Refletindo sobre a Globalização João Francisco Meira Julho de 2007 Trabalho de conclusão da disciplina “Economia Política da Globalização”, ministrada pelo Prof. Dr. Renato R. Boschi no Curso de Doutorado em Ciência Política do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais ao longo do 1º semestre de 2007. 1 1 - Introdução A questão final que se recolocou após nosso percurso pela literatura a respeito do tema da Economia Política da Globalização permaneceu, ao mesmo tempo, como um desafio e uma inquietação, compartilhados, talvez, por Wallerstein (1974): seria possível criar uma teoria preditiva da mudança social ou apenas pode-se descrever essa mudança nos termos do já acontecido? Em complemento a esta, fica outra indagação de fundo: que papel desempenharia o estado nacional nesta época em que o próprio conceito de territorialidade tende à desmaterialização, as culturas se confundem, as línguas emprestam-se umas às outras e os povos se dispersam em diásporas e se reencontram em comunidades virtuais? Também já não é possível distinguir com clareza os limites da soberania e do monopólio da legitimidade do uso da força, esses dois outros componentes da definição clássica das feições do estado moderno. Noutras palavras, poder-se ia indagar se é possível antever quais serão as características da organização humana no futuro próximo, considerando a magnitude, a velocidade e a profundidade dos “fluxos e padrões transcontinentais de interação social”, a esse “sentimento de conectividade” (Koenig-Archibugi, 2003) que hoje se verificam? Desde o começo de nossos seminários, algo já se podia constatar: nas palavras proféticas do fabiano Polanyi (2001), escrevendo em 1944, uma grande transformação se prenunciava, junto com o atestado de óbito da civilização do século 19: o mercado autoregulado, grande “invenção” do liberalismo clássico deixara de funcionar. Num movimento defensivo, segundo ele, forças e agentes sociais estabeleceram formas de resistência e contra-hegemonia. Em meio aos conflitos de então, o estado liberal, por vezes experimentou ser regulador, noutras tornou-se arena mesma de disputa por seu controle, noutras mais, simplesmente implodiu em crises monetárias, em anarquia social e invasões de inimigos externos. Em todos os casos, porém, definitivamente deixara de existir o estado do laissez-faire. O tempo, porém, mostraria que não era bem assim: meio século depois o neoliberalismo conduziria a um novo “duplo movimento”: a uma nova tentativa de hegemonia corresponderia uma nova articulação de forças contrahegemônicas. Só que, desta vez, num nível de expansão do capitalismo profundamente transfigurado em relação ao meio-século anterior. 2 Vários aspectos dessa mudança foram observados através da bibliografia percorrida ao longo do Curso. Afinal, pouco importa o termo usado para descrever o processo – globalização, mundialização, transnacionalização ou até a boa e velha internacionalização – todos descrevem até certo ponto (e nenhum deles totalmente) o zeitgeist do nosso tempo, um tempo de convergência e de dissenso, de equalizações e iniqüidades, de “inaudita riqueza material” (Polanyi) e de extraordinária expansão do saber. De inimaginadas formas de infligir sofrimento; de inédita expansão das forças produtivas e de extrema espoliação dos recursos naturais, tudo envolto em dimensões de espaço e de tempo que a cada dia mais parecem se comprimir (Kearney, 1995: 551); tudo parece muito perto, tudo caminha muito rápido, tudo é muito simultâneo. Todavia, pudemos ver também que a globalização está longe de ser um processo que ocorre de forma homogênea e harmônica, por igual em toda parte, gerando os mesmos efeitos sobre todos os países e camadas sociais. Pelo contrário, se é possível falar de uma “repartição” de ônus e vantagens do processo, resta evidente que os centros capitalistas mais desenvolvidos – particularmente Europa Ocidental e EUA – se apropriam mais das últimas que sofrem os efeitos dos primeiros. Por outro lado percebe-se que os “excluídos” (países e grupos sociais que menos se beneficiam ou mesmo sofrem perdas com o processo), na companhia de movimentos de solidariedade, grupos de pressão setoriais e organizações não-governamentais (ONG) engajadas em variadas causas, articulam-se, em escala mundial, na tentativa de estabelecer um contra-poder em contestação a esse balanço de forças. Outro traço distinto deste momento histórico é o