LIBERDADE PARTIDA EM 1/4: ALFORRIA E PECÚLIO
EM PERNAMBUCO SOB A LEI DO VENTRE-LIVRE
Mônica Maria de Pádua Souto da Cunha∗
Marcus J. M. de Carvalho∗∗
Mateus Samico Simon∗∗∗
Resumo:
Apresenta o caso do escravo João Francisco, que recorre à Justiça para receber um pecúlio, que
seria usado para o pagamento de uma parcela da sua liberdade. Ressalta que, conforme o
reclamante, o seu senhor, João José d’Albuquerque, não cumpria sua parte, apesar de reconhecer
ter em seu poder o referido pecúlio. Destaca que, para iniciar o processo, o cativo foi sozinho e
diretamente à procura do Juiz de Direito – João Francisco da Silva Braga – da Comarca de
Itambé, vila de Pedras de Fogo, e acrescenta ser bastante relevante notar que a ação começou
sem a intervenção de um curador, cuja função era representar os juridicamente incapazes.
Acrescenta, ainda, que, como observara Robert Conrad (1972), a Lei do Ventre-Livre pode ser
vista como uma forma conciliatória de libertação, pois previa indenizações e prestação de
serviços para os proprietários, mas também abria margens para os escravos obterem legalmente
certos benefícios – como legalizar o pecúlio, que já existia, na prática, em muitas instâncias em
todas as Américas. Conclui que o escravo João, como outros cativos, durante o império, sabia das
novas circunstâncias promovidas pela legislação, por canais de informação diversos, e sobre o
desenrolar das políticas estatais de mão-de-obra, e que, assim, buscou seus direitos e encontrou
acolhida e diligência do aparato jurisdicional.
Palavras-chave:
Escravidão. Lei do Ventre-Livre. História de Pernambuco. Judiciário.
Em 15 de outubro de 1874, no Juízo de Órfãos da comarca de Itambé, Pernambuco, foi
autuada uma ação envolvendo o escravo africano João Francisco e seu senhor, João José
d’Albuquerque, lavrador no engenho Canabrava, termo de Cruangí. A ação foi movida pelo
cativo devido à recusa do senhor em entregar um pecúlio no valor de 85 mil réis que o escravo
alegava ter depositado em suas mãos. Segundo relatou o africano João Francisco, aquele valor
seria usado para o pagamento de uma parcela da sua liberdade a seu próprio senhor, João José
∗
Graduada em Direito, pela Associação do Ensino Superior de Olinda (AESO), e em História, pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE); pós-graduada em Arquivo, pela UFPE, e em Direito Civil e Direito Processual Civil, pela Faculdade
Maurício de Nassau/Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE); mestranda pelo Programa de Pós-graduação
em Ciência da Informação da UFPE; e Chefe do Memorial da Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
∗∗
Master of Arts em História, pela University of Illinois (USA); Mestre em História, pela UFPE; PhD em História, pela University
of Illinois at Urbana-Champaign (USA); Pós-doutor em História, pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (França); e
Professor Titular do Departamento de História da UFPE.
∗∗∗
Graduado no curso de bacharelado em História, pela UFPE, e mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História da
UFPE.
Documentação e Memória/TJPE, Recife, PE, v.2, n.4, 11-28, jan./dez.2011
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d’Albuquerque, que, todavia, não cumpria sua parte, apesar de reconhecer ter em seu poder o
referido pecúlio. E não era somente esse valor que João Francisco alegara ter deixado em poder
do seu senhor. Segundo seu depoimento, seu senhor também ficara com uma carga de lã de doze
arrobas e oito cestos de algodão, todos vendidos com lucro.1
O Juiz de Órfãos era a autoridade competente, ou “homem bom”, segundo as
Ordenações Filipinas2, constituída para cuidar das pessoas incapazes ou equiparadas, caso dos
escravos. Essa legislação foi aplicada integralmente até 1824, quando houve a publicação da
primeira Constituição brasileira, que prometia a elaboração dos códigos civil e criminal para o
país. A partir daí, as Ordenações começam gradualmente a perder força, à medida que foram
surgindo normas locais para resolver as demandas da população. Apesar da entrada em vigor do
Código Civil em 1917, as Ordenações Filipinas ainda eram utilizadas, em parte, pela Justiça, pois
subsistiam integrando o novo código (TROITIÑO, 2010, p. 38).
Para iniciar o processo, o cativo foi sozinho e diretamente à procura do Juiz de Direito –
João Francisco da Silva Braga – da Comarca de Itambé, vila de Pedras de Fogo. O juiz oficiou,
por sua vez, no mesmo dia, 15 de outubro de 1874, ao Juízo de Órfãos competente para julgar a
demanda, informando que o africano João Francisco peticionou àquele Juízo a devolução dos
“80$ e tantos mil réis para sua alforria”. João Francisco agia, portanto, amparado na Lei 2040 de
1871, a chamada “Lei do Ventre-Livre” ou “Lei Rio Branco”, que, em seu art. 4º, permitia ao
escravo a formação de um pecúlio, desde que obtido com o “consentimento do senhor, e
mediante seu trabalho e economias”. Como vimos, o cativo alegava que seu senhor estava na
posse do seu pecúlio, guardando-o para sua alforria, mas se recusava a entregá-lo. O “preto” João
foi a Juízo requerer a entrega desse valor, segundo ele, em função de sua “crescida idade” e das
repetidas negativas que vinha recebendo por parte do seu senhor.
Ao receber o processo, o Juiz de Órfãos, Menelau dos Santos da Fonseca Lins, naquele
dia mesmo interrogou o escravo João Francisco. De acordo com o auto de perguntas, João
Francisco ignorava sua própria idade, sabendo apenas que era bastante avançada, “para mais de
setenta anos”, segundo informou. Isso não era incomum entre os africanos no Brasil, muitos dos
quais viajaram em navios negreiros ainda crianças, perdendo esses referenciais. João afirmou ser
“natural do gentio” e casado. Viera à vila de Pedras de Fogo para requerer o que achava justo, os
seus direitos, portanto.
