Refletindo sobre a Globalização
João Francisco Meira
Julho de 2007
Trabalho de conclusão da disciplina “Economia Política da Globalização”, ministrada pelo
Prof. Dr. Renato R. Boschi no Curso de Doutorado em Ciência Política do Departamento
de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais ao longo do 1º semestre de
2007.
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1 - Introdução
A questão final que se recolocou após nosso percurso pela literatura a respeito do tema
da Economia Política da Globalização permaneceu, ao mesmo tempo, como um desafio e
uma inquietação, compartilhados, talvez, por Wallerstein (1974): seria possível criar uma
teoria preditiva da mudança social ou apenas pode-se descrever essa mudança nos
termos do já acontecido?
Em complemento a esta, fica outra indagação de fundo: que papel desempenharia o
estado nacional nesta época em que o próprio conceito de territorialidade tende à
desmaterialização, as culturas se confundem, as línguas emprestam-se umas às outras e
os povos se dispersam em diásporas e se reencontram em comunidades virtuais?
Também já não é possível distinguir com clareza os limites da soberania e do monopólio
da legitimidade do uso da força, esses dois outros componentes da definição clássica das
feições do estado moderno.
Noutras palavras, poder-se ia indagar se é possível antever quais serão as características
da organização humana no futuro próximo, considerando a magnitude, a velocidade e a
profundidade dos “fluxos e padrões transcontinentais de interação social”, a esse
“sentimento de conectividade” (Koenig-Archibugi, 2003) que hoje se verificam?
Desde o começo de nossos seminários, algo já se podia constatar: nas palavras
proféticas do fabiano Polanyi (2001), escrevendo em 1944, uma grande transformação se
prenunciava, junto com o atestado de óbito da civilização do século 19: o mercado autoregulado, grande “invenção” do liberalismo clássico deixara de funcionar. Num movimento
defensivo, segundo ele, forças e agentes sociais estabeleceram formas de resistência e
contra-hegemonia. Em meio aos conflitos de então, o estado liberal, por vezes
experimentou ser regulador, noutras tornou-se arena mesma de disputa por seu controle,
noutras mais, simplesmente implodiu em crises monetárias, em anarquia social e
invasões de inimigos externos. Em todos os casos, porém, definitivamente deixara de
existir o estado do laissez-faire. O tempo, porém, mostraria que não era bem assim: meio
século depois o neoliberalismo conduziria a um novo “duplo movimento”: a uma nova
tentativa de hegemonia corresponderia uma nova articulação de forças contrahegemônicas. Só que, desta vez, num nível de expansão do capitalismo profundamente
transfigurado em relação ao meio-século anterior.
2
Vários aspectos dessa mudança foram observados através da bibliografia percorrida ao
longo do Curso. Afinal, pouco importa o termo usado para descrever o processo –
globalização, mundialização, transnacionalização ou até a boa e velha internacionalização
– todos descrevem até certo ponto (e nenhum deles totalmente) o zeitgeist do nosso
tempo, um tempo de convergência e de dissenso, de equalizações e iniqüidades, de
“inaudita riqueza material” (Polanyi) e de extraordinária expansão do saber. De
inimaginadas formas de infligir sofrimento; de inédita expansão das forças produtivas e de
extrema espoliação dos recursos naturais, tudo envolto em dimensões de espaço e de
tempo que a cada dia mais parecem se comprimir (Kearney, 1995: 551); tudo parece
muito perto, tudo caminha muito rápido, tudo é muito simultâneo.
Todavia, pudemos ver também que a globalização está longe de ser um processo que
ocorre de forma homogênea e harmônica, por igual em toda parte, gerando os mesmos
efeitos sobre todos os países e camadas sociais. Pelo contrário, se é possível falar de
uma “repartição” de ônus e vantagens do processo, resta evidente que os centros
capitalistas mais desenvolvidos – particularmente Europa Ocidental e EUA – se apropriam
mais das últimas que sofrem os efeitos dos primeiros. Por outro lado percebe-se que os
“excluídos” (países e grupos sociais que menos se beneficiam ou mesmo sofrem perdas
com o processo), na companhia de movimentos de solidariedade, grupos de pressão
setoriais e organizações não-governamentais (ONG) engajadas em variadas causas,
articulam-se, em escala mundial, na tentativa de estabelecer um contra-poder em
contestação a esse balanço de forças.
