Índice
UTENSÍLIO
1/18
UTENSÍLIO
Robert Cresswell
in: Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1989, vol.16 Homo — Domesticação — Cultura Material, p.313-328.
ÍNDICE DO ENSAIO
1. O que é um utensílio?
2. As formas
3. A matéria
4. O gesto
5. As estruturas
Bibliografia
1. O que é um utensílio?
A propriedade fundamental de qualquer utensílio é a transformação da matériaprima, quer se trate de tosca pedra empunhada pelos nossos remotos
antepassados, quer do campo magnético que há-de conter o plasma dos futuros
reactores nucleares. Até aos limites dos campos metafóricos do espírito — os
conceitos como «utensílios» do pensamento — o fim de todo o utensílio é operar
uma transformação. Esquecer este princípio, ou esta finalidade, equivale a
renunciar a compreender completamente o lugar ocupado pelo utensílio na história
humana, visto que qualquer outra abordagem evidencia apenas aspectos
marginais, ao passo que se encararmos a sua capacidade de transformação
estamos a colocar o utensílio no interior de um processo técnico, de uma estrutura,
único espaço onde é possível compreendê-lo verdadeiramente. Quando o interesse
se concentra na transformação, é impossível analisar o efeito de um utensílio sobre
um material sem pensar na proveniência desse material — no seu estado antes da
transformação — e naquilo que passará depois a ser o produto acabado. Este
artigo insere pois o utensílio no seu contexto, que é o de um processo técnico.
Numa sociedade, o conjunto dos processos corresponde ao conjunto das estruturas
técnicas da própria sociedade.
Este enunciado não tem por objectivo negar a pertinência de outras análises ou
de outros agrupamentos. Ninguém põe em dúvida a utilidade de reunir plainas para
estudar a sua forma e funções, de analisar a evolução dos arados e das relhas ou
de decompor os gestos de um lenhador quando utiliza o machado, com o fim de
compilar estatísticas de rendibilidade, tanto mais que existe uma lógica no
desenvolvimento do utensílio: uma enxada tem tendência a adquirir um cabo, uma
lâmina de lança a ter mais pontas, uma roda a ter uma cercadura. Portanto, o
Índice
Índice
UTENSÍLIO
2/18
estudo de um único tipo de utensílio esclarece-nos quanto ao seu particular
dinamismo interno. Ou, ainda, no campo da lógica técnica, um trabalho difícil
sugere um aumento de eficiência do utensílio ou a substituição da energia humana
por outra de diferente origem. Isto não significa que toda a evolução conduza a um
melhoramento; existem também casos de degeneração técnica. Para nos limitarmos
a um único exemplo, as prensas para azeitonas da antiga Síria (século IV-V d.C.)
eram mais aperfeiçoadas que as que se utilizam actualmente nessa mesma região,
no sentido em que as primeiras exigiam um esforço menor que correspondia a um
resultado exactamente idêntico ao que se consegue com as segundas [cf.
Cresswell 1965]. Note-se, porém, que os casos de degeneração hoje conhecidos se
referem sempre a um conjunto de utensílios e não a um único utensílio, o que nos
leva de novo à noção de estrutura.
Outro exemplo é a recolha, com fins de estudo, de todos os utensílios de uma
determinada cultura, entendendo-se por cultura, em sentido antropológico, o
conjunto das instituições sociais, das regras de comportamento e dos meios de
produção de bens materiais de um determinado grupo humano. O que salta
imediatamente à vista, ao observar uma tal recolha — e isso sem possuir ainda
conhecimentos técnicos profundos —, é o estilo étnico. Um determinado número de
utensílios tradicionais japoneses distingue-se pelo seu requinte ou mesmo apenas
pela funcionalidade que a sua forma deixa adivinhar, sinal de uma grande perícia.
De facto, fabricar, por exemplo, um martelo que permita uma batida com a força
equivalente a dois quilos, quando a resistência do material exige uma força de um
quilo e oito, demonstra um conhecimento técnico de alto nível. O material dos
Esquimós espanta-nos pela fantasia e pela astúcia do modo como é trabalhado. Os
utensílios e instrumentos do subcontinente indiano parecem, pelo contrário,
pesados, como se tivessem uma potência ou uma resistência muito superiores às
necessárias. Os exemplos extraídos da área cultural euro-americana parecem, mais
que nenhuns outros, trazer as marcas de um uso prolongado. Estas são,
evidentemente, impressões subjectivas, mas que resistem bem à prova de um
exame profundo e exprimem, portanto, uma diferença real no comportamento dos
homens perante as suas técnicas.
Por úteis, ou mesmo necessários, que sejam estes agrupamentos e outros que
se poderiam inventar, eles não bastam para compreender completamente a relação
entre o homem e o utensílio. Além disso, este tipo de classificação leva a
considerarmos o homem em relação ao utensílio e induz, por conseguinte, a
considerações fisiológicas e psicológicas. Mas o que é exactamente um utensílio?
Para que serve? Que significado tem na história do homem? Para responder é
necessário sobretudo pôr as perguntas no plural e estudar as relações entre os
homens e os utensílios.
Colocado desta maneira, entrevê-se uma solução para o problema. O único
agrupamento de utensílios que permite uma análise segundo o seu princípio
fundamental é o agrupamento por técnicas. Primeiro que tudo, a agricultura, a
extracção de minérios, a pesca, as actividades de construção são campos que
possuem não só uma realidade técnica, mas também social. Colocar os homens
Índice
Índice
UTENSÍLIO
3/18
perante os seus utensílios significa portanto reunir todas as dimensões do
fenómeno. Colocar os utensílios nas estruturas das técnicas é também essencial
para o lugar de mediadoras que estas ocupam entre natureza e cultura. O homem
é, até agora, o único animal que verdadeiramente reestrutura a natureza para que
ela responda às suas necessidades e às suas aspirações. Sem as técnicas, as
culturas humanas não existem. Por outro lado, a separação das categorias de
estudo entre técnica e sociedade não é um simples artifício intelectual, mas
corresponde de modo positivo a uma diferença fundamental entre dois modos de
comportamento. Existe uma lógica das técnicas, uma evolução lógica dos
utensílios, ao passo que as instituições sociais, as regras de comportamento entre
indivíduos e grupos demonstram apenas uma adaptação mais ou menos feliz a
situações técnico-económicas, apresentando-se através de rupturas,
transformações e sobretudo redistribuições de valores.