surgimento de uma “semi-periferia”. Nessa, formada pelos chamados “países emergentes”, se destacam a China, as Novas Economias Industrializadas Asiáticas (Coréia do Sul, Singapura, Taiwan, Hong Kong) e a Índia, bem como África do Sul, México, Federação Russa e Brasil. Crescentemente competitivas em termos econômicos com os centros hegemônicos, essas nações, no entanto, pagam um preço ambiental e elevados custos sociais para crescer, enquanto permanecem relativamente atrasadas em termos de institucionalização política, governança corporativa e de franquias e direitos de cidadania. Pretende-se refletir, neste texto, sobre alguns dos aspectos acima referidos, à luz da bibliografia oferecida ao longo do Curso. Também buscaremos observar certas peculiaridades da globalização no contexto brasileiro ou, por assim dizer, da “variedade de capitalismo” (Hall e Soskice, 2001) aqui existente. Ao cabo, nossa intenção é esboçar uma aproximação a essa cambiante realidade histórica, numa tentativa de, ao menos, distinguir alguns de seus possíveis futuros. 3 2 - Da Guerra Fria à Globalização: muitos sentidos, pouco consenso Céticos ou globalistas (Held e McGrew, 2002); nesses campos opostos de opinião concentram-se os debates sobre a extensão a natureza e o alcance das transformações que vivenciamos na economia e sociedade atuais. Para alguns, (e.g.: Silver e Arrighi, 2003) o que hoje existe mais se aproxima de uma tentativa de afirmação da hegemonia de uma potência: de imposição do “americanismo” sobre todo o mundo; sendo o “discurso da globalização” apenas um nariz de cera para um neo-imperialismo. Para outros, (e.g.: Kaul, I. et alii. 2003; Pulver, S. 2005; Vandenberghe, F., 2006), a expansão do capitalismo gera contradições e novos atores que, no futuro, conduzirão à superação do estado nacional e o surgimento de uma sociedade global e, talvez, de um estado mundial. Existiria uma possibilidade de convergência entre assas posições? As características do capitalismo ao longo do século XX foram muito influenciadas pelas instituições, empresas, modos de organização do trabalho e pelas políticas econômicas norte-americanas. Do fordismo na produção industrial ao new deal na política social, da expansão das multinacionais à liderança no desenho das instituições reguladoras da economia e da política internacionais a partir das conferências de Bretton Woods e Yalta, os EUA marcaram fortemente os rumos da cena global nessas décadas, a que muitos chamaram de pax americana. Contudo, é inegável que, ao longo desse mesmo período, não faltou competição, contestação e um crescente contencioso a essa aparente hegemonia. Outros centros de poder econômico e político, tanto na forma tradicional de estados (como foi o caso da União Soviética e, mais recentemente, da China e as economias emergentes do leste asiático); como atores não-estatais, entraram na cena mundial tornando muito mais complexo o cenário e as interações dentre os diferentes atores. Issues de caráter econômico, social e ambiental também passaram a fazer parte da agenda mundial, tornando ainda mais relevante o papel dessas interações. O capitalismo moderno, não é fruto do acaso, lembra-nos Polaniy em seu diagnóstico sobre o fim do sistema internacional que emergiu do Congresso de Viena e da derrota das ilusões cesaristas de Napoleão e que durou cerca de 100 anos. O que sua análise ressalta é que a débâcle do sistema internacional vigente no século XIX resultou de uma contradição insolúvel que, afinal, terminou por destruí-lo. O embate envolveu, de um lado, o conjunto de agentes econômicos detentores do capital, principalmente a haute finance (epítome do “mercado”) cujo drive permanente é a maximização do lucro – sendo o “mercado auto-regulado” sua criação mais relevante e que constituiu a chave do equilíbrio internacional então vigente – e, de outro lado, a “sociedade”, ou seja, as classes e “agências” não-detentoras daqueles meios de produção (particularmente, o operariado, mas não apenas ele) que articulou uma resposta defensiva, de “auto-proteção”, na forma do movimento socialista, dos fascismos, da social-democracia e da ação política sobre as estruturas do estado, contra o que, para Polaniy, não passava de uma sinistra, ameaçadora utopia. Esperava-se que, após os banhos de sangue de duas guerras mundiais, o novo centro de poder representado pelos estados socialistas, as franquias e direitos contratuais conquistados pelos trabalhadores nos centros capitalistas, bem como o desmonte dos impérios coloniais proporcionaria um futuro em que não mais haveria lugar para o mercado sem restrições externas nem suas formas institucionais complementares: o imperialismo, o colonialismo e o estado estritamente liberal. 