1 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. MEMORIAL DA JUSTIÇA. Itambé, Ação de Liberdade 1874.10.15, cx.
1575.
2 Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 88; e Alvará de 24/10/1814.
Documentação e Memória/TJPE, Recife, PE, v.2, n.4, 11-28, jan./dez.2011
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É relevante notar que a ação começou sem a intervenção de um curador, cuja função era
representar os juridicamente incapazes – como o era o caso de um cativo como João. A norma
que garantia o acesso de escravos aos curadores era o Aviso n. 7 de 25/1/1843, mas segundo
Zubaran “desde o início do séc. XIX, tinha-se o conhecimento da presença do curador nas ações
de liberdade” (ZUBARAN, 2006, p.121). No caso aqui abordado, foi o próprio cativo que se
dirigiu ao Juiz, explicando verbalmente sua situação, sendo sua demanda acatada e dado
andamento à ação, apesar da ausência de um curador, naquele momento quando foi iniciado o
processo.
Como há muito observou Robert Conrad (1972), a Lei do Ventre-Livre pode ser vista
como uma forma conciliatória de libertação, pois previa indenizações e prestação de serviços para
os proprietários, mas também abria margens para que os escravos obtivessem legalmente certos
benefícios. O principal deles era legalizar o pecúlio, que já existia na prática em muitas instâncias
em todas as Américas até mesmo porque era um instituto que vinha da Antiguidade, mas que não
fazia parte da legislação escravista nas Américas até a Lei Moret, em Cuba, em 1870, e a Lei do
Ventre Livre, no Brasil, em 1871. Antes não era raro os cativos comprarem a alforria com
recursos próprios. Eram múltiplas as possibilidades, até mesmo porque interessava aos
proprietários manter o alforriado ainda dependente, após a alforria. Eventualmente, as
negociações podiam envolver o pagamento parcelado da liberdade, como eram as coartações,
bastante comuns no território mineiro (GONÇALVES, 2012). A lei de 1871 ampliou o espaço de
negociação ao permitir ao cativo deixar seus recursos monetários depositados nas mãos do
senhor, com direito a registro em cartório desse depósito. Foram tão variadas as formas de
coartação, que, eventualmente, podem até ter ocorrido casos assim antes de 1871. O ponto a ser
ressaltado, todavia, é que, depois daquela lei, isso passou a ser regulamentado, dando amparo
legal a essa prática, podendo o cativo defender esse seu direito em juízo. É importante ressaltar,
ainda, que a Lei do Ventre Livre também permitia aos cativos receber heranças, criava um fundo
de emancipação e libertava os chamados “escravos da nação” e aqueles que faziam parte de
heranças jacentes ou que haviam sido abandonados por seus senhores. Por último, estabelecia
uma matrícula geral obrigatória para os cativos. Na letra da lei, os cativos não matriculados
estavam automaticamente libertos.
Robert Conrad (1972) também mostrou que a lei freou o ímpeto do movimento
abolicionista no parlamento, já que decretara o fim da escravidão, a longo prazo, pela simples
impossibilidade de reprodução da população cativa. Para muitos abolicionistas, todavia, ela teve
poucos efeitos imediatos, principalmente no interior. A rigor, de imediato, a Lei não libertou
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ninguém. A historiografia recente, porém, mostrou um outro resultado, inesperado para alguns
legisladores: o paulatino aumento do protagonismo escravo diante da lei. A lei reconhecia
institutos que já existiam na prática, como vimos, pois já era costumeiro os cativos comprarem
sua liberdade com recursos próprios e negociarem diretamente
com seus senhores várias
possibilidades de trabalho, por mais limitado que fosse o escopo da autonomia do cativo nessas
negociações. Assim, o surgimento de um amparo legal para a busca pela alforria abriu uma porta,
que foi logo escancarada pelos cativos, que passaram a agir de forma cada vez mais proativa em
busca da alforria, algumas vezes apoiados por advogados (abolicionistas ou não), outras
simplesmente por saberem da sua situação, como era o caso de João Francisco, que sequer
precisou de um curador, muito menos de um advogado, para requerer em juízo o que
considerava seu direito. A lei, portanto, encorajou os cativos a agir. Eles passaram a recorrer cada
vez mais aos tribunais em busca de seus direitos.3
Além de permitir essas considerações, o caso em tela também possui detalhes próprios,
possibilitando a reconstituição de alguns fragmentos das experiências das partes envolvidas, em
diálogo com os contextos mais gerais que a historiografia vem discutindo nos últimos anos.
Assim, a partir dos desdobramentos dessa ação e dos indícios sobre a vida do escravo africano
João Francisco, da sua esposa Urçúla [sic] e das outras partes envolvidas, podemos observar
melhor as relações entre as leis, a jurisprudência e seus agentes e as situações concretas de vida
dos cativos, após a promulgação da Lei 2040 de 1871, a Lei do Ventre Livre.