Estabelecido este ponto, é possível tratar as actividades humanas de transformação do ambiente natural, e mesmo de criação de ambientes artificiais, quer a
partir dos utensílios, quer a partir das técnicas. Veremos que em ambos os casos o
resultado será pôr a nu as estruturas. Forma, gesto e matéria são os três pontos de
vista geralmente adoptados quando se estuda o utensílio para poder compreendêlo e, através da sua compreensão, chegar à sua análise. Procederemos
precisamente deste modo. Aliás, ao considerarmos estes três conceitos,
encontraremos um quarto que surge em grande escala quando se reflecte sobre os
utensílios: a função.
Na realidade, os estudos que partem da função limitam-se geralmente a julgar a
eficácia de uma forma e de um gesto numa determinada matéria. É preciso ampliar
o conceito de função até compreendermos toda uma estrutura em que se encontra
inserido um conjunto de utensílios, que transformará um material em estado bruto
num produto acabado. As pesquisas actuais no campo tecnológico tendem a
destruir o quadro das tipologias estáticas (as diversas formas) e a substituí-las por
tipologias dinâmicas, isto é, por tipologias de relações. Nesta condição, e só nesta
condição, poder-se-ão entender problemas específicos, como a invenção ou a
construção técnica, e problemas mais gerais, como a relação entre fenómenos
técnicos e fenómenos sociais.
Índice
Índice
UTENSÍLIO
4/18
2. As formas
Vale pois a pena tentar orientar o modo de encarar os objectos aqui adoptado,
examinando aquilo que nos pode oferecer o estudo das formas. Será, no entanto,
útil definir primeiro brevemente o objecto em questão: um utensílio será aqui um
instrumento utilizado pela energia do homem para transformar ou modelar um
material. As definições correntes — e são numerosíssimas — dizem geralmente
que o utensílio é um instrumento que se utiliza com as mãos, o que nos parece
demasiado restritivo: como classificar então os tornos dos mercados de Marraquexe
(para dar apenas um exemplo), postos em movimento pelo pé do torneiro? Ou,
ainda melhor, o que dizer da dobadoura tradicional da agricultura francesa?
Podemos então definir o utensílio, de uma vez por todas, como um instrumento que
permite realizar uma acção (a transformação de uma matéria) que o homem não
quer ou não pode executar utilizando apenas a sua própria força ou o seu próprio
corpo. O homem pode, se quiser, arrotear a terra com as mãos e os pés para nela
lançar as sementes, mas prefere adoptar um utensílio. O homem não pode, mesmo
se o quisesse, abater com as mãos uma sequoia: tem de adoptar um utensílio.
Entre uma cisalha e um machado, preferirá a primeira. Por outro lado, os utensílios
podem dividir-se em activos e passivos. Os segundos são constituídos pelos
instrumentos imóveis que se encontram no laboratório de um artesão: a bigorna dos
ferreiros, o banco dos carpinteiros, o torno dos oleiros. A máquina será, afinal, o
instrumento ou utensílio movido por uma energia diferente da do homem.
Ninguém põe em dúvida o lado arbitrário de definições como estas. Por exemplo:
a pá é um utensílio, o tractor é uma máquina, mas o arado puxado por um cavalo é
uma máquina ou um utensílio? Note-se, além disso, que o carácter passivo ou
activo de um utensílio não é uma característica intrínseca: uma plaina, por exemplo,
é um utensílio activo quando a tábua que é preciso aplainar está fixa no banco, mas
pode transformar-se num utensílio passivo quando atinge dimensões muito
grandes, de tal modo que, virada ao contrário e fixada em suportes, faz com que a
tábua a aplainar seja a parte activa do dispositivo. Lembremo-nos que estas
definições servem para delimitar, de modo bastante impreciso, campos de estudo,
mas não é imperioso que nos limitemos a elas. Além disso, a dificuldade em colocar
este ou aquele objecto numa categoria de definição deve lembrar-nos que se trata
de atribuir um significante a um significado e que o primeiro não modifica, de modo
nenhum, os traços característicos do segundo. O modo de trabalhar de um escopro
não será modificado se dissermos que pertence à categoria das facas.
Passemos um olhar, de momento superficial e indiferenciado, pelas formas dos
utensílios. Existem formas que chamam imediatamente a atenção, sem que
devamos sequer falar de um estilo de conjunto. Observemos um alicate chinês,
utilizado para enriquecer a terra dos campos com o lodo extraído do fundo dos
canais. Trata-se de um aparelho de forma oval aberto numa das extremidades, de
modo a formar duas mandíbulas que se abrem e fecham por meio de dois longos
bastões que rodam sobre si próprios dentro de um orifício apropriado existente na
Índice
Índice
UTENSÍLIO
5/18
outra extremidade. Com uma acção semelhante à de uma tesoura, as extremidades
livres dos bastões afastam-se para afundarem o instrumento no lodo dos canais,
que é trazido à superfície quando os bastões voltam a fechar-se [cf. Hommel 1969].
Consideremos ainda o utensílio que certos Índios da América Meridional usam para
preparar a mandioca amarga. E um longo cilindro de vime entrançado de tal modo
que, sob fricção, se alonga, diminuindo assim de diâmetro. Uma das extremidades
é ligada a um ramo, o corpo do cilindro enche-se de massa de mandioca e puxa-se
a outra extremidade. A redução de diâmetro alcançada faz com que o utensílio
funcione como uma prensa que espreme o líquido impróprio para consumo do
homem [cf. Sloane 1974]. Estes dois exemplos espantam-nos pelo seu engenho;
outros ainda deslumbram-nos pela elegância da forma ou por diminuírem
consideravelmente o trabalho que seria necessário para obter o efeito desejado.
Mas existem também utensílios que não chamam a atenção, que não despertam
admiração, que parecem mesmo de uma rudeza absolutamente primitiva. Esta
primeira impressão é geralmente enganadora. Tomemos como exemplo o arado
dos montanheses do Líbano, feito de uma única peça, tendo, numa extremidade,
um manípulo e, na outra, uma relha; ligado a um jugo de bois por meio de um
simples gancho aberto, fixado numa das extremidades do timão, parece saído da
noite dos tempos e parece, à primeira vista, reflectir um notável imobilismo técnico.