Outro traço distinto deste momento histórico é o surgimento de uma “semi-periferia”.
Nessa, formada pelos chamados “países emergentes”, se destacam a China, as Novas
Economias Industrializadas Asiáticas (Coréia do Sul, Singapura, Taiwan, Hong Kong) e a
Índia, bem como África do Sul, México, Federação Russa e Brasil. Crescentemente
competitivas em termos econômicos com os centros hegemônicos, essas nações, no
entanto, pagam um preço ambiental e elevados custos sociais para crescer, enquanto
permanecem relativamente atrasadas em termos de institucionalização política,
governança corporativa e de franquias e direitos de cidadania.
Pretende-se refletir, neste texto, sobre alguns dos aspectos acima referidos, à luz da
bibliografia oferecida ao longo do Curso. Também buscaremos observar certas
peculiaridades da globalização no contexto brasileiro ou, por assim dizer, da “variedade
de capitalismo” (Hall e Soskice, 2001) aqui existente.
Ao cabo, nossa intenção é esboçar uma aproximação a essa cambiante realidade
histórica, numa tentativa de, ao menos, distinguir alguns de seus possíveis futuros.
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2 - Da Guerra Fria à Globalização: muitos sentidos, pouco consenso
Céticos ou globalistas (Held e McGrew, 2002); nesses campos opostos de opinião
concentram-se os debates sobre a extensão a natureza e o alcance das transformações
que vivenciamos na economia e sociedade atuais. Para alguns, (e.g.: Silver e Arrighi,
2003) o que hoje existe mais se aproxima de uma tentativa de afirmação da hegemonia
de uma potência: de imposição do “americanismo” sobre todo o mundo; sendo o “discurso
da globalização” apenas um nariz de cera para um neo-imperialismo. Para outros, (e.g.:
Kaul, I. et alii. 2003; Pulver, S. 2005; Vandenberghe, F., 2006), a expansão do capitalismo
gera contradições e novos atores que, no futuro, conduzirão à superação do estado
nacional e o surgimento de uma sociedade global e, talvez, de um estado mundial.
Existiria uma possibilidade de convergência entre assas posições?
As características do capitalismo ao longo do século XX foram muito influenciadas pelas
instituições, empresas, modos de organização do trabalho e pelas políticas econômicas
norte-americanas. Do fordismo na produção industrial ao new deal na política social, da
expansão das multinacionais à liderança no desenho das instituições reguladoras da
economia e da política internacionais a partir das conferências de Bretton Woods e Yalta,
os EUA marcaram fortemente os rumos da cena global nessas décadas, a que muitos
chamaram de pax americana. Contudo, é inegável que, ao longo desse mesmo período,
não faltou competição, contestação e um crescente contencioso a essa aparente
hegemonia. Outros centros de poder econômico e político, tanto na forma tradicional de
estados (como foi o caso da União Soviética e, mais recentemente, da China e as
economias emergentes do leste asiático); como atores não-estatais, entraram na cena
mundial tornando muito mais complexo o cenário e as interações dentre os diferentes
atores. Issues de caráter econômico, social e ambiental também passaram a fazer parte
da agenda mundial, tornando ainda mais relevante o papel dessas interações.
O capitalismo moderno, não é fruto do acaso, lembra-nos Polaniy em seu diagnóstico
sobre o fim do sistema internacional que emergiu do Congresso de Viena e da derrota das
ilusões cesaristas de Napoleão e que durou cerca de 100 anos.
O que sua análise ressalta é que a débâcle do sistema internacional vigente no século
XIX resultou de uma contradição insolúvel que, afinal, terminou por destruí-lo. O embate
envolveu, de um lado, o conjunto de agentes econômicos detentores do capital,
principalmente a haute finance (epítome do “mercado”) cujo drive permanente é a
maximização do lucro – sendo o “mercado auto-regulado” sua criação mais relevante e
que constituiu a chave do equilíbrio internacional então vigente – e, de outro lado, a
“sociedade”, ou seja, as classes e “agências” não-detentoras daqueles meios de produção
(particularmente, o operariado, mas não apenas ele) que articulou uma resposta
defensiva, de “auto-proteção”, na forma do movimento socialista, dos fascismos, da
social-democracia e da ação política sobre as estruturas do estado, contra o que, para
Polaniy, não passava de uma sinistra, ameaçadora utopia.