Tradicionalmente, o Direito entendia a figura jurídica do escravo como incapaz de
responder em juízo por conta própria. Após três anos da promulgação da lei, no entanto, um
africano idoso, escravo de um lavrador de cana numa comarca do interior de Pernambuco, já
tinha acesso à informação de que possuía alguns direitos garantidos por lei e foi ouvido
diretamente pelas autoridades locais. O escravo João Francisco, assim como cativos de outras
localidades do império, sabia do desenrolar das políticas estatais em relação à mão-de-obra
escrava (REIS, J. J. in MOTA, C. G., 2000). Numa sociedade pautada pela comunicação oral,
principalmente, as notícias se espalhavam através dos próprios cativos que circulavam, seja
3 A historiografia sobre o assunto é bastante extensa, veja-se por exemplo: XAVIER, Regina Célia Lima, A Conquista da liberdade:
libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas, Unicamp, 1996. AZEVEDO, Elciene, Orfeu de Carapinha: A
trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Unicamp, 1999; ______ . Para inglês ver? Os advogados e a
lei de 1831. Estudos Afro-Asiáticos, v. 29, p. 245-280, 2007. ______ . O Direito dos Escravos. Campinas: Unicamp, 2010. GRINBERG,
Keila. Liberata: a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1996. ______ . Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão no Brasil Imperial. Almanack
Braziliense, v. 6, p. 01, 2007. ______ . Escravidão, direito e alforria no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de 1831. In:
CARVALHO, J. M de. (Org.). Nação e Cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 267287. GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade: estudos sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo
Horizonte: Fino Traço, Fapemig, 2012. Sobre a discussão no IAB sobre a Lei do Ventre Livre, veja-se: PENA, E. S. Pajens da Casa
Imperial: Jurisconsultos, Escravidão e a Lei de 1871. Campinas-SP: Unicamp, 2001.
Documentação e Memória/TJPE, Recife, PE, v.2, n.4, 11-28, jan./dez.2011
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acompanhando seus senhores como empregados domésticos; seja por trabalharem sobre si,
ouvindo nas ruas o que acontecia; seja porque eram mercadorias e como tais podiam ser
vendidas, circulando por diferentes lugares. Até informações sobre eventos internacionais
eventualmente também chegavam aos ouvidos dos cativos através de cativos empregados na
marinha mercante. A população livre pobre, também atrelada à escravidão por laços de
parentesco, contribuía com essa rede informal repassando o que sabia. Por último, as autoridades
locais nem sempre se recusavam a informar o que se passava.
Nas suas alegações, o cativo expôs fatos juridicamente relevantes que fizeram diferença
no julgamento. Alegava que havia testemunhas da entrega do pecúlio: o irmão de seu senhor e o
irmão de sua senhora. Alegou, ainda, que havia adquirido o pecúlio com seu trabalho, com
permissão do senhor, como requeria a lei, pois esses recursos eram fruto das atividades que
realizava havia dois anos, pois seu senhor tinha lhe concedido uma semana por mês para seu
sustento. Foi trabalhando nas semanas que lhe cabiam, explicou João, que ele conseguiu vender
uma “carga de lã”, arrecadando os recursos que alegava estarem com seu senhor.4
Posteriormente, ao ser interrogado acrescentou mais detalhes de sua negociação. Segundo disse
ao juiz, ele dera ao senhor uma “carga de lã, a dois anos de doze arrobas que foi vendida cada uma a sete mil
e quinhentos reis, quatro mil reis em dinheiro, oito cestos de algodão cada um com uma arroba e finalmente oitenta
e cinco mil réis em dinheiro, tudo para sua liberdade”
Revelava, também, o africano João Francisco, que sua esposa Urçula [sic], que julgava ter
mais ou menos a mesma idade que ele, também possuía um pecúlio de 300$000. Era este o valor
de um cavalo que ela teria ganho em uma rifa. A tal rifa, alegava João Francisco, fora organizada
por seu próprio senhor, que vendera cada bilhete por dois mil réis. Mas, ao final, ele não entregou
o prêmio e simplesmente vendeu o cavalo, ficando com tudo.5
O caso em tela permite observar, de forma mais aproximada, os modos de vida dos
cativos que trabalhavam no campo, nessa época. Em que pesem os limites à autonomia escrava,
fica claro que não é possível generalizar, a partir daí, uma pretensa falta de meios para obtenção
de algumas “liberdades”, conquistadas por meio de acordos verbais, compromissos mútuos ou
pela obtenção de recursos extra-oficialmente, seja por meios lícitos ou não.
Podemos ver que, mesmo longe dos grandes centros urbanos, era possível a uma cativa
africana adquirir uma rifa, concorrer e ganhar um cavalo. Era possível, ainda, que um africano
viesse a conseguir ser alforriado em um quarto, ou seja, a cada quatro semanas, uma delas era
4 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. MEMORIAL DA JUSTIÇA. Itambé, Ação de Liberdade 1874.10.15, cx.
1575. Fls.3-3v.
5 Ibid. Fls.3v-4v.
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para seu usufruto. O que produzia, naquela semana, era dele. Vê-se, ainda, que a justiça deu
andamento à demanda de João Francisco, mesmo sem a intervenção de um curador, muito
menos de um advogado, demonstrando o que foi observado pela historiografia, ou seja, que, na
segunda metade do século XIX, alguns setores da magistratura passaram a resgatar dispositivos
das Ordenações lusitanas como argumentos a favor dos escravos (GRINBERG, 2006.
AZEVEDO, 2010).
Manoel Correia de Andrade observou que, na zona da mata norte, onde ocorreu esse
episódio, já na virada para o XIX, consolidou-se um padrão de produção menos concentrada do
que na zona da mata sul. Ali, na zona da mata norte, o algodão, a mandioca, o fumo e a criação
de pequenos rebanhos coexistiam com a produção de açúcar. Havia roceiros e agricultores livres,
com plantéis de cativos supostamente menores que os coevos da zona da mata úmida. O entorno
mais ocidental da comarca de Itambé já era na boca do agreste. Ali, criava-se gado e plantava-se
algodão, que teve seu apogeu antes da Independência, decaindo depois, diante da concorrência
norte-americana principalmente. Com a Guerra de Secessão, todavia, o algodão novamente se
tornou uma fonte de renda significativa para os agricultores da província (ANDRADE, 1985). Na
época em que o africano João Francisco acionou seu senhor por seu pecúlio, o algodão já havia
entrado novamente em colapso e os preços do açúcar também haviam despencado (CABRAL
DE MELO, 1863). O fato de o escravo ter conseguido ganhar dinheiro, vendendo seu fardo de
lã, indica a atividade econômica em que havia se envolvido, confirmando a existência de rebanhos
na região.