No entanto, é perfeitamente adequado ao trabalho de lavrar socalcos extremamente
estreitos. O sistema de ligação ao jugo — o timão corre por um anel fixado no
centro do jugo, e o esforço de tracção faz-se através do gancho — permite tornar a
prender o arnês entre os dois bois quando o lavrador chega ao fim do socalco, de
tal modo que lhe permite voltar os bois e o arado num espaço extremamente
reduzido. Além disso, a mobilidade deste sistema de fixação permite traçar sulcos a
toda a largura do socalco sem que os bois tenham de alterar o seu percurso, o que
lhes seria, muitas vezes, impossível. O utensílio corresponde perfeitamente às
condições de trabalho, tão exactamente quanto o mais requintado instrumento de
relojoeiro.
Para continuarmos no campo agrícola, examinemos um outro arado tradicional,
proveniente da província de Chechiang, na China. Instrumento destituído de
qualquer especial elegância, revela, no entanto, alguns dispositivos engenhosos. A
aiveca de ferro fundido possui uma grande protuberância na parte de trás, no meio
da qual se faz uma fenda. A ligação (pedaço de madeira vertical que une o teiró ao
timão) passa pela fenda, e a altura e o ângulo da aiveca podem ser regulados
enfiando anéis de madeira, de maiores ou menores dimensões, na ligação entre a
cauda da aiveca e o teiró. Além disso, a altura do timão pode ser regulada do
mesmo modo na ligação, modificando assim o ângulo de atrelagem do arado.
Escolhemos estes exemplos entre muitos outros que poderíamos citar: é preciso
portanto estarmos com atenção e não julgarmos a elegância funcional de um
utensílio pela sua elegância estética.
Em algumas regiões encontramos uma enorme variedade de formas de um
mesmo utensílio, mas essa variedade não corresponde necessariamente a um igual
número de necessidades a satisfazer. Demonstra, mais exactamente, que o
Índice
Índice
UTENSÍLIO
6/18
conjunto de necessidades a que corresponde a forma de um utensílio deve ser
particularizado e preciso, tanto quanto os próprios utensílios. Tomemos como
exemplo o tradicional arado irlandês de uma só aiveca, o ioy [cf. Evans 1957]. Este
instrumento, em que a lâmina e o cabo são muitas vezes formados por um único
pedaço de madeira, tem a particularidade de apresentar, por trás da parte que
executa o trabalho, uma grande protuberância que serve de ponto de apoio à
alavanca, que é o utensílio. O bordo inferior da lâmina é coberto de ferro, enquanto
o cabo é posto completamente para a esquerda, deixando a aiveca do lado direito
quando o trabalhador se serve da mão direita ou do lado esquerdo no caso de um
trabalhador canhoto. Em toda a Irlanda existem mais de cinquenta formas deste
arado: as diferenças dependem da espessura antero-posterior da lâmina, da forma
e das dimensões laterais do ferro e da própria lâmina. O utensílio tem dois usos
principais: o de arrotear o terreno, quer colectivamente, quando se trata de iniciar o
trabalho de um novo campo, quer individualmente, quando se trata de preparar as
«hortas» de particulares, e o de extrair a turfa. As variações das formas explicamse, em parte, pelo uso a que se destina o utensílio, em parte pelo tipo de terreno e
em parte ainda — e é importante sublinhar este ponto — pelas influências regionais
às quais é difícil atribuir um valor funcional. Por outras palavras, existem modas, no
campo dos utensílios, ligadas a critérios que não têm nada a ver com os critérios
técnicos.
As formas de um mesmo utensílio variam não só de uma região para outra, mas
também de um indivíduo para outro. Por exemplo, se é certo que encontramos os
mesmos tipos de tenazes e alicates nas forjas de uma mesma região, notamos,
porém, subtis diferenças de forma que traduzem o gosto individual de cada ferreiro.
Os ferreiros têm, de facto, uma liberdade tanto maior quanto são eles mesmos que
muitas vezes fabricam os seus próprios utensílios. As diferenças encontram-se no
comprimento dos cabos, na forma da cabeça, no peso do utensílio e sobretudo nas
combinações de funções dos utensílios de uso duplo.
Uma última observação ainda sobre o estilo dos utensílios. Quando são de
pequenas dimensões, como os instrumentos de jardinagem, têm formas mais
requintadas, mais ornamentadas, como se o menor esforço exigido libertasse a
fantasia do artífice. Mas a preocupação estética pode ir demasiado longe. A melhor
forma para o cabo de um machado é a forma direita, mas durante o século XIX os
cabos dos machados americanos apresentavam uma curva dupla, cada vez mais
pronunciada, chegando a comprometer a eficácia do utensílio, destruindo a
flexibilidade do cabo. Hoje voltou-se a um cabo, talvez menos estético, mas mais
funcional.
A fantasia pode também pregar partidas no campo do rendimento. Em França,
por exemplo, existe uma enorme quantidade de instrumentos para a plantação
Trata-se de instrumentos simples para fazer um ou mais orifícios no terreno; a
ponta pode ser pequena ou grande, circular ou quadrada, o cabo direito ou curvo, a
extremidade superior simples ou com uma argola incorporada, ou mesmo munida
de uma trave. Nos séculos XVIII e XIX parece ter-se dado livre curso à fantasia e
eis que surgem plantadores de dois, três e cinco dentes; o plantador em forma de
Índice
Índice
UTENSÍLIO
7/18
mesa, espécie de prancha rectangular, chega mesmo a ter quinze dentes. E
evidente que existe um limite para o número de orifícios que se podem fazer de
uma vez só, limite esse determinado pelo esforço necessário para deslocar o
plantador de um orifício para outro. A imaginação pode muito bem tornar um trabalho mais difícil.
