ISSN 2175-831X VIII SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA V SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA & SOCIEDADE ANAIS (ERRATA VOL.2) Rio de Janeiro 2013 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitor: Paulo Roberto Volpato Dias Sub-reitora de Graduação – SR1: Lená Medeiros de Menezes Sub-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa – SR2: Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron Sub-reitora de Extensão e Cultura – SR3: Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Ciências Sociais: Léo da Rocha Ferreira Diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH): Dirce Eleonora Nigro Solis Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) Coordenadora Geral: Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves Coordenadora Adjunta: Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Coordenadora do Doutorado: Marilene Rosa Nogueira Coordenadora do Mestrado: Maria Regina Candido Semana de História Política / Seminário Nacional de História: política, cultura e sociedade (x:2013: Rio de Janeiro) Anais (Errata Vol.2) / VIII Semana de História Política / V Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade; organização: Ana Beatriz Souza, David Barreto Coutinho, Eduardo Nunes Alvares Pavão, Iamara da Silva Viana, Paulo Júnior Debom Garcia, Renata Regina Gouvêa Barbatho - Rio de Janeiro: UERJ, PPGH, 2013. 90pp. Texto em português ISSN 2175-831X 1.História Política-Congresso. Internacionais 2. Cultura - Sociedade. 3. Relações ÍNDICE O gênero paisagem como lugar de memória: a representação do Rio de Janeiro na obra de Eliseu Visconti Aline Viana Tomé Política externa e consolidação nacional: o Rio da Prata e as representações no conselho de estado (1847 – 1852) Celso Moreira Louzada Filho Fotografia e ensino de História Daniel Francisco da Silva O Rio de Janeiro de Henrique Fleiuss: Representação da cidade nos primeiros anos da Semana Ilustrada Isabel Moura Mota Produção cultural independente: fora do eixo economia Solidária – relação de ambiguidade e luta por conquista de Hegemonia. Jefferson Estevão de Oliveira A imagem do gaúcho na pintura de Pedro Weingärtner, Cesáreo Bernaldo de Quirós e Pedro Figari: problemáticas de pesquisa Luciana da Costa de Oliveira A Política de Boa Vizinhança nos anúncios comerciais no Brasil durante a primeira metade do Estado Novo (1937-1940) Marina Helena Meira Carvalho A enfermidade da América Latina: conjeturas acerca do continente na virada do século XIX para o XX Regiane Gouveia Adolf Hitler: formação ideológica e antissemitismo Vinícius Bivar Marra Pereira 3 O gênero paisagem como lugar de memória: a representação do Rio de Janeiro na obra de Eliseu Visconti Aline Viana Tomé Mestranda em História – UFJF Orientadora: Maraliz de Castro Vieira Christo [email protected] (32) 8868-2177 Rua José Kneipp Filho, 38/103. São Pedro. Juiz de fora - MG Resumo: Nas páginas que se seguem pretendemos apresentar algumas considerações a respeito de como a construção da paisagem é também uma construção de memória. Entendendo que dentro do gênero da pintura de paisagem existe uma tradição, é possível conceber que as paisagens construídas por determinados pintores são memória, uma vez que se encontram ligadas formalmente umas às outras. Para embasar nosso esforço reflexivo utilizaremos as paisagens urbanas da cidade do Rio de Janeiro realizadas por Eliseu D’Ângelo Visconti (1866-1944). Palavras-chave: Pintura de paisagem, Pitoresco, Eliseu Visconti. Abstract: In the pages that follow, we intend to present some considerations about how the construction of the landscape is a memory construction. We understanding, within the genre of landscape landscapes are constructed by painting there is a certain painters tradition, was it is conceivable the considerate memory, since they are formally linked to each other. To support our reflective effort we will use urban landscapes of the city of Rio de Janeiro held by Eliseu D’Ângelo Visconti (1866-1944). Keywords: Landscape painting, Picturesque, Eliseu Visconti. Arte, memória e tradição Dentre as diversas experiências que podem ser apreendidas no contato entre uma pintura de paisagem e o expectador se situa aquela em que este, embevecido pelo poder de encantamento que aquela possui, julga ser realístico e único o relato a que se propõe a obra de arte. Na verdade, alertamos para essa falsa impressão de realidade, que trataremos mais adiante, e propomos uma análise sobre o caráter de unicidade das obras de arte. Como bem nos orienta Jorge Coli em seu livro O Corpo da Liberdade, um dos grandes prazeres dos historiadores das artes é descobrir as imagens renascendo dentro de outras imagens, tomando novos sentidos, ressuscitando o mesmo para se transformarem em outro.1 Isso significa dizer que a história da arte se faz através de uma tradição que perpassa o fazer artístico, sendo que através de uma obra nos é possível perceber inúmeras outras. Ao olharmos uma obra de arte conseguimos notar algo que nos traz à lembrança outra obra, existindo nessa lembrança uma memória fragmentada de narrativas picturais anteriores. Assim, quando Eliseu Visconti executa a sua obra Pão de Açúcar (1901) [imagem 1] existe dentro dessa tela algumas filiações, contatos, sendo possível ao historiador a reconstrução da cultura visual desse artista através da comparação de imagens. Afinal, “comparar é uma forma de compreensão silenciosa da relação entre as imagens.”2 Imagem 1: Eliseu Visconti, Pão de Açúcar, 1901. Óleo sobre tela, 26 x 32,5 cm. Coleção Desconhecida. Quando olhamos a imagem, a primeira coisa que nos salta aos olhos, mesmo estando em segundo plano, é a representação que o pintor faz do Pão de Açúcar, tal fato é reafirmado pela posição central que o mesmo assume dentro da composição. Embora ocupe boa parte do plano médio da tela, gerando uma linha que quase coincide com a do horizonte, a draga da Baía de Guanabara dá ainda mais visualidade à formação rochosa através da diagonal que lança em sua direção. O céu, mesmo ocupando metade da tela, não possui nenhuma força expressiva, fazendo com que a pedra se destaque ainda mais na paisagem. Os personagens têm apenas papel secundário na composição, são tipos genéricos em meio à paisagem. Será o registro de Visconti o primeiro a fazer menção ao Pão de Açúcar dentro da pintura de paisagem brasileira? Seria apenas com a modernidade e o advento da fotografia que o Pão de Açúcar se tornaria o cartão postal da cidade? Para todos esses questionamentos a resposta é negativa. Com algum esforço investigativo é possível perceber que existe uma tradição pictórica na representação do morro, que está entre um dos locais mais representados desde chegada da Missão Artística Francesa. Cabe ainda nos perguntar o que fez dessa formação rochosa um dos símbolos mais carregados de memória da cidade do Rio de Janeiro. Assim, não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda. 3 Entendendo o espaço como uma realidade que dura inclusive nas obras de arte, podemos inserir as representações do Pão de Açúcar enquanto perpetuadoras da memória da cidade, guardiãs de um espaço que foi alterado, mas que possui um lugar de memória. Dessa maneira enxergamos a ambivalência das representações artísticas na discussão acerca da memória, uma vez que estas possuem não somente a função de guardiãs de um contexto espacial passado, mas principalmente a memória da tradição artística enquanto construção pictórica. As obras de arte são lugares de memória É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e sua transmissão; mas simbólica por definição visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experiência vividos por um pequeno número uma maioria que deles não participou.4 A paisagem do Pão de Açúcar será motivo de estudo por todo o século XIX como demonstra as obras de Henry Nicolas Vinet [imagem 2] e Nicola Antonio Facchinetti [imagem 3]. Diferentemente da obra de Debret, as representações de Vinet e Facchinetti se encontram inseridas dentro da tradição de pintura de paisagem e fazem referência a uma das duas formas possíveis de representação utilizadas por pintores desse gênero 5: a paisagem é mostrada em sua amplitude, tendo papel destacado a paisagem física, os grandes panoramas. Podemos notar o lugar preponderante que o céu possui dentro da obra, ocupando mais da metade da tela, sendo a linha do horizonte abaixada. Nessas duas obras podemos notar a construção da paisagem ideal, assunto que iremos tratar com mais profundidade adiante. Para realizar sua obra, Vinet se utilizou de uma vista da cidade de Niterói. A pedra do Pão de Açúcar se encontra acima da linha do horizonte no centro da composição. A perspectiva linear torna a formação rochosa ainda menor quando colocada em comparação com os tipos vegetais dos trópicos, representados em primeiro plano. Com intuito de dar movimentação e variedade à cena, encontra-se no plano médio da obra um homem e seu cachorro. Imagem 2: Henry Nicolas Vinet, Vista da entrada da Baía do Rio de Janeiro tomada da praia de Icaraí em Niterói, s.d., óleo sobre papel, 26,5 x 41 cm. Museu Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro Imagem 3: Nicola Antônio Facchinetti, Lagoa Rodrigo de Freitas, c.1884. Óleo sobre papel, 23 x 65 cm. Museu Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro. Em Facchinetti temos a luminosidade como um dos personagens da paisagem. Em primeiro plano encontra-se a vegetação nativa. Os dois coqueiros à direita formam duas verticais que perpassam todos os planos da composição e que, juntamente com o morro em que estão fixados, emolduram a cena principal: a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Morro do Pão de Açúcar. Assim, podemos perceber de que forma Visconti, para realizar a sua pintura, se utilizou de todo o repertório visual sobre a temática do local que escolheu retratar, utilizandose das imagens guardadas em sua memória visual. E de como essas imagens são importantes lugares de memória, é isso que faz do passado o presente, graças à memória. Uma obra de arte torna-se, no seu modo mais eterno e verdadeiro, algo que é captado pela observação, em forma mais involuntária que voluntária, e que termina armazenado, à nossa revelia, dentro da memória. (...) As obras são únicas, sem dúvida, mas como pontos num tecido amplo de outras obras.6 A paisagem pitoresca Através da comparação de obras de artistas e momentos tão diversos traçamos um panorama de como a representação de um tema está inserido em um debate maior dentro da tradição de gêneros da história da arte. O Pão de Açúcar foi representado inúmeras vezes por diversos artistas de paisagem nacionais ou estrangeiros, mas será isso o suficiente para considerarmos estas obras como retratos fiéis da realidade? Temos aqui mais uma resposta negativa. Dentro da pintura de paisagem nos deparamos frequentemente com relatos de viajantes e suas viagens pitorescas, que ao serem entendidos como testemunhas oculares, nos conduzem muitas vezes a interpretações errôneas sobre estes registros. Para desfazer tal equívoco é necessário ter em mente que a pintura de paisagem, ao contrário de ser real, é construída pelo artista, sendo o somatório entre o conhecimento científico e a intuição artística. Para melhor entendermos a pintura de paisagem feita por Eliseu Visconti enquanto construção é necessário situá-la na categoria estética do pitoresco, que nas últimas décadas do século XVIII “passou a ser identificado enquanto uma categoria estética localizada entre o belo e o sublime”7, sendo belo aquilo que é calmo, agradável e delicado e o sublime, aquilo que traz medo e excitação. Segundo William Gilpin, a natureza é uma colorista admirável, capaz de harmonizar suas tonalidades com infinita variedade e inimitável beleza; contudo, poucas vezes é igualmente correta na composição, ao extremo de que dificilmente chega a produzir um conjunto harmonioso. 8 Para ele o pitoresco surge então como a função normativa de criar a beleza que se encontra somente em partes na natureza, cabendo ao artista a elaboração esse efeito de harmonia na composição da tela. Através disso é possível conceber a obra paisagística como uma construção feita pelo pintor que, longe de retratar o que está ao alcance de seu olhar, deve criar uma composição de forma que esta pareça harmônica. Nessa perspectiva o pitoresco além de funcionar como um pêndulo que oscila entre a noção de belo e de sublime, se apresenta como algo que possui variedade, diversidade e irregularidade.9 A tela de Thomas Ender é sintomática desse viés de construção da paisagem pitoresca. Imagem 5: Thomas Ender, Vista do Rio de Janeiro. Óleo sobre tela, 104 x 188 cm. Academie der Bildenden Künste, Viena, Áustria. As figuras vivas são consideradas apenas em seus traços gerais, como para dar movimento à paisagem. No plano médio da composição encontramos uma elegante relíquia de arquitetura, que dá a tela o “ornamento do tempo”, dessa forma é possível uma similaridade entre seu pensamento e a “pátina do tempo” de John Ruskin que concebe que a glória de um edifício não reside no material do qual é composto, mas sim na sua idade.10 Sendo a obra do viajante uma construção, ela tanto pode ser tomada como vista de algum lugar, quanto estar apenas na memória visual do artista que a idealizou, mesmo possuindo toda a similaridade com um lugar real. Conseguimos ter uma vaga referência do local retratado apenas através do título da obra e dos tipos vegetais que o artista viajante utilizou em sua composição. A questão da vegetação representada nas pinturas pitorescas remontam aos estudos de Alexander von Humboldt que concebia que o conhecimento científico da geografia e da vegetação atrelados à intuição do artista resultariam numa paisagem com conotações ideais. “Desse modo o pintor não agiria como um escravo do que existe, mas sim como um criador do que poderia ser”11 A representação de tipos populares presentes nas telas existia desde o início do século XVIII, mas foi apenas no século XIX que motivos de costumes como as lavadeiras da Itália meridional ou os camponeses andaluzes, as ruínas de mosteiros medievais ou as modestas casas rurais já não eram apreendidos como simples curiosidades de valor etnográfico ou como motivos pertencentes a um passado longínquo. O conceito estético do pitoresco lhes proporcionou a chave para ascender à categoria artística (...) por volta de 1800 já era mais frequente que com ela [categoria do pitoresco] se fizesse referências a motivos toscos, rudes, rústicos, sem sofisticação.12 Destacamos a relevância da temática das lavadeiras ao notarmos a presença do tema em quase todos os períodos da produção de Eliseu Visconti, sendo exceção apenas nos momentos em que o mesmo se encontrava realizando seus estudos no exterior. Associamos os estudos de cor realizados pelo pintor através das lavadeiras à atmosfera vibrante que o Brasil dá à palheta de Visconti. Imagem 6: Eliseu Visconti, Dia de Sol – Andaraí Grande, 1891. Óleo sobre tela, 33 x 41 cm. Coleção Desconhecida. Através da quantificação das obras relativas à temática das lavadeiras é possível notar que elas se encontram em sua maioria nos períodos inicial e final da produção do artista, revelando sua busca incansável pela perfeição pictórica. Através da escolha das lavadeiras Visconti realiza estudos ímpares de composição, com técnicas distintas, propiciando ao expectador o contato com um Rio de Janeiro pacato e rural, entre fins do século XIX e início do século XX. A imagem 6 representa o Andaraí Grande, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro que, no momento de execução da tela, enfrentava o início de um esforço modernizador advindo com o período republicano. Em sua fatura lisa a obra nos transmite a tranquilidade que o subúrbio quase rural da capital da república possuía. Contraditoriamente a obra se chama Dia de Sol; a atmosfera opaca pouco nos diz respeito à luminosidade tropical, deixando entrever a construção da paisagem. A vegetação em sua diversidade dá movimento à tela e as lavadeiras, antes vistas como motivos pouco nobres, fazem parte da composição idealizada pelo pintor. Em sua construção o pintor deixa-nos diante da narrativa de um laborioso dia de trabalho nos arrabaldes da cidade, lugar onde mais frequentemente encontrava-se o tipo das lavadeiras. Entre o início e fim do século XIX o centro de interesse dos pintores paisagistas se alterou e o que antes poderíamos chamar de pitoresco narrativo, com sua fatura lisa e representações detalhistas, passa agora a uma busca pela pincelada. Nesse segundo momento a paisagem é vista como lugar de experimentação pictórica, existe uma preocupação menor com a própria paisagem. Há uma busca pelo característico, a cor local, o subjetivo na pintura. A pincelada fica mais solta como consequência de uma maior liberdade de composição sentida pela experimentação plástica. Imagem 7: Eliseu Visconti, Roupa no Varal, 1890. Óleo sobre cartão, 20,5 x 12,3 cm. Coleção Particular. Afirmava-se claramente na Pintura de Paisagem brasileira, a partir da primeira década do século XX, uma tendência lírica, que muitas vezes chegava às raias da abstração e para a qual os elementos naturais, observados en plein air na paisagem, pouco mais eram do que um pretexto para o artista executasse um exercício pictural pessoal e dos mais livres.13 Roupa no Varal, obra do mesmo artista, é um exemplo desse momento. O expectador ao entrar em contato com a obra não percebe mais a narrativa presente na paisagem do pitoresco narrativo. Visconti me conta agora, em meio a sua experimentação plástica, a história da cor verde e branca na paisagem através das peças de roupa espalhadas pela composição. Os troncos das árvores ao fundo parecem como que esboçados. Em contraposição à verticalidade dada pelos mesmos troncos e pelo varal de bambu, encontramos as roupas brancas em meio à grama dando uma dimensão horizontal à obra. Entendemos que as lavadeiras de Visconti dialogam enquanto memória da tradição artística, uma vez que desde o século XIX existe uma infinidade de obras que tratam dessa temática na pintura de paisagem. Assim sendo, os artistas que trabalharam com as lavadeiras presentes em suas paisagens, mesmo não sendo contemporâneos e/ou conterrâneos, são de certa forma um grupo formador de memória, pois travam o mesmo debate acerca de uma temática recorrente no mundo artístico. Ao retratar as lavadeiras, muito além de estar fazendo uma experimentação pictórica, Visconti está rememorando este tema que é tão caro à pintura de paisagem. As obras conversam entre si e trazem consigo a lembrança, elas, em sua materialidade conservam a memória do fazer artístico. Subúrbios cariocas como memória Na pintura de paisagem realizada por Eliseu Visconti, os subúrbios estão entre os locais mais representados, sendo que nesse gênero o pintor nos possibilita a vista de diversos bairros da capital federal entre fins do século XIX e início do XX. No momento em que esses locais foram tomados como motivos pictóricos, o Rio de Janeiro encontrava-se em franco desenvolvimento devido ao caráter modernizador da Reforma Passos, que expulsava os menos favorecidos para os arrabaldes da cidade. Recanto do morro de Santo Antônio (1920), uma obra cuja variedade de cores e motivos nos salta aos olhos, funciona não somente como objeto de experimentação plástica do pintor, como também dá ao olhar atento de expectadores do início do século XXI a narrativa acerca desses subúrbios cariocas. O predomínio do caráter rural nos faz notar as tensões vividas pela sociedade carioca, que se situa entre o moderno e o antigo. Embora se note algumas construções ao fundo é a vegetação quem toma conta da cena que chega a ser bucólica. Os varais cheios de roupas dão ao cenário a profundidade. E uma menina parece brincar de compor o seu arranjo de flores, nos remetendo a efemeridade da infância. Um cenário que embora cheio de variáveis ainda assim nos transmite tranquilidade. No morro de Santo Antônio é como se a vida passasse devagar, sentimento em descompasso com toda a fluidez e rapidez que o caráter de modernização traz à cena dos primeiros anos republicanos. Imagem 8: Eliseu Visconti, Recanto do Morro de Santo Antônio, 1920. Óleo sobre tela, 70 x 96 cm. Coleção Desconhecida. Torna-se importante a compreensão de que Eliseu Visconti ao realizar suas imagens do subúrbio carioca poderia não estar intencionalmente preocupado em registrar a memória desses locais. Seria um errôneo pensar que o artista ao realizar suas telas estivesse preocupado com algo além da experimentação pictórica. Entretanto, torna-se questão de primeira ordem, salientar que ao representar inúmeros lugares que não existem atualmente na paisagem carioca, como o Morro do Castelo, desmanchado em uma reforma urbanística em 1921 e o Morro de Santo Antônio, que seguiu o mesmo destino na década de 1950, durante a administração Carlos Lacerda, as paisagens que Visconti produziu desses locais incorporam o importante papel de relato dessa memória visual atualmente extinta. Para melhor compreensão dos lugares frequentados por Visconti para compor suas telas, acrescentamos o mapa da cidade do Rio de Janeiro [figura 1] que, mesmo estando em sua conformação atual (ano de 2012) em relação aos bairros, nos permite uma melhor apreensão da visualidade possuída por Visconti quando da execução de sua obra. Figura 1: Mapa da cidade do Rio de Janeiro. Em detalhe os locais representados por Eliseu Visconti. Destaque das cores feitos por mim. Disponível em: www.armazemdedados.rio.rj.gov.brarquivos3 201_limite%20de%20ap_ra_bairro_2012.JPG . Gamboa Andaraí Grande Centro Santa Teresa Praia do Flamengo Urca Copacabana Ipanema Reafirmamos que, sendo o mapa atual, não podemos nos esquecer de que as regiões nele em destaque possuíam outra lógica nas décadas iniciais do período republicano. O que hoje entendemos enquanto regiões centrais da capital carioca, no contexto em questão, eram áreas praticamente rurais e longe de todo o burburinho do centro em franco processo de modernização. A reprodução do mapa nos permite localizar obras como Casebre no fim da praia do Flamengo (1888), A igrejinha (1912) – em Copacabana, locais que hoje são considerados nobres, mas que à época eram considerados vilarejos, fazendas para abastecimento da cidade. Temos ainda representações referentes aos morros das favelas, como é o caso de Uma rua da Favela (1890) que, mesmo estando na região central da cidade, acumulavam um sem número de miseráveis que não podia arcar com os gastos dos transportes para locais mais afastados da cidade e durante o dia necessitavam trabalhar na região. Concebemos que se hoje possuímos a lembrança de muitos desses recantos rurais que foram engolidos em nome da modernização, grande parte devemos às obras de arte produzidas nesse período. Segundo Halbwachs, a lembrança é uma imagem engajada em outras imagens, uma imagem genérica reportada ao passado.14 Talvez por isso seja tão instigante o contato com obras que remontam períodos dos quais a nossa lembrança seja tão vaga. Conclusão: No nosso modo de entender, a genialidade da arte reside também no fato de ser sempre atual: as telas de Visconti foram produzidas no final do século XIX e início do XX, mas através de sua materialidade, seja nos museus ou nas casas de seus colecionadores particulares, ela carrega em forma potencial o debate acerca da memória, seja memória enquanto tradição dentro do gênero pintura de paisagem, ou enquanto memória de uma sociedade ali representada. 