Esperava-se que, após os banhos de sangue de duas guerras mundiais, o novo centro de
poder representado pelos estados socialistas, as franquias e direitos contratuais
conquistados pelos trabalhadores nos centros capitalistas, bem como o desmonte dos
impérios coloniais proporcionaria um futuro em que não mais haveria lugar para o
mercado sem restrições externas nem suas formas institucionais complementares: o
imperialismo, o colonialismo e o estado estritamente liberal.
4
Porém, nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, as transformações não
ocorreram precisamente na trilha antevista: no campo socialista, surge o bloco soviético,
resultante da vitória militar e da ocupação de países antes dominados pela Alemanha
nazista aos quis a URSS impôs regimes “isomórficos”, enquanto, noutras partes do
planeta, o capitalismo se expandiu velozmente através do todos os continentes,
inventando novas formas de hegemonia, inovando em processos produtivos e tecnologia.
Com o mundo dividido entre esses dois grandes blocos; durante meio século
confrontaram-se uma versão (leninista) de socialismo de estado e economia centralmente
planificada, de que a União Soviética era a principal unidade; e a aliança forjada pelos
EUA com as economias da Europa Ocidental em reconstrução e integração aceleradas e
o Japão, reconstituindo, destarte, o centro hegemônico capitalista.
Antagônicos no discurso, mas equivalentes na disponibilidade de armas de destruição em
massa, o equilíbrio de estoque de armamento nuclear implicou inevitável détente bélica,
vez que a capacidade mútua de destruição tornava impossível uma guerra aberta entre as
potências-líderes. A resultante foi o estabelecimento de um status quo internacional
baseado em esferas de influência e, eventualmente, em conflitos armados em países da
periferia dessas esferas.
Interessa notar que alguns segmentos da inteligentsia em cada bloco viam o outro lado
também como um laboratório de experimentação social e econômica. Isto favoreceu de
ambos os lados, o surgimento de comunidades epistêmicas 1 em constante diálogo, e
propiciou traduções e confluências de pensamento econômico que, mais adiante, após a
dissolução do bloco soviético, vieram a se tornar paradigmas de política econômica e
redesenho de estruturas de estado, de corte marcadamente neoliberal, não apenas no
Leste, como também na América Latina Ásia e África. (Bockmann e Eyal, 2002); (Henisz,
Zelner e Guillén, 2005)
Ao mesmo tempo em que, no plano das relações internacionais, essa confrontação
enfocava o estado como ator preponderante, a Guerra Fria engendrou (ou fortaleceu o
preexistente) dois fenômenos que, logo a seguir, iriam adquirir grande relevância no
cenário global: primeiro, a emergência de múltiplos atores não-estatais (tais como as
empresas e os grupos ação coletiva com atuação em âmbito transnacional, bem assim as
agências multilaterais derivadas da ONU); e, segundo, a revolução tecnológica, um
subproduto da corrida armamentista que logo causou profundo impacto no modo de
produção industrial, na circulação de capitais e de pessoas e nas formas de interação
social.
É certo que, de há muito, o capital financeiro tem ação e vocação para o âmbito global. A
partir dos anos finais do “socialismo real” é que outros setores produtivos, do capital e do
trabalho, bem como o terceiro setor também passaram a se articular em escala planetária,
constituindo-se em atores de relevo nesse cenário global, tendo a sua ação grandemente
facilitada pelos avanços tecnológicos.
1
Comunidade epistêmica é uma rede de profissionais com reconhecida experiência e capacidade técnicas com relação a um domínio particular de
conhecimento e que se sente autorizada a reivindicar o estabelecimento de políticas públicas baseadas no conhecimento relevante que detém sobre
aquele domínio ou área-problema. (Peter M. Haas, International Organization, n.46. 1992. Tradução do autor)
5
3 - A Revolução Tecnológica
Nas palavras de Castells (1996), a “revolução tecnológica é mudança histórica que está
transformando todos os aspectos da vida humana”, cujo epicentro reside nas tecnologias
de informação (TI). Elas estariam na raiz da resolução do confronto entre o bloco
capitalista e o bloco socialista, com o desmonte desse último, fortemente impactado pela
sua impossibilidade de continuar sustentando uma corrida pela supremacia militar e
manter, ao mesmo tempo, o modelo de economia centralizada. Está além do escopo do
presente texto aprofundar-se nas causas internas e externas da derrocada do bloco
socialista, mas vale notar que a obsolescência tecnológica terá sido – segundo Verdery
(2005) [1996] – o empurrão final para o colapso de um modelo que já vinha se mostrando
ineficaz em termos de produtividade, de qualidade e de competitividade tanto no âmbito
do atendimento da demanda interna quanto no plano do comércio exterior.