A elegância daquilo que é útil, no sentido etimológico do termo, é imediatamente
evidente; a elegância interior ou funcional esconde-se por vezes por detrás de uma
rudeza exterior; a fantasia e as condições particulares unem-se, finalmente, para
criar formas diversas, mas estas observações não respondem à pergunta: o que é
que determina uma forma? Como se podem classificar tais formas? Podemos, antes
de mais, avançar a hipótese de que existem quatro factores principais que
influenciam a forma. Em primeiro lugar vem o material de que dispõe o grupo que
fabrica o utensílio; em segundo lugar, a resistência da matéria-prima que se vai
transformar ou modelar; em terceiro lugar, é preciso também considerar as
condições de trabalho, isto é, de que tipo de sociedade se trata, se é uma
sociedade hierárquica ou igualitária, aberta ou fechada. Notou-se, por exemplo, que
o machado, depois de ter atravessado o Atlântico com os primeiros colonos
europeus, não conservou a forma que ainda mantém no velho continente: pouco a
pouco a cabeça do machado desenvolveu-se até ser mais pesada que a lâmina
cortante. Talvez a necessidade de ter um utensílio polivalente num país onde o
arroteamento e os transportes eram difíceis; talvez também o tipo de sociedade,
estratificada, é certo, mas da qual era sempre possível sair, possam ter contribuído
para determinar essa transformação. Finalmente, o quarto factor é constituído pela
energia disponível para manejar os utensílios.
Procurando agora aprofundar a análise, utilizaremos aqui as noções de
tendência e de facto propostas por Leroi-Gourhan [1943, ed. 1971 pp. 27-29] para
classificar as plainas. Segundo este autor, a tendência representa a lógica técnica
interna dos utensílios; e o facto, a história local do momento. Como já se disse, a
tendência faz com que o sílex adquira um cabo (e não que um cabo adquira uma
cabeça de sílex — ninguém lhe passaria pela cabeça abater uma árvore com um
bastão; assim, a tendência introduz a noção de evolução), a combinação de
dezenas de factores locais, específicos (ecossistema, estado anterior das técnicas,
sistema de intercâmbios e de distribuição, instituições sociais, etc.), dará lugar ao
facto específico do machado huailu (Nova Caledónia), fabricado em 1892, cuja
pedra está fixada à madeira do cabo através de um cordão de matéria vegetal
apanhada em Janeiro, etc. Acrescente-se que o facto possui vários graus de
precisão: o primeiro grau estará muito próximo da atemporalidade e da ahistoricidade da tendência.
Voltando à plaina, a tendência geral pode exprimir-se pelo postulado «criar uma
superfície plana num pedaço de madeira». A tal nível de generalização, são
possíveis duas respostas ou aplainar a madeira longitudinalmente (o corte no
prolongamento do eixo do cabo) e teremos o machado, ou então aplainar a madeira
transversalmente (o corte é perpendicular ao eixo do cabo) e teremos a enxó.
(Poderíamos talvez mencionar também uma espécie de gigantesco escopro de
Índice
Índice
UTENSÍLIO
8/18
madeira, um paring slick, adoptado nos Estados Unidos no século XIX). O primeiro
factor — o material necessário para fabricar o utensílio — não terá, neste caso,
influência sobre a diferenciação das formas, visto que se adoptam as mesmas
matérias-primas para fabricar tanto o machado como a enxó. Serão, pelo contrário,
determinantes para a escolha de um ou outro utensílio, ou de ambos, o transporte,
tanto o dos utensílios para o local de trabalho, como o do produto acabado, o tipo
de madeira que se vai cortar e as condições sociais, isto é, a especialização das
actividades produtivas. Para sermos mais precisos, o machado, visto que funciona
longitudinalmente, terá o corte com um único bisel e o cabo será deslocado de uma
parte do eixo longitudinal do utensílio para facilitar o trabalho. No caso da enxó,
será a posição de quem a utiliza que irá determinar o ângulo formado pela lâmina e
pelo cabo: será obtuso no caso de uma posição erecta sobre um tronco de árvore,
agudo se se tratar de um cabo curto adoptado para um pedaço de madeira
pequeno. Mas além destes aspectos bastante gerais da forma, encontraremos
todos os tipos de cabeças, todos os comprimentos de cabos, todos os pesos do
utensílio. Por outras palavras, a forquilha que determina os limites da forma destes
dois utensílios tem braços muito separados.
Se a função do utensílio em questão passa depois a ser mais precisa, se se quer
obter uma superfície plana numa peça de menores dimensões, sem asperezas, a
resposta já não pode ser o machado, e, se é certo que uma enxó pode ainda ser
útil, nesta altura surgirá, no entanto, a plaina de dois cabos, espécie de faca com
dois cabos, um em cada uma das extremidades. Se formos ainda mais exigentes e
quisermos obter uma superfície completamente plana, como quando queremos, por
exemplo, juntar dois pedaços de madeira, a única resposta verdadeiramente eficaz
é uma lâmina inserida numa superfície já plana, isto é, uma plaina. E, no entanto,
de novo necessário proceder gradualmente: um encaixe, operação que implica a
máxima precisão, exigirá diversas respostas: um escopro direito, um escopro com a
lâmina dobrada em ângulo recto, um escopro munido de cabo utilizado sozinho ou
com malhete. Mas, para voltarmos à plaina, podemos observar que a sua forma
fundamental é determinada pelo carácter extremamente preciso do resultado
pretendido e que se alcança uma certa automatização, se não ainda no trabalho e
no modo de manejar o utensílio, pelo menos na gama de resultados que é
realmente possível obter. De facto, com uma garlopa, é bastante difícil, excepto
talvez para um operário altamente qualificado, obter uma superfície tão plana
quanto a que se obtém com uma plaina de dimensões reduzidas. Notemos por fim
que a evolução de um utensílio se processa sempre dentro de um determinado
contexto social. Os cepilhos e as plainas são reintroduzidos em França a partir do
século XV e desenvolvem-se sobretudo com o progresso da carpintaria artística a
partir do século XVII, numa sociedade em que a classe dominante é cada vez mais
rica e necessita cada vez mais de ostentar as suas despesas sumptuárias. Quase
diríamos que o aumento da produção obrigou a confiar cada vez mais trabalho aos
aprendizes, tornando, por isso, necessário fornecer-lhes utensílios que não
exigissem demasiada perícia.