1 COLI, Jorge. O corpo da liberdade: reflexões sobre a pintura do século XIX. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p.269. 2 Ibdem, p.268. 3 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2003.p.170. 4 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. In: Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-28, dez. 1993. p.22. 5 A outra forma de representar a paisagem do Rio de Janeiro seria a tentativa de entender o que se passa nas ruas da capital, a paisagem urbana. 6 COLI, Jorge. Op. Cit. p. 279. 7 DIENER, Pablo. “A viagem pitoresca como categoria estética e a prática de viajantes”. In: Revista Porto Arte. Vol. 15, nº25, vol. 2008. p.59-73. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/PortoArte/article/view/10529. p.62. 8 GILPI, William Apud. DIENER. Ibdem. p. 63. 9 DIENER, Pablo. Op. Cit. páginas. 63 e 64. 10 Segundo Ruskin a construção arquitetônica “mantém a sua beleza escultórica por um tempo insuperável, reunindo épocas esquecidas à épocas que se seguiram, e que constitui a identidade, assim como concentra as simpatias das nações. É naquela dourada pátina imposta pelo tempo, que devemos procurar a verdadeira luz, a verdadeira cor, e a verdadeira preciosidade da arquitetura.” Ver: RUSKIN, John. A lâmpada da memória. Salvador: Editora UFBA, 1996. 11 DIENER, Pablo. Op. Cit.p.68. 12 Ibdem. p.64. 13 VALLE, Arthur e DAZZI, Camila. “ ‘As belezas naturaes do nosso paíz’: o lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República”. In: CAVALCANTI, Ana; VALLE, Arthur; DAZZI, Camila. Oitocentos; Arte brasileira do Império à Primeira República. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ, 2008, p.485-492. p. 489. 14 HALBWACHS, Maurice. Op. Cit. p. 78. POLÍTICA EXTERNA E CONSOLIDAÇÃO NACIONAL: O RIO DA PRATA E AS REPRESENTAÇÕES NO CONSELHO DE ESTADO (1847 – 1852) Celso Moreira Louzada Filho1 Resumo O período anterior à batalha contra o governo de Rosas é conhecido pela mudança do posicionamento neutro do império do Brasil para uma política de intervenção na região do Rio da Prata. Considerando a diversidade da formação político-ideológica das elites imperiais, o Conselho de Estado apresenta-se como instituição privilegiada para a compreensão da política externa brasileira e a importância de sua intervenção para a consolidação do projeto político imperial. Palavras-chave: Relações Internacionais, Região Platina, Conselho de Estado Abstract The years before the battle against the government of Rosas is known for changing the neutral position of the empire of Brazil for a policy intervention in the Rio de la Plata. Considering the diversity of political-ideological training of imperial elites, the State Council presents itself as a privileged institution for the understanding of Brazilian foreign policy and the importance of his speech to the consolidation of imperial political project. Keywords: International Relations; Rio de la Plata, Council of State Adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação nominalmente "objetiva" para o momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas.2 Desde a independência do Brasil Imperial vários projetos de consolidação do Estado nacional se alternam no programa de governo3 - da Confederação do Equador até as turbulências do período regencial, podemos dizer que o Império brasileiro passou por conflitos de projetos políticos que eram contrários à centralização do poder no sudeste. Muitas vezes se chocam como se fossem elementos opostos em uma realidade política, em outras apenas discordam em alguns pontos. A manutenção de alguns elementos revela-se tão enraizadas e empiricamente constituídas ao ponto de serem criticadas somente ao campo intelectual, fantasioso, como se não houvesse chance de aplicá-las à realidade brasileira. Como por exemplo, a escravidão entrava em dissonância com o discurso de liberdade, onde as aspirações ao modelo mencionado acima, das “nações civilizadas europeias”, mostravam o ponto a ser alcançado, sem se preocuparem com o caminho traçado. A concepção de uma nação inserida no mundo “civilizado”, de acordo com o padrão europeu, molda a forma como os políticos do Império do Brasil atuam no campo do Poder. Podemos falar em diferentes propostas quando separamos por nome, assim como Ilmar de Mattos apresentou, Luzias e Saquaremas. O primeiro com a proposta descentralizadora “de modo que assegurasse o predomínio de cada grupo em seu âmbito provincial, e que deveria expressar-se numa distribuição tendencialmente mais equilibrada do aparelho de Estado pelo território imperial”4, e o segundo grupo reconhecidos como “sempre e antes de tudo os conservadores fluminenses, e assim se ocorria era porque eles tendiam a se apresentar organizados e a ser dirigidos pela 'trindade saquarema': Rodrigues Torres, futuro Visconde de Itaboraí, Paulino José Soares de Sousa, futuro Visconde do Uruguai, e Eusébio de Queirós” 5. Mas não podemos dizer o mesmo quanto às práticas políticas dos Luzias e Saquaremas no poder, onde se encaixam hierarquicamente efetuando um conjunto próprio de se fazer política como se, de certa forma, trabalhassem juntos para o mesmo fim, como podemos ver nas palavras de Ilmar Mattos: Contudo, parece-nos que mais importante será sublinhar que a identificação que Luzias e Saquaremas procediam, quanto a diferenças e semelhanças, era apenas a expressão, nesse aspecto particular, da visão que possuíam e veiculavam da política e da sociedade, visão essa que – podemos afirmar – vinha se consumindo desde o próprio forjar do processo de colonização, e que no momento que ora consideramos tendia a se apresentar de forma cristalizada como decorrência, sobretudo dos processos complementares de construção do Estado imperial e de constituição da classe senhorial. 6 Tais processos mencionados por Ilmar Rohloff de Mattos convergem seus interesses a algumas direções mais favoráveis do que outras. O Capitalismo triunfante, chamado assim também pelo próprio autor, poderia ser representado por dois modelos distintos de nações: Os Estados Unidos da América e as potências europeias com a Inglaterra e a França. No Brasil, desde a independência e coroação de D. Pedro I, foi preferível dar-lhe o título de Imperador ao de Rei, claramente devido à inspiração em Napoleão Bonaparte e seu Império na França. O modelo democrático americano, além de não possuir um modelo de hierarquia de funcionários públicos, nem das “carreiras” na vida pública parecidas com a que a administração portuguesa deixou de herança para a ex-colônia, ficou associado ao período regencial, pelo seu impulso transformador e revolucionário. Assim, o retorno da figura do “Imperador e a ideia que encarava” garantiam o modelo a ser seguido pela Política Imperial.7 Junto com a maioridade o Imperador retorna uma instituição de peso para a política conservadora e centralizadora: o Conselho de Estado. Recorrendo ao modelo francês, as instituições de caráter hierárquico então presentes, como por exemplo, o próprio Conselho e o Senado, ambos com integrantes vitalícios. Se o Senado poderia representar, de alguma forma, os eleitores, os Conselheiros eram unicamente escolhidos pelo Imperador para auxiliar tanto no poder executivo, quanto no moderador, e por fazerem parte não só de uma elite política como também de uma elite intelectual, muitas vezes sugeriam projetos de Lei, o que nos mostra também sua influência no Legislativo. De fato, frente ao posicionamento internacional, representado pela Inglaterra e França como países triunfantes no capitalismo, o Império brasileiro mantém as suas estruturas vitais calcadas no estabelecimento da ordem que se desenha no corpo político através da existência de uma classe senhorial no poder burocratizado do Estado. Da mesma forma, os interesses que movem a manutenção dessa classe - por exemplo, a escravidão e a manutenção da unidade territorial - são levados ao campo do poder como representação de um interesse geral.8 Mesmo com a disparidade entre o Império e as “Nações referência” citadas acima, podemos perceber as diferenças essenciais na formação desta e daquela - o desenvolvimento das nações Americanas, com suas transformações políticas, não permite que se coloque como as nações europeias nas relações capitalistas internacionais. A dupla revolução9 - Revolução Industrial/Liberal - compôs um cenário propício ao desenvolvimento dos países europeus e a sua ocupação no topo do sistema capitalista internacional. As transformações americanas, com suas independências nacionais, não se compunham da “bagagem histórica” decorridas na Europa, que permitiu um lugar diferenciado nesse sistema econômico mundial. O Império brasileiro, por exemplo, tinha um papel principal no quadro de interesses ingleses ao triunfarem sobre a economia Europeia: fornecedor dos produtos para a indústria fabril, como café, algodão e açúcar.10 Com a necessidade de participar da conjuntura internacional, inserindo-se como coadjuvante no fornecimento dos produtos para a dinâmica industrial europeia, algumas estruturas parecem perpetuar desde os tempos de colônia. A classe senhorial, junto com o sistema de trabalho escravo, compõe as contradições que se inserem no Império brasileiro provando que poderia se comprometer no cenário internacional caso não mantivesse essas instituições. Como se não bastasse a situação onde a política brasileira parece andar “fora da linha”, os reflexos dessa exigência conjuntural podem ser vistos nas ideias do corpo político imperial. Mesmo que os valores dos países europeus sejam frutos do sustento de sua política e soberania, construídos de movimentos internos, com fortalecimento da burguesia no poder em detrimento dos moldes do antigo regime, do próprio desenvolvimento e atuação no cenário europeu e mundial, o Império de D. Pedro II, ainda assim, toma como inspiração, modelo ou padrão, alguns valores que podem ser aproveitados, de acordo com as próprias interpretações ao cenário político da nação. Nessas condições, se a organização do novo império tornava indispensável o recurso às Luzes da elite intelectual, para dar forma e fazer funcionar o País, não podia tampouco transgredir o interesses e o poder da aristocracia escravocrata. O período regencial, interregno desse jogo, em que faltou autoridade tradicional de um soberano para conter os excessos – como ocorrera em 1822 -, correspondeu com momento em que a partida decidiu-se, graças a elaboração de mecanismos e de práticas capazes de conciliar, excluídos os escravos e a arraia-miúda, os anseios de uns com as vantagens dos demais. Desse Compromisso Nasceu a nação, que conservou na pele as marcas do parto doloroso.11 Tal diversidade não é encontrada somente na relação entre a escolha política brasileira, monárquica, diante das repúblicas americanas, mas também no posicionamento brasileiro diante de seus vizinhos, no cenário capitalista global. Da mesma forma que a Inglaterra venha interferir na política brasileira, acordando tratados que almejam o fim do tráfico negreiro, a mesma atitude, no que tange à livre circulação nos rios da Bacia do Prata, será feita pelo Império brasileiro nos vizinhos americanos. A diplomacia imperial com os países da bacia do Prata – Uruguai e Argentina – circundam interesses estritamente nacionais. A região da Bacia do Rio da Prata, ao sul do Império do Brasil, é um exemplo que como a soberania nacional ameaçada pode resultar em uma mudança no planejamento da ação diplomática imperial. Para compreendermos um pouco mais os trâmites dessa política internacional é preciso averiguar as diferenças e similaridades dos países que compõem essa região. Em especial, os que mais se enfrentaram: Brasil e Argentina. Dois termos precisam ser diferenciados aqui: Processo de Independência e construção da Nação. Segundo Gabriela Nunes Ferreira, é um equívoco considerar o momento de independência do Brasil como data de início de uma nação, formada e legitimada pelos brasileiros e por atores internacionais12. A nação, encerrado em si mesma o poder central concentrado na região do sudeste só ocorre no momento conhecido como “Regresso” que corresponde desde a renúncia do regente Feijó, no ano de 1837, até a reorganização da Guarda Nacional, em 1850. Passando neste período, pela Lei de Interpretação do Ato Adicional, o restabelecimento do Conselho de Estado e a Reforma do Código de Processo, durante os anos de 1840 e 1841.13 Estrategicamente, um olhar sobre a Instituição do Conselho de Estado pode nos revelar muito sobre a conjuntura dos quatro poderes – Judiciário, Legislativos, Executivo e Moderador - que compõem a política imperial. O papel deste órgão, teoricamente, está relacionado ao exercício de aconselhamento do monarca. Ao mesmo tempo em que o monarca ocupa a posição de liderança do poder executivo, no caso do Império, ele também exerce a função de poder moderador. Este poder se sobrepunha aos demais poderes. Desta forma, o Imperador era detentor de uma forma de poder pessoal e privativa e, pelo uso coercitivo deste poder, poderia demitir, por exemplo, os seus ministros de Estado. Desta forma, o poder moderador situava-se hierarquicamente acima dos demais poderes. O Conselho de Estado por sua função devido a sua importância para a compreensão do funcionamento político do Império do Brasil, vem sendo alvo de análises por vários historiadores em diferentes épocas.14 A prática em utilizar um órgão consultivo não era particularidade do Império Brasileiro, pois, na Europa, em países como a França, a Inglaterra, Espanha e Portugal, as cortes possuíam um corpo de funcionários que tinham como objetivo aconselhar o Rei e/ou os Ministros diante de qualquer necessidade de resolução política que exigisse maiores reflexões. O Brasil apenas se seguiu uma tradição política portuguesa que acompanhava o reino de Portugal desde os tempos do Mestre de Avis, no século XIV e seguiu com o desenvolvimento da política absolutista em Portugal. A partir daí, poderemos compreender que a existência de um órgão como o Conselho de Estado, diante de uma Monarquia Constitucional, fazia pesar para o lado do poder Moderador, as disputas diante de um poder representativo. A instituição a qual este trabalho faz referência é aquela que compôs o órgão consultivo do Imperador D. Pedro II. Esta era composta de 12 Conselheiros escolhidos pelo próprio imperador e agrupados em diferentes áreas de atuação. Quatro eram as divisões: Justiça e Estrangeiros, Império, Fazenda e Marinha e Guerra. Cada qual com três membros liderados com o ministro correspondente presidindo a seção. Diante de problemas mais complexos, todos os 12 membros desse conselho eram convocados em uma reunião plena, com o objetivo de aconselhar as decisões que o poder moderador, calcado na figura do monarca, diante de tais determinações políticas. Somente algumas questões eram levadas diretamente à reunião do Conselho pleno, por não existir tempo hábil para passar por uma das quatro seções. Isso implica que, teoricamente, a reunião do Conselho pleno só se daria nos casos mais graves, cujo nenhum dos ministros conseguiria resolver previamente com os três conselheiros.15 Como estes eram escolhidos a dedo pelo Imperador não se pode negar a influência e sabedoria de cada membro, seja pela atuação no próprio conselho ou por sua trajetória política, “sem falar de importantes projetos de lei que foram por eles inicialmente redigidos, como os da Lei de Terras de 1850 e a Lei do Ventre Livre de 1871.” 16 Por ser um órgão consultivo, o Conselho de Estado era convocado pelo Imperador a debater os assuntos pertinentes aos negócios do Império. Por sua vez este abrangia grandes campos políticos de atuação do executivo como agricultura, comércio e obras públicas (isso até 1860), Correio, navegação, transporte, catequese e etc. Os decretos e resoluções imperiais também eram baseados em consultas. Por exemplo, foram feitas 690 resoluções onde 84% estavam condizentes com o parecer dos Conselheiros.17 Os estudos sobre grupos de elite como o Conselho de Estado nos permitem adentrar nas configurações políticas que abrangiam não só a atividade Executiva do Império, como também compreender as diferentes redes que influenciam diretamente as decisões tanto do poder mencionado como dos outros poderes da esfera política, sem que nos fixemos nos discursos oficiais que distinguiam publicamente as diferentes tendências políticas de acordo com a classificação partidária de cada grupo. Desta forma, olhando de perto o grupo dos conselheiros, segundo José Murilo de Carvalho, podemos compreender que: Por sua composição, por constituir um grupo razoavelmente homogêneo em termos de posição da hierarquia política, pela longa convivência, pelo trato constante com os mais variados problemas da política nacional, ele constitui sem dúvida organização estratégica para se estudar o pensamento da elite política do Império. No caso do Conselho, este pensamento pouco se distinguia do pensamento do governo, pois nele se condensava a visão política dos principais líderes dos dois grandes partidos monárquicos e de alguns dos principais servidores públicos desvinculados de partidos. O que se perde por não incluir variedade maior de pensamento, por exemplo o radicalismo liberal ou o republicanismo, ganha-se pela visão mais nítida da filosofia que guiava a política imperial18 Por outro lado, outros estudos ampliam a importância desta Instituição para a compreensão do pensamento político Imperial em sua consolidação nacional. Sem deixar de lado o caráter homogêneo, atribuído por Carvalho, podemos compreender a análise feita pela Maria Fernanda Vieira Martins19. A autora lança um olhar que nos permite compreender um lado não oficial de fazer política, tendo como elemento chave o estudo do Conselho de Estado como elo entre o poder central e as elites locais através da formação de redes de parentesco e sociabilidades. O Conselho de Estado se torna um órgão importante para os estudos das elites não por serem homogêneos, mas sim por estarem estrategicamente ligados a outras elites do Império. Essa relação de parentesco explica muito sobre a relação das elites com o poder central através do Conselho de Estado. Pois é pelo parentesco que podemos afirmar que o Conselho serve de intermédio, lugar onde se estabelece o peso dos dois lados (elites – monarquia) permitindo a atuação das duas em situação conciliatória. (...) suas relações de continuidade nos que se refere aos principais grupos econômicos do país — os grandes negociantes e proprietários de terras e escravos — e às oligarquias regionais, as antigas famílias que, desde o período colonial, controlavam os poderes locais e estendiam sua esfera de influência não só para além dos próprios limites provinciais, como em direção ao poder central.20 Na própria atribuição feita aos Conselheiros, “à sua capacidade de oferecer e retribuir benefícios” é que assistimos certa cautela, um recurso por trás do que seria puramente a política a fim de torná-la ainda mais eficiente. O próprio processo de centralização do poder ganha destaque, pois é ele que converge os demais