A BATALHA ENTRE O DRAGAO NEGRO E O DRAGÃO VERMELHO Sofia Areal teve a primeira exposição individual de pintura em 1989, mas todo o seu trabalho desenvolveu e criou uma linguagem muito singular ao longo dos anos noventa. Podemos aproximar estes TRABALHOS RECENTES (2003-2004, aguarela, tinta da china e acrílico sobre papel) de uma sua continuidade marcada pelo predomínio das linhas e dos planos curvos sobre mais amplas dimensões pictóricas, mesmo quando o desenho se organiza em espaços de reduzida escala. Está presente uma técnica de construção do desenho que se Converte, por sua vez, num meio de compreensão da realidade. Este seu exercício da pintura e do desenho mostra preferência pela utilização de uma linguagem que muitas vezes nos surge carregada quer de ironia (e mesmo de um humor que, partindo de muitos dos títulos que tem dado a obras suas. invade o espaço imediato da criação plástica), quer de recursos e de procedimentos expressivos. Um olhar muito próprio é transportado para o desenho (tal como ocorre nestes num destes TRABAHOS RECENTES) ou para a pintura que tem realizado. Desse olhar potencializam-se formas de representar um campo expressivo (marcadamente, aqui, ao redor do círculo) que invade o papel como se se tratasse de corpos de (verdadeiros) actores. Deste modo, Sofia Areal põe em prática (põe em cena) um princípio de verosimilhança, uma exactibilidade que reteatraIiza não só o vivido quotidiano como também o percurso que nesse «vivido» o desenho testemunhou, uma vez que nele tomou lugar central, como obra de criação. Representa-se um pressuposto de drama, que a capacidade plástica e imaginativa julga, interpreta e muda conforme a exigência voluntariosa do traço, do risco e da cor. E tudo isto tem lugar não através de uma explícita figuração, mas de um fazer e desfazer da linha e do círculo; de um certo «mistério», ao modo daquele que percorreu a obra (e o espírito) dos futuristas italianos, dos construtivistas russos ou do cubismo analítico (Franz Marc, Léger ou os Delaunay). Tomemos estes TRABALHOS RECENTES como uma decomposição do círculo. Na qual tem lugar uma pulverização cromática e um decisivo recurso a um modo particular de abstração. E ainda uma batalha de contrastes (tal como sucede entre o dragão negro e o dragão vermelho que propus para título desta leitura dos desenhos de Sofia Areal) que, na sua natureza, resulta de uma evocação expressiva tomada pelo plano das cores. O qual persegue uma instauração de ritmos circulares, gerado por uma simultaneidade de formas igualmente circulares. A segmentaridade do círculo surge como o modelo do corpo maior dos desenhos, senão mesmo de todo o trabalho que nos apresenta. O círculo. Na sua constante (des)articulação, corresponde a um «balancear» orgânico que tem a sua fonte num plano único e determinante de variações graduadas: negro. vermelho escarlate, vermelhões, vermelho inglês («aludindo aos vestimentos militares ingleses desde o século o séc. XVIII», diz Sofia Areal), azuis (que deslizam até à captação de um azul marítimo), amarelo vivo, branco (que se sobrepõe ao marfim do papel), magenta, laranja. Variações graduadas de um protótipo original que funciona como modelo de todas as «produções» desenhadas e que entre si realizam uma continuidade, mesmo quando o carácter simplificado dos seus elementos é interrompido pela presença de «barras». Nesta perspectiva, os desenhos surgem como variações sobre um tema insistente: o círculo. À sua configuração se deve uma diversidade de formas e uma variedade performativa, sempre jogada e equilibrada pelo exercício da própria cor. Esta assume no desenho um sentido de economia, de justificação do que é conseguido e produzido pela mobilidade do círculo e dos seus segmentos, do seu dobrar e desdobrar, do seu espelhamento e do seu descer dentro de si mesmo. Vibrátil e móvel: eis os atributos que podemos aqui ver enunciados quase como uma necessidade capaz de ferir a própria vida. E com ela trespassar a pintura (do desenho) e o papel (Não é sem mais que num dos dípticos o papel surge recortado.) Essa vibratilidade consiste numa frequência de linhas curvas, de cores que «vestem» esse curvar e que estabelecem um campo oscilatório colorido do qual emerge um fugidio alvo. Aguarda setas, flechas que são lançadas. «barras» que dão sonoridade á cor, como se fosse a modulação de uma voz. Que irrompe na intensa claridade da cor (mesmo o negro vem ferido desse vibrado, como se tivesse sido previamente cindido por uma ideia, por um sentimento, por uma visão de luz). A seta, a flecha é lançada e permanece numa contínua mobilidade, pois o alvo, o centro que determinou a linha curva e a totalidade do círculo, jamais se fixa, jamaisse dispõe a um natural repouso. O desenho como que desliza dentro (e fora) da superfície que o papel propõe. Parte para um espaço imaginado, além. Desvia-se do seu foco central. EIeva-se do