Todavia, a revolução da TI representa uma transformação que ultrapassa em muito a
polarização capitalismo versus socialismo porque também viabilizou um completo
redesenho do próprio capitalismo. Surgida em meio à primeira crise do petróleo, nos anos
1970, a TI deu origem a um novo modo de desenvolvimento que Castells chama de
“informacionalismo”. Esse conceito é praticamente um sinônimo e uma qualificação do
pós-industrialismo e denota o novo arranjo através do qual capital e força de trabalho
interagem com os elementos materiais na geração de produtos e, em última análise na
quantidade e na qualidade da geração de excedentes:
No novo modo de desenvolvimento informacional a fonte da produtividade repousa sobre a tecnologia de geração de conhecimento, no processamento
da informação e na comunicação simbólica. Decerto, conhecimento e informação são elementos críticos em todos os modos de desenvolvimento (...).
Contudo o que é específico no modo de desenvolvimento informacional é a ação do conhecimento sobre o próprio conhecimento a principal fonte da
produtividade. (Castells, 1996:17)
Uma das variáveis determinantes, portanto, do grau de desenvolvimento que se pode
observar em dada sociedade será a sua capacidade de produzir conhecimento e de
aplicá-lo à produção de bens e serviços. Aquela é também um critério que permite
observar a posição atual e a velocidade com que tal sociedade cresce termos
econômicos. Também ajuda a distinguir, dentro dos espaços nacionais, como cada
sociedade reagiu às circunstâncias, por vezes adotando uma variedade própria de
capitalismo, noutras buscando aproximarem-se pela via da imitação (ou isomorfismo
institucional) de modelos já consagrados em outros países. A importância desta
possibilidade de distinção reside em identificar potenciais vantagens comparativas
nacionais, seja no campo da produção, seja no campo do comércio exterior, capazes de
propiciar um “nicho de mercado” favorável àquele país.
6
4 – A política mundial hoje: atores novos e os mesmos de sempre – uma teia de
interações
No atual cenário internacional, ao mesmo tempo em que permanecem os estados e as
organizações multilaterais, surgiu uma grande quantidade de atores não-estatais, na
forma de grupos de ativistas, empresas, corporações profissionais, dentre outras, ligadas
a temas específicos.
A modalidade típica de ação dessas entidades é através de redes transnacionais,
conforme descrevem Margaret Keck e Kathryn Sikkink (1999). Essas redes se
caracterizam pela horizontalidade, ou seja, pelo intercâmbio voluntário e recíproco de
informações e serviços, conectando e inter-relacionando problemas locais e grandes
temas de impacto internacional.
Algumas dessas organizações envolvem interesses econômicos ou profissionais, outras
compartilham causas e ideais, todas constituem o que as autoras chamam de “redes
transnacionais de reivindicação” (advocacy).
Embora suas motivações sejam muito distintas, todas compartilham certos traços como a
adesão a crenças ou valores comuns, a confiança de que a sua ação pode “fazer
diferença”, o uso “criativo” da informação, através do recurso a sofisticadas estratégias
políticas de segmentação de suas ações.
Também aqui, nesse contexto, as TI tem papel crucial, uma vez que tornaram mais fácil e
barato o acesso e a difusão da informação, além de quebrar o controle estatal sobre ela.
É assim que tais organizações têm, conforme as autoras, a capacidade
(...) de mobilizar estrategicamente informações para sustentar a criação de novos issues e categorias e para persuadir e
obter influência sobre outras organizações muito mais poderosas e até governos. Ativistas em rede não tentam
apenas influenciar resultados políticos, mas transformar os termos e a natureza dos debates. (p.2)
O novo ambiente tecnológico também é apontado por Sidney Tarrow (2006) como
facilitador do ativismo transnacional, anotando este, ademais, a difusão da língua inglesa
como veículo de divulgação do que chama de “script da modernidade”.