interesses, ditos regionais e possivelmente distintos, todos em resoluções onde a política se faça através de seus representantes. As políticas de casamento e parentesco que envolvem os Conselheiros, não só com os mais importantes empresários brasileiros, mas também com as elites latifundiárias locais, acabam provocando uma diversidade na influência de poder sobre o poder central, ao mesmo tempo em que exige grande habilidade de negociação por parte do poder central para lidar com as diferentes elites existentes no Império. Nas palavras de Martins: “Assim, essas redes apresentavam-se multifacetadas e multidirecionadas, integrando indivíduos e representações de interesses diversos ao longo do II Reinado e espelhando diferentes e mutáveis estratégias de negociação para perpetuação do poder e manutenção do status.”21 Outro aspecto importante está relacionado com o modelo a ser seguido pelos membros do Conselho de Estado. Tanto José Murilo de Carvalho como Ilmar Rohloff de Mattos parecem concordar neste ponto. O que serve de referência para a atuação dos membros são os modelos europeus, o que caracteriza a instituição mencionada como eurocêntrica. Por diversas vezes, na composição das atas, são mencionadas tais referências. As principais nações a serem seguidas são a Inglaterra e a França. Assim, partilham de valores em comum, como a monarquia, a civilização e o cristianismo. Por outro lado, ter esse foco como objetivo a ser atingido não gera, de fato, as mesmas consequências a respeito do sucesso econômico que, por exemplo, a Inglaterra alcança. As explicações pra isso são bem claras no posicionamento de Mattos: Nas falas dos que se mostravam orgulhosos de uma posição, cada vez mais ocupavam lugar de destaque termos como Civilização, Utilidade, Luzes, Associação, Razão e Progresso, como se eles tivessem ganho importância em função primordialmente da trajetória que percorriam e que, sem dúvida, também traçavam, e não tivessem sido tomados de empréstimo às “nações industriosas da Europa”, que trilhavam um caminho diverso.22 A citação indica um fenômeno que compôs o cenário político no período conhecido como “regresso conservador”, logo após o golpe da maioridade. O exagero fez parte da consolidação política imperial, fator otimista que levou às ações do corpo político ao sonhado progresso. Por exemplo, caracterizava o fim do tráfico intercontinental como grande passo, grande feito político e ignorava a pressão inglesa diante do fim da escravidão. Mas não foi somente em relação à escravidão que o Império trouxe para si a responsabilidade de um grande programa de governo que se iniciara. Outras determinações de interesse inglês também eram propagadas como se fossem iniciativas Imperiais, mérito de uma administração eficiente e progressista que eleva o Brasil ao nível das potências europeias como a Inglaterra. O crescente comércio de exportações brasileiras está controlado por companhias inglesas, assim como a distribuição e iluminação de serviços públicos urbanos no Rio de Janeiro. Os investimentos na malha ferroviária são providos do capital inglês e até mesmo os produtos úteis vendidos para trabalhos do dia a dia são de origem daquele país. O desenvolvimento brasileiro acontece, mas o fenômeno da inversão ignora o seu patrocinador inglês. Desenvolvendo essa ideia, Ilmar de Mattos usa uma metáfora que explica tal andamento. Fala sobre cunhagem da moeda e sua restauração neste período pós-golpe da Maioridade. Afirma que o pacto colonial, em tempos anteriores a este, pode ser entendido por dois olhares diferentes que, ao mesmo tempo em que são opostos, se completam. De um lado apresenta a metrópole, de outro a colônia. Assim, mostra o quanto fora importante essa relação para a formação histórica da política imperial. As marcas de um passado colonial acompanharão a configuração do trajeto que seguirá o Império do Brasil a caminho de seu desenvolvimento. O que Ilmar Rohloff de Mattos chama de restauração da moeda colonial é, reelaborar um novo pacto, não mais aos moldes do mercantilismo português, mas agora ligados ao liberalismo inglês.23 Se o Brasil foi colônia pertencente à metrópole portuguesa por legitimação absolutista e mercantilista, no período estudado, a democracia e liberdade são os novos elementos de legitimação. Paradoxalmente, o modelo seguido pelo Império, somado aos valores colocados por Ilmar de Mattos, mostram o ideal a ser seguido pela política e, consequentemente, pelo Conselho de Estado ao mesmo tempo em que se encontram inúmeras dificuldades para se colocar tais ideias políticas em prática. Atribuída a importância da Instituição do Conselho, podemos compreender a sua participação no período considerado por muitos historiadores como o fim das turbulências acerca da formação do Estado Nacional. O período da década de 1840 caracteriza-se pela vitória do conservadorismo político e um período de estabilidade progressista no Reinado de D. Pedro II. A particularidade em que se trata o presente trabalho, relaciona a representação encontrada nos pareceres dos Conselheiros de Estado diante dos problemas diplomáticos decorrentes na região da Bacia do Prata. O envolvimento dos projetos nacionais naquela região requer o posicionamento dos mesmos de forma a dar suporte às decisões ministeriais do Império. Depois de um conturbado período regencial, quando por várias vezes houve confronto direto entre o projeto político centralizador no Rio de Janeiro e as diferentes demandas por autonomia de poder em outras províncias, em especial a questão Farroupilha, de onde chegou ao ponto de proclamarem a República do Piratini, o cenário que se construía na Confederação argentina representava uma séria ameaça à soberania nacional do Império: “o fechamento dos rios Paraná e Paraguai mantido por Rosas dificultava a integração do País, pois comprometia o acesso ao seu interior”24. O projeto nacional federalista argentino estava vinculado à retomada do poderio territorial da antiga estrutura do Vice-Reinado do Prata, mostrando-se descompromissado com os acordos estabelecidos na Confederação Preliminar de Paz em 1828, o que determinava o fim da guerra entre o Brasil e as províncias unidas do Rio da Prata. Mesmo diante deste problema, o Império brasileiro se mantinha em posição neutra diante da diplomacia, pois outras nações também estavam envolvidas na região, como a Inglaterra e a França, estabelecendo negócios que envolviam a navegação no Rio da Prata. Dessa forma, podemos compreender que o projeto da Confederação de Rosas se configurava como um problema tanto para o Império, quando para os ingleses e franceses que atuavam na região. Como já se estabeleciam ali, por muito tempo antes das revoluções liberais, o domínio principalmente inglês naquele comércio garantia uma posição confortável ao Império, pois se a Inglaterra estaria interessada na livre circulação no Rio da Prata, uma posição diplomaticamente neutra seria a melhor estratégia admitida pelo governo brasileiro. Porém, o enfrentamento entre a Inglaterra e o Governo de Rosas foi prejudicial ao livre comércio. Depois de decretar um bloqueio a Buenos Aires, os ingleses se frustraram com a queda das atividades de seus navios mercantes devido ao clima de tensão gerado por um iminente conflito entre as duas nações. O melhor caminho encontrado foi o diplomático. Em 1849 um tratado era assinado entre a Confederação e a Inglaterra onde cessaria oficialmente a intervenção inglesa na região, devolvendo as embarcações apressadas e ainda reconhecendo a interiorização do rio Paraná dentre outras medidas que se façam valer a soberania rosista. Com os acordos assinados entre as potências europeias e a Confederação Argentina, um grande passo foi dado para a concretização de uma política soberana na região sob a liderança de Rosas. Tal situação desperta maior preocupação por parte do governo imperial que, como dito anteriormente, por mais que não estivesse diretamente ligado às ações daquelas potências europeias, beneficiava-se de sua intervenção. Neste momento, para garantir os seus interesses, o Império do Brasil teria de intervir energicamente na política externa do Rio da Prata. Não lhe restava alternativa.25 Acompanhado da consolidação da política imperial brasileira, o desenvolvimento de uma política externa se concretiza a favor de seus interesses na região platina. O posicionamento inglês. O objetivo deste trabalho, ainda em fase inicial de dissertação de mestrado, é identificar como as apropriações são feitas a favor do império, junto com o que Ilmar de Mattos disse a respeito do “jogo de inversões” mencionado acima. Dessa forma, conhecendo um pouco mais sobre a elite política brasileira e suas representações, poderemos compreender como uma instituição de peso como o Conselho de Estado se articula em discurso para que “as ideias e razões europeias” possam justificar as ações políticas do governo do Império. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Orientadora: Érica Sarmiento. E-mail: [email protected] SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 2000. p. 18 Podemos tomar como exemplo os conflitos com a Confederação do Equador até as diversas reformas regenciais que tiveram que ser abafadas com a força da Guarda Nacional MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004, p.117 Idem, Ibidem, p. 120 Idem, Ibidem, p.124 Idem, Ibidem, p. 95 Idem, Ibidem, p. 105 Segundo Eric Hobsbawm, no eu livro intitulado com A Era das Revoluções, as nações Europeias se enquadram no centro do capitalismo em posição de favorecimento diante de outras nações consideradas periféricas. Assim, cabe àquela burguesia a posição privilegiada nas atividades comerciais bilaterais que venham a ter com outras nações. Tal posição foi conquistada através do que o autor chama de dupla revolução, referindo-se à Revolução Industrial Inglesa e a Revolução político-social Francesa. MATTOS, Op. Cit, p. 106 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira. O Império do Brasil. Nova Fronteira, p. 185. FERREIRA, Gabriela Nunes. O Rio da Prata e a Consolidação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 2006. p. 38 e 39 Idem, Ibidem, p. 45 Já trataram do tema autores como José Honório Rodrigues, José Murilo de Carvalho e Maria Fernanda Vieira Martins. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A Velha Arte de Governar. TOPOI, Rio de Janeiro: v. 7, n. 12, jan.-jun. 2006. p.190 CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem/Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (p.358) Idem, Ibidem, p. 359 Idem, Ibidem, p. 357 MARTINS. Op. Cit. Idem, Ibidem, p. 181. Idem, Ibidem, p. 190. MATTOS, Op. Cit, P. 25 Idem, Ibidem, p. 28 – 29. FERREIRA, Op. Cit, p. 65 Idem, Ibidem, p. 115. FOTOGRAFIA E ENSINO DE HISTÓRIA Daniel Francisco da Silva Resumo A fotografia é uma fonte documental/metodológica que permite ao professor de História inúmeras possibilidades. Nesse sentido, este estudo analisa o uso da fotografia como fonte didático-pedagógica, partindo de análises sobre as imagens produzidas no período de crise política, vivenciada no Brasil em agosto de 1954, o que culminou com o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Esta pesquisa tem como acervo fotográfico o CPDOC/FGV, além de autores como Boris Kossoy, Jorge Ferreira e Ana Maria Mauad. Palavras-chaves: Fotografia, fontes metodológicas, era Vargas. Abstract The picture is a source documentary/metodological that allows to the teacher of history a considerable number of possibilities. In that sense, this study analyzes the use of the picture as didactic-pedagogic source, from of analyses of images produced in the political crisis lived in Brazil in August of 1954, what culminated with the suicide of the president Getúlio Vargas. This work has the photographic collection of the CPDOC/FGV, and authors like Boris Kossoy, Jorge Ferreira and Ana Maria Mauad. Key-Words: Picture, methodological sources, age of Vargas. Introdução A fotografia é um documento que apareceu na revolução industrial. Com o seu surgimento, o mundo moderno ganhou uma ferramenta de suma importância para compreendermos determinados períodos históricos. A partir de sua criação, passou a ser objeto cultural, tendo em vista que ter uma fotografia em casa era símbolo de status social, uma vez que nesse período possuía um custo muito elevado. Sendo assim, somente as pessoas que pertenciam às classes sociais mais elevadas tinham fotografias em casa. Com o passar dos anos, a fotografia foi tornando-se mais acessível para a população menos favorecida. A criação dessa nova ferramenta (a fotografia) gerou uma grande revolução na sociedade moderna, pois, desde então, as pessoas podiam eternizar determinados momentos de suas vidas, tendo em vista que a fotografia é fruto do seu tempo. Partindo desse pressuposto, o presente trabalho tem como objetivo analisar a fotografia como fonte metodológica que auxilia o professor/historiador em suas aulas, fazendo com que os alunos construam uma narrativa histórica mediante a observação das fotografias referentes à crise política de agosto de 1954, que culminou no suicídio do presidente Getúlio Vargas. Para tanto, este texto encontra-se dividido em duas partes: a primeira trata-se de uma discussão em torno da fotografia; e a segunda é um diálogo sobre a utilização de fotografias, como documento histórico, no ensino de História. No caso deste estudo, o objetivo é fazer com que os alunos compreendam o período da crise política por meio das fotografias, destacando sua importância na sala de aula. A fotografia como documento/representação fruto do seu tempo A fotografia registra momentos que ficarão eternizados para sempre na vida das pessoas. Durante o século XX, passa a ser utilizada para identificar as pessoas, como aponta a autora Ana Maria Mauad: “passando a fazer parte da documentação das pessoas a imagem fotográfica foi associada à identificação, passando a figurar, desde o início do século XX, em identidades, passaportes e os mais diferentes tipos de carteiras de reconhecimento social”1. Por meio dela, é possível representar o social, político e cultural. Sendo assim, a História ganha uma ferramenta muito importante para compreendermos determinados períodos históricos, auxiliando com fontes que possibilitam inúmeras pesquisas, conforme expõe Boris Kossoy: As fontes fotográficas são uma possibilidade de investigação e descoberta que promete frutos na medida em que se tentar sistematizar suas informações, estabelecer metodologias adequadas de pesquisa e análises para decifração do conteúdo e, por consequência, da realidade que os originou2. Dessa forma, a fotografia vem contribuir para o trabalho do historiador, tendo em vista que “toda fotografia é um resíduo do passado”3. Por meio dela, podemos fazer inúmeras indagações, sendo que a imagem fotográfica selecionada como fonte auxilia na investigação e compreensão do período histórico pesquisado. Ao trabalharmos com a fotografia, devemos perceber as suas várias facetas, precisando fazer algumas indagações, quais sejam: o que o fotógrafo quis expor ao fotografar aquela imagem? Em que contexto social a fotografia está inserida? Qual a cor, o tempo, o espaço? Essas são algumas questões que precisam ser discutidas ao se analisar uma fotografia, já que esta é uma representação fruto do seu tempo. Como afirma Boris Kossoy, a imagem fotográfica nos representa o real: A imagem fotográfica é antes de tudo uma representação a partir do real segundo um olhar e ideologia do seu autor. Entretanto, em função da materialidade do registro, no qual se tem gravado o vestígio/aparência de algo que se passou na realidade concreta. Em dado espaço e tempo, nós a tomamos, também, como um documento do real, uma fonte histórica4. Desse modo, ao trabalharmos com a fotografia, devemos nos atentar para as representações que ela está nos expondo, tendo em vista que precisamos entender a fotografia para além do que está exposto na imagem intacta. Dito de outra maneira, precisamos entender o que está entre as imagens, o que o fotógrafo está representando naquela imagem fotográfica, para compreendermos as fontes que está nos proporcionando, “porque a relação documento/representação é indissociável”5. Sendo assim, necessitamos entender a fotografia como documento, atentando-nos para o aspecto que foi produzido pelo homem, a fim de compreendermos o que o levou à construção desse documento. Bauer expõe o objetivo do documento fotográfico da seguinte forma: [...] registrar com exatidão a existência, o conteúdo e os caracteres da fonte, tal como de momento se ao pesquisador, com a indicação da época e do lugar do achado, a investigação da origem da fonte quanto ao tempo e ao lugar de que procede e história das vicissitudes pela qual passou6. Dessa forma, o documento fotográfico poderá ser analisado como qualquer outro, por meio da verossimilhança que apresenta. Partindo desse pressuposto, pode contribuir para o ensino-aprendizagem dos educandos, fazendo com que estes compreendam períodos históricos vivenciados pela sociedade. Assim, cabe ao historiador problematizar o documento fotográfico a partir das indagações feitas. A fotografia como documento metodológico no ensino de História Neste trabalho, iremos utilizar a fotografia como fonte documental metodológica, a qual vem auxiliar o professor/historiador a elaborar uma metodologia voltada para a sua utilização. Desse modo, o professor, ao utilizar o documento fotográfico em sala de aula, precisa estar atento a algumas indagações. A respeito de aspecto, os PCNs apontam: considerar a técnica utilizada, as condições em que a foto foi produzida, o estilo artístico do fotógrafo, o ângulo que ele privilegiou, a razão pela qual a foto foi tirada, as técnicas de revelação, as interferências feitas no negativo podem propiciar informações interessantes sobre o contexto da época7 (PCNs, 1997, p. 56). O professor, ao levar para a sala de aula uma fotografia do período histórico que está abordando, pode analisar com os alunos o que está entre as imagens que estão expostas, fazendo com que os educandos sintam-se sujeitos ativos do processo de ensino-aprendizagem. Neste trabalho, iremos analisar fotografias do período da crise política de agosto de 1954, o qual culminou com o suicídio do presidente Getúlio Vargas. A intenção é fazer com que os alunos construam uma narrativa histórica por meio das fotografias do período. Assim, para Rüsen, a narrativa histórica está concentrada em três pontos que vêm definir como se dá essa narrativa: 1) Uma narrativa histórica está ligada ao âmbito da memória. Ela mobiliza a experiência do tempo passado, ao qual está gravada nos arquivos da memória, de modo que a experiência do tempo presente se torna compreensível e a expectativa do tempo futuro, possível. 2) Uma narrativa histórica organiza a unidade interna destas três dimensões do tempo por meio de um conceito de continuidade. Esse conceito ajusta a experiência do passado se tornar relevante para a vida presente e influenciar a configuração do futuro. 