João José d’Albuquerque, o senhor do africano, era lavrador em um engenho de cana.
Presumivelmente, não era homem de muitas posses. Era, portanto, dono de poucos escravos.
Nas listagens da matrícula dos escravos, que restam no Memorial da Justiça de Pernambuco, não
encontramos seu nome entre os proprietários de Itambé. Como essas listagens são incompletas,
já que são as que sobreviveram até nós, não podemos afirmar, categoricamente, que se tratava de
um homem pobre, mas o fato de não ser senhor de engenho e, sim, lavrador, e estar ausente das
listas remanescentes são indícios de que, ao menos, não era um grande proprietário. Como
sabemos, a Lei do Ventre Livre exigia, em seu art. 8º, que os proprietários de escravos
matriculassem seus cativos, sob pena de perderem a sua propriedade. Itambé tinha escravos. Em
1863, Manoel da Costa Honorato afirmou, em seu dicionário, que existiam 17 engenhos e uma
população de 19.120 livres em Itambé (HONORATO, 1863). Em 1880, a população escrava de
Itambé era estimada em 3.720 indivíduos, sexta maior da província (PERNAMBUCO, 1881).
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Um dado importante, neste caso, é o reconhecimento, de ambas as partes, de que o
africano João Francisco tinha, de fato, direito a uma semana por mês para si – ou, ao menos, era
assim que entendiam a sua alforria em um quarto. A semana, no mês, comprada pelo cativo, era,
provavelmente, o resultado de uma negociação complexa, que permitia ao africano alguma
autonomia e a possibilidade de auferir alguma renda própria. Aponta Andréa Lisly Gonçalves que
já havia uma jurisprudência antiga em Portugal para lidar com os casos de cativos alforriados pela
metade. Algo que geralmente acontecia em partilhas, quando herdeiros deixavam livres sua parte
dos cativos inventariados. Cativos libertos pela metade tinham vantagens quando buscavam a
alforria (GONÇALVES, 2010, p. 223). João, todavia, fora alforriado em apenas um quarto pelo
seu senhor, o que indica uma certa flexibilidade na imensa prisão que era a escravidão. As
alforrias não eram sempre iguais. Havia diferentes possibilidades. O fato de ter uma semana para
si a cada quatro, por outro lado, desencarregava seu senhor de deveres compactuais de sustento
do cativo e de sua esposa Urçula, e prendia ambos por laços sutis, mas concretos, de vassalagem.
Vale salientar, ainda, que a área onde viviam ficava próxima dos limites das matas do Catucá,
onde, nas primeiras décadas do XIX, havia uma significativa concentração de escravos fugidos,
que, junto com forros e homens pobres livres, participaram do quilombo do Catucá. Era uma
área, portanto, onde havia uma tradição concreta de resistência e fugas. Também foi ali perto
onde se desenrolaram alguns dos combates durante a Insurreição Praieira e a chamada Revolta
dos Maribondos. Neste último movimento, a população livre e liberta rebelou-se, invadindo
prédios públicos e igrejas, querendo saber sobre uma suposta lei que escravizava a “gente de cor”.
Entendiam que a exigência do registro civil – que seguia os ditames “scientíficos” de registro
populacional, qualificando os indivíduos detalhadamente – era, simplesmente, um conjunto de
listagens que seriam utilizadas para escravizar e reescravizar quem não fosse branco (SENRA,
2001; FERREIRA, 2006; PALACIOS, 2006; CARVALHO, 1996).
Mas, se a Revolta dos Maribondos e o quilombo do Catucá estavam afastados no tempo,
não era o caso do Quebra-Quilos, um conjunto de levantes e desordens cujas primeiras notícias
chegaram a Itambé nos meses seguintes à ação aqui discutida. A povoação de Cruangi foi
invadida durante o Quebra-Quilos (VASCONCELLOS GALVÃO, 2006). Cruangi era a sede do
termo onde ficava o engenho Canabrava, em que viviam e trabalhavam nossos três personagens o lavrador do engenho Canabrava e seus dois cativos. Não encontramos nenhuma ligação entre
esses levantes e o episódio aqui narrado, mas a eclosão do Quebra-Quilos, logo depois, indica o
vigor da economia local e das formas tradicionais de negociação da população livre pobre do
interior. Nesses levantes populares – embora houvesse denúncias de manipulação das
insatisfações populares em favor dos proprietários – estava em jogo um dos elementos nodais da
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vida nas áreas rurais: as feiras e a forma como eram realizadas as negociações. O mercado interno
rural existia e não era indiferente à demanda, mesmo que admitamos todos os limites impostos
pela economia escrava. É isso que observou Bert Barickman, estudando a Bahia entre 1780 e
1860, ao descrever a dinâmica do mercado interno rural do Recôncavo para produtos de
subsistência, como era o caso da farinha de mandioca (BARICKMAN, 2003). Sidney Mintz, por
sua vez, ressaltou a relevância das feiras, na Jamaica, como espaços de inserção dos agricultores
livres e da produção própria dos escravos, além de ocasião de encontros e troca de informações
entre os freqüentadores (MINTZ, 1974).