A questão central destacada em ambos os trabalhos, é a ação política de contestação
transnacional anti-globalista, (transnational contention), que coloca em pauta o que
consideram as externalidades negativas da globalização: a discussão sobre as causas da
desigualdade, particularmente no sentido norte-sul entre países, mas também entre
diferentes segmentos populacionais no espaço interno das nações; os efeitos ambientais
do desenvolvimento industrial, especialmente nos países do antigo Terceiro Mundo; o
tema dos direitos humanos – diga-se de passagem, reconhecido a partir do marco
institucional da Carta da ONU, resultante direta da “hegemonia” americana do pós-guerra
- os temas da igualdade de gênero e de etnia, etc. E, como questão de fundo, principal,
uma tentativa de vislumbrar outra forma de organização social além do capitalismo, como
que, relembrando Castells (1996), uma retomada da utopia socialista anterior à “atração
fatal” do leninismo.
7
5 - O Brasil e sua inserção no processo de globalização
Desde a década de 1950, a economia brasileira entrou em constante e rápido processo
de industrialização de que participaram como atores fundamentais tanto o estado como a
iniciativa privada. O primeiro, por vezes, assumiu o papel de fomento, através da adoção
de políticas industriais e agências de financiamento, outras vezes assumiu ele próprio o
papel de empreendedor.
O capital privado, desde sempre, contou com a presença de setores de origem nacional
como também investidores internacionais, isolados ou em consórcio, ora com os privados
nacionais, ora com as estatais.
Em linhas gerais, distinguem-se, nesse período, três ciclos principais, que correspondem
ao modelo de industrialização através da substituição de importações (1950 – 1964), em
que o estado age como formulador de política industrial e fomentador; ao de estatização e
internacionalização (1964 – 1989) em que o estado adquire presença muito expressiva
como empreendedor, com a intervenção direta através de dezenas de empresas estatais
em setores por ele considerados “estratégicos”, ao mesmo tempo em que estimula a
internacionalização mediante a abertura de alguns setores internos a investimentos
estrangeiros e também ao financiamento de alguns setores nacionais à participação no
cenário internacional, como foi o caso da construção pesada.
No terceiro ciclo, iniciado a partir do início dos anos 1990, até o presente, houve, de início,
a adoção de reformas econômicas com características neoliberais, com políticas de
controle da inflação, estabilização da moeda e privatizações, correspondendo a uma
redução da ação direta do estado enquanto empreendedor e a um incremento de sua
ação no âmbito regulatório.
Em cômputo final, embora nesse período o estado brasileiro tenha diminuído
significativamente a sua face empresarial, claramente não a abandonou, mantendo ainda
presença em setores relevantes como os de energia e bancário, dentre outros2 .
Num segundo momento, a partir de 2002, observa-se a manutenção em linhas gerais
dessas políticas macroeconômicas, porém acompanhada da retomada de “ações
afirmativas” no âmbito da política social, e o esboço de uma nova formulação de política
industrial, aparentemente voltada para o aproveitamento de oportunidades surgidas a
partir da expansão do comércio exterior.
É importante lembrar que, em nenhum dos períodos mencionados, o estado deixou de
exercer papel de coordenação e fomento, através de uma rede nacional de agências de
financiamento (BNDES, Bancos de desenvolvimento estaduais, Bancos regionais e Banco
do Brasil), além de manter, no âmbito do aparelho de estado, certa capacidade de
formulação e implementação de políticas de desenvolvimento, como, por exemplo, o
IPEA.
Por manter tais características é que se pode identificar, no Brasil, uma “dosagem
específica” (Boschi, 2007) de mecanismos de regulagem da economia pela via do
mercado com elementos de coordenação centralizada em organizações do estado, como
forma de manter algo da capacidade deste último de reduzir as externalidades negativas
de uma formulação de corte puramente liberal.
2
Dados recentes dão conta da existência, em todos os âmbitos do estado brasileiro, de 253 empresas estatais. (Boschi, 2007: 131)
8
Neste sentido, podemos nos referir, no Brasil, a uma específica “variedade de
capitalismo”, no conceito de Hall e Soskice (2001), que vêem a economia política como
um território onde múltiplos atores, em busca de viabilizar seus interesses racionais,
estabelecem entre si interações estratégicas.