3) Uma narrativa histórica serve para estabelecer a identidade de seus autores e ouvintes. Essa função determina se um conceito de continuidade deve ser capaz de convencer os ouvintes de suas próprias permanências e estabilidade na mudança temporal de seu mundo e de si mesmo8. Assim, a narrativa histórica vem apontar uma narrativa prática na vida do indivíduo, fazendo com que o aluno se situe no tempo, compreendendo-se como sujeito ativo do processo de ensino-aprendizagem. Partindo desse pressuposto, iremos analisar as fotografias de alguns dos motins que ocorreram em 1954, os quais culminaram na morte de Getúlio Vargas. Dessa forma, apresentaremos o conteúdo histórico por meio das fotografias, fazendo com que os educandos construam uma narrativa histórica. O Brasil, em 1953, passava por uma crise política muito forte, apresentando salários defasados para os trabalhadores. Diante dessa conjuntura, a população começou a pressionar o governo e os empresários por melhores condições salariais. Um dos exemplos foi a greve dos 300 mil, em São Paulo, formada por vários sindicatos. A greve chegou ao fim quando “as partes chegaram a um acordo e o comitê intersindical da greve, que reunia vários sindicatos, aceitou a oferta patronal de um reajuste médio de 32% nos salários e garantia para os trabalhadores presos”9. As greves foram uma marca registrada desse período e os principais jornais de oposição pressionavam o governo com críticas severas, ocasionando uma séria crise política. Diante dessa crise, Getúlio Vargas nomeou João Goulart para assumir a pasta do Ministério do Trabalho, tendo em vista que este era presidente do PTB e poderia restabelecer as alianças políticas para o PTB e ajudar a classe trabalhadora a lutar por seus direitos trabalhistas. O novo ministro transformou o Ministério do Trabalho e passou a atender os trabalhadores no Hotel Regente, a qualquer hora. O trabalho de Goulart no Ministério foi pautado por conversas com trabalhadores e empresários, dialogando sobre os seus problemas. “Com a saída de Goulart do Ministério, Hugo de Faria foi nomeado para sucedê-lo em caráter interino – e lá permaneceu até agosto de 1954”10. Com a crise política que o cenário nacional presenciava após a morte do general Rubens Vaz, “a oposição aumentou em ritmo e intensidade o imaginário da crise”11. A oposição atacava Vargas pelos meios de comunicação: na primeira página de seu jornal, Tribuna da Imprensa, com o título “O sangue de um inocente”, Carlos Lacerda lembrou a medalha de herói do Correio Aéreo Nacional e os quatro filhos do major manipulando sentimentalmente a imagem dos “órfãos de guerra”. Sem esperar as investigações policiais, Lacerda declarou: “Mas, perante Deus, acuso um só homem como responsável pelo crime. É o protetor dos ladrões. Esse homem é Getúlio Vargas” 12. Essa crise no cenário político nacional acabou por desencadear a data de maior comoção coletiva que o Brasil já presenciou: 24 de agosto de 1954, dia do suicídio de Getúlio Vargas, o presidente que a população brasileira mais amou. A morte de Getúlio Vargas parou o país. No Rio de Janeiro, as pessoas foram às ruas para se manifestar contra o(s) suposto(s) culpado(s): na Cinelândia [...] um orador, no comício improvisado, acusou a Rádio Globo de continuar transmitindo música popular, desconhecendo a morte de Vargas, e outras emissoras que, em sinal de pesar, tocavam músicas clássicas. Armados de sarrafos e cacetes grupos de manifestantes tentaram tomar de assalto a Rádio na Avenida Rio Branco 13. Diante dessas manifestações, percebemos o quanto a população brasileira sofreu e ficou indignada com a morte de Getúlio Vargas, fazendo com que milhares de pessoas fossem às ruas do Rio de Janeiro. O velório de Vargas no Palácio do Catete foi marcado por momentos de muitos choros e desmaios da população de diferentes classes sociais, estando o Brasil de luto com a morte do presidente que tanto amou. Estima-se que “cerca de um milhão de pessoas tentaram ver o corpo do presidente, mas apenas entre 67 mil e 100 mil delas de fato conseguiram” 14. O dia 24 de agosto de 1954 aconteceu assim, com a população nas ruas dividida: uma parte estava nas manifestações contra a oposição varguista, nas quais os principais nomes citados pelos manifestantes correspondiam ao de Carlos Lacerda e ao do partido político da UDN; a outra parte estava concentrada no velório, momento de maior comoção coletiva que o país vivenciou, conforme mostra o seguinte trecho: “um homem de origem humilde, de joelhos, agarrou-se em uma das extremidades do ataúde e gritou: ‘Dr. Getúlio, Dr. Getúlio, me leva com o senhor’!... Um deficiente físico, ansioso para chegar perto de Vargas, foi carregado pela multidão até ele” 15 . Essas eram as cenas que se presenciavam no Palácio do Catete. Na manhã de 25 de agosto, o cortejo saiu do Palácio do Catete em direção ao Aeroporto Santos Dumont. O autor Jorge Ferreira apontou como ocorreu esse cortejo: “O caixão, ao ser colocado sobre uma carreta, foi cercado pela multidão e logo um mar de lenços brancos sinalizavam um misto de despedida e de homenagem”16. Essa era mais uma prova de amor que a sociedade brasileira demonstrava ao presidente que criara as leis trabalhistas, expressando assim o quanto o amavam. Conclusão A fotografia torna-se então uma fonte documental metodológica intermediadora do processo de ensino-aprendizagem, fazendo com que os educandos compreendam o período histórico por meio de sua utilização. Partindo desse pressuposto, o professor/historiador precisa problematizar as imagens fotográficas com as quais está trabalhando, explicando-as como um documento/representação fruto do seu tempo, como aponta a autora Circe Bittencourt: “a fotografia registra fatos, acontecimentos, situações vividas em um tempo presente que logo se torna passado [...]. É preciso entender que a fotografia é uma representação do real”17. Dessa forma, ao trabalharmos com os alunos um período histórico por meio da fotografia, precisamos compreender que as fotografias utilizadas na sala de aula são documentos históricos frutos do seu tempo, ou seja, são representações do fato histórico. Osvaldo Aranha, João Goulart e outros no enterro de Getúlio Vargas. 25 de agosto de 1954. Preto e branco, tamanho 18x24. 18 Ao trabalharmos o período da crise que culminou na morte de Getúlio Vargas por meio das fotografias, percebemos o quanto os alunos ficaram surpresos com todos esses motins dos quais a população brasileira participou diretamente, entrando esse fato histórico para a História do país como o momento de maior comoção coletiva brasileira. Diante disso, a autora Ana Maria Maud aponta que a fotografia pode registrar momentos de “uma história múltipla, constituída por grandes e pequenos eventos, por personalidades mundiais e por gente anônima, por lugares distantes e exóticos e pela intimidade doméstica, pelas sensibilidades coletivas e pelas ideologias oficiais19”. Dessa forma, os alunos perceberam que pessoas anônimas entraram para a História do país. Com base nisso, eles puderam construir uma narrativa histórica por meio das fotografias utilizadas em sala de aula, tendo em vista que se situaram no tempo e espaço em que o período histórico estava sendo trabalhado em sala de aula. Portanto, a fotografia vem a ser uma fonte metodológica para o professor/historiador, a qual auxilia no processo de ensino-aprendizagem, fazendo com que o aluno seja um sujeito ativo desse processo, o que contribui para sua formação. Licenciando em História pelo Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e bolsista de iniciação à docência – PIBID-CAPES –, coordenado pela professora Dra. Jailma Maria de Lima. E – mail: [email protected] 1 MAUAD, Ana M. Através da Imagem: Fotografia História Interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 3, 1996. 2 KOSSOY, Boris. A “Revolução Documental” e a Nova Posição da Fotografia. In: KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 32. 3 KOSSOY, Boris. A Fotografia, uma Fonte Histórica. In: KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 45. 4 RODRIGUES, José H. A Pesquisa Histórica no Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1978, p. 142 apud KOSSOY, Boris. A fotografia: documento representação. In: KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 30-31. 5 KOSSOY, Boris. A fotografia: documento representação. In: KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 31. 6 BAUER, Guilherme. Introcción al Estúdio de la História. 4. ed. Barcelona: Bosch, 1970. p. 224 apud KOSSOY, Boris. Procedência e Trajetória do Documento Fotográfico. In: KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 74. 7 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Geografia/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. p. 57. Nacionais: História, 8 RÜSEN, Jörn. Narrativa Histórica: fundamentos, tipos, razão. In: SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (Org.). Jörn Rüsen e o Ensino de História. Curitiba: Editora da UFRP, 2011. p. 97. 9 MOSÉIS, José A. Greve de massas e crise política (Estudos da greve dos 300 mil em São Paulo – 1953/54). São Paulo: Livraria Editorial Polis, 1978. p. 81-89 apud FERREIRA Jorge. O ministro que conversava: João Goulart no Ministério do Trabalho. In: FERREIRA, Jorge. O imaginário Trabalhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 100. 10 FERREIRA, Jorge. O ministro que conversava: João Goulart no Ministério do Trabalho. In: FERREIRA, Jorge. O imaginário Trabalhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 156. 11 FERREIRA, Jorge. O carnaval da tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto. In: FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 172. 12 TRIBUNA DA IMPRENSA, Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1954, p. 1 apud FERREIRA, Jorge. O carnaval da tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto. In: FERREIRA, Jorge. O imaginário Trabalhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 172. 13 FERREIRA, Jorge. O carnaval da tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto. In: FERREIRA, Jorge. O imaginário Trabalhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 179. 14 A Noite, Rio de Janeiro, p. 8; e Última Hora, Rio de Janeiro, 25 de agosto de 1954, edição extra, p. 2 apud FERREIRA, Jorge. O carnaval de tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto. In: FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 181 15 FERREIRA, Jorge. O carnaval da tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto. In: FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 182. 16 FERREIRA, Jorge. O carnaval da tristeza: os motins urbanos de 24 de agosto. In: FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 183. 17 BITTENCOURT, Circe. Fotografia e ensino de História. In: BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 366. 18 Osvaldo Aranha, João Goulart e outros no enterro de Getúlio Vargas. 25 de agosto de 1954 (data certa) preto e branco, tamanho 18x24. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx>. Acesso em: 03 out. 20113. 19 MAUAD, Ana M. Através da Imagem: Fotografia História Interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 5, 1996. O Rio de Janeiro de Henrique Fleiuss: Representação da cidade nos primeiros anos da Semana Ilustrada Isabel Moura Mota O surgimento da Semana Ilustrada No final do ano de 1860, um novo periódico foi apresentado à população carioca: a Semana Ilustrada, lançada pelo artista de origem prussiana Henrique Fleiuss. Acompanhado do irmão, Carlos Fleiuss, litógrafo, e do amigo Carlos Linde, pintor e também artista da pedra, Henrique veio para o Brasil em 1858, aos 35 anos. De acordo com seu filho, Max Fleiuss, a viagem se configurou: por sugestão do célebre sábio naturalista Carlos Frederico Philippe von Martius, autor da Flora Brasiliensis, membro da Academia de Munique e da missão artístico-científica de 1817, que muito o estimava e lhe apreciava a aptidão artística.1 Depois de quase um ano em províncias do Norte brasileiro fixando costumes e paisagens em aquarela, Henrique desembarcou finalmente no Rio de Janeiro, em 15 de julho de 1859, com uma carta de recomendação redigida pelo seu antigo mestre, Martius, endereçada ao imperador D. Pedro II. Estabelecendo-se no Rio de Janeiro, ele abriu no início do ano de 1860, junto ao irmão e Carlos Linde, uma oficina litográfica, o Instituto Artístico. Em dezembro do mesmo ano, iniciou a publicação do semanário Semana Ilustrada, criando o formato que seria depois copiado largamente na imprensa carioca.2 A revista foi bem recebida no Rio de Janeiro, circulando por dezesseis anos, pelo menos dez dos quais praticamente sem concorrência3. A segunda metade do século XIX é marcada por intensa produção de revistas ilustradas com teor humorístico, cujas ilustrações eram em sua maioria litogravuras4. Contudo, a maioria das revistas não sobrevivia até o décimo número. A Semana Ilustrada se destaca em relação às demais por ser um “marco divisor que representa uma mudança qualitativa no cenário brasileiro de revistas ilustradas”5 e a primeira a ter tiragem regular no Brasil6. A folha continha quatro páginas de texto e quatro de ilustrações, contando com colaborações ilustres na parte textual, como a de Machado de Assis – “o mais assíduo autor a usar o pseudônimo de Dr. Semana, personagem-símbolo do periódico, ao lado de seu escravo, o Moleque.”7 Fleiuss é inteiramente responsável pelas ilustrações dos dez primeiros números8, passando depois a publicar desenhos de outros artistas, como Flumen Junius, Pinheiro Guimarães, H. Aranha e Aristides Seelinger. A Semana Ilustrada tratava principalmente dos assuntos do cotidiano da vida na cidade, comentando com graça a ineficiência de determinados serviços públicos, as modas extravagantes na toillete feminina, a conduta interesseira dos arrivistas, o comprometimento político irregular dos deputados, além de publicar retratos honrosos de pessoas vistas com apreço pelo periódico e de criar inúmeros personagens urbanos. Uma das raras folhas do período favoráveis ao monarca D. Pedro II9, sua linha editorial era patriótica e suas caricaturas e charges cultivavam uma função cívica e pedagógica10, rindo-se dos maus hábitos com a intenção de corrigi-los. Não à toa, a Semana Ilustrada trazia no cabeçalho a divisa “ridendo castigat mores”11, traduzido do latim para “rindo, corrigem-se os costumes”12. As gravuras apresentavam um viés crítico, mas num tom comedido, produzindo uma “sátira bem comportada”13 e o “riso bom”14, que não desejava denegrir a imagem de nenhuma figura pública. Com este tipo de humor, a Semana construiu em suas páginas uma galeria de costumes urbanos, galeria esta que nos permite ver um peculiar modo de representação da cidade habitada por uma sociedade de contradições marcantes, onde o regime escravocrata convivia com o desejo de progresso. A identidade visual da Semana Ilustrada é sintetizada no cabeçalho presente em todas as suas capas, do início ao fim da publicação. Nele, um homem similar ao Dr. Semana, estranhamente paramentada, com traje rebuscado e chapéu tirolês com penas, passa figuras em uma lanterna mágica. O aparato ótico é a perfeita metáfora para aquilo que pareceu ser as intenções de Fleiuss: passar em revista as práticas políticas, sociais e culturais da cidade através de uma lente humorística de viés moralizante. Além do cabeçalho fixo, havia frequentemente a mesma estrutura: o personagem do Dr. Semana em diálogo com seu ajudante, Moleque, o outro personagem porta-voz da revista. Os dois comentavam os fatos corriqueiros do dia-a-dia, os personagens que se sobressaíam na vida política e dialogavam sobre acontecimentos que mexiam com o imaginário da população. O Dr. Semana funcionava como alter ego de Henrique Fleiuss, caricatura do homem erudito, enquanto o Moleque era seu contraponto mais realista, possivelmente inspirado no personagem Pedro, escravo doméstico peralta de O Demônio Familiar, de José de Alencar. A dupla de personagens, segundo Laura Nery, pode ser entendida “como um par de compères, os apresentadores das revistas de ano, tão populares nos palcos oitocentistas. A própria composição gráfica da Semana Ilustrada evoca uma boca de cena, com cortinas que se abrem ou se fecham, convidando o leitor ao grande teatro que é a cidade.”15 A ideia de cidade de Henrique Fleiuss Fleiuss ambicionava a erudição do homem ilustrado. Estudou Belas Artes em Colônia, sua cidade natal, tendo completado o aprofundamento no campo das artes (desenho, gravura e pintura) em Dusseldorf, onde também estudou literatura e ciências naturais. Em seguida foi para Munique completar os estudos de ciências naturais e iniciar os de música. Segundo relato de Max Fleiuss16, Henrique teria viajado por quase toda Europa, demorando-se principalmente na Holanda. O interesse de Fleiuss pelas artes e pelas ciências naturais na sua formação influenciou o seu entendimento do ofício de caricaturista que veio a exercer no Brasil. O cientificismo do século XIX e a obsessão pela descrição e classificação impregnou o repertório de possibilidades da representação para artistas, literatos e cientistas. O artista não cria sua gravura do nada, mas baseia-se na sua schemata17, no seu repertório criado pela percepção e interpretação das coisas. Para entender como Fleiuss representava o Rio de Janeiro é importante pensar em como ele enxergava o mundo a partir de uma apropriação de esquemas gráfico-visuais, pregressos ou contemporâneos a ele, porque é o que o orientou para tecer seu discurso visual sobre a cidade. O estudado e viajado alemão herdou a ideia de cidade como virtude presente no pensamento dos “filhos do Iluminismo”18, exemplificados nas figuras influentes de Voltaire, Adam Smith e Johann Gottlieb Fichte. Para eles, a cidade moderna do século XIX era o centro produtivo das mais importantes atividades humanas: a indústria e a cultura. Somente na cidade poderia existir a dinâmica da civilização. O contraste urbano entre ricos e pobres era encarado de forma positiva porque seria a base do progresso; enquanto o rico geraria trabalho com uma grande demanda de produtos, o pobre seria estimulado a participar da indústria e encontraria na mobilidade social uma possibilidade de ascender19. No primeiro ano da revista, em 1861, Fleiuss olhava para a cidade do Rio de Janeiro sob a perspectiva de um estrangeiro. O artista caminha pela cidade se admirando de suas peculiaridades e vicissitudes. Como aponta de Certeau, em A Invenção do Cotidiano, “caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio.”20 Mas muito rapidamente, o turista que não suportava o mal cheiro das estreitas vielas e que via com distância os problemas da administração pública vai se integrando à cidade, adquirindo a visão do habitante e tomando um discurso em nome e em prol dos cidadãos livres do Rio de Janeiro. A apreciação mais humorada avança, e Fleiuss parece aclimatar-se de tal maneira, que passa a ocupar o papel de porta-voz das reivindicações dos habitantes da cidade, tornando uma espécie de fiscal da cena pública.21 Segundo de Certeau, a Cidade-conceito é “lugar de transformações e apropriações, objeto de intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos: ela é ao mesmo tempo a maquinaria e o herói da modernidade.”22 Fleiuss, que enxergava o espaço urbano como lugar de civilidade, não viveu a experiência da cidade moderna no sentido que Georg Simmel lhe conferiu23, de grandes cidades como lugares da economia monetária, das multidões e da intensificação da vida nervosa, onde clientes nunca se encontravam com os detentores dos meios de produção. O Rio de Janeiro de Henrique Fleiuss é ainda o de uma cultura urbana com redes de sociabilidades menos complexas, que permitem o encontro do leitor com o dono do periódico, por exemplo, conforme Fleiuss algumas vezes demonstra em charges. O absurdo contraste da cidade que aspira ao progresso e sustenta uma base social calcada na relação de senhor e escravo, grotescamente representada pelo Dr. Semana e o Moleque nas capas da Semana Ilustrada, indicam a ambivalência de uma cidade de extremos em que a modernidade da vida cosmopolita é somente um horizonte longínquo. O cotidiano do Rio de Janeiro A cidade sem a presença da figura humana não interessava a Fleiuss e sua equipe de gravadores. O espaço urbano é o lugar privilegiado da experiência do cotidiano, uma espécie de espaço cênico onde o que importa é a interação entre sujeito e paisagem. A lanterna mágica de Fleiuss mostrava de forma flagrante a demora do correio, tendo sua agilidade frequentemente comparada a passos de cágado, os problemas de calçamento que destruíam as rodas dos carros puxados por animais, além dos enormes transtornos gerados pelas chuvas. As pomposas saias-balão das senhoras e o flerte nas diversões promovidas nos salões também eram destacados nas charges de forma recorrente. O dia-a-dia da cidade, a vida política, os serviços públicos, as diversões, os modos de trajar-se e de portar-se, a cidade de Fleiuss é constituída por pessoas e instituições. O início da segunda metade do século XIX era de relativa prosperidade no Rio de Janeiro. Desde a abolição do tráfico negreiro em 1850, a cidade passou a ganhar investimentos públicos visando o melhoramento urbano. Novas edificações se ergueram, ruas foram alargadas. “O modelo era a Paris burguesa e neoclássica, mas a realidade local oscilava entre bairros elegantes e as ruas do trabalho escravo.”24 A sede da corte consolidava-se assim como um centro produtivo difusor de costumes e referencial de hábitos culturais, que se espraiavam pelo Brasil. Na visão transmitida pela Semana Ilustrada o Rio de Janeiro era muito atrasado em relação à Europa, mas na perspectiva de desenvolvimento interno, a cidade estava num período de melhoria de qualidade de vida no que tangia à elite econômica, na qual Fleiuss se encaixava. A corte ganhou, ainda outras melhorias: arborização (a partir de 1820), calçamento com paralelepípedo (1853), iluminação a gás (1854), rede de esgoto (1862), abastecimento domiciliar de água (1874) e bondes puxados a burro (1859). Era o tempo do bonde a tração animal, que substituía, com vantagens, as antigas gôndolas, cadeirinhas e liteiras levadas por escravos.25 Nada melhor para explicar a visão que o artista alemão tinha da cidade do que o discurso gráfico-visual produzido pela revista, que apresentou em duas séries especiais, em 1862 e em 1863, aspectos da cidade. O próprio Fleiuss assina a série de 1862, intitulada “Passeio pela cidade,” onde o Dr. Semana e o Moleque travam diálogo acerca de algum espaço público da urbe. As impressões dos personagens tinham caráter levemente crítico e eram de cunho sensível (o cheiro, o barulho, o lixo visível em frente à Câmera Municipal, os movimentos atrapalhados pelo capim excessivo defronte do edifício da Academia Imperial de Belas Artes, e assim por diante). Através dos passeios da dupla de protagonistas da Semana, acompanhamos o Rio de Janeiro do século XIX na sua vivência cotidiana, através do rastro das sensibilidades de Fleiuss impresso nas charges. Na série “Tipos do Rio de Janeiro”, de 1863, a lógica da apresentação visual é diferente do padrão das capas do semanário. Em uma mesma página interna do periódico reunia-se texto corrido, descrevendo determinado personagem, e xilogravura26, representando as peculiaridades do tipo social. Esta integração entre linguagem tipográfica e gravura é considerada complexa para a época, o que demonstra a vontade de inovação dos produtores. As imagens nunca eram assinadas, mas