4 Porém, nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, as transformações não ocorreram precisamente na trilha antevista: no campo socialista, surge o bloco soviético, resultante da vitória militar e da ocupação de países antes dominados pela Alemanha nazista aos quis a URSS impôs regimes “isomórficos”, enquanto, noutras partes do planeta, o capitalismo se expandiu velozmente através do todos os continentes, inventando novas formas de hegemonia, inovando em processos produtivos e tecnologia. Com o mundo dividido entre esses dois grandes blocos; durante meio século confrontaram-se uma versão (leninista) de socialismo de estado e economia centralmente planificada, de que a União Soviética era a principal unidade; e a aliança forjada pelos EUA com as economias da Europa Ocidental em reconstrução e integração aceleradas e o Japão, reconstituindo, destarte, o centro hegemônico capitalista. Antagônicos no discurso, mas equivalentes na disponibilidade de armas de destruição em massa, o equilíbrio de estoque de armamento nuclear implicou inevitável détente bélica, vez que a capacidade mútua de destruição tornava impossível uma guerra aberta entre as potências-líderes. A resultante foi o estabelecimento de um status quo internacional baseado em esferas de influência e, eventualmente, em conflitos armados em países da periferia dessas esferas. Interessa notar que alguns segmentos da inteligentsia em cada bloco viam o outro lado também como um laboratório de experimentação social e econômica. Isto favoreceu de ambos os lados, o surgimento de comunidades epistêmicas 1 em constante diálogo, e propiciou traduções e confluências de pensamento econômico que, mais adiante, após a dissolução do bloco soviético, vieram a se tornar paradigmas de política econômica e redesenho de estruturas de estado, de corte marcadamente neoliberal, não apenas no Leste, como também na América Latina Ásia e África. (Bockmann e Eyal, 2002); (Henisz, Zelner e Guillén, 2005) Ao mesmo tempo em que, no plano das relações internacionais, essa confrontação enfocava o estado como ator preponderante, a Guerra Fria engendrou (ou fortaleceu o preexistente) dois fenômenos que, logo a seguir, iriam adquirir grande relevância no cenário global: primeiro, a emergência de múltiplos atores não-estatais (tais como as empresas e os grupos ação coletiva com atuação em âmbito transnacional, bem assim as agências multilaterais derivadas da ONU); e, segundo, a revolução tecnológica, um subproduto da corrida armamentista que logo causou profundo impacto no modo de produção industrial, na circulação de capitais e de pessoas e nas formas de interação social. É certo que, de há muito, o capital financeiro tem ação e vocação para o âmbito global. A partir dos anos finais do “socialismo real” é que outros setores produtivos, do capital e do trabalho, bem como o terceiro setor também passaram a se articular em escala planetária, constituindo-se em atores de relevo nesse cenário global, tendo a sua ação grandemente facilitada pelos avanços tecnológicos. 1 Comunidade epistêmica é uma rede de profissionais com reconhecida experiência e capacidade técnicas com relação a um domínio particular de conhecimento e que se sente autorizada a reivindicar o estabelecimento de políticas públicas baseadas no conhecimento relevante que detém sobre aquele domínio ou área-problema. (Peter M. Haas, International Organization, n.46. 1992. Tradução do autor) 5 3 - A Revolução Tecnológica Nas palavras de Castells (1996), a “revolução tecnológica é mudança histórica que está transformando todos os aspectos da vida humana”, cujo epicentro reside nas tecnologias de informação (TI). Elas estariam na raiz da resolução do confronto entre o bloco capitalista e o bloco socialista, com o desmonte desse último, fortemente impactado pela sua impossibilidade de continuar sustentando uma corrida pela supremacia militar e manter, ao mesmo tempo, o modelo de economia centralizada. Está além do escopo do presente texto aprofundar-se nas causas internas e externas da derrocada do bloco socialista, mas vale notar que a obsolescência tecnológica terá sido – segundo