Índice
Índice
UTENSÍLIO
9/18
Deter-nos-emos ainda nas plainas e nos cepilhos para tentarmos responder à
segunda pergunta: poder-se-ão classificar as formas dos utensílios? Tratar-se-ia de
um grupo de utensílios formados por um braço vertical com uma lâmina aplicada
perpendicularmente no sentido do gesto que se faz para aplainar a madeira.
Poderíamos individualizar uma «família» de plainas, subdividida em plainas
propriamente ditas e cepilhos. A dificuldade está no facto de a diferença entre
plainas e cepilhos ser sobretudo uma diferença de dimensões, o que dificultaria a
distinção entre uma plaina pequena e um cepilho grande. Não existem, no entanto,
plainas de metal para trabalhar a madeira, ao passo que os pequenos cepilhos de
metal são muito comuns. As plainas divergem entre elas apenas pelas dimensões;
os cepilhos, pelo contrário, apresentam uma variedade muito maior, já que têm de
aplainar superfícies de natureza muito diversa. Embora esta analogia não conduza
a raciocínios que seguem falsas pistas, como tantas vezes acontece, podemos
afirmar a existência de uma família de plainas, onde se distinguem dois géneros: as
plainas e os cepilhos. Dentro do género dos cepilhos poder-se-ão depois distinguir
duas espécies: os cepilhos direitos e os curvos. A classificação poderia ir ainda
mais longe: além das diferenças de dimensões — pensemos nos minúsculos
cepilhos utilizados pelos fabricantes de alaúdes —, existem diversas variedades
dentro da espécie das plainas direitas, destinadas a fazer ranhuras e a fixar
linguetas, e, aperfeiçoando ainda mais a técnica, plainas de lâmina côncava ou
convexa para executar molduras. No século XIX existia mesmo, nos Estados
Unidos, uma plaina cuja lâmina tinha uma forma tal, que se podia de uma só vez
aplainar a moldura de madeira que coroava o revestimento de uma parede (uma
crown moulding plane). Para que o trabalho pudesse ser executado, tal utensílio
exigia a colaboração de um aprendiz para puxar e mesmo de um segundo para
empurrar por trás. Outro modelo consistia numa barra transversal na parte da
frente, à qual se atava uma corda que se enrolava num eixo movido por uma roda
hidráulica. Neste caso, trata-se provavelmente de um fenómeno já observado no
Neolítico, com os seus machados de pedra polida imitando os de bronze. No
momento em que surgem novas técnicas — no caso em questão, na altura da
industrialização americana do século XIX — os utensílios tradicionais são como que
reabsorvidos pelo movimento, tornam-se mais pesados ou mais complicados, até
perderem a sua eficiência. A outra espécie, constituída pelas plainas curvas, dá
lugar a toda a série das javradeiras e das plainas usadas para aplainar as
superfícies côncavas de pipas, barris, etc.
Qualquer taxonomia como a que acabámos de compilar baseia-se necessariamente na evolução. O primeiro invento nesta família foi a garlopa; dela
derivaram, entre outros, a javradeira, utensílio que serve para alisar a superfície
interna da extremidade de um tronco, uma vez colocadas as aduelas. Da mesma
maneira, a garlopa foi precedida por machados e enxós. Significa isto que, para
elaborar uma tabela taxonómica, para organizar o caos que seria uma colecção não
classificada de utensílios, é preciso voltar a estudar a sua história. Visto que
falamos de garlopas, será conveniente definir o seu lugar na história das técnicas
na Europa, fazendo um paralelo com a história das corporações de ofícios da Idade
Média, nem que mais não fosse, aliás, que para explicar a razão por que os
Índice
Índice
UTENSÍLIO
10/18
antepassados destes utensílios, a plaina e o guilherme (plaina para fazer ranhuras),
existiam no tempo dos Romanos mas tinham desaparecido no início da Idade
Média, para só voltarem a aparecer no século XIV.
Mas esta tabela taxonómica é ainda demasiado esquemática. Por exemplo, se os
formões e os polidores dos tamanqueiros forem classificados na família das facas,
onde se devem incluir os rebotes? Por um lado este utensílio tem semelhanças com
os formões, porque tem a forma de uma faca que termina, nas duas extremidades,
por um cabo, mas, por outro, também é semelhante à plaina, visto que possui uma
lâmina que regula a profundidade do corte. Aqui temos um bom exemplo do perigo
das analogias. Subdividiu-se o «género» das facas em várias «espécies», uma das
quais reúne todas as plainas e outra todos os formões. Num sistema naturalista, as
espécies interfecundam-se por vezes, embora o produto daí derivado seja estéril —
lembremo-nos do cavalo e do burro: a este propósito apetecia falar de um
matrimónio entre plaina e formão para procriar um rebote. E verdade que o rebote
possui características de ambos os utensílios — e, provavelmente, de um modo
consciente, visto que se conhecem formas intermédias —, mas a analogia é
completamente falsa, visto que pressupõe um procedimento inverso ao que na
realidade aconteceu. É a função que exige uma resposta e não a ideia que procura
uma função para realizar. A inter-fecundação das espécies na natureza é
consequência de encontros casuais; a procura de combinações vantajosas entre os
utensílios nasce de uma necessidade. Um garanhão aproxima-se casualmente de
uma burra, e o resultado é um ‘macho. O marceneiro tinha necessidade de uma
plaina pequena que pudesse puxar para si, conhecia o formão, sabia como era útil
o corpo da plaina, e o resultado foi o rebote. A comparação com o sistema de
classificação naturalista ajuda-nos a ordenar os utensílios mas não deve levar a
estabelecer implicitamente ligações inexistentes.
Índice
Índice
UTENSÍLIO
11/18
3. A m atéria
Além da forma, podemos também considerar o utensílio segundo a matéria que
se destina a trabalhar; não se trata, no entanto, de classificar as matérias para
depois classificar os utensílios de acordo com as matérias trabalhadas; aliás, tais
classificações conduzem mais a agrupar os artesãos no seu contexto social do que
a reunir os utensílios adoptados por uma sociedade. Para apresentarmos um único
exemplo, falemos dos diversos tipos de lâminas batidas com um macete ou um
martelo: seria absolutamente arbitrário subdividi-las entre as dos pedreiros, dos
ferreiros, dos diversos artesãos da madeira, ignorando assim as características
dinâmicas semelhantes do escopro de pedreiro, do escopro do ferreiro ou da
enorme variedade de escopros para madeira. E portanto muito mais vantajoso
classificar os utensílios segundo a acção por eles exercida sobre a matéria.
