CINZAS DE BRASA A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 203 Medo. Por quantas vezes o medo não subiu pela laringe e impediu de falar. Sem sentir os tomates podres que adoram ser inalados, pisando com as meias alagadas pela chuva que ainda não acabou. Será que ela te quer? Você nem se tocou que toda sua raiva, angústia, o sofrimento dos pés gelados, era tudo besteira. A chuva nunca se importou com você, nem imaginava a possibilidade de uma existência parecida com a sua. A inutilidade perante o tempo pode doer, mas palavras ditas doem mais. As que se houve, outrora aparecem novamente, porém adormecem no emaranhado de pensamentos. Quando você diz merda, ela te acompanha. Quando a merda é grande e fede demais, ela segue seus passos, joga coisas na sua cabeça e não te deixa dormir, insistindo em inventar contar histórias. Insuportável. E esta você não vai guardar, compartilhar com somente o travesseiro. Se essas palavras têm o A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 204 poder de magoar até quem as cospe irresponsavelmente, as mesmas também tem cunho de entretenimento. Essa história em questão vai ser contada pra que seu mundo saiba da sua desgraça e com ela sorria, discuta no bar ou somente deixe de lado. Mas quem abusa da empatia de forma patológica o suficiente para acreditar na história inventada por suas palavras, vai sofrer como você sofre agora. I Há necessidades comuns. Precisamos de alguém que precise de nós, de outros a quem somos precisados. Aquela velha necessidade de ser dono possuído, o amor de amar o amante, possivelmente contribui no início dessa história. Do trabalho para casa, de casa pro cursinho. Morava com a mãe e com o pai, tinha um irmão menor A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 205 e não se dava muito bem com ele, puto, pequeno sonhador que não conhecia o desprezo semi-árido do destino. Pessoas que não se colocam no seu lugar irritam. É fácil brigar com ele por causa disso. Aliás, ninguém entende os problemas e ficam dando atenção pra esse pirralho. Puta que pariu, se alguém notasse o quanto tem sido difícil, talvez perguntaria o porque do andar estranho, do chorar escondido se permitindo descoberto. Tem se esforçado para que notassem e o confortável abraço de qualquer talvez fizesse sentir o ato amoroso. Egoístas são eles, não pensam no pensar. Cursinho — casa. São 11 da noite e os idiotas estão dormindo. Assim, posso dormir em paz. É horrível quando chovem passos, que invadem a cozinha até serem interrompidos pelo ruído abafado do desgrudar da porta de borracha mofada da geladeira duas ou três vezes, seguidos dos rangeres da porta que denunciam A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 206 o indeciso frente à questão da fome. Um pouco mais de paranóia seria o suficiente para acreditar em uma invasão. Na tv aparecem casos de assassinato perdoado por razão da defesa de propriedade, e aqui não há de ser diferente, com um bom advogado e um júri piedoso perante a decepção pesada sobre os próprios olhos, seriam o suficiente para o réu dormir em paz novamente. Uma boa tragédia seria menos do que o máximo para provocar dor, culpa e pena. A culpa seria por ignorar o soluço seco embaixo do edredom. Edredom do Pato Donald. Batizado de ódio cada vez que de tão empoeirado é levado à máquina de lavar. Não percebem que barba e patos não combinam. Talvez uma perna seria perda significante. Mas ia perder toda gama de possibilidades que ela oferece. Ainda existe chance de voltar ao atletismo, afinal atletas são patrocinados não somente com A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 207 dinheiro, mas com glória e orgulho. Medalhas de feitos heróicos em guerras há muito passadas não surpreendem mais. São peças de museu, contornam pescoços empregados que com muito esforço deixam passar palavras e frases em si destoadas. As batalhas entre os países civilizados agora é tratada em pistas, quadras e campos. As oficinas de atletas produzem peças robustas, adaptadas, às vezes deformadas, que dão motivo para tirar do cofre a esperança de gente que não tem paciência para mudar de canal até conseguir escolher o que assistir. Escolher é difícil. Nenhum banco pagaria um velhaco baleado para sorrir enquanto seu logo é transmitido á maré de consumidores, que cresce com a lua. Aliás, é ridículo pagar alguém para guardar dinheiro. Se justa é a idéia de guardá-lo, porque gastar para fazê-lo? Preguiça burra. Toda preguiça não pensa direito. Trabalha para ter dinheiro, e com A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 208 ele se salva a preguiça. Antes não tivesse trabalhado que a preguiça nem estaria em perigo! Pensar é um passatempo merecido a poucos. Já é hora de trabalhar. III Na literatura é muito comum pular as partes chatas, monótonas e entediastes, ou seja, as partes cotidianas. Mas como é uma história maldita, a desgraça — algo interessante — é a vida. Resta detalhar o dia no árduo estágio de informática. ... msn... ...café... ...reticiências... A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 209 chá e biscoitos ...desgraça. Cheio A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 210 VII Aqui está, longe de casa, dos pais irritavelmente amputados de ombro e colo. Não é preciso ver o velório para acreditar na morte. Ele só atrapalhava, ele e suas histórias de futuro. Com seu caderno cheio de rasuras, suas namoradas e seus poemas longos e umedecidos com lágrimas que enrugavam tanto o papel que se tornava transparente. Bom, assim não obrigava as coitadas a ler. O atarefado irmão mais velho, correto como um suicidahomicida da moral alheia, não fará diferença ou indiferença, quem sabe a foto de família tenha ar menos cansado sem a companhia de suas profundas olheiras que ainda não procuraram lenço algum para recostar. Não engana, não há angústia ou desprezo que camuflem a dor. O andar pálido e discreto combina de A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 211 maneira autoritária com sua velocidade. Errar os rejuntes e desenhos na calçada não é mais trabalho desses pés vestidos com meias invertidas, que seguem a distância da prova. O atestado de óbito estampado em cada todo rosto que de certa forma pareça familiar, nariz, orelha, sorriso ou abraço que o imitava enquanto existia. Negar é subjetivo demais. A palavra deve ser fuga. Os capítulos importantes foram fugazes e passaram desapercebidos meio tantas obrigações e desejos. Porque não antes? Poucos anos separaram a consciência da carência, agora com a lógica e o arbítrio no auge da legitimidade só resta correr. Devagar, de vagar sem que alguém perceba, as bochechas empapadas sofrem a agressão da blusa quase molhada. Ano por ano parecia crer na imortalidade do tempo, mas agora doze meses são menos do que as horas que levou a perceber que os motivos e benefícios são parcos quando se pára de A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 212 viver automaticamente. Se assim perfura meu peito de papel e minhas linhas veias invisíveis exclamando por sangue, que sou de ficção, imagino que a realidade deve doer bem mais em você. Obséquio à chuva. Fez a questão de estancar o sentimento dentro do ser. Extroverter não seria eficaz. Agora ninguém ouve as gotas pesadas e demasiadamente salgadas espancarem o chão, nem o suspiro de quem perde o ar e brochura o vento em busca da sobrevivência involuntária. Involuntária demais. A cabeça pára de correr. Nadar em brasas poderia ser bom. Brasas não soltam fumaça nem precisam de ponto final, pois são o drama e exagero de um combustível que já havia virado cinzas. A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 / ILEEL 50 anos 1960-2010 Seção Verbare, Uberlândia/MG, ano 2, n. 4, p. 203-213, jul./dez. 2009 Autor: Diogo dos Santos Vieira | e-mail: [email protected] 213