Pernambuco não era a Bahia, nem a Jamaica, mas também tinha suas feiras,
provavelmente frequentadas pelo africano João Francisco. O Quebra-quilos foi uma reação
contra os decretos para a implantação do sistema métrico-decimal, para os pesos e medidas, em
todo o império.6 Para os feirantes, era uma intromissão do Estado em atividades básicas e
costumeiras, pois já existiam formas, sancionadas por eles mesmos, para realizar as trocas. Talvez
os boatos que, vez por outra, circulavam de uma tentativa de reescravização, por parte do
governo – seja no registro civil, nos censos ou nos alistamentos militares – tenham acirrado as
tensões. As agitações sugerem a força que a pequena produção rural possuía, no interior,
particularmente em Itambé. Escravos, como João Francisco e sua esposa Úrçula, beneficiavam-se
desse mercado local para a obtenção de meios de subsistência, trocando sua própria produção
por outros itens de necessidade – entre eles, a liberdade.
No dia 24, do mesmo mês, o senhor do casal de cativos se justificou, alegando que era
dono de apenas “parte da escrava Úrçula”, e que o escravo João Francisco dera-lhe, há alguns
anos, a quantia de 70$000, referente a ¼ de seu valor, para dispor de uma semana no mês.
Semana esta “de que sempre gozou”. Segundo o advogado do senhor de João Francisco, dada a
avançada idade do cativo, seu senhor decidiu considerá-lo livre de todo. Foi por esse motivo que
ele não havia feito sua matrícula, “de sorte que hoje o sustenta por caridade, e não por que o
julgue seu escravo”.7
Por outro lado, o senhor argumentava que a escrava Úrçula havia, de fato, retirado o
bilhete da rifa, mas que tinha permutado o bilhete por ¼ de sua liberdade, a fim de também
dispor de uma semana no mês. Semana essa que, afirmou, continuaria a conceder, na forma dos
artigos 4º, §2º, da lei 2040, de 28 de setembro de 1871, “sem que aceite contrato de serviço para
6 Itambé, pela sua proximidade com a fronteira da Paraíba, foi um dos primeiros focos de atenção do governo provincial. Em
SOUTO MAIOR, A. O Quebra Quilos: Lutas sociais no outono do Império. São Paulo: Nacional, 1978, p.100-102 et seq.
7 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. MEMORIAL DA JUSTIÇA. Itambé, Ação de Liberdade 1874.10.15, cx.
1575. Fls.6-6v.
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esse pagamento”, na forma dos §§3º e 4º do dito artigo8. Na sua argumentação, João José
d’Albuquerque, lavrador no engenho Canabrava, reconheceu, portanto, que ambos os cativos
eram libertos em 1/4, podendo trabalhar uma semana para si, a cada quatro semanas.
É importante ressaltar essa liberdade parcelada. A pessoa do cativo era indivisível. O seu
tempo de trabalho não. Era comum, em partilhas e legados, cativos terminarem tendo mais de
um proprietário e terem seu tempo de trabalho dividido pelos seus diferentes senhores.
Eventualmente, em testamentos, também não era incomum o testador deixar livre a parte que lhe
cabia da propriedade de um determinado escravo, que, assim, poderia comprar o restante de sua
alforria por menor preço. A forma como os cativos usufruíam dessa parcela de sua alforria ainda
precisa ser melhor estudada. São muitas as possibilidades.
Os autos aqui analisados, todavia, nos ajudam a entender essas possibilidades ao explicitar
com algum detalhe o que acontecia, ao menos, no caso específico do africano João Francisco.
Como vimos, ele tinha uma semana para si, a cada quatro semanas, e sua esposa pretendia ter, ou
já tinha, o mesmo direito. Essa não deve ter sido uma prática rara na época, pois servia tanto ao
cativo, que podia trabalhar e assim auferir alguma renda própria legalmente, como ao senhor, que
assim garantia um mínimo de lealdade do cativo, uma vez que este já estava vivendo efetivamente
uma parcela da sua liberdade, mantendo acesa a esperança da alforria plena dentro das regras do
jogo da legislação escravista. Um escravo, nas circunstâncias de João Francisco, tinha mais a
arriscar, se fugisse, por exemplo, do que outro africano qualquer, para o qual a alforria era apenas
uma esperança longínqua. Essa segurança era importante, para o senhor, em uma área onde,
obviamente, já havia alguma tradição de fugas e de resistência popular por direitos costumeiros.
Embora, como disse um jurista da época, o direito ao pecúlio fosse apresentado como
“que lhe provier de doações, legadas e heranças, e com o que por consentimento do senhor,
obtiver de seu trabalho e economias” (SILVEIRA, 1876), a questão envolvia critérios, muitas
vezes, difíceis de comprovação, como exemplifica a argumentação do proprietário. Em obra de
síntese, um jurista maranhense revelou como a jurisprudência tendia a interpretar o acúmulo do
pecúlio dentro de questões morais:
8 Idem; Lei nº 2040, de 28.10.1871. Artigo 4º: “É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e
heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O govêrno providenciará nos regulamentos sôbre a colocação e
segurança do mesmo pecúlio.”
§2º “O escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios para a indenização de seu valor, tem direito a alforria. Se a indemnização não for fixada por
accôrdo, o será por arbitramento. Nas vendas judiciaes ou nos inventários o preço da alforria será o da avaliação.”
§3º “É, outrossim, permitido ao escravo, em favor de sua liberdade, contractar com terceiro a prestação de futuros serviços por tempo que não excede de
sete annos, mediante o consentimento do senhor e approvação do Juiz de Orphãos.”
§4º “O escravo que pertencer a condôminos, e for libertado por um destes, terá direito á sua alforria, indemnizando os outros senhores da quota do valor
que lhes pertencer. Esta indemnização poderá ser paga com serviços prestados por prazo não maior de sete annos, em conformidade do paragrapho
antecedente”. Colleção de Leis do Império do Brasil de 1871,Tomo XXXI, Parte 1, Atos do Poder Legislativo. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1871. p.149-151.
