4 JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE Dois poemas PRESÉPIO ANIMADO DA RIBEIRA GRANDE Ainda todos se lembram do dezembro de 96. Era dia de natal. Na estrada que leva ao norte da ilha, sob grande tempestade, trôpego, na berma, um gato de pelagem branca. Parecia ferido. Fêmea branca, a que chamariam persa de pêlo curto, tinha uma chaga na orelha alastrava pelo crâneo e pela fauce e olho. Massa disforme de carne e sangue, pancada de carro ou parede de muro desabado a ferida. Animal muito manso, delicado e tímido, deixou que me aproximasse lhe pegasse e a trouxesse para dentro do meu carro. Tremia de frio e também de medo e dor. Enchuguei-a com um pedaço de flanela, dei por mim chamando-lhe Princesa: era muito nova, pequena, de um branco que resistia ao lixo da terra da quase sarjeta de onde a tirei; olhos claros, amendoados. A mais delicada e triste das gatas com a horrível ferida a alastrar, implacável. Uma gangrena que exalava cheiro pestilento - a princesa branca apodrecia no dia de natal. Havia uma caixa de cartão no banco traseiro, coloquei-a dentro e descobri a casa do veterinário. Era uma pasta de sangue, carne e urina tão assustada estava. O médico agarrou-a - eles já cheiraram muita pestinência, os veterinários fez-lhe festas. Era muito meiga. Não pude olhar enquanto a matava; meteu o corpo branco, ainda quente, na caixa de cartão. Levei-a, morta, e com aquele cheiro; já quase noite. Enterrei-a num pequeno jardim, bem perto do presépio animado da Ribeira Grande, que nesse fim de dia de natal ainda visitei. As lágrimas de nada servem, nem por uma gata branca a que chamei Princesa, durante uma escassa hora, a debater-se com a morte. O sangue, a urina o cheiro da gangrena. Este é o inferno dos mortais, a sua beleza e fragilidade. A morte é uma coisa e a vida, a mesma coisa. A face da morte é o reflexo da vida quando se debruça sobre a superfície da ilha. Luze em todos os natais, suave, esbatida de traços - palavra de traição que rodeia o medo, o abandono. COMO PODEMOS ESPERAR Como podemos esperar. Aguardar o que nossas mãos possam reter. Uma palavra. O olhar cúmplice. Se as coisas têm já o estado do vento o que nas ruas fica das vozes ao fim do dia. Aguardar mais aguardar nada quanto mais se repete uma palavra «estou sentado virado para a parede desta casa» baixo, mais baixo ainda, «estou sentado virado para a parede desta casa». Fazer que não haja sucedido o sucedido. O prazer de sentir chegar as coisas o riso sob a chuva o frio que faz. Aqui como podemos esperar uma noite de lua e vento?