servem como modelos para perceber o entendimento dos tipos urbanos da cidade por parte de Fleiuss, editor da revista. Nesta série, o interesse era classificar tipos da cidade dentro da chave humorística. Assim, foram registrados, por exemplo, “o mendigo”, encontrado nos degraus das igrejas, “o guarda fiscal”, e sua cara de poucos amigos, e “a lavadeira do Campo de Santana”, categoria que, segundo a Semana, um país civilizado jamais consentira em existir em praça pública, devido à falta de modos e escassez de panos a cobrir-lhes o corpo27. Curioso observar que até mesmo animais figuram entre os tipos do Rio de Janeiro, como “o burro de cangalhas”, cujo principal inimigo é o homem. Fig. 1 – Na quinta charge da série “Passeio pela cidade”, Dr. Semana e o Moleque passam pela alfândega. Moleque compara a “balbúrdia” do lugar a “um cortiço de abelhas onde o zumbido é maior que o trabalho”. (Semana Ilustrada, nº 77, 1º de junho de 1862) Fig. 2 – Na série “Tipos do Rio de Janeiro”, personagens urbanos foram catalogados, construindo assim rica galeria de práticas culturais. (Semana Ilustrada, nº 121, 5 de abril de 1863) Para Margaret Cohen, a imprensa de massa reside no espectro dos gêneros cotidianos. Ela reflete sobre a literatura panorâmica de Walter Benjamin levando em consideração a justaposição das descrições da vida cotidiana e de litogravuras que ilustram as descrições. Cabe lembrar que a autora situa suas considerações diante da ideia de que a Monarquia de Julho (1830-1848) “vivenciou a promoção do cotidiano a objeto merecedor de atenção representacional.”28 Segundo ela, os textos panorâmicos, gênero de curta duração voltados para o dia-a-dia, “mantinham estreita relação com as fisiologias de baixo custo”29, que eram panfletos impressos com descrições de tipos sociais, instituições e costumes contemporâneos. Fleiuss representa a cidade do Rio de Janeiro a partir de sua aparência, utilizando referências materiais, promovendo uma dinâmica de leitura similar ao texto panorâmico. Este tipo de texto “aborda os fenômenos da vida diária fazendo uso dos característicos mecanismos panópticos de descrição e classificação”, voltando sua atenção para “detalhes exteriores, materiais, sobretudo visíveis”30. Através dos recursos do texto panorâmico associado à charge, Fleiuss inventariou a materialidade sensorial produzida pela cidade do Rio de Janeiro no século XIX. A partir de 1865, a Semana Ilustrada passa a dedicar-se cada vez mais à cobertura da Guerra do Paraguai, que desenrolou-se entre dezembro de 1864 e março de 1870. Este foi o primeiro conflito armado a ser fotografado no Brasil, o que contribuiu para revista investir num viés mais realista de composição litográfica, uma vez que muitas de suas imagens da guerra eram baseadas em registros fotográficos – uma prática pioneira na imprensa brasileira, conforme aponta Joaquim Marçal Ferreira de Andrade31. Nessa época, Fleiuss foi atravessado por inflamado ímpeto nacionalista, mostrando a heroica atitude do exército brasileiro e exaltando o imperador32. As charges e caricaturas se voltaram em grande parte para a vida dos soldados no front, os bravos e feridos nas batalhas e as notícias da guerra que ecoavam nas ruas do Rio, responsáveis pela produção de novas práticas sociais. Em certo sentido, Fleiuss deixa de lado a ideia de cidade para construir uma ideia de nação. No entanto, o cotidiano do Rio de Janeiro com seus tipos urbanos, suas atividades culturais e sua trocas sociais no espaço urbano nunca deixam de merecer atenção do “mais carioca dos renanos”33. 1 Anexo à ata da sessão de 8 de setembro de 1923. Revista do IHGB, t. 94 v. 148 (1923). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1927. 2 De formato considerado pequeno, o periódico tinha oito páginas, quatro de texto e quatro de ilustrações. A impressão era feita em uma grande folha, de um lado usava-se o processo litográfico e do outro, o tipográfico. Depois de dobrada em quatro vezes e refilada, “obtinha-se um caderno de tamanho in-quatro (nesse caso, 28x22cm), em que se sucediam páginas de texto (1, 4, 5, 8) e ilustração (2, 3, 6, 7).” CARDOSO, Rafael. Projeto gráfico e e meio editorial nas revistas ilustradas do Segundo Reinado. In: KNAUSS, Paulo et al. (org.). Revistas Ilustradas: modos de ler e ver o Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011, p.27. 3 NERY, Laura. Henrique Fleiuss e sua Semana Ilustrada. Em: http://www.icgermanico.com.br/img/index/PDF/Educacao_em_linha_15.pdf. Acesso em: 30 de setembro de 2013. 4 FONSECA, Letícia Pedruzzi. Henrique Fleiuss e sua produção gráfica brasileira no século XIX. In: 10 P&D Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, 2012, São Luis, Maranhão. Anais do X Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. São Luís: Edufma, 2012. 5 CARDOSO, Rafael. Projeto gráfico e meio editorial nas revistas ilustradas do Segundo Reinado. In: KNAUSS, Paulo et al. (org.). Op. cit., 2011, p.27. 6 KNAUSS, Paulo. Introdução. In: KNAUSS, Paulo et al. (org.). Op. cit., 2011, p. 11. 7 Idem. 8 LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, vol. II, p.745. 9 MARTINS, Ana Luiza. Imprensa em tempos de império. In: História da Imprensa no Brasil. MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina de. São Paulo: Contexto, 2008, p.66. 10 Ver: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal . “Henrique Fleiuss: a função cívica e pedagógica da caricatura nas páginas da Semana Ilustrada”. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Maria Bastos P. das (org). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, v.1, p. 153-179. 11 Em seu primeiro editorial a Semana Ilustrada explica seu aparecimento sob essa expressiva divisa, que é a síntese da missão do periódico: “Na política, no jornalismo, nos costumes, nas instituições, nas estações públicas, no comércio, na indústria, nas ciências nas artes, nos teatros, nos bailes, nas modas, acharemos para a Semana Ilustrada assunto inexaurível, matéria inesgotável para empregar o lápis e a pena.” E acrescenta: “Expectadores ativos, mas imparciais, de todas as lides empenhadas por essas grandes turmas, aplaudiremos o bem que praticarem, e sem temor da polícia censuraremos o mal que fizerem. Censuraremos rindo, e conosco rirá o leitor, pois em todo esse mundo movediço que se enfeita ao espelho, e apregoa o seu valor extremo, há um lado vulnerável onde penetra o escalpelo da crítica, há uma parte fraca que convida ao riso”. Semana Illustrada, Ano 01, N º 01, Rio de Janeiro, 16/12/1860, pág. 02. 12 NERY, Laura. Os sentidos do humor: Henrique Fleiuss e as possibilidades de uma sátira bem comportada. In: KNAUSS, Paulo et al. (org.). Op. cit., 2011, p. 175. 13 Idem 14 SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Epoque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.112 15 NERY, Laura. Os sentidos do humor: Henrique Fleiuss e as possibilidades de uma sátira bem comportada. In: KNAUSS, Paulo et al. (org.). Op. cit., 2011, p. 186. 16 Anexo à ata da sessão de 8 de setembro de 1923. Revista do IHGB, t. 94 v. 148 (1923). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1927. 17 De acordo com Gombrich, as percepções de mundo do artista são orientadas por interpretações fundadas no que ele chama de schemata, estratégias de assimilação e recriação do mundo baseadas em formas anteriores de representação, que são modificadas na vontade de dar forma a uma imagem mental. “A ‘vontade de formar’ é mais a ‘vontade de conformar’, ou seja, a assimilação de qualquer forma nova pela schemata e pelos modelos que um artista aprendeu a manipular.” GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 65. 18 SHORKSE, Carl. The Idea of the City in European Thought: Voltaire to Spangler. In: Thinking with history: Explorations in the passage to modernism. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1998, p.38. 19 SHORKSE, op. cit. p. 39. 20 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 170. 21 NERY, Laura. Os sentidos do humor: Henrique Fleiuss e as possibilidades de uma sátira bem comportada. In: KNAUSS, Paulo et al. (org.). Op. cit., 2011, p. 177. 22 CERTEAU, Michel de. Op. cit., 2011, p. 161. 23 Cf. SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito”. Revista Mana, vol.11, n.2. Rio de Janeiro, 2005. 24 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p, 106. 25 Idem. 26 Cabe indicar o esforço pioneiro do alemão na tentativa de implementar o uso da técnica pouco difundida da xilografia na imprensa brasileira, criando uma escola de formação de mão-de-obra para tal em 1864.Ver ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil. A fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro, Editora Campus, Elsevier, Edições Biblioteca Nacional, 2004, p. 27 Karen Fernanda aprofunda-se, em sua dissertação de mestrado, na caracterização dos tipos negros presentes nesta série. Cf. SOUZA, Karen Fernanda Rodrigues de. “As cores do traço: paternalismo, raça e identidade nacional na Semana Ilustrada”. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. 28 COHEN, Margaret. A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos. In: O cinema e a invenção da vida moderna. CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). Tradução Regina Thompson. São Paulo:Cosac & Naify, 2004, p. 261. 29 Idem, p. 262. 30 Idem, p. 264. 31 Cf. ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. Op. cit., 2004. 32 À oficina artística de Fleiuss e sócios foi concedida a insígnia de Imperial em 1863, tornando-se Imperial Instituto Artístico. Rogéria Ipanema investigou o tema indicando a “dimensão da produção de bens simbólicos dentro do universo da cultura visual, com a particularidade de construir uma imprensa político-caricata, sob a proteção do imperador”. Cf. IPANEMA, Rogéria Moreira de. “A idade da pedra ilustrada; litografia, um monólito na imagem gráfica e no humor do jornalismo do século XIX no Rio de Janeiro”. Dissertação de mestrado defendida na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1995. 33 ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. A trajetória de Henrique Fleiuss, da Semana Ilustrada: subsédios para uma biografia. In: KNAUSS, Paulo et al. (org.). Op. cit., 2011, p. 65. PRODUÇÃO CULTURAL INDEPENDENTE: FORA DO EIXO E CONOMIA SOLIDÁRIA – RELAÇÃO DE AMBIGUIDADE E LUTA POR CONQUISTA DE HEGEMONIA Jefferson Estevão de Oliveira Resumo: Esse trabalho é uma pesquisa em andamento na qual no seu fim analisarei o Fora do Eixo sua conexão com a economia solidaria e sua luta por hegemonia. Mas no texto presente, pretendo apenas abordar as possibilidades que permitem que tal coletivo cultural nasça no Brasil e ganhe força nacionalmente. Palavras chaves: Fora do Eixo, Lei Rouanet, Propriedade Intelectual Abstract: This work is an ongoing research in which on its close I will analyze the Off-Axis, its connection to the solidarity economy, and its struggle for hegemony. But in this text, I wanted just to approach the possibilities that allow such cultural collective to be born in Brazil and gain strength nationally. Keywords: Off-Axis, Rouanet Law, Intellectual Property 1-OS PROCESSOS DE MUDANÇA DAS RELAÇÕES TECNOLÓGICAS E CULTURAIS NO MUNDO E NO BRASIL QUE PERMITEM A CRIAÇÃO DO FORA DO EIXO Analisar o Fora do Eixo é tentar compreender todo um novo processo vivido no mundo da cultura. As novas tecnologias, os novos olhares diante à propriedade intelectual, as formas de cooperação em rede para que trabalhos possam chegar a diversos pontos do país; relações coletivas, horizontalidade e críticas ao modelo industrial, em uma nova relação de sociedade com novas formas de produção. O Fora do Eixo alega ter presente tudo isso em sua ideologia e em suas políticas de atuação. O FdE, como é conhecido por siglas, está no meio de todo esse furacão e se criando dentro dele. Antes de entender a criação do Fora do Eixo é preciso avaliar o que permite que tal coletivo se forme e ganhe força dentro da produção cultural independente brasileira, e as idéias que fomentam e baseiam na criação desse coletivo. Com o advento das novas tecnologias, da internet e da nova agilidade na produção de informações, conhecimento somado à aceleração visceral da globalização, muitos dos monopólios do conhecimento e de meios de produção foram colocados em cheque e vem sendo muito mais pluralizados e colocados nas redes. Todas essas mudanças vindas com a revolução tecnológica abrem discussões para o próprio modelo do que é propriedade intelectual ou não. Para Pablo Ortellado doutor em filosofia, nossa sociedade passou pelos últimos dois séculos realizando debates sérios sobre propriedade privada, mas ainda não conseguiu construir e debater na totalidade a complexidade da propriedade intelectual que se difere em vários pontos da propriedade privada tradicional1·. Ortellado diz “em geral, a propriedade é justificada como uma garantia de uso e disposição do proprietário àquilo que lhe é de direito (por herança ou por trabalho)”. Essa é uma visão tradicional de propriedade liberal que Ortellado não defende e não necessariamente a real quando a discussão é propriedade, mas pode ser citada como exemplo para podermos analisar a diferença de propriedade comum e propriedade intelectual. Se olharmos por esse ponto tradicional de vista não conseguiríamos entender a propriedade intelectual e a importância da luta pela sua liberdade. Ortellado mostra como a relação com a propriedade intelectual é diferente “quando eu leio um poema, a coisa é diferente. Eu posso ler o poema ao mesmo tempo em que o ‘dono’ do poema e meu ato de ler não apenas não priva,como não atrapalha em nada a leitura dele”2. Diferente da lógica tradicional, onde ter uma propriedade em minha posse priva outros que possam usufruir a mesma já que a propriedade pertence à alguém ou um grupo e não ao usufruto coletivo. Isso nos faz entender que o poder de acesso ao conhecimento é visto como algo plural, livre e coletivo; e assim deveria ser. O acesso ao conhecimento livre democratiza algumas das relações sociais ou algum acesso ao conhecimento e produção assim, levando ao social novas relações coletivas não permitidas dentro da realidade capitalista É claro que o criador de tais produções intelectuais tem seus direitos em cima da obra que o mesmo criou. Porém é o artista, inventor, intelectual, produtor que tem esse direito, não as grandes empresas que tentam manter um monopólio explorando a produção e se apropriando dela e dos ônus da mesma. Ortellado deixa claro em seu texto “Com o direito exclusivo às suas criações, os autores e inventores podem explorar comercialmente as suas ideias e conseguir a justa recompensa pelo seu esforço e talento. A recompensa é o estímulo para que o criador produza ainda mais e a sociedade progrida em direção ao bem comum.” 3 O termo bem comum já coloca em debate a visão de uma propriedade fechada à mando de apenas um grupo ou uma pessoa. Quando tais direitos de se apropriar dessa produção intelectual são monopolizados por pequenos grupos, temos então um distanciamento desse bem comum, que as obras de arte, invenções, desenvolvimentos de softwares tem. Segundo Ortellado a propriedade intelectual, quando é protegida excessivamente, acaba por limitar o aprendizado coletivo e os avanços de melhorias de condições, sejam políticas, econômicas ou sociais.3 Um outro ponto para Ortellado, sempre levado à debate sobre propriedade intelectual, é a lógica de estímulo de criação e o interesse social, que estariam em disputa em uma balança. É claro que o criador de qualquer conhecimento merece o reconhecimento e todos os estímulos pelo seu trabalho, de modo a continuar sua pesquisa. O problema é que, dentro da lógica capitalista, esse estímulo é somente o estímulo material, o que, para muitos autores como Pablo Ortellado, pode ser discutido, “Mas será que o estímulo material é o único e o melhor estímulo que pode-se dar para o desenvolvimento do saber, da cultura e da tecnologia? Será que antes do advento das leis de propriedade intelectual as pessoas não eram estimuladas a escrever livros e canções e a inventar dispositivos tecnológicos?” 4 Fica muito claro que o estímulo material citado por Ortellado não é realmente a única maneira de valorizar o trabalho e a pesquisa do autor. Em tal ponto, pode-se perceber que Ortellado entende essa produção como processo. O artista, ou inventor de hoje consegue chegar a um resultado final, graças os avanços herdados de outros pesquisadores de outras gerações. Ou seja, a herança desse conhecimento foi coletiva. Poderia então a remuneração ser determinada e exclusiva? Ou a propriedade desse conhecimento ficar sob domínio de uma só pessoa? Eis um ponto de questionamento polêmico. Quem é necessariamente o detentor dos direitos de todas as produções? O artista ou o atravessador? O que fica claro é que nesse jogo de forças, o artista ou criador da obra é o principal merecedor de ter os direitos sobre sua produção intelectual3. Porém é contestado por Ortellado e colocado que esse artista deva entender que sua produção, a partir do momento de criação, é um bem coletivo e a exposição do mesmo trás um patrimônio público para coletividade 4 Para Ortellado, esse ponto sobre o modo de fazer essa recompensa, seja ela por via privada e material ou não, não é um ponto que terá respostas teóricas. Esse ponto será resolvido pelos movimentos sociais que em suas demandas já vêm tentando resolver e amenizar esse paradigma que é complexo por estar revestido de uma ideologia capitalista. “São os movimentos sociais que estão buscando alternativas concretas à propriedade intelectual que deverão oferecer as respostas – e, de fato, já estão a fazer” 5. Para Ortellado quando o processo de registro e de patentes começa acontecer, aflora também a violação das leis sobre essa propriedade ou patente. Essa violação, para Ortellado, pode ser referida em certos pontos como desobediência civil e em outros pontos, crime.6 Ortellado diz que essa desobediência acontece pelo não reconhecer a legitimidade dessas leis.7 “A desobediência civil, por sua vez, é uma violação pública das leis motivada por seu caráter ilegítimo. A desobediência civil se faz abertamente e ela não reconhece que a lei que está sendo infringida seja justa”.8 A defesa de uma cultura livre tem um papel fundamental na construção social, na democratização de conhecimento e no entendimento do coletivo, desconstruindo o entendimento de propriedade e posse que o sistema capitalista carrega consigo. Para Ortellado, com o crescimento do mercado cultural, as grandes empresas investem e aumentam a campanha contra violamentos aos direitos autorais. Essa campanha e a força usada pra manter esse monopólio de exploração faziam com que aquela desobediência civil que antes era apenas por ignorar as leis se torne mais consciente e criasse novos movimentos que se opunham contra à propriedade intelectual exclusiva 9. 1.1- POLITICA PUBLICA CULTURAL BRASILEIRA NOS ANOS 90: CENTRALIZAÇÃO ATRAVÉS DA LEI ROUANET Um outro ponto importante, que é essencial para criação das idéias do Fora do Eixo, além das plataformas livres e trabalhos em rede, é a política cultural adotada nos anos 90 pelo governo brasileiro. Após a retomada da democracia e o fim da ditadura militar, o Brasil abre sua economia e suas políticas para as influencias neoliberais. Essas políticas no campo cultural são posicionamentos de simpatia ou cooperação para grandes empresas ou, como citados acima, atravessadores. Quando o Brasil retorna para a democracia, o campo da cultura é reformulado. Com intuito de redemocratizar a produção cultural e valorizar a diversidade cultural brasileira, nasce a lei Rouanet. A Lei previa apoio para que a produção cultural no Brasil fosse abrangente, acarretando incentivo através de isenções ficais. A Lei trabalhou em sintonia com a política nacional adotada pelo governo, de visão neoliberal, com o Estado mínimo e grande apoio do poder público às iniciativas privadas. Porém a Lei não cumpre seu papel de redemocratizar a produção cultural e o acesso à ela. O que acontece no Brasil é a centralização de investimentos culturais no eixo Rio/São Paulo. Para Ana Márcia Andrade, Pós-Graduada em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos, essa postura adotada pelo governo brasileiro em gerir a Lei Rouanet fere totalmente o propósito principal para que a mesma foi criada. “Durante esses últimos dezoito anos de atuação da lei, num período de pensamentohegemônico neoliberal, quando o carro chefe dessa política foram as leis de incentivo fiscais, percebeu-se que o eixo Rio-SP era o mais beneficiado por seus recursos, com quase 70% de todo seu incentivo fiscal. Essa estatística feria os principais objetivos teóricos da lei: democratização da produção cultural e valorização da diversidade cultural brasileira” 10 Ana Marcia Andrade ressalta ainda que essa centralização de incentivos culturais somente no Rio de Janeiro e São Paulo é um fator importante para que o Fora do Eixo nasça com uma nova discussão de descentralizar essas políticas, que não valorizavam os novos artistas e mantinha seu recurso destinados à pequenos grupos e na mão de iniciativas privadas que não percebiam que havia produções culturais e artistas para além do sudeste e dos meios de comunicação de massa, “Nesse contexto surgiu o Circuito Fora do Eixo. A busca de uma produção cultural independente, à margem dos meios de comunicação de massa que deixam fora os novos atores culturais, bem como o reconhecimento da existência de uma cultura fora do eixo Rio-SP, deu forma, se não ao maior, mas a um dos maiores grupos culturais independentes do país.” 11 Para poder legitimar que a Lei Rouanet não cumpriu o seu papel de democratizar o acesso à cultura e sua produção, Ana Marcia Andrade coloca dados que o próprio Ministério da Cultura liberou em 2010. “Durante esses dezoito anos de vigência da LR, R$ 8 bilhões foram investidos em renúncia fiscal. Porém, dados contestam que a lei não cumpriu o seu papel de corrigir o retrato da exclusão cultural brasileira: “só 14% dos brasileiros vão ao cinema uma vez por mês, 92% nunca frequentaram museus, 93% nunca foram a exposições de arte, 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança, 92% dos municípios não têm cinema, teatro ou museu.” 