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[...] O pecúlio reconhecido pela Lei citada é o pecúlio honesto e licito,
proveniente: dos meios legais ou do trabalho e economia do escravo, ou de
heranças, ou de uma loteria, porém jamais dos meios imorais de seduções, por
ter a libertanda apaixonados e sedutores, ou por querer-se acintosamente e por
capricho arrancar o bom escravo da casa de seu senhor; que finalmente o
Tribunal deve moralizar com suas decisões a execução desta Lei, atendendo às
suas verdadeiras intenções (PESSOA , 1875).
As sociedades escravistas nas Américas compartilhavam essa preocupação quanto à
licitude dos meios com os quais os cativos adquiriam o pecúlio. Encontra-se também no Caribe e
na América do Norte relatos análogos de autoridades que criam que devia ser muito bem
investigada a origem dos recursos utilizados para comprar a liberdade. A intenção era impedir que
esses recursos viessem de roubos, prostituição e outros meios ilícitos quaisquer, ou simplesmente
avessos aos desejos dos seus respectivos proprietários. (GONÇALVES, cap. 2, passim.
RÉGENT, 2007, cap. 7, passim)
Perdigão Malheiro (1866-1867), em publicação anterior à Lei de 1871, também fez
algumas ressalvas à prática do acúmulo de pecúlio:
É igualmente, entre nós, muito frequente concederem os senhores autorização
aos seus escravos para tirarem certa soma, por subscrição, para sua alforria.
Este fato não importa por si só e desde logo a concessão da liberdade apenas a
intenção, ânimo, ou promessa de o fazer. O escravo não pode, pois, pretenderse imediatamente livre; tanto mais, quanto depende de satisfazer o preço da
alforria: o ato ainda não é perfeito.
Conquanto, porém, essa promessa não importe obrigação perfeita nos termos
gerais de Direito, todavia, por favor à liberdade, pode o escravo pedir a alforria
ou ser declarado livre, em qualquer tempo, desde que exiba a soma, ou mostre
satisfeita de sua parte a obrigação.
Eduardo Spiller Pena inclusive adianta que havia um debate corrente no IAB, sobre qual
seria o estatuto jurídico do liberto que recebia permissão do senhor para angariar fundos para
comprar sua liberdade. Seria ele um cativo comum até que se concretizasse sua alforria, ou um
liberto imperfeito, ou seja uma pessoa já alforriada, apenas esperando a concretização de um
processo que não poderia ser revogado por simples desejo senhorial? (PENA, 2001)
É difícil saber, com segurança, algumas informações que não foram explicitadas durante o
procedimento judicial. Não foram intimadas testemunhas para as partes, que poderiam ter
contado mais detalhes do caso permitindo-nos conhecer melhor o que se passava ali. É possível,
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até, que a justificativa do proprietário dos escravos fosse verídica, e que o dinheiro que João
Francisco e Úrçula alegavam possuir tivesse sido, de fato, utilizado para a compra de uma parcela
da alforria deles. Parcela, esta, que o africano João, comprovadamente, gozava, segundo
reconheciam ambas as partes no processo, e que era atribuída, também, à escrava Úrçula,
segundo explicou nos autos o seu proprietário. O lavrador, todavia, não tinha como provar que
recebera os recursos de boa fé, em pagamento por uma parcela da alforria dos cativos.
A argumentação senhorial, portanto, procurava reverter a situação, alegando um prévio
acordo verbal, uma cumplicidade, entre o proprietário e seus cativos, que teriam sido quebrados
pelos cativos. Havia, ali, portanto, uma sutil insinuação do que ficou conhecido, dentro do antigo
direito lusitano, como “ingratidão” por parte do escravo. Antes de 1871, a revogação da alforria,
por este motivo, tinha amparo legal com base nas Ordenações e no Direito romano. Assim,
enquanto o senhor procurava manter formas arraigadas de dominação, João Francisco, mesmo
com idade avançada, tinha a expectativa de adquirir a alforria plena, para si e para sua esposa.
Mesmo que esses escravos já experimentassem certa autonomia de fato, a liberdade de direito era
a meta pretendida9. O senhor também utilizava uma retórica comum, na época, alegando que
mantinha os cativos apenas por generosidade. Mas a alegação da “caridade” não parece se
sustentar, visto que o escravo possuía meios próprios para sobreviver. Por último, como
dissemos, o senhor não tinha nenhuma prova de que havia, de fato, aceito aqueles valores como
pagamento de uma parcela da alforria do casal. Isso invalidava sua argumentação diante do juiz.
O resultado é que o Juiz de Órfãos intimou o senhor a entregar o pecúlio, simplesmente,
e não para falar da ação que lhe moviam seus escravos, apesar da justificativa do requerido, o
lavrador João José d’Albuquerque. Dado o contexto da aplicação da lei, incisivamente foram
usados os instrumentos legais a favor dos cativos, inclusive desconsiderando taxativamente a
justificativa do proprietário. Nesse sentido, é importante ressaltar que o Juiz também era uma
pessoa imersa nas mesmas redes dos demais moradores da sua comarca, em condições análogas
às dele. Como membro de uma camada social determinada, sabia de algumas coisas, de outras
não. Neste caso, ele deve ter se informado a respeito do que realmente estava ocorrendo ali, o
que não deve ter sido assim tão difícil, já que se tratavam de dois africanos idosos, gente
certamente entrada no Brasil depois de 1831, mas que estavam por ali havia tempos. Deviam ser
conhecidos dele mesmo, o juiz, ou de outras pessoas, que puderam repassar informações sobre o
que realmente estava acontecendo.