Os atores relevantes desses processos políticos e econômicos podem ser indivíduos,
grupos de produtores, governos ou empresas, sendo essas, segundo os autores os
agentes-chave dos ajustes (que produzem variações nos arranjos entre os atores) em
face das mudanças tecnológicas e das possibilidades de performance em face da
competição internacional.
Hall e Soskice identificam cinco áreas-problema que os atores políticos e econômicos
devem enfrentar mediante processos de interação estratégica:
a) relações industriais (negociações sobre pagamentos e condições de trabalho,
envolvendo organizações de representação da força de trabalho, com impactos sobre
a estrutura salarial, níveis de produtividade, desempenho geral das empresas, taxas
de emprego e inflação na economia em geral);
b) treinamento e educação (com impactos sobre a competitividade da economia
nacional);
c) governança corporativa (através da qual, empresas acessam o mercado de capitais e
investidores asseguram garantias sobre o retorno dos investimentos. Tem impacto
tanto sobre a disponibilidade de recursos quanto sobre os termos e taxas de
financiamento);
d) relações interempresariais, em cadeias produtivas, de suprimentos e com clientes.
(Estabelecimento de normas-padrão, de fluxos de demanda e de suprimentos,
transferência de tecnologia, parcerias em pesquisa e desenvolvimento. Dos riscos e
oportunidades dessa esfera de interações depende a competitividade e o progresso
tecnológico da economia como um todo);
e) coordenação de problemas entre a firma e seus empregados: assegurar competências
e cooperação, minimizar problemas de incompatibilidades pessoais, problemas
familiares e morais, assegurar o compartilhamento de informações, são problemas que
podem condicionar a competitividade e outras características de regimes de produção
numa dada economia.
Nas economias de mercado, identificam-se dois tipos-ideais que podem derivar
variedades de capitalismo, dependendo de regras e instituições específicas em diferentes
países ou regiões, tendo em vista processos históricos e correlações de forças
estabelecidas entre os atores envolvidos: economias de mercado liberais e economias de
mercado coordenadas.
Presentemente, no Brasil, teríamos uma fórmula “híbrida”, denominada por Boschi (2007)
de “neo-intervencionismo”, caracterizada, segundo ele, por uma retomada do
desenvolvimentismo, mas, agora, matizado pelo liberalismo no nível macroeconômico.
9
Essa “variante” resulta da interação de um conjunto de fatores tais como a natureza e a
composição das elites burocráticas e políticas locais - em que o predomínio da formulação
não permaneceu em mãos exclusivas de uma categoria (não tivemos entre nós o primado
dos “Chicago boys” como no Chile); o jogo de favorabilidade e resistência de setores
organizados dentro e fora do aparelho de estado às privatizações – empresariado em
geral favorável, versus organizações sindicais, corporações de funcionários do estado e
alguns partidos políticos, como, de início, PT e PSDB contra; e a preservação de núcleos
estatais de competência técnica que mantiveram papel de proa, desde os períodos
anteriores até a liderança dos processos de privatização, como foi o caso do BNDES.
É, ainda, importante destacar variáveis de ordem política que contribuíram para dar forma
ao arranjo atual. O programa de desestatização da economia, de reforma do estado e
estabilização econômica que recebeu apoio eleitoral vitorioso nas eleições de 1989
somente conseguiu obter sucesso após a crise política que conduziu ao afastamento de
Fernando Collor de Mello em 1992, tendo em vista a fragilidade de sua base de apoio
parlamentar e os níveis de confrontação política que sua tentativa de implementar as
reformas prometidas provocou. Somente a partir da implantação do Plano Real é que a
coalizão PSDB-PFL, com Fernando Henrique Cardoso na Presidência a partir de 1995,
conseguiu implementar o conjunto de medidas de caráter mais marcadamente neoliberal
do período, com destaque para a estabilidade monetária, o controle da inflação, as
privatizações, reformas parciais no sistema de seguridade social e implementação de
algumas agências reguladoras de serviços públicos concedidos.
Essas medidas provocaram inicialmente uma forte onda de otimismo em relação ao
desenvolvimento do País. Mas, á medida em que “externalidades negativas”, como o
aumento do desemprego e baixas taxas de crescimento da economia se fizeram sentir, o
sentimento positivo, em pouco tempo, desapareceu.
