sinto necessidade de fazer teatro naturalista, com personagens nomeados (A cidade, Terno e cruel); outras vezes tenho necessidade de me libertar dessa limitação para poder simplesmente seguir a voz que está na minha cabeça. Quando escrevi (A)tentados (17 sequências que descrevem uma mulher cuja identidade parece em constante mutação), dei conta de que tinha inconscientemente criado um objecto “pós-moderno”, segundo o pressuposto (sobre o qual se é agora menos categórico) de que a identidade é uma “construção cultural”. Mas deve dizer que não era a minha intenção. O que me interessava antes de tudo era propor uma sátira de certos mitos contemporâneos. Entretanto penso verdadeiramente que a “identidade” moderna consiste numa certa medida em viver nas nossas cabeças (um pouco como quando estamos fechados num automóvel que não pára). No século XIX o teatro abandonou a rua e instalou-se nos salões de tortura de Ibsen e Feydeau; e no século XX, Pinter e Beckett transformaram este espaço num espaço mental que certos autores (a Sarah Kane de Crave e 4:48 Psicose) continuam a explorar. E.A.-P : Que função atribui ao riso nestas peças? M. C. : Que suceda, é tudo. E.A.-P : Diria que as categorias de comédia e de tragédia se tornaram obsoletas? M. C. : Essas categorias não me socorrem em nada quando escrevo. Numa peça “normal” o trabalho do autor consiste em inventar uma história, em meter personagens em acção e em dar a impressão de não estar presente: as personagens têm “uma vida própria”. Nestas peças o processo de invenção da história é tornado visível. A história não se conta “em cena” mas no espírito de todos os participantes, espectadores incluídos. É um pouco como injectar a história de modo intravenoso, mais do que simplesmente engoli-la. E.A.-P : Uma palavra sobre a música nestas peças e sobre o scat (vocalizos sincopados. Técnica vocal própria do Jazz que consiste em substituir as palavras por onomatopeias e sílabas não significantes) em particular. O blues que conclui Contra a parede tem uma função particular ou é apenas lúdico? M. C. : A primeira vez que escrevi palavras para uma canção foi em (A)tentados (1997). O teatro sério em Inglaterra não tem canções – portanto, escrever palavras para uma canção naquela altura era ter prazer em ser perverso; também foi para mim a descoberta de um novo recurso. O blues no fim da peça Contra a parede foi completamente instintivo. Claro que a rima nos força a seguir um caminho, inconscientemente. Cantar sem palavras tem uma beleza própria. E. A.-P : A data 10 de Setembro de 2001 que aparece no fim de Menos emergências foi lá metida à posteriori? M. C. : Eu escrevi Menos emergências a 10 de Setembro de 2001 e curiosamente assinalei isso por escrito. Lembro-me de ter sido convidado por um amigo americano um pouco mais tarde no ano para dar uma contribuição para uma peça sobre o 11 de Setembro. A ideia não me agradava nada. Nessa altura apaguei a data porque não queria que o meu texto ficasse refém do discurso sobre o 11 de Setembro. Na realidade, Menos emergências tem a sua origem numa situação que vivi em Zurique. Eu estava a atravessar a rua com um amigo perto de um grupo de manifestantes que protestavam contra a mundialização. A polícia respondia às pedras lançadas com gaz lacrimogéneo. Estávamos em cima de uma nuvem de gaz. Tinha um aspecto branco, difuso e inofensivo e pensámos que a podíamos atravessar. Alguns momentos depois sentimo-nos completamente inválidos, incapazes de respirar como deve ser, momentaneamente cegos também. E tudo isto a segundos de distância do magnífico Limmat (rio Suíço com 140 Km de extensão que desagua no lago de Zurique)! A rapidez da transformação (e seguramente a excitação particular ligada ao acontecimento) relativamente ao que antes era uma paisagem ordenada e agradável sem dúvida influenciou o tom de Menos emergências. E.A.-P : Qual é o papel do teatro nas nossas sociedades? M. C. : Para mim é um teste de linguagem: os actores e o público criam uma espécie de a acelerador de partículas para examinar as entranhas das palavras. Não existe nenhum outro lugar em que seja possível obter uma tal concentração colectiva. O teatro lembra-nos constantemente que os seres humanos são mais contraditórios e estranhos do que alguma vez algum ideólogo possa imaginar. Entrevista traduzida do francês por Fernando Mora Ramos