11 (Grifos do autor) Um outro fator que também é ponto central de críticas à Lei Rouanet é que dos 8 milhões investidos em cultura por meio de renúncia fiscal: “mais de R$ 7 bilhões eram dinheiro do contribuinte. A cada R$ 10 investidos, R$ 9,50 são públicos e apenas R$ 0,50 é dinheiro do patrocinador privado. Aproximadamente R$ 1 bilhão provém da renúncia fiscal por ano. Desses recursos, 80% são captados por apenas uma das cinco regiões do país gerando a concentração em uma só região”. 12 (Grifos do autor) Ou seja, trata-se de uma lei onde as empresas tinham isenção fiscal à custa de dinheiro público. O Estado coloca-se em apoio total as grandes empresas atravessadoras; a cultura é mercantilizada, monopolizada e centralizada. Essa elitização da cultura se encaixa perfeitamente com a propriedade intelectual que nas mãos dos atravessadores é explorada,expropriada e monopolizada. Cada vez mais há o distanciamento da cultura de quem à faz; o povo. Todos esses processos são de extrema importância para que o Fora do Eixo nasça e comece suas ações no Brasil. A influencia dos trabalhos em rede,tecnologias, cultura livre, economia criativa. Tudo isso permeia o Fora do Eixo, somado à política centralizadora do governo brasileiro personificado em algumas leis, principalmente na Lei Rouanet. 2- MUDANÇA NA POLÍTICA PUBLICA CULTURAL NACIONAL E O FORA DO EIXO. Quando o Brasil retorna à democracia suas políticas econômicas mudam – como citamos acima – suas novas orientações são neoliberais e com uma visão mercadológica muito forte, com um Estado mínimo pouco responsável em cuidar e administrar a produção cultural brasileira. Isso se reflete diretamente na centralização da cultura, da exclusão de diversas formas de expressões culturais - que não se encontram dentro do eixo Rio de Janeiro/ São Paulo e não tem em si, dentro da lógica mercadológica potencial de venda Parte dessas políticas se alteram quando Lula assume o governo em 2003 e nomeia Gilberto Gil Ministro da Cultura. Nesse sentindo para podermos entender essa mudança, é preciso uma breve análise nas políticas culturais pré Lula. Com o governo de Fernando Henrique Cardoso, essa lógica mercadológica não desaparece no modus operandi de se administrar e pensar a cultura no Brasil. Porém, o governo FHC recria o Ministério da Cultura (MinC) - que tinha sido extinto no governo antecessor - com Francisco Weffort que para Barbalho “a visão de Estado mínimo acompanhada pela política de incentivo fiscal reforçam a submissão da cultura à lógica do mercado.”13 O dinheiro público entra na lógica de mercado junto com o artista, o captador de recurso, arte e a cultura; fortalecendo o marketing da própria empresa com dinheiro do Estado. Toda essa lógica de mercado gera uma insatisfação nos artistas brasileiros que, segundo Alexandre Barbalho, criticam bastante pois percebem que os projetos investidos pelas empresas são somente os quais darão visibilidade midiática ou sucesso com o público14, aumentando assim seu mercado consumidor. “O resultado é que os criadores passam cada vez mais a ter que adequar suas criações à lógica mercantil” 15. A lógica de mercado para Barbalho pauta a identidade cultural como mercadoria, aberta a investimentos do capital empresarial nacional e principalmente internacional, visto como um produto da economia, podendo ser vendido e estando dentro desse mercado.16 Tal lógica de administração cultural não abre brechas para que as diversas culturas e produções nacionais possam ser contempladas e valorizadas. Centraliza em somente um único eixo, acabando, ou melhor, moldando à lógica de venda qualquer produção artística e cultural brasileira, dando uma valorização ao mercado neoliberal aberto a grande influencia internacional. Ao chegarmos no governo Lula novas tentativas para administrar esse fazer da cultura no Brasil são arriscados, - mesmo que essa administração não tenha de certo modo fugido da lógica mercantilista de cultura ou de um governo de caráter neoliberal - porém dá passos para além da política centralizadora dos governos anteriores. Para Ana Maria Amorim pósgraduada em Mídia, Informação e Cultura ainda que o governo Lula tenha tentado arriscar um novo modo de administrar a cultura no Brasil com projetos como Cultura Viva, prêmios de cultura, Pontos de Cultura espalhados pelo Brasil, Vale Cultura e até tentado debater e modificar a Lei Rouanet – expoente direto da opção da cultura privatizadora – seus dois mandatos não rompem totalmente com a lógica mercadológica dos governos anteriores e muitos dos projetos feitos pelo o mesmo, estão engessados no congresso o que provavelmente será herdado por futuros governos17, como o atual governo Dilma. Alexandre Barbalho analisa que a atuação do Ministério da Cultura no primeiro governo Lula deixa notório a diferença de atuação para os governos citados anteriormente, pois o mesmo trabalha agora com uma “questão identitária” 18 que se pluraliza. Para Barbalho isso é notado na forma que os discursos do MinC mudam, usando no plural termos como política, identidade e cultura; políticas, identidades e culturas.19 Com projetos como os Pontos de Cultura, essa pluralização e tentativa de descentralização começa a ser sentida. Barbalho ainda ressalta que essa diversidade não está ligada e nem se reduz as diversas ofertas “em um mercado cultural globalizado”.20 Fica claro para Barbalho que a preocupação na administração do MinC com Gilberto Gil é estar revelando os diversos brasis que tem dentro de uma nação, valorizar as diferenças, o plural. “A preocupação da gestão Gilberto Gil está em revelar os brasis, trabalhar com as múltiplas manifestações culturais, em suas variadas matrizes étnicas, religiosas, de gênero, regionais etc.” 21 Essas políticas inclusivas não são somente restringidas Educação entre outros.22 Entender essas diversas culturas dentro do mesmo Brasil, é estar entendendo que a cultura não é monolítica e representada da mesma maneira em todos os lugares – ainda mais se tratando de um país do tamanho continental do Brasil e de suas diversas etnias. Ao entender os processos que a administração cultural no Brasil passou, suas diferenças e contradições; e principalmente a tentativa de descentralização do governo Lula, é possível entender porque o Fora do Eixo começa a ganhar força com seu discurso descentralizador e defensor das múltiplas narrativas. Há então agora um novo contexto a ser discutido que são as ações do Fora do Eixo, que tenta descentralizar essa cultura do eixo Rio e São Paulo, e de certo modo ganha um protagonismo enorme dentro do campo político cultural no Brasil.ao MinC mas também são adotas por vários outros setores do governo como: Ministério do Esporte, no Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Ministério da Educação entre outros23. Ao entender os processos que a administração cultural no Brasil sofreu suas diferenças e contradições; e principalmente a tentativa de descentralização cultural do governo Lula, é possível entender porque o Fora do Eixo começa a ganhar força com seu discurso descentralizador e defensor das múltiplas narrativas. Há então agora um novo contexto a ser discutido que é as ações do Fora do Eixo, que tenta descentralizar essa cultura do eixo Rio e São Paulo, e de certo modo ganha um protagonismo enorme dentro do campo político cultural no Brasil. Graduando no curso de licenciatura em história. Centro Universitário Geraldo Di Biase. Orientador: Doutor João Braga Areas. [email protected] 1 ORTELLADO, Pablo. Por que somos contra a propriedade intelectual ? <paje.fe.usp.br/~mbarbosa/cursopos/artpablo.pdf> ( acessado em 09/05/2013 ) 2 ORTELLADO, Pablo. Por que somos contra a propriedade intelectual ? <paje.fe.usp.br/~mbarbosa/cursopos/artpablo.pdf> ( acessado em 09/05/2013 ) 3 ORTELLADO, Pablo. Por que somos contra a propriedade intelectual ? <paje.fe.usp.br/~mbarbosa/cursopos/artpablo.pdf> ( acessado em 09/05/2013 ) 4 Entender que a partir do momento dessa produção de conhecimento, ela se torna coletiva é exatamente ser contra uma propriedade intelectual; pois se entende que essa propriedade é coletiva. Pode e deve ser acessada por todos. 5 ORTELLADO, Pablo. Por que somos contra a propriedade intelectual ? <paje.fe.usp.br/~mbarbosa/cursopos/artpablo.pdf> ( acessado em 09/05/2013 ) 6 ORTELLADO, Pablo. Por que somos contra a propriedade intelectual ? <paje.fe.usp.br/~mbarbosa/cursopos/artpablo.pdf> ( acessado em 09/05/2013 ) 7 ORTELLADO, Pablo. Por que somos contra a propriedade intelectual ? <paje.fe.usp.br/~mbarbosa/cursopos/artpablo.pdf> ( acessado em 09/05/2013 ) 8 Essa desobediência civil para Ortellado é exatamente pelo reconhecimento civil da legitimidade dessa lei. Por isso se explica os grandes movimentos na internet de compartilhamento de musicas sem medo algum de possíveis represálias. Essa lei não é reconhecida, logo, não é respeitada. Desobediência civil. 9 ORTELLADO, Pablo. Por que somos contra a propriedade intelectual ? <paje.fe.usp.br/~mbarbosa/cursopos/artpablo.pdf> ( acessado em 09/05/2013 ) 10 ANDRADE, Ana Marcia. O Eixo fora do eixo e a política cultural no Brasil. http://www.usp.br/celacc/ojs/index.php/blacc/article/view/411. (acessado em 10/06/2013) 11 Ministério da Cultura. Manual da Nova Lei Rouanet. APOUD. ANDRADE, Ana Marcia. O Eixo fora do eixo e a política cultural no Brasil. http://www.usp.br/celacc/ojs/index.php/blacc/article/view/411. (acessado em 10/06/2013) 12 Ministério da Cultura. Manual da Nova Lei Rouanet. APOUD. ANDRADE, Ana Marcia. O Eixo fora do eixo e a política cultural no Brasil. http://www.usp.br/celacc/ojs/index.php/blacc/article/view/411. (acessado em 10/06/2013) 13 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 14 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 15 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 16 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 17 CORREIA, Ana Maria Amorim. A cultura privatizadora – Políticas de financiamento no Brasil neoliberal: O caso da Lei Rouanet. http://www.usp.br/celacc/ojs/index.php/blacc/article/view/28 acessado 11/06/2013 18 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 19 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 20 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 21 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 22 ARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 23 BARBALHO,Alexandre. Políticas culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf acessado em 18/09/2013 A imagem do gaúcho na pintura de Pedro Weingärtner, Cesáreo Bernaldo de Quirós e Pedro Figari: problemáticas de pesquisa Luciana da Costa de Oliveira* Resumo O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre a elaboração da imagem do gaúcho na pintura brasileira, argentina e uruguaia a partir das obras de Pedro Weingärtner, Cesáreo Bernaldo de Quirós e Pedro Figari. Pretende-se, com isso, esboçar a linha metodológica de análise bem como a problemática de pesquisa, levando em consideração tanto as fontes quanto os entornos que cercaram os artistas e suas produções. Palavras-chave: gaúcho, pintura, campo da arte. Abstract This paper aims to reflect on the development of the gaúcho’s image in paintings from Brazil, Argentina and Uruguay trough the works of Pedro Weingärtner, Cesáreo Bernaldo de Quirós and Pedro Figari. It is intended, therefore, to outline the methodological line of analysis as well as the issue of research, taking into account both the sources and the environs surrounding the artists and their productions. Keywords: gaucho, painting, 1. Considerações iniciais Ao se propor um estudo que tenha como foco de análise a figura do gaúcho, muitas questões parecem delinear-se ao longo de leituras e pesquisas. Este tipo social1, considerado “(...) o habitante da zona da Campanha que se dedica à criação de gado, [e que vive] em terras tanto da Argentina, quanto do Uruguai e do Brasil”2 tem importante participação não apenas no desenvolvimento econômico das três regiões, como serviu, também, de elemento histórico para a construção da identidade cultural argentina, uruguaia e sul-rio-grandense. Tema de obras literárias, de estudos de intelectuais e, mais particularmente, de trabalhos de pintores e escultores, parece certo afirmar que, de alguma forma, esta figura esteve – e ainda está – fortemente atrelada ao imaginário platino e brasileiro. Porém, apesar dessa permanência e das constantes retomadas de tal temática, cada região trabalhou, analisou e produziu, em momentos particulares, diferentes visões acerca desse elemento típico do espaço da Campanha. Nesse sentido, tendo essas questões em vista, o presente estudo objetiva apresentar as problematizações elaboradas acerca de tal temática de pesquisa no campo da arte. Para tanto, tem-se como objeto de análise as pinturas elaboradas por Pedro Weingärtner, Cesáreo Bernaldo de Quirós e Pedro Figari. Apesar de aproximarem-se pelo tema, ambos os artistas apresentaram o tipo social da Campanha de formas diferenciadas, tanto no que se refere a sua representatividade social e cultural quanto no que tange às questões mais específicas da elaboração pictórica e plástica de suas obras. 2. Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner: problemática de pesquisa. Ao se propor uma pesquisa que tenha como objeto de estudo a imagem do gaúcho na pintura de Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner, é de fundamental importância apresentar, inicialmente, as obras que compõe do corpus documental da análise. Por serem artistas que não centraram sua produção apenas nessa temática, elaborou-se uma seleção e categorização desses trabalhos. Assim, as obras que são contempladas e que, do vasto trabalho realizado pelos três pintores, apresentam o gaúcho e suas vivências como tema predominante, são: - Cesáreo Bernaldo de Quirós: La doma (1925), El patroncito (1925), Los jefes (1925), Don Juan de Sandoval (1926), Don Anacleto (1926), El carnicero (1926), Los degoladores (1926), El pialador (1927), Nocturno (1932), Las lloronas (s.d.), El embrujador (s.d.). - Pedro Figari: Hombre de campo, Paisano, El borracho, El amo, El desafio, Criollos, Codicia, Duelo Criollo, Duelo Criollo II, Jugando al truco, Al yugo.3 - Pedro Weingärtner: Remorso (1902), Peões laçando o gado (1908), Gaúchos chimarreando (1911), A visita do capataz (1914), Barra do Ribeiro (1914), Pousada de Carreteiros (1914), Pousada de Carreteiros II (1916), Pousada de Carreteiros III (1918), Gaúcho chimarreando (1925). Analisar não só a trajetória desses artistas, mas igualmente a particularidade de suas produções e contextos, proporcionam elementos importantes para a compreensão não só da retomada dos temas alusivos ao gaúcho na pintura, mas também as questões que os consagraram no campo da arte argentina, uruguaia e brasileira. Nesse sentido, a problemática que fundamenta a pesquisa está centrada, pois, na percepção da importância do trabalho desses pintores no período que compreende os anos de 1900 a 1940 e, ainda, na análise dos elementos que os aproximam e os diferenciam no que tange à construção da imagem do gaúcho. Ao se lançar esses questionamentos, algumas hipóteses parecem possíveis de serem colocadas. A retomada no tema do gaúcho, no período delimitado, foi de grande importância para o estabelecimento de uma referência histórica e cultural tanto para a Argentina, quanto para o Uruguai e o Brasil. Os discursos nacionalistas que nesse momento começam a tomar forma buscaram, na figura do tipo social do homem da campanha, o seu mais importante elemento congregador. Na Argentina, por exemplo, as décadas finais do século XIX e início do XX são marcados pelo grande fluxo imigratório de italianos e espanhóis4. Estes, afora representar uma nova modelagem sócio-cultural em Buenos Aires, igualmente punham em xeque o poder das já tradicionais oligarquias pecuaristas. Nesse sentido, buscar, no campo do imaginário, uma referência que ao mesmo tempo fizesse perdurar seu poder e, ainda, referenciar a alteridade do grupo frente aos que lhes eram diferentes, tem na figura do gaúcho e das cenas da campanha um elemento de grande importância. Nesse sentido, não só os discursos vinculados a esses grupos detentores do poder político, econômico e social entram em cena, mas também importantes setores da cultura se manifestaram e trouxeram para suas penas e pinceis a temática tanto da origem histórica da região quanto dos personagens que foram a sua base. Data dessa época, justamente, a obra de Ricardo Rojas, Leopoldo Lugones, Martín Gálvez e Antonio Lussich grandes entusiastas da causa gaucha, elemento chave para a proposta nacionalista. Assim como a literatura, as artes plásticas também desempenharam papel de fundamental importância nesse contexto. Buenos Aires, no início do século XX, começava a desenvolver um campo artístico próprio, onde artistas buscavam a formação e o aprimoramento de suas técnicas nos grandes centros europeus, especialmente na França. 5 É nesse momento, também, que as primeiras exposições de arte estão se organizando na cidade, destacando-se a “Exposición Internacional de Arte del Centenário”6, realizada em 1910 e que, segundo Miguel Angel Muñoz, constitui-se na primeira manifestação artística oficial buenairense. Após essa inaugural exposição, os Salões de Belas Artes vão se tornar freqüentes, fazendo com que se desenvolva um campo artístico mais especializado, contando com artistas já consagrados e uma crítica de arte especializada e atuante.7 É interessante perceber, no entanto, que na medida em que os Salões de Belas Artes vão se estabelecendo no cenário cultural de Buenos Aires, este se volta, exclusivamente, a arte acadêmica e tradicional. Em um contexto onde o modernismo começava a esboçar-se no campo artístico, os artistas que se voltavam às inovações plásticas e que, de certa forma, rompiam com a arte tradicional, eram relegados e colocados à margem desse circuito. Por tal razão, no ano de 1914 aparece o chamado Salón de Recusados8. É precisamente em um contexto de mudanças e marcado pela retomada da imagem do gaúcho nos círculos intelectuais, que Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner vão elaborar suas obras de temática gauchesca. Pedro Figari, que notabilizou-se pela pintura das cenas das manifestações da cultura popular do Uruguai, deteve seu pincel em cenas bastante características do criollo que, a seu ver, era um elemento chave para a história uruguaia9. Esse artista, que se dedica à pintura após anos de trabalho na vida pública, percebe o gaúcho como personagem de suas memórias e, mais ainda, da própria gênese do povo uruguaio. Sua proximidade com poetas do círculo gauchesco, especialmente co Antonio Lussich, onde passava longas temporadas em sua propriedade de campo, e, mais ainda, sua preocupação em retomar a gênese uruguaia através de seus primeiros elementos, faz com que sua obra apresente um gaúcho envolto nas tradições e nas manifestações da cultura popular uruguaia. As obras selecionadas para tal estudo evidenciam tal questão, uma vez que em suas cenas alusivas ao gaúcho, não só a figura deste é elaborada, mas suas tradições, hábitos e atividades cotidianas. Cesáreo Bernaldo de Quirós, proveniente de uma família tradicional e que esteve próximo de Rojas e Lugones, cria seu gaúcho a partir dos ideários nacionalistas em voga na Argentina de seu tempo. Como parte integrante do grupo Nexus, que esteve ligado a essas questões, Quirós elabora a série Los Gauchos apresentando os mais diversos elementos que compõe não só o homem da campanha, mas sua paisagem e hábitos característicos. Assim, observada a obra desse artista, o que se percebe é a criação edificada de um tipo fundamental e importante para a formação da nação. A própria plástica de Quirós, voltada à composição figurativa, imprime às suas cenas um realismo e vigor não observados nas obras de Figari, por exemplo. Vale destacar, também, que o pintor notabilizou-se pelo uso da cor vermelha em suas obras10 o que auxiliou, de certa forma, na impressão vibrante e majestosa de seus personagens. Pedro Weingärtner, por sua vez, mesmo que tenha elaborado as obras de temática regional no início dos anos 1900, estas se tornarão mais freqüentes a partir de 1912. Suas cenas retratam, igualmente, a paisagem, os homens e seus cotidianos campeiros através de uma composição narrativa e rica em