As tabelas a seguir mostram resultados parciais de duas pesquisas de opinião realizadas
em 1995 e 1999, com respeito às impressões da população sobre os rumos do Brasil:
Tabela 1 - Novembro de 1995
“Na sua opinião, o Brasil está mudando para melhor,
está mudando para pior ou não está mudando? “
Resposta
%
Para melhor
45
Para pior
31
Não está mudando
18
Indecisos
6
Fonte: Vox Populi, para revista VEJA. Banco de dados Vox Populi.
10
Tabela 2 - Maio de 1999
“Você acha que o Brasil é um país que, de maneira geral, está andando para frente, está
andando para trás ou está parado (não está andando para frente nem para trás)?”
Resposta
%
Para frente
13
Para trás
28
Está parado
57
Indecisos
1
Fonte: Vox Populi, para revista ÉPOCA. Banco de Dados Vox Populi
Esta última pesquisa informava, ainda, que 60% dos entrevistados se declaravam
contrários, em princípio, à privatização de qualquer empresa pública.
Faz sentido, portanto, perante esse quadro, supor que a aliança de partidos de centro –
esquerda, capitaneada pelo PT, em apoio à candidatura Luiz Inácio da Silva em 2002 se
propusesse a uma revisão, pelo menos parcial do modelo. Se no primeiro mandato, como
nota Boschi (2007), a coalizão de governo continha um grau de heterogeneidade que
dificultava a obtenção de suporte para um projeto mais definido (o que, de certo modo,
contribuiu para a manutenção do staus quo em termos de política econômica); a partir do
segundo mandato de Lula abre-se a oportunidade para a implantação de uma “Agenda
Política de Desenvolvimento”, uma vez que há condições políticas favoráveis, organismos
de fomento em operação e um cenário internacional em que existe disponibilidade de
capitais de investimento e novos centros econômicos em condições de estabelecer outras
parcerias no rumo do “desenvolvimento com equidade”.
A oportunidade política de implantação do modelo “neo-intervencionista”, para além dessa
retomada do desenvolvimentismo, significaria um novo patamar de coordenação da
esfera econômica tanto pelo estado como através dos mecanismos de mercado. Não é
um retorno ao passado, mas a possibilidade de reinterpretar e confluir elementos positivos
dos discursos do livre mercado do intervencionismo estatal. Teríamos, assim, um modelo
capaz de explorar as oportunidades competitivas que se descortinam para o Brasil no
cenário global, ao mesmo tempo dotado de políticas sociais compensatórias que tratariam
de reduzir as desigualdades internas.
11
6 – Conclusões?
Numa definição sumaríssima, globalização significa uma “mudança de escala das
sociedades” (Bayert, cit. in Vandenberghe, F., 2006: 3), que ocorre quando fluxos
humanos, materiais e simbólicos se integram em redes planetárias que ultrapassam as
fronteiras nacionais. Já ocorreu em momentos históricos anteriores, mas, desta vez, a
integração sistêmica é de tal ordem, que pode ser denominada de “globalização da
globalização” (Vandenberghe, 2006).
Um de seus traços mais distintivos é a desconexão entre política e sociedade, uma vez
que se economia, ciência e religião, por exemplo, são subsistemas que já operam em
escala não-territorial, o sistema político ainda opera com base em territórios nacionais,
embora a globalização esteja promovendo, cada vez mais, a desnacionalização do
estado. Em suas interações com as redes transnacionais da sociedade civil, o estado se
transforma, propiciando a perspectiva de uma ordem cosmopolita, uma “ordem mundial
justa, com e para todos, dotada de instituições justas num meio-ambiente sustentável”.
(idem, ibidem)
Se a ordem política cosmopolita ainda é um processo em formação, está cada vez mais
nítido que o subsistema econômico se torna cada vez menos centralizado. Os dados mais
recentes disponíveis demonstram que está ocorrendo uma “descentralização do centro”,
com progressiva perda de relevância das economias ocidentais capitalistas, e, ao mesmo
tempo, importantes deslocamentos dos centros econômicos mundiais.
A tabela 3, abaixo, indica a distribuição percentual do PIB global, segundo as principais
zonas econômicas e suas perspectivas de evolução no futuro próximo.