desenho a «transgressão» de uma linha de fuga, de uma circularidade de fuga. Prolonga-se o desenho num desvio, que funciona de um modo próximo de uma raiz psicológica, de uma peculiaridade manifestada pela arquitectura da cor. É que em pleno desenho há um rasgo intuitivo que determinou o curvar de um negro, de um vermelho ou de um branco carregado de marfim, há uma espécie de étimo espiritual que intervém na acção (do desenhado) e se resolve, ora no espelhamento de um par ora no (ir)resolúvel conflito da forma criada pela presença do díptico. E são dípticos a quase totalidade destes TRABALHOS RECENTES. Os dípticos apresentam a visualização de uma «dobra»: do campo inferior sobre o superior ou então o seu contrário. Ou lado a lado, num percurso que se move da direita para a esquerda, nos trabalhos de menores dimensões. Uma face espelha-se sobre a outra face. Pingos de tinta. como um impulso inconsciente, resolvem-se igualmente como pintura, como uma «nódoa», provável local onde a desatenção emotiva da flecha errou o «errático» alvo. São, esses nódulos de cor, uma imediata descarga de tensões (e penso que mais do desenho do que da sua autora), uma espécie de vigília que irrompe no espaço concluído do desenho e que nele irá permanecer como uma evidência de imagem que não precisa de qualquer fio condutor, de qualquer ordenação anteriormente gizada ou de prévio processo reflexivo. Esses matéricos pingos de tinta evidenciam um gesto espontâneo, que regista a sua aleatória presença durante a passagem do imaginado desenho à evidência do seu existir. É um objecto exterior que escapa, que não pertence, às associações de imagens internas (com o sentido de íntimas) que se proiectaram, que se manifestaram de um modo conclusivo na realidade desenho. Guardam estes dípticos, no deslizar de uma a outra folha, uma suspensão. Como se no desenho do primeiro papel alguma coisa tivesse restado «por dizer» ou não tivesse tempo de ser concluída dentro do seu espaço. A segunda folha não só pode introduzir um elemento novo, como pode esclarecer o significado do primeiro e anterior desenho, como poderá ainda manter um sentido inesperado que. de certo modo, herdou. Na duração deste passo, no deslizar de um a outro desenho que dá forma ao díptico, se inscreve o seu sentido «suspenso» e também a sua sustentação enquanto continuidade. Mais do que tomar o enunciado do primeiro desenho e explicitá-Io, o par (do díptico) vem «julgar» a linha curva, a plana esfericidade e o desfocar do círculo. Esse par desenhado reduz a sua existência não a uma ordenação do «mundo» do desenho, mas a uma procura do fundamento da unidade desenho surgida sobre a forma de um díptico. O círculo e as linhas que introduzem a planura da esfera desdobram-se numa contraposição, numa oposição do negro sobre o vermelho. (No seu deslizar de uma curva sobre outra. entendo-as como uma batalha de cor e também de sonoridade. Como se nos descrevessem uma feroz luta entre o dragão negro e o dragão vermelho, semelhante àquele que nos é mostrado numa iluminura do séc. XV, referente ao círculo arturiano da Demanda do Santo Graal. A ela assistem o mago Merlin, a rainha Ginevra e o cavaleiro Boorz de Gaunes, numa clareira da floresta de Corberic.) De uma predominante não figuração, por vezes, o desenho introduz nos trabalhos de pequena dimensão um aludir a corpos delineados. A circunstância do díptico ora inverte ora espelha as suas frágeis casualidades masculinas e femininas. Essas simples e percepcionadas figurações também se sujeitam a uma mobilidade que não permite uma imediata fixação. Instantes que da massa informe da cor invadem, de modo a um tempo brusco e ténue, O «brilho» do desenho. Num outro pequeno díptico, as superfícies esféricas trazem o seu contraponto na massa informe de um vermelho, que reduz as várias esfericidades a um amálgama, prestes a iniciar a qualquer instante um percurso explosivo. Irá criar uma disponibilidade para se expandir em novos círculos. Outros dípticos lançam num espaço «botânico» o desenho e as cores vibrantes da sua temporalidade, ao deixarem que se delineiem órgãos sexuais. No seu hipotético domínio vegetal aludem a uma masculinidade fecundante de festivas corolas. Enquanto o universo estelar que se expande no trabalho de maior dimensão se refugia nos de menor escala, enviando para uma contenção de sinais, vibratilidades e, mesmo, sentidos emotivos prontos a desordenarem esse «conter» numa pulverização do desenho, da cor e da sua qualidade plástica. O traço do círculo que sobre si mesmo abre a sua coloração conduz a um pulsar serpentinado e a um regresso constante de um jogo de forças que se dilatam e se contraem. Dão lugar a uma secreta correspondência com a mecânica de uma diástole e de uma síntese, um modo que pode ser bem marcante da aproximação à distinta realidade destes desenhos. João Miguel Fernandes Jorge Pátio, 1 de Novembro de 2004