Ver OF, L.IV, Tit. LXIII. Das doações e alforria, que se podem revogar por causa da ingratidão. Para referências à “ingratidão” enquanto
argumento jurídico, ver GRINBERG, K. Reescravização, Direitos..., p. 107; e MATTOS, H.M. Escravidão e Cidadania no Brasil
Monárquico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000. p.16.
9
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Por sua vez, a Coletoria informou que não havia registro de matrícula ou de qualquer
pecúlio em nome dos dois escravos. Diante disso, o Juiz mandou que o senhor apresentasse
aqueles documentos, pois, como vimos, de acordo com o art. 8º da Lei 2040, de 1871, ambos
estariam automaticamente livres caso não tivessem sido matriculados. Foi isso que aconteceu.
Em 25 de Outubro, a preta Úrçula foi ao Juízo e informou nos autos do mesmo
processo, que, no que se referia à sua parte, a ação não deveria ser continuada, pois seu senhor
havia lhe passado carta de liberdade, a qual se encontra anexa às fls.11. Talvez o proprietário
estivesse procurando um meio-termo entre as demandas dos escravos e seus interesses, uma vez
que estava consciente da fragilidade da sua posse, ou seja, libertava a cativa, mas ficava com o
valor da rifa.
Embora, no Brasil, não tenha havido uma guerra civil pela manutenção da escravidão, os
proprietários de escravos, de diferentes camadas sociais e tonalidades de pele, lutaram nos
tribunais pelo que consideravam seus direitos costumeiros. Um deles era o de manter libertos
como agregados, trabalhando de graça do mesmo jeito que antes, mesmo que já fossem donos
dos seus próprios corpos. A possibilidade de re-escravização por ingratidão, antes da Lei do
Ventre Livre, era um fato. A situação dos africanos libertos era mais frágil ainda, por serem
estrangeiros e, assim, estarem mais afastados da cidadania. Não tinham, sequer, o direito de
votarem em primeira instância, como era o caso dos crioulos libertos, nem podiam servir na
guarda nacional ou prestar serviço militar. A constituição de 1824 proibia ainda a escravização de
cidadãos brasileiros. Um africano, por definição, não era cidadão. Keila Grinberg, inclusive,
sugeriu que, embora a historiografia tenha se preocupado mais em observar a resistência escrava
se expressando nos tribunais, eram muito frequentes as ações buscando revogar alforrias ou
reafirmar a condição escrava de pessoas que viviam como se fossem livres (GRINBERG, 2007).
A Lei do Ventre Livre abalava um dos pilares dessa relação de dependência, ao abolir a
possibilidade da revogação da alforria por ingratidão.
No caso em tela, o senhor de João e Úrçula tentou mantê-los como cativos até quando
pôde. Era essa a mentalidade escravista, compartilhada por grandes e pequenos proprietários de
escravos. Especialmente após a lei antitráfico, de 1850, a Lei Eusébio Queiroz, o problema de
abastecimento de mão-de-obra escrava para a lavoura era uma das pautas centrais para os
proprietários rurais. Em Pernambuco e províncias vizinhas, essa alegada escassez foi agravada
pela venda de cativos para as propriedades mais produtivas da própria região e para as fazendas
de café do Sudeste. Nesse contexto, os escravocratas procurariam retardar os mecanismos que
propunham a extinção da escravidão, que seriam fortalecidos pelo crescimento das associações
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abolicionistas nos últimos anos da escravidão, contrapostas pela Sociedade Auxiliadora da
Indústria Pernambucana.
Em 6 de novembro, o Juiz de Órfãos deu vistas ao processo, despachando a favor da
liberdade do escravo João Francisco, nos termos do art.8, §2º, da Lei de 1871.10 No dia seguinte,
os autos foram entregues ao cartório, pelo curador (que finalmente aparece nos autos), e, a 9 do
mesmo mês, conclusos ao Juiz. Em 10 de novembro, os autos foram remetidos ao Juízo de
Direito, sendo averbados e autuados. Nesse mesmo Juízo, foi entendido que a competência para
o julgamento caberia ao Juiz de Órfãos, como dispunha o art. 85 do Regulamento de 13 de
novembro de 1872, e novamente foram remetidos ao Juízo Orfanológico.
O Juiz de órfãos decidiu pela liberdade do preto João Francisco, em conformidade com o
art.8º, §2º, da Lei de 1871, e art.87, §2º, do Regulamento de 1872, por não ter sido ele
matriculado, e mandou que se desse certidão que serviria de título de liberdade. Garantiu,
também, o direito de ambos os escravos de cobrarem a quantia da qual afirmavam serem
credores de seu antigo senhor.11 A sentença também ordenava que fosse remetida cópia da carta
de liberdade à “preta Úrçula”, conforme documento acostado aos autos.
Fica claro que a decisão do Juiz foi baseada na falta de matrícula do escravo pelo seu
senhor. Era obrigação legal do juiz declarar a liberdade de um escravo não matriculado, conforme
a legislação vigente. Quanto à possibilidade de interpor recurso, por parte do senhor vencido na
demanda, a jurisprudência acenava pelo não cabimento, no caso da liberdade ter sido reconhecida
pela falta de matrícula, somente cabendo ação ordinária de escravidão, se assim fosse do interesse
do senhor em provocar a Justiça (V. A. de P. P., Anotações à Lei e Regulamentos sobre o
elemento servil, 1875, p. 107).
Assim, após três anos da promulgação da chamada “Lei do Ventre Livre”, o escravo de
um lavrador de cana, numa comarca do interior de Pernambuco, já tinha acesso à informação
sobre seus direitos e foi ouvido diretamente pelas autoridades locais. O escravo João, assim como
cativos de outras localidades do império, sabia das novas circunstâncias promovidas pela
legislação, por canais de informação diversos, e sobre o desenrolar das políticas estatais em
relação à mão-de-obra. Fez valer seus direitos, encontrou acolhida e diligência do aparato
jurisdicional, e pôde viver o resto de sua vida como liberto, junto com sua esposa. Não sabemos,
todavia, se conseguiu reaver o valor do seu pecúlio.