Verdery (2005) [1996] – o empurrão final para o colapso de um modelo que já vinha se mostrando ineficaz em termos de produtividade, de qualidade e de competitividade tanto no âmbito do atendimento da demanda interna quanto no plano do comércio exterior. Todavia, a revolução da TI representa uma transformação que ultrapassa em muito a polarização capitalismo versus socialismo porque também viabilizou um completo redesenho do próprio capitalismo. Surgida em meio à primeira crise do petróleo, nos anos 1970, a TI deu origem a um novo modo de desenvolvimento que Castells chama de “informacionalismo”. Esse conceito é praticamente um sinônimo e uma qualificação do pós-industrialismo e denota o novo arranjo através do qual capital e força de trabalho interagem com os elementos materiais na geração de produtos e, em última análise na quantidade e na qualidade da geração de excedentes: No novo modo de desenvolvimento informacional a fonte da produtividade repousa sobre a tecnologia de geração de conhecimento, no processamento da informação e na comunicação simbólica. Decerto, conhecimento e informação são elementos críticos em todos os modos de desenvolvimento (...). Contudo o que é específico no modo de desenvolvimento informacional é a ação do conhecimento sobre o próprio conhecimento a principal fonte da produtividade. (Castells, 1996:17) Uma das variáveis determinantes, portanto, do grau de desenvolvimento que se pode observar em dada sociedade será a sua capacidade de produzir conhecimento e de aplicá-lo à produção de bens e serviços. Aquela é também um critério que permite observar a posição atual e a velocidade com que tal sociedade cresce termos econômicos. Também ajuda a distinguir, dentro dos espaços nacionais, como cada sociedade reagiu às circunstâncias, por vezes adotando uma variedade própria de capitalismo, noutras buscando aproximarem-se pela via da imitação (ou isomorfismo institucional) de modelos já consagrados em outros países. A importância desta possibilidade de distinção reside em identificar potenciais vantagens comparativas nacionais, seja no campo da produção, seja no campo do comércio exterior, capazes de propiciar um “nicho de mercado” favorável àquele país. 6 4 – A política mundial hoje: atores novos e os mesmos de sempre – uma teia de interações No atual cenário internacional, ao mesmo tempo em que permanecem os estados e as organizações multilaterais, surgiu uma grande quantidade de atores não-estatais, na forma de grupos de ativistas, empresas, corporações profissionais, dentre outras, ligadas a temas específicos. A modalidade típica de ação dessas entidades é através de redes transnacionais, conforme descrevem Margaret Keck e Kathryn Sikkink (1999). Essas redes se caracterizam pela horizontalidade, ou seja, pelo intercâmbio voluntário e recíproco de informações e serviços, conectando e inter-relacionando problemas locais e grandes temas de impacto internacional. Algumas dessas organizações envolvem interesses econômicos ou profissionais, outras compartilham causas e ideais, todas constituem o que as autoras chamam de “redes transnacionais de reivindicação” (advocacy). Embora suas motivações sejam muito distintas, todas compartilham certos traços como a adesão a crenças ou valores comuns, a confiança de que a sua ação pode “fazer diferença”, o uso “criativo” da informação, através do recurso a sofisticadas estratégias políticas de segmentação de suas ações. Também aqui, nesse contexto, as TI tem papel crucial, uma vez que tornaram mais fácil e barato o acesso e a difusão da informação, além de quebrar o controle estatal sobre ela. É assim que tais organizações têm, conforme as autoras, a capacidade (...) de mobilizar estrategicamente informações para sustentar a criação de novos issues e categorias e para persuadir e obter influência sobre outras organizações muito mais poderosas e até governos. Ativistas em rede não tentam apenas influenciar resultados políticos, mas transformar os termos e a natureza dos debates. (p.2) O novo ambiente tecnológico também é apontado por Sidney Tarrow (2006) como facilitador do ativismo transnacional, anotando este, ademais, a difusão da língua inglesa como veículo de divulgação do que chama de “script da modernidade”. A questão central destacada em ambos os trabalhos, é a ação política de contestação transnacional anti-globalista, (transnational contention), que coloca em pauta o que consideram as