detalhes11. Seu afastamento e posterior retorno ao Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que ofereceram subsídios temáticos para sua obra, igualmente fizeram com que os elementos mais simples da campanha fossem retratados, especialmente os alusivos às pousadas de carreteiros. Diferentemente de Quirós e Figari, Weingärtner não objetivou a construção de um elemento histórico regional, mas sim cenas da sua terra e da sua história. Assim, a partir do que foi exposto, torna-se perceptível visualizar que ambas as regiões selecionadas para o estudo tem, nas elaborações intelectuais e artísticas, a figura do gaúcho como elemento em comum. No entanto, as particularidades contextuais e, principalmente, o desenvolvimento do campo artístico desses três espaços geográficos, vão fazer com que a construção deste personagem histórico seja feita a partir de interpretações diferenciadas. Se, por um lado, ambos os artistas criam seus gaúchos a partir de vivências no campo e, também, de suas lembranças, por outro, os aportes teóricos para tais elaborações pictóricas mostram-se diferenciadas no contexto vivido pelos pintores. Pedro Figari e Cesáreo Bernaldo de Quirós partem para a criação, também, de um elemento chave no descortinamento da nação uruguaia e argentina. Ambos estão comprometidos, assim, com a busca da origem. Já Pedro Weingärtner, considerado o primeiro artista rio-grandense a dedicar-se à pintura do tipo regional, o faz não motivado pelos discursos em prol da construção de uma identidade regional, mas sim em função de seu metier de artista. Com isso, mesmo que o gaúcho seja uma figura comum ao espaço platino e brasileiro no que se refere aos aspectos econômicos e sociais próprios do período colonial, quando ele se concretiza na pintura dos artistas, suas diferenças são percebidas. Pensar o campo da arte em países vizinhos é, igualmente, problematizar a diferença. Ambos os artistas, como se mostrou anteriormente, incluem em seus amplos róis temáticos a paisagem da campanha e os usos e costumes de seus homens. Analisando-as, percebe-se toda uma gama de elementos, tanto pictóricos quanto plásticos, que tornam seus gaúchos representações únicas e específicas quando comparadas. Nesse caso, tem-se o ponto em comum dos três artistas em suas temáticas. No entanto, sua forma de representá-las é que os torna diferentes e singulares. Além disso, suas trajetórias, formações e a própria consagração do campo artístico igualmente auxilia na compreensão do estabelecimento da diferença como um ponto importante e fundamental na análise. No que se refere aos artistas propriamente ditos, afora a temática, é de grande importância atentar às suas trajetórias artísticas. Pedro Figari, que voltou-se às artes apenas quando contava sessenta anos de idade, teve uma produção intensa de obras que tinham como foco as manifestações da cultura popular uruguaia. Ao iniciar seus trabalhos, em um contexto onde o campo da arte passava por renovações a partir do modernismo, o artista sofreu diversas críticas. Tal questão fez com que ele deixasse Buenos Aires e rumasse para Paris, onde viveu durante alguns anos. Foi, justamente, quando retornou à capital portenha e visitou inúmeras vezes amigos que tinham propriedades rurais, que dedicou-se com maior afinco aos seus criollos e candomberos. Sua base para os gaúchos parece ter sido construída quando afastou-se de sua terra natal e de sua gente. Cesáreo Bernaldo de Quirós, artista consagrado em Buenos Aires, desde sua participação na fundação do grupo Nexus, dedicava-se às cenas da campanha, da história argentina e, também, aos retratos. No entanto, sua obra de maior imponência e que foi realizada nos anos finais de sua produção artística, foi elaborada, igualmente, após um breve afastamento de Buenos Aires. Buscando retiro na propriedade rural de um amigo, Quirós vai elaborar, com riqueza de detalhes, a série Los Gaúchos. Considerada pela crítica e pela imprensa uma de suas mais grandiosas obras, tal série terá inúmeras exposições não só na Argentina como também nos Estados Unidos. A partir disso, tal qual Figari, Quirós também foi um artista que, pelo afastamento e pelas vivências na campanha, tomou sua terra e gentes para a construção de uma série que prima por trazer todos esses elementos a tona. Pedro Weingärtner, considerado por Ângelo Guido o primeiro artista sul-riograndense, igualmente possui uma trajetória interessante. Após dedicar-se à sua formação artística em grandes centros europeus, especialmente na Alemanha, França e Itália, o artista fixa residência em Roma. Suas vindas ao Brasil foram freqüentes, dadas as exposições que realizou com freqüência no Rio de Janeiro, em São Paulo e, também, em Porto Alegre. Suas obras de temática regional foram realizadas numa segunda fase de sua produção artística, pois primou, inicialmente, em realizar retratos, cenas de costumes e outras referentes às paisagens italianas. Guido, ao apontar essa questão, coloca que “ao voltar para o Rio Grande do Sul em 1913 iniciava uma nova fase de sua pintura, fase à qual, além de considerável número de paisagens, tem a dar-lhe significação uma série de quadros de grandes proporções inspirados em motivos tipicamente gaúchos”12 Torna-se possível apreender, assim, que como Figari e Quirós, Weingärtner igualmente teve um período de afastamento da sua terra natal para, depois, colocar o gaúcho e seus costumes como centro de sua obra. 3. Considerações finais Pensar a imagem do gaúcho no campo da arte é, também, problematizar uma rede de outras questões de fundamental importância para as sociedades argentina, uruguaia e brasileira. Não apenas a imagem em si, mas a forma como tal figura foi elaborada por Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner constitui-se como elemento basilar para a percepção, também, do desenvolvimento da arte nas regiões apontadas. Assim, analisar as citadas pinturas em seu contexto específico e, mais ainda, problematizar os entornos de sua produção, desvela importantes aspectos para uma maior compreensão do objeto em questão. Nesse sentido, estabelecer a relação dos artistas com o desenvolvimento da arte em seus respectivos países, perceber a sua formação, seus contatos e suas vivências, igualmente, ampliam as possibilidades de trabalho com as imagens. É importante salientar que o gaúcho, por ser uma figura típica das regiões selecionadas para o estudo, é um elemento de fácil identificação. Por tal razão, muitas vezes as pinturas que o tem como tema central, acabam por reduzir sua significação em função, apenas, de sua imagem “auto-explicativa. Nesse sentido, a interpretação que se propõe acerca das obras de Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner está baseada, fundamentalmente, no que Jean-Claude Schmitt pondera a respeito dos métodos com que deve o historiador trabalhar com as imagens. A preocupação do autor, como a de outros historiadores que se dedicam especificamente à História da Arte, é alicerçar um quadro teórico e metodológico que contemple as várias funções que esta oferece, não a reduzindo como mera ilustração do texto escrito e, igualmente, como reprodução fiel do contexto vivido pelo artista. Segundo o autor, Certos [historiadores] procuram (ou ainda procuram) nas imagens a representação mais ou menos fiel, logo mais ou menos confiável aos olhos do historiador, das realidades, (...). Mas essa utilização imediata das imagens pelos historiadores nada nos diz das próprias imagens, nem de sua razão de ser e nem da natureza, diferentemente complexa, do processo de representação. Engana-se redondamente quem pensa que, para os homens do passado, como de resto para nós, poderia haver algo do real, independentemente da consciência dos atores sociais e da expressão que oferecem em suas obras.13 Assim, “(...) analisar a arte em sua especificidade e em sua relação dinâmica com a sociedade que a produziu”14 torna-se o eixo central da proposta de estudo acerca das pinturas de Figari, Quirós e Weingärtner. Da mesma maneira que se buscam subsídios em suas práticas artísticas, igualmente os contornos contextuais, especialmente os relacionados aos elementos sócio-culturais e políticos da Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul no período que vai de 1900 a 1930, oferecem sólidas bases para compreender a forma com a qual a imagem do gaúcho foi construída. Não apenas isso, mas as relações estabelecidas por esses artistas junto à intelectualidade, suas trajetórias pessoais e a consagração no campo da arte complementam a ampla rede de significações geradas na produção das pinturas. Nesse sentido, mesmo que a técnica e a prática artística tenham papel basilar na elaboração de pinturas, não se pode desconsiderar o mundo interno do artista, o qual se manifesta através de seus sentimentos, pensamentos e emoções. Quando se percebe que tanto Figari, quanto Quirós e Weingärtner elaboram seus gaúchos e cenas da campanha também a partir de suas lembranças, visualizam-se e compreendem-se em maior profundidade as suas composições. * Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), bolsista CAPES. Orientação: Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Bastos Kern. E-mail: [email protected]. Telefone: (51) 9106-8815. Endereço para correspondência: Rua Padre Antônio Vieira, 295/102. Bairro: Santo Antônio. Porto Alegre – RS. 1 GUTFREIND, Ieda. O gaúcho e sua cultura. In.: CAMARGO, Fernando, GUTFREIND, Ieda, REICHEL, Heloisa. História geral do Rio Grande do Sul: Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006, p.241. 2 Idem. 3 As pinturas de Pedro Figari aqui selecionadas foram feitas entre os anos de 1921 e 1937. Todas elas utilizaram como técnica e suporte óleo sobre cartão. 4 BETHEL, Leslie (Ed.). Historia de America Latina. America del Sur, c. 1870-1930. Barcelona: Crítica, 2000, p.46 5 MALOSETTI COSTA, Laura. Las artes plásticas entre el ochenta y el Centenário. In.: BURUCÚA, José Emilio. Nueva historia argentina: arte, sociedad y política. Buenos Aires: Sudamericana, 1990, p.165. 6 MUÑOZ, Miguel Angel. Obertura 1910: Exposición Internacional de Arte del Centenario.In: Tras los pasos de la norma. Salones Nacionales de Bellas Artes (1911-1989). Buenos Aires: Jilguero, 1999, p.27. 7 Ibidem, p.28. 8 WESCHLER, Diana Beatriz. Salones y contra-salones. In.: Tras los pasos de la norma. Salones Nacionales de Bellas Artes. Op.cit., p.46. 9 LINARI, Gabriel Peluffo. Historia de la pintura uruguaia. Montevideo: Banda Oriental, 2000, p.58. 10 PÉREZ, Dante. PÉREZ, Dante. Sobre la función ideológica en el arte: el gaucho de chiripa de Cesáreo Bernaldo de Quirós. Adversus. Revista de Semiótica. Ano III, n. 5, Roma, Buenos Aires, 2006, p.14. 11 GOMES, Paulo. A carreira e a obra de Pedro Weingärtner. In.: PEDRO Weingärtner: obra gráfica. Porto Alegre: [s.e.], 2008, p.22. 12 GUIDO, Ângelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Divisão de Cultura, 1956, p.132. 13 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. São Paulo: EDUSC, 2007, p.26. 14 BURKE, Peter. Testemunha ocular. História e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004, p.33. A Política de Boa Vizinhança nos anúncios comerciais no Brasil durante a primeira metade do Estado Novo (1937-1940) Marina Helena Meira Carvalho1 Resumo: O Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations between the American Republics foi responsável pela divulgação de boa imagem dos EUA em anúncios comerciais. Antes mesmo de sua criação, em 1940, a Política de Boa Vizinhança já era tema em propagandas no Brasil, bem como em reportagens. Este trabalho analisa como essa política ganha espaço durante a primeira metade do Estado Novo, período nacionalista e que antecede a criação do Office, viabilizando, assim, sua circulação em anúncios comerciais. Palavras-chave: American way of life; publicidade brasileira; Política de Boa Vizinhança. Abstract: The Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations between the American Republics was responsible for good image of U.S.A. in advertisement. Even before it was created, in 1940, the Good-Neighbor Policy had already been subject in Brazilian advertisements and news. This paper analyzes how it develops during the first half of Estado Novo, nationalist time and before the Office creation, enabling its circulation in advertisements. Key-words: American way of life; Brazilian advertisements; Good-Neighbor Policy. 1 Marina Helena Meira Carvalho é mestranda da Linha História e Culturas Políticas do Programa de PósGraduação em História da UFMG, orientada pela Profa. Dra. Eliana Regina de Freitas Dutra. Email: [email protected] Endereço:Rua Vila Rica, 775, 203B, Padre Eustáquio. BH/MG. Telefone: (31) 88085293 O termo “good-neighbor” foi cunhado pelo então presidente dos Estados Unidos, Herbert Clark Hoover, em 1928, se referindo ao Brasil. O governo de Franklin Delano Roosevelt, iniciado em 1933, se apropriou do termo e o transformou em plataforma da política externa em relação à América Latina, denominada Política da Boa Vizinhança.i No final do século XIX, os EUA entram na corrida imperialista com a política do Big Stick, ou seja, o intervencionismo político e militar. Na década de 1920 os países da América Latina exigiram em conferências internacionais a autodeterminação dos povos e a não intervenção. A Política de Boa Vizinhança substituiu o Big Stick. Ela pregava o abandono da intervenção dos Estados Unidos nas Américas, a igualdade jurídica de todas as nações americanas, a cooperação para o bem-estar da América, as consultas periódicas para a solução de problemas, dentre outros fatores.ii Contudo, podemos observar que embora esses sejam os princípios da doutrina, na realidade essa foi mais uma forma de aproximação dos EUA com seus vizinhos latinos para expansão de seu imperialismo, do que qualquer outra coisa. Temendo que os países das Américas tomassem direções nazifascistas ou comunistas, os EUA buscavam intervir neles com a intenção de difundir sua ideologia. A ameaça da aproximação alemã era uma realidade no período. A Alemanha tinha tornado-se importante parceira comercial de muitos países americanos, além de influenciar as forças armadas. Os EUA temiam também que a miséria causada pelo atraso econômico gerasse revoluções nacionalistas, nazistas ou socialistas na América Latina, o que o impulsionou a desenvolver a Comissão Interamericana de Desenvolvimento, a qual proporcionaria esse continente tornarse mais competitivo. A Política de Boa Vizinhança pretendia transformar o Brasil em uma fronteira contra a expansão do nazismo. Para isso, os EUA deveriam mostrar uma imagem atraente de si para o Brasil, um dos países mais importante do continente, tanto em termos políticos quanto econômicos. Essa política enfatizava a importância do Brasil e de seus produtos primários para os EUA e das manufaturas dos EUA para o Brasil.iii Muitos autores destacam que a Política de Boa Vizinhança evidencia-se no Brasil no início dos anos 1940. Cristina Soremu Pequilo chega a afirmar que os Estados Unidos se mantiveram neutro até 1941. Somente após essa data que os EUA teriam se unido ao Brasil, pela evolução da guerra e pela pressão brasileira por barganhas.iv Essa análise, entretanto, é contraposta pelas pesquisas de Gerson Moura, Antonio Pedro Tota e Érica Gomes Daniel Monteiro. Gerson Moura frisa que no início dos anos 1940, e somente aí, a chegada do Tio Sam foi visível no Brasil, pois antes disso esse país não teria definido os rumos da política externa, adotando uma equidistância pragmática entre Alemanha e Estados Unidos.v Antonio Pedro Tota atribui a mudança da política externa estadunidense a esse período como resposta à invasão do exército nazista à Dinamarca.vi A criação do Office for Coordination of Comercial and Cultural Relations between the American Republics, em 16 de agosto de 1940, pelos norte-americanos seria, segundo esses autores, a evidência do aprofundamento da Política de Boa Vizinhança. Esse órgão, que em 1941 passou a chamar-se Office of Coordinator of Inter-American Affairs (denominado a partir deste momento como OCIAA), objetivava conter os avanços do Eixo e garantir a potência norte-americana. Para isso, realizaram programas educacionais, culturais, de informação e de propaganda. O governo Roosevelt achava necessária a intervenção sobre os meios de comunicação dos países sul-americanos. No Brasil, eles deveriam difundir notícias dos EUA favoráveis e afastar as agências de notícias alemãs e italianas. O OCIAA vai distribuir cartazes, vídeos, mapas, caricaturas, pôsteres, fotografias de Washington e de Roosevelt, todos eles intencionados a construção da boa imagem norte-americana. O OCIAA formulou, em 1942, um projeto de Cooperation with U.S. Advertisers in the other American Republic, o qual posteriormente foi denominado Advertising Project, que é objeto de estudo da historiadora Érica Gomes Daniel Monteiro. Esse projeto objetivava garantir o mercado brasileiro para os EUA no pós-guerra e explicar a escassez de produtos, além de auxiliar os meios de comunicação, os quais precisavam da verba da publicidade norte-americana para sobreviver. Para isso, incentivavam as empresas estadunidenses a não pararem de anunciar no Brasil, mesmo quando lhes faltassem os produtos anunciados.vii Em detrimento desse momento de ápice, explicado pela cooptação de aliados em fase de entrada dos Estados Unidos na guerra e pela ação do OCIAA, o presente artigo objetiva estudar a fase anterior da Política de Boa Vizinhança no Brasil. Optamos como marcos cronológicos de 1937, momento em que o Estado Novo brasileiro é estabelecido, até agosto de 1940, quando o OCIAA é criado. Fixamos ainda o universo publicitário como o principal foco de nossa análise - tal qual faz Érica Gomes Daniel Monteiro para um período posterior, entre 1942 e 1945-, pois os anúncios comerciais eram lócus privilegiados para a divulgação do americanismo. Aos Estados Unidos interessava divulgar o American way of life, e as propagandas eram ótimos veículos para isso, assim como o cinema, pois eles revelam os hábitos, os costumes, os elementos culturais de um país que pretende se mostrar superior. Por meio do levantamento de anúncios comerciais e reportagens entre os anos de 1937 e 1940 da revista Fon-Fon, feito por mim, podemos perceber que a Política de Boa Vizinhança já estava ali presente. Primeiramente, o American way of life já aparece como característica para valorização de produtos. O Batom Tangee se afirma como “o batom de mais venda nos Estados Unidos.”viii O produto de beleza “Hollywood’s” afirma ter “Fórmula americana”ix e os Cigarros Astria, serem do tipo americanox, como também os cigarros Linconxi. Um rádio denominado New-Yorker, da RCA Victor, gasta toda uma página para anunciar seu produto, o qual é associado com uma série de adjetivos: moderno, dinâmico, famoso, atrativo, beleza, estilo e técnica, seletividade, sensibilidade, nitidez e pureza econômica. Todos eles podem ser relacionados não só à identidade que pretendem forjar ao produto, como também ao link que pretendem realizar entre o produto e seu nome, New Yorker.xii Figura1: Propaganda RCA Victor do produto New Yorker 1940 Fonte: Revista Fon-Fon 09/09/1939xiii A informação sobre o país de origem, bem como sobre o público que o consume, não aparece em tais propagandas como algo desprovido de intencionalidade. Ao contrário, a origem do produto é tida como qualidade, argumento para que o público brasileiro também o consuma. Afinando ainda mais com a Política de Boa Vizinhança, alguns produtos não só divulgam o American way of life, como também se colocam na lógica da outorga. O batom Flamour, em anúncio de abril de 1939, apresenta uma nova tonalidade, Brinque, que “é a cor com que as artistas de Hollywood e as mulheres mais elegantes dos Estados Unidos retocam atualmente seus lábios [...] Agora, ela é apresentada no Brasil por Flamour.”xiv O batom é concebido como dádiva à mulher brasileira, ao mesmo tempo em que a identidade de brasileiras e atrizes e elegantes americanas é forjada: todas elas compartilham o mesmo batom, o mesmo glamour, ou, para usar expressão típica da época, o mesmo it. Figura 2: Propaganda Flamour Fonte: Revista Fon-Fon de 22/04/1939xv A ligação entre a publicidade e a Política de Boa Vizinhança, como podemos ver, é profunda. E essa ligação não irá se limitar aos conteúdos e temas veiculados em anúncios comerciais. Os próprios publicitários brasileiros foram aos Estados Unidos com o objetivo de aprender as técnicas daquele país. Em 1939, o diretor da Eclética, Eugênio Leuenroth, realiza viagem aos Estados Unidos, em nome da Frota de Boa Vizinhança, denominação utilizada pela Fon-Fon. Visitou lá, alguns clientes de sua empresa e algumas organizações de publicidade.xvi Em 1940, Murilo Pereira Reis, especialista em propaganda que estava servindo o governo brasileiro, no escritório brasileiro de propaganda nos Estados Unidos, regressou ao Brasil com a Frota de Boa Vizinhança. Ressalta-se, na reportagem, que em muito ele teria aperfeiçoado seus conhecimentos técnicos durante sua estadia nos EUA. Em seu regresso assumiu a diretoria da Empresa de Propaganda Sul-Americana Ltda.xvii Percebe-se que não só a propaganda comercial, como também a política se sentia beneficiada com a aproximação com as técnicas