Procuraremos então uma classificação não dos utensílios que trabalham a pedra, a
madeira ou o metal, mas dos utensílios que partem, que tiram as aparas, que
perfuram, que aplainam.
Existe uma classificação deste tipo: a da tabela de percussões compilada por
Leroi-Gourhan [1943, ed. 1971 pp. 58-59], que subdivide, em primeiro lugar, os
utensílios segundo o gesto daquele que os utiliza. A percussão pode ser aplicada
directamente (com uma faca, por exemplo), lançada (com um machado, por
exemplo), exercida através de um percussor (um escopro). Tais distinções são
particularmente importantes porque toda a evolução dos utensílios tende para um
compromisso entre a procura de uma força para vencer a resistência dos materiais
e a procura da precisão do gesto. A acção de um machado ou de uma enxó de
grandes dimensões sobre materiais muito resistentes não poderá deixar de produzir
resultados eficazes mas grosseiros: mesmo na mão de um lenhador bastante hábil,
a precisão do gesto será sacrificada à necessidade de utilizar uma grande força.
Pelo contrário, uma faca, utensílio que se apoia na matéria a trabalhar de maneira
muito precisa, nunca terá a força necessária para vencer uma grande resistência,
mesmo quando se trata de uma adaptação que tem as vantagens de uma alavanca,
como o rascador do tamanqueiro, grande faca fixa ao banco de trabalho por um
gancho existente numa das extremidades, que permite decuplicar o esforço do
operário sem que perca a precisão do gesto. Apoiando o utensílio sobre a matéria a
trabalhar (por exemplo, um escopro para madeira) e batendo-lhe em seguida com
um percussor (macete, martelo, etc), obtemos a união entre precisão absoluta e
grande força. Este é um dos máximos inventos técnicos da humanidade.
Leroi-Gourhan distingue depois os utensílios segundo o ângulo de ataque.
Alguns deles atacam a matéria perpendicularmente, partindo, separando os
pedaços; outros, segundo um ângulo oblíquo, cortando pedaços para modelar a
matéria trabalhada. Existe portanto uma diferença entre percussão perpendicular e
oblíqua. Uma última distinção dependerá da forma da superfície activa, que pode
ser linear (faca, cepilho, machado, etc), punctiforme (agulha, picareta, etc.) ou
difusa (martelo). Podemos, por fim, subdividir a categoria das lâminas lineares entre
Índice
Índice
UTENSÍLIO
12/18
as paralelas ao eixo longitudinal do cabo (machado, faca) e as perpendiculares a
esse mesmo eixo (enxó, escopro para madeira, etc.).
Esta classificação permite, entre outras coisas, informações sobre uma
sociedade de um ponto de vista sociológico, segundo um critério exclusiva-mente
técnico. Por exemplo, é possível atribuir a um utensílio um índice ou uma série de
índices que exprimam as suas características dinâmicas. A força utilizada para
obter o efeito desejado em relação à resistência do material trabalhado pode ser
quantificada, pois a procura da eficiência ou do rendimento propõe-se reduzir tal
força ao mínimo necessário. Veremos então aparecer num qualquer quadrado da
matriz formada pela tabela de percussões uma ou mais forquilhas de eficácia. Se
existe uma única forquilha de braços relativamente próximos, e desde que se trate
de utensílios provenientes de profissões diversas, poderemos falar de uma certa
permeabilidade do ambiente técnico e de uma sociedade relativamente aberta. Se,
pelo contrário, para um mesmo número de profissões existirem diversas forquilhas
de eficácia distantes umas das outras, tratar-se-á de ambientes técnicos fechados
e, provavelmente, de uma sociedade estratificada e hierarquizada.
Tomemos como exemplo os Leles do Chade, que praticam a agricultura em
terrenos incultos, queimando as ervas e espalhando as suas cinzas como
fertilizantes [Garrigues, 1974]. Os utensílios desta sociedade, tanto os destinados à
agricultura, como os utilizados para trabalhar a madeira ou o metal, e qualquer que
seja o seu tipo de percussão, apresentam índices de eficácia muito próximos uns
dos outros. Trata-se de uma sociedade aberta, onde a diferença social, económica
e política é muito pouco marcada. Tomemos, por contraste, o exemplo da
sociedade vietnamita tradicional, extremamente estratificada e hierarquizada: nela
encontramos, para um mesmo tipo de percussão, diversas séries de índices de
eficácia, que vão desde os utensílios agrícolas rústicos até aos instrumentos de
grande precisão da ourivesaria.
Não se deve, por isso, concluir que a estratificação social é a causa da presença
de compartimentos estanques na técnica nem, vice-versa, que a divisão em
compartimentos tem como resultado a estratificação social. Mas é perfeitamente
justificada urna hipótese de relações dialécticas entre ambiente técnico e ambiente
social, hipótese essa que torna necessário analisar as cadeias de causas e efeitos
no interior de sociedades históricas específicas.
Embora útil, esta tabela de percussões não permite considerar todos os
utensílios usados nas múltiplas técnicas das sociedades humanas, nem é esse o
seu papel. Nas considerações sobre a acção dos utensílios sobre a matéria,
deixámos deliberadamente de lado os utensílios passivos e os utensílios para
montagem, tal como não tivemos em conta a posição do trabalhador, que é, apesar
de tudo, fundamental, porque, quando se trabalha sentado, os utensílios e,
portanto, os seus índices de eficácia, são diversos dos adoptados quando a
posição de trabalho normal é em pé. Mas, tal como o estudo isolado da forma não
nos levou à compreensão de todas as dimensões das relações entre os homens e
os seus utensílios — instrumentos de intervenção no ambiente natural que os
Índice
Índice
UTENSÍLIO
13/18
rodeia —, assim também a análise isolada da acção dos utensílios sobre a matéria
deixa de parte alguns aspectos fundamentais de tais relações. Dos três elementos
a que nos referimos, resta apenas o gesto técnico como via de abordagem.