externalidades negativas da globalização: a discussão sobre as causas da desigualdade, particularmente no sentido norte-sul entre países, mas também entre diferentes segmentos populacionais no espaço interno das nações; os efeitos ambientais do desenvolvimento industrial, especialmente nos países do antigo Terceiro Mundo; o tema dos direitos humanos – diga-se de passagem, reconhecido a partir do marco institucional da Carta da ONU, resultante direta da “hegemonia” americana do pós-guerra - os temas da igualdade de gênero e de etnia, etc. E, como questão de fundo, principal, uma tentativa de vislumbrar outra forma de organização social além do capitalismo, como que, relembrando Castells (1996), uma retomada da utopia socialista anterior à “atração fatal” do leninismo. 7 5 - O Brasil e sua inserção no processo de globalização Desde a década de 1950, a economia brasileira entrou em constante e rápido processo de industrialização de que participaram como atores fundamentais tanto o estado como a iniciativa privada. O primeiro, por vezes, assumiu o papel de fomento, através da adoção de políticas industriais e agências de financiamento, outras vezes assumiu ele próprio o papel de empreendedor. O capital privado, desde sempre, contou com a presença de setores de origem nacional como também investidores internacionais, isolados ou em consórcio, ora com os privados nacionais, ora com as estatais. Em linhas gerais, distinguem-se, nesse período, três ciclos principais, que correspondem ao modelo de industrialização através da substituição de importações (1950 – 1964), em que o estado age como formulador de política industrial e fomentador; ao de estatização e internacionalização (1964 – 1989) em que o estado adquire presença muito expressiva como empreendedor, com a intervenção direta através de dezenas de empresas estatais em setores por ele considerados “estratégicos”, ao mesmo tempo em que estimula a internacionalização mediante a abertura de alguns setores internos a investimentos estrangeiros e também ao financiamento de alguns setores nacionais à participação no cenário internacional, como foi o caso da construção pesada. No terceiro ciclo, iniciado a partir do início dos anos 1990, até o presente, houve, de início, a adoção de reformas econômicas com características neoliberais, com políticas de controle da inflação, estabilização da moeda e privatizações, correspondendo a uma redução da ação direta do estado enquanto empreendedor e a um incremento de sua ação no âmbito regulatório. Em cômputo final, embora nesse período o estado brasileiro tenha diminuído significativamente a sua face empresarial, claramente não a abandonou, mantendo ainda presença em setores relevantes como os de energia e bancário, dentre outros2 . Num segundo momento, a partir de 2002, observa-se a manutenção em linhas gerais dessas políticas macroeconômicas, porém acompanhada da retomada de “ações afirmativas” no âmbito da política social, e o esboço de uma nova formulação de política industrial, aparentemente voltada para o aproveitamento de oportunidades surgidas a partir da expansão do comércio exterior. É importante lembrar que, em nenhum dos períodos mencionados, o estado deixou de exercer papel de coordenação e fomento, através de uma rede nacional de agências de financiamento (BNDES, Bancos de desenvolvimento estaduais, Bancos regionais e Banco do Brasil), além de manter, no âmbito do aparelho de estado, certa capacidade de formulação e implementação de políticas de desenvolvimento, como, por exemplo, o IPEA. Por manter tais características é que se pode identificar, no Brasil, uma “dosagem específica” (Boschi, 2007) de mecanismos de regulagem da economia pela via do mercado com elementos de coordenação centralizada em organizações do estado, como forma de manter algo da capacidade deste último de reduzir as externalidades negativas de uma formulação de corte puramente liberal. 