Tabela 3
Participação
no PIB real
global
(percentual)
Expectativa de
crescimento
(percentual) e
percentual de
contribuição sobre o
crescimento
econômico global. (b)
Projeção
Projeção
Projeção
2005 (a)
2006
2007
2008
2009
EUA
20
3.3 [0.66]
2.1 [0.42]
2.8 [0.56]
3.1 [0.62]
União Européia
19
2.8 [0.52]
2.3 [0.42]
2.2 [0.40]
2.2 [0.40]
6
2.2 [0.14]
2.3 [0.15]
1.9 [0.12]
1.8 [0.12]
China e NEI’s Asiáticas (c)
19
9.7 [1.82]
9.0 [1.68]
8.6 [1.60]
8.2 [1.53]
Outros Países
36
6.0 [2.17]
5.9 [2.15]
5.7 [2.07]
5.3 [1.92]
Mundo
100
5.3
4.8
4.8
4.6
Projeções de Crescimento
Global
Japão
(a) Participações no PIB global baseadas na avaliação de paridade de poder de compra (PPC) do PIB nacional para 2005. Fonte: FMI, WEO
Database, Abril 2006.
(b) Dados em colchete representam a contribuição de cada região na taxa de crescimento global, em pontos percentuais.
(c) NEI’s são Novas Economias Industrializadas. Incluem: Hong Kong, Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura.
Fonte: Bank of Canada. Monetary Policy Report, April 2007
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Além de registrar que a zona de influência econômica da China já tem uma dimensão
comparável à União Européia ou os EUA, o mais importante é constatar que o “centro
econômico” deslocou-se para o que, até há pouco tempo era considerado “periferia”.
Noutras palavras, o eixo de produção de riquezas sofreu uma translação que poderá
impactar de modo relevante as possibilidades de alinhamento e de constituição de novos
fluxos econômicos, talvez viabilizando uma articulação anti-hegemônica no sentido SulSul, assim como poderá impactar aspectos críticos da agenda global mais geral. Desde
logo, esses dados parecem indicar que a busca de uma política externa mais autônoma
em relação ao Ocidente que vem sendo desenvolvida pelo governo brasileiro encontra
bases e perspectivas materiais convincentes.
Por outro lado, assimetrias nacionais referentes a issues centrais para algumas
organizações de ação coletiva transnacional, como questões de direitos humanos e do
trabalho no âmbito de algumas NEI’s; impactos ambientais do crescimento industrial na
China ou no Brasil, poderão afetar as interações estratégicas entre essas ONG’s,
autoridades governamentais nesses países e mesmo alinhamentos locais até o momento
em aparente boa sintonia. No entanto, essas questões podem, quem sabe, propiciar
avanços, ensejar alternativas.
Em reflexão há pouco publicada, Boaventura de Sousa Santos (2007) dá conta de que o
socialismo voltou à agenda, seja pela incapacidade de o capitalismo neoliberal ter sido
incapaz de enfrentar os problemas da paz, da equidade, do ambiente e da legalidade;
seja pela adoção explícita por alguns regimes democraticamente eleitos na América
Latina, como Chavez, Morales e Correa, de uma perspectiva de construção de um
“socialismo do século XXI”.
Por enquanto, segundo o autor, esse novo socialismo é definido mais pelo que não quer
ser: uma repetição dos erros e dos fracassos do “novecentto”. E aponta para algumas
características de um possível devir, como abaixo sumariamos em seus pontos principais:
 Incorporação de valores essenciais como o pacifismo e a democracia (esta numa
complementaridade entre a forma representativa e a participativa);
 Fim das discriminações e aceitação da diversidade de opiniões, culturas,
comportamentos, etnias e da plurinacionalidade;
 Modo de produção baseado mais na associação de produtores que na estatização dos
meios produtivos, coexistência da propriedade privada, cooperativa e estatal,
concorrência institucionalizada entre sistemas de conhecimento “de código aberto” e
“fechado”;
 Estado descentralizado (desterritorializado?), transparente e auditável, criação de
espaços públicos, não-estatais, combate à corrupção e aos privilégios burocráticos e
partidários.
Parece um programa de difícil aplicação por igual e em qualquer parte. Mas, não teríamos
aqui a agenda básica para se discutir, por que não, sobre não mais “o” socialismo, mas,
invertendo a nossa lente, acerca de possíveis “variedades do socialismo”?
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1 Refletindo sobre a Globalização João Francisco Meira