Índice
Índice
UTENSÍLIO
14/18
4. O gesto
A técnica é muitas vezes assimilada ao gesto, e a tecnologia ao estudo dos
movimentos da mão, do corpo ou dos membros humanos quando munidos de um
utensílio. E um ponto de vista compreensível. De facto, o homem é o único animal
que não possui partes do corpo aptas para cortar, furar, despedaçar; pode, quando
muito, cortar um material pouco resistente com os dentes. Os primeiros utensílios
armam-lhe a mão: logo, o gesto não se distingue do utensílio. E esta ligação íntima
entre a mão e o instrumento que nos permite, sem grande margem de erro,
subdividir os utensílios pré-históricos em raspadeiras, buris, instrumentos de corte,
instrumentos para endireitar flechas, etc. Como esses instrumentos só se podiam
segurar de um único modo, a posição da superfície activa em relação à mão
permite deduzir imediatamente, na maior parte dos objectos pré-históricos, não só o
gesto de quem os utilizava, mas também o objectivo da operação: descarnar uma
pele, aplainar um pedaço de madeira, perfurar o corpo de um animal. No entanto,
não deixa também de ser verdade que já há mais de cem mil anos surgiram
utensílios, da família das enxós, cujo uso é muito difícil de imaginar.
Mas, uma vez entrada na via da evolução técnica, a forma deixará de conduzir
directamente ao gesto e, por consequência, ao uso. Para nos convencermos desse
facto, basta observar um carpinteiro ao manejar uma enxó; tratando-se de um
utensílio que permite uma forte percussão, quando tiver de utilizar uma certa
precisão, para seguir uma trajectória mais segura, encurtará a distância a que
segura no cabo, agarrando o utensílio num ponto mais próximo da cabeça; ou
então, quando o comprimento do cabo o permite, segurá-lo-á com ambas as mãos
para aproveitar ao máximo a força que o utensílio pode ter. Não é portanto possível
deduzir à primeira vista o gesto a partir da forma.
E, com efeito, quantos são os utensílios perante os quais ficamos perplexos,
tentando adivinhar-lhes o uso? Um pedaço de ferro rectangular com incisões
laterais, uma ágata embutida em cobre numa das extremidades de um bastão curto
que lhe serve de cabo só são conhecidos por grosa e brunidor para aqueles que já
o sabem, só revelam os gestos do operário àqueles que já viram trabalhar um
serrador rectificando os dentes do seu utensílio ou uni ourives polindo um objecto
de metal precioso. Podemos mesmo apostar que um eventual arqueólogo
extraterrestre verá no brunidor um símbolo de realeza, tal como os primeiros
estudiosos da pré-história chamaram bastões de comando aos instrumentos para
endireitar flechas do Cro-Magnon. Voltando à plaina, ela não levanta qualquer
problema quanto ao sentido do gesto técnico ligado à sua forma; porém, nada nesta
trai o facto de o utensílio poder ser adoptado, tanto de modo activo, como de modo
passivo.
À parte o facto de, na feitura de qualquer utensílio, ser necessário chegar a um
compromisso entre máximo potencial de força e precisão, continua a existir um
problema a propósito do gesto técnico: o da direcção do movimento. O gesto
Índice
Índice
UTENSÍLIO
15/18
natural do braço humano é rectilíneo, e toda uma parte importante da evolução
técnica dependerá de uma tentativa para transformar esse gesto natural em
movimento circular. Existem, para isso, duas boas razões. Primeiro que tudo, tratase de eliminar os tempos mortos e, portanto, de reduzir principalmente a quantidade
de energia consumida. De facto, de acordo com a primeira lei de Newton, qualquer
mudança de direcção exige uma utilização de energia suplementar. Um utensílio
que trabalha em sentido linear tem de ser posto em movimento, tem de se fazer
parar, ser levado de novo ao ponto de partida para recomeçar a trabalhar. Um
utensílio que trabalhe em sentido circular tem de ser posto em movimento, mas a
energia que é preciso despender para que continue a funcionar é bem menor do
que a necessária para o arranque. Quando o pilão e o almofariz, ou o metate,
superfície plana sobre a qual se fazia ir e vir uma pedra que triturava os cereais,
foram substituídos por uma máquina circular movida à mão, o trabalho necessário
para preparar os alimentos foi enormemente reduzido. Além disso, com um tal
sistema, a pedra que gira funciona como um volante com energia própria. Se a esse
volante se junta uma biela, como acontece na dobadoura, o trabalho fica reduzido a
um empurrão mínimo de cada vez que a biela se encontra no ponto mais alto da
sua trajectória. Esta procura do movimento circular aconteceu mesmo nos domínios
mais simples. Um catálogo de artigos caseiros do século passado inclui raladores e
máquinas de picar que trabalham com movimentos rectilíneos; quanto ao nosso
século, encontramos, antes da introdução da energia eléctrica no sector doméstico,
moinhos dotados de movimentos circulares.
Índice
Índice
UTENSÍLIO
16/18
5. As estruturas
Apesar de alguns agrupamentos que conseguimos fazer baseados na forma, na
matéria ou no gesto, o utensílio e o homem escapam-nos sempre, ou, mais
exactamente, o universo das suas relações não é visível em toda a sua extensão. O
facto de não se ter sistematizado o caos referido no início deste artigo não constitui,
porém, um artifício retórico. A ordem global que procurávamos não se manifestou.
Criaram-se famílias de utensílios, classificando-os segundo as formas, mas, ao
fazê-lo, ficaram na sombra os ofícios. A tabela de percussões permite estabelecer
uma relação entre o homem e a matéria, mas ela só se aplica a certos tipos de
utensílios. Podíamos ter ordenado os utensílios segundo os ofícios, mas isso teria
impedido a superação do momento de constatação pura e a compreensão da razão
por que certos utensílios surgem simultaneamente em diversos ofícios. É preciso
portanto procurar uma estrutura técnica que permita englobar ofícios, formas,
gestos e matérias.
O conceito básico de uma estrutura técnica é o de uma cadeia operatória. Tratase de um processo de trabalho que vai da matéria-prima ao produto acabado.