2 Dados recentes dão conta da existência, em todos os âmbitos do estado brasileiro, de 253 empresas estatais. (Boschi, 2007: 131) 8 Neste sentido, podemos nos referir, no Brasil, a uma específica “variedade de capitalismo”, no conceito de Hall e Soskice (2001), que vêem a economia política como um território onde múltiplos atores, em busca de viabilizar seus interesses racionais, estabelecem entre si interações estratégicas. Os atores relevantes desses processos políticos e econômicos podem ser indivíduos, grupos de produtores, governos ou empresas, sendo essas, segundo os autores os agentes-chave dos ajustes (que produzem variações nos arranjos entre os atores) em face das mudanças tecnológicas e das possibilidades de performance em face da competição internacional. Hall e Soskice identificam cinco áreas-problema que os atores políticos e econômicos devem enfrentar mediante processos de interação estratégica: a) relações industriais (negociações sobre pagamentos e condições de trabalho, envolvendo organizações de representação da força de trabalho, com impactos sobre a estrutura salarial, níveis de produtividade, desempenho geral das empresas, taxas de emprego e inflação na economia em geral); b) treinamento e educação (com impactos sobre a competitividade da economia nacional); c) governança corporativa (através da qual, empresas acessam o mercado de capitais e investidores asseguram garantias sobre o retorno dos investimentos. Tem impacto tanto sobre a disponibilidade de recursos quanto sobre os termos e taxas de financiamento); d) relações interempresariais, em cadeias produtivas, de suprimentos e com clientes. (Estabelecimento de normas-padrão, de fluxos de demanda e de suprimentos, transferência de tecnologia, parcerias em pesquisa e desenvolvimento. Dos riscos e oportunidades dessa esfera de interações depende a competitividade e o progresso tecnológico da economia como um todo); e) coordenação de problemas entre a firma e seus empregados: assegurar competências e cooperação, minimizar problemas de incompatibilidades pessoais, problemas familiares e morais, assegurar o compartilhamento de informações, são problemas que podem condicionar a competitividade e outras características de regimes de produção numa dada economia. Nas economias de mercado, identificam-se dois tipos-ideais que podem derivar variedades de capitalismo, dependendo de regras e instituições específicas em diferentes países ou regiões, tendo em vista processos históricos e correlações de forças estabelecidas entre os atores envolvidos: economias de mercado liberais e economias de mercado coordenadas. Presentemente, no Brasil, teríamos uma fórmula “híbrida”, denominada por Boschi (2007) de “neo-intervencionismo”, caracterizada, segundo ele, por uma retomada do desenvolvimentismo, mas, agora, matizado pelo liberalismo no nível macroeconômico. 9 Essa “variante” resulta da interação de um conjunto de fatores tais como a natureza e a composição das elites burocráticas e políticas locais - em que o predomínio da formulação não permaneceu em mãos exclusivas de uma categoria (não tivemos entre nós o primado dos “Chicago boys” como no Chile); o jogo de favorabilidade e resistência de setores organizados dentro e fora do aparelho de estado às privatizações – empresariado em geral favorável, versus organizações sindicais, corporações de funcionários do estado e alguns partidos políticos, como, de início, PT e PSDB contra; e a preservação de núcleos estatais de competência técnica que mantiveram papel de proa, desde os períodos anteriores até a liderança dos processos de privatização, como foi o caso do BNDES. É, ainda, importante destacar variáveis de ordem política que contribuíram para dar forma ao arranjo atual. O programa de desestatização da economia, de reforma do estado e estabilização econômica que recebeu apoio eleitoral vitorioso nas eleições de 1989 somente conseguiu obter sucesso após a crise política que conduziu ao afastamento de Fernando Collor de Mello em 1992, tendo em vista a fragilidade de sua base de apoio parlamentar e os níveis de confrontação política que sua tentativa de implementar as reformas prometidas provocou. Somente a partir da implantação do Plano Real é que a coalizão PSDB-PFL, com Fernando Henrique Cardoso na Presidência a partir de 1995, conseguiu implementar o conjunto de medidas de caráter mais marcadamente neoliberal do período, com destaque para a estabilidade monetária, o controle da inflação, as privatizações, reformas parciais no sistema de seguridade social e implementação de algumas agências reguladoras de serviços públicos concedidos. Essas medidas provocaram inicialmente uma forte onda de otimismo em relação ao desenvolvimento do País. Mas, á medida em que “externalidades negativas”, como o aumento do desemprego e baixas taxas de crescimento da economia se fizeram sentir, o sentimento positivo, em pouco tempo, desapareceu. As tabelas a seguir mostram resultados parciais de duas pesquisas de opinião realizadas em 1995 e 1999, com respeito às impressões da população sobre os rumos do Brasil: Tabela 1 - Novembro de 1995 “Na sua opinião, o Brasil está mudando para melhor, está mudando para pior ou não está mudando? “ Resposta % Para melhor 45 Para pior 31 Não está mudando 18 Indecisos 6 Fonte: Vox Populi, para revista VEJA. Banco de dados Vox Populi. 