10Art.8º
O Governo mandará proceder à matricula especial de todos os escravos existentes no Império, com declaração do nome,
sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se for conhecida. §2 Os escravos que, por culpa ou omissão dos
interessados, não forem dados à matricula até um anno depois do encerramento desta, serão por este facto considerados libertos.
11 Art.85. “Nos casos para que este regulamento não designa forma de processo, o juiz procederá administrativamente.”
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FREEDOM DIVIDED INTO 1/4: MANUMISSION AND PECULIUM
IN PERNAMBUCO UNDER THE VENTRE-LIVRE ACT
Abstract:
It presents the case of the slave João Francisco, who uses the courts to receive an peculium that
would be used for paying a portion of their freedom. It points out that the slave says that his
master, João José d’Albuquerque, did not comply with his part, although recognizing to have the
peculium in its power. It emphasizes that to start the process, the captive was alone and looking
directly the Judge - João Francisco da Silva Braga - Itambé County, village of Pedras de Fogo,
and it adds to be quite relevant to note that the action has started without intervention of a
trustee, whose function was to legally represent the incompetent. It adds further that, as noted by
Robert Conrad (1972), the Ventre-Livre Act can be seen as a conciliatory way of liberation, as
provided indemnities and provision of services to owners, but also opened margins for the slaves
to legally obtain certain benefits - such as legalizing the peculium, which already existed in
practice, in many instances throughout the Americas. Concludes that the slave João, like other
captives during the imperial period, knew of the new circumstances by legislation promoted by
various information channels, and on the conduct of state policies of manpower, and thus sought
their rights diligently and found welcome and the judicial apparatus.
Keywords:
Slavery. Ventre-Livre Act. History of Pernambuco. Judiciary Power.
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Monica Maria de Pádua Souto da Cunha, Marcus J. M. de Carvalho e Mateus Samico Simon
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ANEXO
Auto de Perguntas feitas ao escravo João, 15.10.1874, fl. 3-4v.
Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e setenta e quatro,
nesta Vila de Pedras de Fogo e Comarca de Itambé da Província de Pernambuco aos quinze dias
do mês de Outubro de dito ano, em casa do Juiz de órfãos Doutor Meneláo dos Santos da
Fonceca Lins, onde fui vindo eu Escrivão de seu cargo abaixo nomeado, aí presente o escravo
João, pelo dito Juiz lhe foram feitas as perguntas seguintes:
Perguntado qual o seu nome, idade, estado filiação e naturalidade?
Respondeu chamar-se João Francisco, que não sabe da idade mais julga ter para mais de setenta
anos, o que representa, casado, não sabe de quem é filho, natural do Gentio.
Perguntado de quem é escravo?
Respondeu que de João José de Albuquerque, morador em Canabrava de Cruangy.
Perguntado qual a razão que o trouxe a esta vila?
Respondeu que tendo dado a dito seu senhor uma carga de lã, a dois anos de doze arrobas que
foi vendida cada uma a sete mil e quinhentos reis, quatro mil reis em dinheiro, oito cestos de
algodão cada um com uma arroba e finalmente oitenta e cinco mil réis em dinheiro, tudo para sua
liberdade e recusando-se o mesmo seu senhor a dar-lhe-a [sic] compareceu por isto perante o
Doutor Juiz de Direito da Comarca a fim de pedir providências a respeito.
Perguntado se tem instado com seu senhor para libertá-lo e que motivos dá este para deixar de o fazer?
Respondeu que constantemente tem pedido porém seu senhor nada lhe responde.
Perguntado quais as pessoas que sabem que ele respondente dera esses dinheiros?
Respondeu que Francisco da Motta, irmão de seu senhor, Joaquim de Mello irmão de sua
senhora, viram isto sendo que o último foi até portador da quantia de oitenta e cinco mil réis,
acrescentando que Joaquim Correia e Manoel Correia também sabem disto.
Perguntado de que proveio este dinheiro pertencente a ele respondente e existente em poder de seu senhor?
Respondeu que proveio de seu trabalho sendo que por causa dele seu senhor a dois anos pouco
mais ou menos lhe concede uma semana no mês.
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Perguntado se neste dinheiro também não tem parte a mulher dele respondente?
Respondeu negativamente, sendo que a mulher dele respondente também tem em poder de dito
seu senhor a quantia de trezentos mil réis proveniente de um prêmio que tirou na loteria digo
proveniente de um cavalo que por este preço seu senhor rifou vendendo cada bilhete a dois mil
réis o qual cavalo o mesmo seu senhor deixou de entregar e vendeu por duzentos mil réis em
dinheiro.
Perguntado que idade tem sua mulher?
Respondeu que está velha como ele respondente e representa ter a mesma idade.
Perguntado quais as pessoas que sabem que a mulher dele respondente tirara em rifa o cavalo de que
falou?
Respondeu que João Ferreira, Belarmino de Lyra, Francisco Ferreira, Manoel Joaquim Correia,
além de outras muitas pessoas moradoras em Cruangy sabem disto.
E por nada mais dizer nem lhe ser perguntado deu-se por findo o presente auto de perguntas que
depois de lhe ser lido e achar conforme assinou a rogo digo conforme assinaram como
testemunhas presenciais Manoel d´Araújo Lima e José Manoel da Silva do júri [?] visto declarar
não saber escrever. Dou fé. Eu Cândido Gonsalves de Oliveira, Escrivão de Órfãos escrevi.
Meneláo dos Santos da Fonceca Lins
Manoel de Araújo Lima
José Manoel da Silva
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