Numa série de fases distintas, um tronco de madeira é cortado, aplainado e
escavado para nele se fazerem encaixes e ranhuras, acabando por transformar-se
em mesas, cadeiras, armários. Um bloco de pedra é extraído da rocha-mãe numa
pedreira ou numa mina, cortado, modelado e mesmo esculpido, para acabar como
chave de abóbada num edifício. Cada fase deste processo irá servir-se de um
agente, um utensílio, uma matéria, uma determinada quantidade de energia, um
certo tipo de percussão. O processo global será subdividido num determinado
número de momentos e de fases, visto que toda a solução de continuidade implica
um determinado tipo de transição.
O problema que se nos depara aqui é o de perceber o significado dos utensílios;
não importa, portanto, entrar em pormenores na análise de tais cadeias operativas
(aconselhamos, para isso, o artigo «Técnica»), mas compreendemos a sua
utilidade para perceber a fundo um utensílio no seio da sociedade que o produziu.
Até agora, estivemos perante um operário, um utensílio, uma matéria e uma
determinada operação a executar com essa matéria; quando se procura ampliar o
campo de tal relação, inclui-se geralmente o operário na sua corporação ou no seu
ofício e depois a corporação ou o oficio na história social. O contexto social e o
contexto laboral são, evidentemente, muito importantes, mas hoje é preciso ter
também em consideração a dimensão, igualmente importante, que é dada pela
relação homem/material/utensílio, voltando a colocar uma determinada operação no
conjunto das operações que a precederam e que a seguirão. Se considerarmos, por
exemplo, a javradeira — utensílio que escava as ranhuras onde será inserida a
base de um tronco de madeira —, podemos muito bem falar do gesto necessário ao
operário que trabalha, podemos muito bem voltar a percorrer a história e a invenção
do utensílio, mas a javradeira não pode existir, não pode executar o seu trabalho se
a operação de fazer ranhuras não for precedida da operação de aplainar o interior
Índice
Índice
UTENSÍLIO
17/18
das aduelas com uma plaina curva. Outro exemplo: como explicar a enorme
variedade de tipos de machados ou a própria existência daquele grande escopro de
madeira conhecido como paring slick, se não os situarmos no processo de trabalho
de que fazem parte? A forma e o peso do machado adoptado no início de um
trabalho em madeira são tão responsáveis por aquilo que será o objecto produzido,
como o escopro, que só entrará em acção no fim do processo de trabalho.
Aliás, as cadeias de trabalho não são simples trajectos lineares: estão integradas
em todas as outras cadeias de um determinado conjunto técnico. Os utensílios de
ferro usados por um carpinteiro provêm das cadeias de trabalho do ferreiro. Logo, o
gesto do carpinteiro é, em parte, função dos utensílios fabricados na forja. Podemos
mesmo falar de um certo feedbaek nos processos de fabrico. Quando o homem préhistórico cortava uma lasca levailoisiana preparava, num determinado momento da
sua acção, o estádio final dessa lasca, ainda antes de a ter arrancado do núcleo.
Não há dúvida de que tal preparação acontecia porque o gesto de desbastar a
lasca antes de a arrancar do núcleo é muito mais fácil, visto que o instrumento
passivo, neste caso a mão de quem trabalhava, pode mais facilmente agarrar um
grande bloco de pedra do que a lasca isolada. Esse gesto será também determinante para a forma e dimensão do percussor. Estamos portanto em presença de
um gesto técnico e de um utensílio, o percussor, que não existem isoladamente,
mas em função de um momento posterior na cadeia de trabalho. O exemplo
escolhido é propositadamente simples, mas podemos fazer a mesma observação
em relação a muitos gestos técnicos.
A invenção de utensílios ou de gestos percebe-se, afinal, mais facilmente
quando a análise incide sobre os processos e estruturas técnicas e não exclusivamente sobre os utensílios considerados individualmente. O antigo provérbio
«Da necessidade nasce o engenho» significa simplesmente que numa qualquer
cadeia de trabalho se sentiu necessidade, num determinado momento histórico, de
superar um atraso em relação a Outros gestos e utensílios da mesma cadeia. E
compreende-se também como certos inventos provocam outros inventos. Fazer
evoluir um utensílio significa fazer com que essa evolução se repercuta em todos os
outros utensílios de uma mesma cadeia e mesmo de outras cadeias.
Fixar estas estruturas técnicas significa portanto colocar o homem — os homens
— não perante um utensílio, e, ainda com maior razão, o Utensílio, mas perante um
conjunto de utensílios; serve para fazer entender as relações do homem com os
instrumentos por ele inventados para transformar e modelar o ambiente natural em
que vive e para fazer dos utensílios elementos participantes da história humana.
[R. C.].
Bibliografia
Cresswell, R.
1965 Un pressoir à olives au Liban: essai de technologie comparée, in
«L*Homme», V, 1, pp. 64-83.
Índice
Índice
UTENSÍLIO
18/18
Evans, E. E.
1957 Irish Folk Ways, Routiedge and Kegan Paul, London.
Garfigues, M.
1974 Kaselem Mbaymu. Etude d*un vilage Lélé (Tchad) (tese).
Hommel, R. P.
1969 China at Work, MIT Press, Cambridge Mass.
Leroi-Gourhan, A.
1943 Evolution et techniques, I. L*homme et la matière, Michel, Paris, 19712 (ed. port.: Edições 70, Lisboa, 1984).
Sloane, E.
1974 A Museum of Early American Tools, Ballantine, New York.
É a técnica que permite ao homem (cf. anthropos, homem, mas também corpo)
transformar o seu ambiente (cf. domesticação, natureza/cultura), extrair dele os
materiais necessários para fabricar os produtos (cf. objecto), criar (cf. criatividade,
invenção) toda uma cultura material composta de artefactos (cf. artesanato,
mão/manufacto, natural/artificial). A técnica, isto é, o conjunto dos utensílios, é
representada por excelência pelo fogo; só mais tarde se a ele vêm juntar as máquinas (cf. maquina), em lugares e formas de produção diferentes (cf. agricultura,
indústria, indústria rural, produção/distribuição, produção artística, instrumento).
***
Índice
Download

UTENSÍLIO