10 Tabela 2 - Maio de 1999 “Você acha que o Brasil é um país que, de maneira geral, está andando para frente, está andando para trás ou está parado (não está andando para frente nem para trás)?” Resposta % Para frente 13 Para trás 28 Está parado 57 Indecisos 1 Fonte: Vox Populi, para revista ÉPOCA. Banco de Dados Vox Populi Esta última pesquisa informava, ainda, que 60% dos entrevistados se declaravam contrários, em princípio, à privatização de qualquer empresa pública. Faz sentido, portanto, perante esse quadro, supor que a aliança de partidos de centro – esquerda, capitaneada pelo PT, em apoio à candidatura Luiz Inácio da Silva em 2002 se propusesse a uma revisão, pelo menos parcial do modelo. Se no primeiro mandato, como nota Boschi (2007), a coalizão de governo continha um grau de heterogeneidade que dificultava a obtenção de suporte para um projeto mais definido (o que, de certo modo, contribuiu para a manutenção do staus quo em termos de política econômica); a partir do segundo mandato de Lula abre-se a oportunidade para a implantação de uma “Agenda Política de Desenvolvimento”, uma vez que há condições políticas favoráveis, organismos de fomento em operação e um cenário internacional em que existe disponibilidade de capitais de investimento e novos centros econômicos em condições de estabelecer outras parcerias no rumo do “desenvolvimento com equidade”. A oportunidade política de implantação do modelo “neo-intervencionista”, para além dessa retomada do desenvolvimentismo, significaria um novo patamar de coordenação da esfera econômica tanto pelo estado como através dos mecanismos de mercado. Não é um retorno ao passado, mas a possibilidade de reinterpretar e confluir elementos positivos dos discursos do livre mercado do intervencionismo estatal. Teríamos, assim, um modelo capaz de explorar as oportunidades competitivas que se descortinam para o Brasil no cenário global, ao mesmo tempo dotado de políticas sociais compensatórias que tratariam de reduzir as desigualdades internas. 11 6 – Conclusões? Numa definição sumaríssima, globalização significa uma “mudança de escala das sociedades” (Bayert, cit. in Vandenberghe, F., 2006: 3), que ocorre quando fluxos humanos, materiais e simbólicos se integram em redes planetárias que ultrapassam as fronteiras nacionais. Já ocorreu em momentos históricos anteriores, mas, desta vez, a integração sistêmica é de tal ordem, que pode ser denominada de “globalização da globalização” (Vandenberghe, 2006). Um de seus traços mais distintivos é a desconexão entre política e sociedade, uma vez que se economia, ciência e religião, por exemplo, são subsistemas que já operam em escala não-territorial, o sistema político ainda opera com base em territórios nacionais, embora a globalização esteja promovendo, cada vez mais, a desnacionalização do estado. Em suas interações com as redes transnacionais da sociedade civil, o estado se transforma, propiciando a perspectiva de uma ordem cosmopolita, uma “ordem mundial justa, com e para todos, dotada de instituições justas num meio-ambiente sustentável”. (idem, ibidem) Se a ordem política cosmopolita ainda é um processo em formação, está cada vez mais nítido que o subsistema econômico se torna cada vez menos centralizado. Os dados mais recentes disponíveis demonstram que está ocorrendo uma “descentralização do centro”, com progressiva perda de relevância das economias ocidentais capitalistas, e, ao mesmo tempo, importantes deslocamentos dos centros econômicos mundiais. A tabela 3, abaixo, indica a distribuição percentual do PIB global, segundo as principais zonas econômicas e suas perspectivas de evolução no futuro próximo. Tabela 3 Participação no PIB real global (percentual) Expectativa de crescimento (percentual) e percentual de contribuição sobre o crescimento econômico global. (b) Projeção Projeção Projeção 2005 (a) 2006 2007 2008 2009 EUA 20 3.3 [0.66] 2.1 [0.42] 2.8 [0.56] 3.1 [0.62] União Européia 19 2.8 [0.52] 2.3 [0.42] 2.2 [0.40] 2.2 [0.40] 6 2.2 [0.14] 2.3 [0.15] 1.9 [0.12] 1.8 [0.12] China e NEI’s Asiáticas (c) 19 9.7 [1.82] 9.0 [1.68] 8.6 [1.60] 8.2 [1.53] Outros Países 36 6.0 [2.17] 5.9 [2.15] 5.7 [2.07] 5.3 [1.92] Mundo 100 5.3 4.8 4.8 4.6 Projeções de Crescimento Global Japão (a) Participações no PIB global baseadas na avaliação de paridade de poder de compra (PPC) do PIB nacional para 2005. Fonte: FMI, WEO Database, Abril 2006. (b) Dados em colchete representam a contribuição de cada região na taxa de crescimento global, em pontos percentuais. (c) NEI’s são Novas Economias Industrializadas. Incluem: Hong Kong, Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura. Fonte: Bank of Canada. Monetary Policy Report, April 2007 12 Além de registrar que a zona de influência econômica da China já tem uma dimensão comparável à União Européia ou os EUA, o mais importante é constatar que o “centro econômico” deslocou-se para o que, até há pouco tempo era considerado “periferia”. Noutras palavras, o eixo de produção de riquezas sofreu uma translação que poderá impactar de modo relevante as possibilidades de alinhamento e de constituição de novos fluxos econômicos, talvez viabilizando uma articulação anti-hegemônica no sentido SulSul, assim como poderá impactar aspectos críticos da agenda global mais geral. Desde logo, esses dados parecem indicar que a busca de uma política externa mais autônoma em relação ao Ocidente que vem sendo desenvolvida pelo governo brasileiro encontra bases e perspectivas materiais convincentes. Por outro lado, assimetrias nacionais referentes a issues centrais para algumas organizações de ação coletiva transnacional, como questões de direitos humanos e do trabalho no âmbito de algumas NEI’s; impactos ambientais do crescimento industrial na China ou no Brasil, poderão afetar as interações estratégicas entre essas ONG’s, autoridades governamentais nesses países e mesmo alinhamentos locais até o momento em aparente boa sintonia. No entanto, essas questões podem, quem sabe, propiciar avanços, ensejar alternativas. Em reflexão há pouco publicada, Boaventura de Sousa Santos (2007) dá conta de que o socialismo voltou à agenda, seja pela incapacidade de o capitalismo neoliberal ter sido incapaz de enfrentar os problemas da paz, da equidade, do ambiente e da legalidade; seja pela adoção explícita por alguns regimes democraticamente eleitos na América Latina, como Chavez, Morales e Correa, de uma perspectiva de construção de um “socialismo do século XXI”. Por enquanto, segundo o autor, esse novo socialismo é definido mais pelo que não quer ser: uma repetição dos erros e dos fracassos do “novecentto”. E aponta para algumas características de um possível devir, como abaixo sumariamos em seus pontos principais: Incorporação de valores essenciais como o pacifismo e a democracia (esta numa complementaridade entre a forma representativa e a participativa); Fim das discriminações e aceitação da diversidade de opiniões, culturas, comportamentos, etnias e da plurinacionalidade; Modo de produção baseado mais na associação de produtores que na estatização dos meios produtivos, coexistência da propriedade privada, cooperativa e estatal, concorrência institucionalizada entre sistemas de conhecimento “de código aberto” e “fechado”; Estado descentralizado (desterritorializado?), transparente e auditável, criação de espaços públicos, não-estatais, combate à corrupção e aos privilégios burocráticos e partidários. Parece um programa de difícil aplicação por igual e em qualquer parte. Mas, não teríamos aqui a agenda básica para se discutir, por que não, sobre não mais “o” socialismo, mas, invertendo a nossa lente, acerca de possíveis “variedades do socialismo”? 13 Bibliografia BOCKMANN, J. e EYAL, G. (2002), “Eastern Europe as a Laboratory of Economic Knowledge: The Transnational Roots of Neo-liberalism”. American Journal of Sociology, vol. 108, nº 2, pp. 208-352. BOSCHI, R.R. (2007), “Ismos’ comparados”. Insight Inteligência, Ano X, n.37, 2º. Trimestre – Junho de 2007. CASTELLS, M. (1996), “Prologue: The Net and the Self”, in The Rise of the Network Society, Oxford, Blackwell Publishers, pp. 1-27. HALL, P. e SOSKICE, D. (2001), Varieties of Capitalism: The Institutional Foundations of Comparative Advantage. Oxford/New York, Oxford University Press. HELD, D. e KOENIG-ACHIBUGI, M. (eds.). (2003), Taming Globalization: Frontiers of Governance. London, Polity Press. HELD, D. e MCGREW, A. 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