norte-americanas. Segundo Hannah Arendt, até mesmo a propaganda nazista teria usufruído das técnicas publicitárias norte-americanas.xviii Figura 3: Murilo Pereira Reis e a Frota da Boa Vizinhança Fonte: Revista Fon-Fon de 06/04/1940xix O intercâmbio, pelos ideais da Política de Boa Vizinhança, também pressupunha o movimento inverso: mandar norte-americanos ao Brasil. As primeiras agências norte-americanas chegam ao Brasil, provavelmente, já influenciadas com a política imperialista norte-americana de exportação do American way of life. J. Walter Thompson chega ao Brasil em 1929, N.W. Ayer, em 1931 e McCann Erickson em 1935.xx Muitos publicitários brasileiros procuraram essas agências como meio de profissionalização, já que na época não existia ainda cursos de propaganda, e o know-how estadunidense era considerado superior. A primeira Escola de Propaganda no Brasil surge em 1952, em São Paulo, no Museu de Arte Moderna. O primeiro Curso de Propaganda, entretanto, é criado em 1945 pela Associação Paulista de Propaganda2, contando com 45 alunos.xxi Armando Morais Sarmento foi um desses, que, segundo ele mesmo escreveu: “Depois de dois anos de trabalho árduo com a minha agência, resolvi aprender mais do que me proporcionavam a leitura e o curso por correspondência. Fiz o óbvio e me candidatei à Thompson e à Ayer por carta, oferecendo os meus serviços e confessando o meu grande motivo: eu queria aprender mais. Estava convencido, então, de que a experiência, os clientes, a organização, o acesso ao know-how de um mercado americano eram indispensáveis ao meu progresso e ao progresso da publicidade no Brasil.”xxii Em 1938, a revista Fon-Fon noticia a chegada da comitiva da Frota da Boa Vizinhança, como “base de uma obra de aproximação e amizade ainda maior entre os diversos povos americanos”. Essas reportagens enumeravam, entre os brasileiros mobilizados para receber a Frota de Boa Vizinhança, em suas diversas comitivas, normalmente representantes de agências de publicidade brasileiras. Membros da Eclética, empresa de publicidade 2 Em 29 de setembro de 1937, a Associação Paulista de Propaganda (APP) é criada. Ela só recebe o atual nome Associação dos Profissionais da Propaganda – em 1989. brasileira, recepcionaram V. M. Moore, presidente da Moore e McCormack Inc e organizador da Frota da Boa Vizinhança, em visita à Associação Brasileira de Imprensa. xxiii Figura 4: Membros da Eclética recepcionam organizador da Frota de Boa Vizinhança Fonte: Revista Fon-Fon de 08/10/1938xxiv O diretor da Dorland Internacional Inc., que foi ao Rio de Janeiro devido à campanha de publicidade da Frota de Boa Vizinhança, também foi recepcionado por um membro da Eclética, Victor Hawkins, no ano de 1938.xxv Figura 5: Diretor da Dorland Internacional Inc recepcionado por membro da Eclética. Fonte: Revista Fon-Fon de 05/11/1938xxvi Já os diretores da Colgate e Palmolive são recebidos por Cícero Leuenroth, diretor da Empresa de Propaganda Standard Ltda,xxvii agência brasileira que possuía a conta de ambas as empresas.xxviii É significativo a Standard e não das agências estadunidenses com filial no Brasil, como a Ayer, a Thompson ou a McCan, possuir as contas da Colgate e da Palmolive. O diretor da Colgate aparece em notícia veiculada pela Fon-Fon como “um grande amigo do Brasil”,xxix representação muito propícia aos ideais dos EUA. Figura 6: Diretores da Colgate e Palmolive recepcionados por membros da Standard Fonte: Revista Fon-Fon de 22/11/1941xxx A Política de Boa Vizinhança só ganhou espaço no Brasil porque trouxe ganhos reais. Se o Estado Novo aceita tal veiculação durante uma época de censura da imprensa 3, podemos perceber elementos de barganha em sua escolha. Os EUA ajudaram no desenvolvimento de nossos meios de comunicação, de transporte, da industrialização por meio de acordos, de saúde - com o controle da malária, por exemplo, no problema da nutrição no Brasil, entre outros.xxxi Mas essa ajuda não é desprovida de intencionalidade. Pretendia-se com isso encontrar no Brasil um aliado. Na questão publicitária, a Política de Boa Vizinhança também encontrava sua intencionalidade, veicular uma imagem favorável aos Estados Unidos e conquistar, culturalmente, o Brasil. Os publicitários brasileiros, por sua vez, também encontraram nela um elemento de barganha: se apropriarem de técnicas consideradas mais avançadas, além de realizarem intercâmbios e conquistarem verbas e anunciantes, mesmo em momento de escassez de produtos, como ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, concluímos que a Política de Boa Vizinhança ganha espaço durante o Estado Novo. Não intencionamos questionar a posição de Tota e Moura de que em 1940 ela se intensificou, evidenciado, inclusive pela criação do OCIAA. Entretanto, percebemos pelo levantamento de fontes que antes disso a Política de Boa Vizinhança já possuía visibilidade no Brasil, uma vez que um dos principais meios de comunicação brasileiros, a Revista Fon3 A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 legalizou, por meio do artigo 122, a censura prévia aos meios de comunicação. Nesse momento, a imprensa é concebida como veículo oficial de divulgação da ideologia estadonovista. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) é criado como órgão de fiscalização e censura da imprensa e, concomitantemente, de criação de uma imagem favorável ao governo, e sua difusão pelos meios de comunicação. A propaganda Estatal, entretanto, antecede a fundação do DIP. O Ministério da Educação e Política era o responsável inicial por sua realização. Em 1934 tal função passa a ser exercida pelo Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, órgão submisso ao Ministério da Justiça e só em dezembro de 1939 que o DIP é fundado. Em 1945, o Departamento Nacional de Informações substituirá o DIP, nessas funções. Fon, considerada a 3ª mais lida ou vendida no período4, noticiava favoravelmente as ações da Frota de Boa Vizinhança. Ressaltamos ainda, nesse artigo, a ligação estreita entre tal política e o universo publicitário, uma vez que membros de agências brasileiras estavam elencados entre os que recepcionavam a Frota, além dos mesmos realizarem intercâmbios aos EUA. Antes do Estado Novo aliar-se com os EUA, em 1942, e até mesmo antes da criação do OCIAA, com a denominação anterior em 1940, a Política de Boa Vizinhança já ganhava espaço no Brasil. Podemos matizar a viabilidade de circulação durante o Estado Novo: o nacionalismo de Vargas não era xenófobo5, muito pelo contrário. Mesmo em momento de opção pela equidistância pragmática, Vargas considerava a aproximação com outros países necessária, como elemento de barganhas para proporcionar o desenvolvimento nacional. Da mesma forma, o universo publicitário também se considerou beneficiado pela aproximação com os Estados Unidos, por meio da apropriação de técnicas desenvolvidas por esses. i Cf. TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. Coleção tudo é história, Editora Brasiliense, São Paulo: 1988. Cf. MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. Coleção tudo é história, Editora Brasiliense, São Paulo: 1988. ii Cf. MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. Coleção tudo é história, Editora Brasiliense, São Paulo: 1988. iii As ideias apresentadas nos parágrafos anteriores podem ser encontradas nas obras de Antonio Pedro Tota e Gerson Moura iv PEQUILO, Cristina Soreanu. As relações Brasil – Estados Unidos. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. v MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. Coleção tudo é história, Editora Brasiliense, São Paulo: 1988 vi TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. vii MONTEIRO, Érica Gomes Daniel. A guerra como slogan: visualizando o advertising project na propaganda comercial da revista seleções do reader`s digest (1942-1945). In: XII Encontro Regional de História - AnpuhRio, 2006, Niterói. Usos do Passado. __________. A guerra como slogan: visualizando o Avertising Project na propaganda comercial da Revista Seleções do Reader`s Digest (1942-1945). Revista Tempos Históricos, v.14, 2º semestre de 2010, p.154-173. _____________. Nos intervalos da guerra: pan-americanismo e propaganda no Brasil dos anos 40. In: X SIMPÓSIO REGIONAL DA ANPUH, 2002. História e Biografias, 2002. ____________. Diplomacia Hollywoodiana: Estado, indústrias e as relações interamericanas durante a IIGM. In: XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH, 2011, São Paulo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011. São Paulo: Anpuh viii FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1939, nº10, ano 33. 4 “Segundo Seguin des Hons (1985, anexos), Fon-fon era a terceira revista mais vendida ou mais lida do país. Em primeiro lugar, vinha O Cruzeiro e, em segundo, A Cigarra.” Semiramis. Revista FON-FON: a imagem da mulher no Estado Novo (1937-1945). São Paulo: Arte & Ciência, 2007. p.122. 5 Para Pedro Paulo Zahluth Bastos, o nacional-desenvolvimentismo da Era Vargas não pode ser considerado xenófobo ou entreguista. Ele seria flexível, oportunista e politicamente realista. Suas características circulariam no anti-liberalismo, no oportunismo nacionalista e na capacidade de adaptação das circunstâncias históricas cambiantes. Cf.BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. “A construção do nacionalismo econômico de Vargas.” In: BASTOS, Pedro Zahluth; FONSECA, Cezar Dutra (orgs.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: UNESP, 2012. ix FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1938, nº33, ano 32. x FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1940, nº30, ano 34. xi FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1942, nº41, ano 36. xii FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1939, nº36, ano 33. xiii Fotografia tirada por mim. FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1939, nº36, ano 33. xiv FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1939, nº16, ano 33. xv Fotografia tirada por mim. FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1939, nº16, ano 33. xvi FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1939, nº16, ano 33. xvii FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1940, nº14, ano 34. xviii ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.394 xix Créditos da imagem: FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional. 1940, nº14, ano 34. xx Vale ressaltar, entretanto, que antes das agências norte-americanos já existiam agências nacionais no Brasil e também departamentos publicitários formados por funcionários norte-americanos dentro de empresas. Cf. MARCONDES, Pyr. Uma História da Propaganda Brasileira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. .”. IN: BRANCO, Renato Castelo; MARTESEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (org). História da Propaganda no Brasil. São Paulo: T. A.Queiroz, 2002. xxi MARCONDES, Pyr. 70 anos APP: a história de uma entidade presente. São Paulo: Associação de Profissionais de Propaganda, 2007. xxii SARMENTO, Armando de Moraes. “As agências estrangeiras trouxeram modernidade, as nacionais aprenderam depressa.”. IN: BRANCO, Renato Castelo; MARTESEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (org). História da Propaganda no Brasil. São Paulo: T. A.Queiroz, 2002. xxiii FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1938, nº41, ano 32. xxiv Fotografia tirada por mim. FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1938, nº41, ano 32. xxv FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1938, nº45, ano 32. xxvi Fotografia tirada por mim FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1938, nº45, ano 32. xxvii FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1940, nº16, ano 34. xxviii FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1940, nº38, ano 34. xxix FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1941, nº47, ano 35. xxx FON-FON: semanário alegre, político, crítico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponível no arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. 1941, nº47, ano 35. xxxi Cf. TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. A enfermidade da América Latina: conjeturas acerca do continente na virada do século XIX para o XX Regiane Gouveia Resumo Esta comunicação tem como objetivo analisar algumas proposições do escritor venezuelano César Zumeta e do escritor boliviano Alcides Arguedas a respeito da ideia de enfermidade da América Latina. Ambos os autores influenciaram o pensamento político e social latinoamericano no início do século XX e empregaram a retórica do diagnóstico para analisar a realidade do continente. Estes escritores ao adotarem o paradigma científico das ciências naturais (a concepção racista-científica) fortaleceram a ideia de que a América Latina era um “continente enfermo”. Palavras-chave: América Latina, Enfermidade, Intelectuais. Abstract This communication aims to analyze some propositions of the Venezuelan writer César Zumeta and Bolivian writer Alcides Arguedas about the idea of illness in Latin America. Both authors influenced the political and social thought in Latin America in the early twentieth century and employed the rhetoric of diagnosis to analyze the reality of the continent. These writers to adopt the scientific paradigm of the natural sciences (the design-scientific racist) strengthened the idea that Latin America was a "sick continent”. Keywords: Latin America, Illness, Intellectuals Na virada do século XIX para o XX as teorias racistas se intensificaram com o desenvolvimento científico. Tais teorias vinham envoltas em um novo discurso, com a autoridade que a ciência lhe conferia. A literatura médica ganhou espaço nesse período e sua linguagem foi amplamente empregada por intelectuais preocupados com o futuro da América Latina. A instabilidade política;1 a dependência do capital estrangeiro, em decorrência das novas relações econômicas – importação de manufaturas e máquinas, e exportação de matérias-primas –; e os problemas sociais, comuns à maioria dos países latino-americanos na época, faziam com que proliferassem conjeturas acerca da incapacidade do continente de incorporar a modernização e alcançar o progresso. Nesse contexto, surgiu uma ensaística que procurou analisar a realidade latinoamericana. Para tanto, esta recorreu ao paradigma das ciências naturais tendo em vista que o seu desenvolvimento, desde meados do Oitocentos, permitiu que determinados critérios das ciências fossem empregados para explicar o homem e a sociedade. Surgiram proposições utilizando o vocabulário médico que comparavam a América a um corpo enfermo, com diagnósticos mórbidos e prognósticos condenatórios. Tal modo de interpretar a realidade 2 latino-americana estava relacionado à autoridade que a ciência adquirira na época, uma vez que passou a ser percebida como uma forma de conhecimento neutro, empírico e confiável. 2 Assim, a ensaística latino-americana surgiu com uma preocupação sociológica que procurou dar conta dessas “sociedades enfermas”. 3 Vários trabalhos, nessa mesma linha, buscaram, através de uma análise histórica, política e sociológica do continente, explicar a situação em que se encontravam os países latino-americanos. Proliferaram obras neste viés, 4 que partindo de matrizes de pensamento comum, sobretudo, ligadas às ideias racistas e à filosofia positivista, procuraram compreender a origem dos males do continente e as possibilidades de alcançar a civilização e o progresso. Na América Latina os debates raciais inspiraram intelectuais que, fundamentados nas ideias raciais, procuraram diagnosticar a realidade latino-americana. Nota-se, contudo, entre esses intelectuais, uma apropriação, em grande parte, original das teses raciais, visando adequá-las ao contexto do Novo Mundo, uma vez que elas não poderiam ser aplicadas nos mesmos termos na América Latina. Isso significaria a exclusão da maior parte de sua população, pois era biologicamente heterogênea. Entre as principais estratégias traçadas na época com o intuito de promover uma limpeza racial no continente, a médio e longo prazo, estava a importação de imigrantes europeus5 e o retorno dos descendentes de africanos à África. Procurou-se impedir, também, a vinda de imigrantes oriundos de lugares associados à barbárie e ao atraso, como por exemplo, a China.6 Tais propostas guardavam relação com o fato de que o racismo, cada vez mais ratificado pela ciência, havia contaminado tão fortemente os discursos nacionalistas no início do século XX, que era difícil resistir à sua influência. 7 Nessa época, tornara-se comum a ideia de que os conceitos e os termos das ciências naturais poderiam ser aplicados para a análise social. Isso guarda relação com o fato de que a sociedade era percebida como um organismo vivo, portanto, propenso à enfermidade. Logo, os problemas sócio-políticos foram associados às enfermidades. Nesse sentido, identificar as causas e sintomas destas permitiria curar o “organismo” doente e, consequentemente, tirar a sociedade desse estado de enfermidade. O anseio dos escritores de mudar a realidade do continente, de acordo com Leopoldo Zea, acabou levando à adoção da filosofia positivista na América Latina. Nessa perspectiva, os intelectuais teriam adotado a filosofia que era considerada a que tinha dado origem ao mundo, que percebiam como civilizado e do qual se tentava fazer parte. O positivismo foi, portanto, tomado como instrumento para enfrentar uma realidade que deveria ser 3 transformada e, partindo de uma profunda análise do continente, os intelectuais procuraram meios de regenerá-lo.8 O darwinismo social, a sócio-biologia e a literatura médica foram amplamente empregados para a definição de diagnósticos do continente. Isso seria utilizado para explicar que se a América Latina se encontrava alheia aos desenvolvimentos oriundos da modernização, uma das razões era porque seu povo estava enfermo. Com efeito, a mestiçagem foi condenada em muitos trabalhos. Como no Novo Mundo, a colonização ibérica permitira a assimilação dos índios e negros, reunindo, segundo determinadas interpretações, os defeitos de cada raça. O resultado teria sido, portanto, um povo “degenerado”. Teóricos como Arthur de Gobineau (1816-1882) e Gustave Le Bom (1831-1931) reforçavam essa ideia, pois consideravam que os mestiços herdavam as características mais negativas “das raças em cruzamento”. Encontramos tal perspectiva nas impressões que o naturalista Louis Agassiz (1807-1873) registrou, em 1865 a respeito do Brasil. De acordo com o estudioso suíço, esse país era o maior exemplo da degeneração provocada pela mestiçagem. Nessa direção assinalava que: (...) basta ter-se estado no Brasil, para não se poder negar a decadência resultante dos cruzamentos efetuados neste país mais largamente que noutro. Estes cruzamentos apagam as melhores qualidades quer do branco, quer do negro, quer do índio, e produzem um tipo indescritível, cuja energia, tanto física como moral, se enfraqueceu.9 Apesar de essa ser uma das teses mais defendidas dentro da ensaística latinoamericana, surgiram particularidades que encontravam outras razões, que não a mistura de raças – vistas como inferiores – para a situação da América Latina. Nesse sentido, conforme defende Nancy Stepan, se por um lado as ideias que circulavam na Europa foram apropriadas para pensar a realidade latino-americana, por outro, houve vários “processos de seleção e remontagem de ideias e práticas de suas elaborações e alterações criativas por determinados grupos de pessoas em contextos institucionais, políticos e culturais específicos”.10 Os intelectuais latino-americanos, preocupados em curar as enfermidades que padecia o continente, se empenharam em buscar na história política, social, psicológica e moral a raiz dos males e, a partir disso, propor soluções para a transformação. Assim, destacamos algumas das teses principais de dois autores. As obras El continente enfermo (1899) e Pueblo enfermo (1909) do escritor venezuelano César Zumeta (1863-1955) e do boliviano Alcides Arguedas (1879-1946), respectivamente, constituem exemplos dessa ensaística que surgiu no período. Estes autores influenciaram o pensamento político latino-americano no início do século XX e empregaram 4 a retórica do diagnóstico para analisar a realidade latino-americana. Ao adotarem o paradigma científico das ciências naturais, fortaleceram a ideia de que a América Latina era um continente enfermo. César Zumeta11 publicou, em 1899, em Nova York, o folheto El continente enfermo,12 no qual fez uma breve análise do continente e propunha alternativas para o seu desenvolvimento. Embora atribuísse à América Latina uma condição patológica, diferente de seus contemporâneos, não conferia tal condição à conformação de seu povo. Reconhecia no passado de exploração colonial e na ingerência das potências externas (tanto a europeia quanto a estadunidense), as razões para a difícil situação das repúblicas hispano-americanas. Em sua opinião, aproximava-se o momento de um conflito geral “dos impérios contra a liberdade”. Tal declaração estava relacionada aos acontecimentos envolvendo a guerra hispano-americana, em 1898. O escritor venezuelano foi um entusiasta da independência cubana, inclusive mantivera estreita amizade com José Martí e outros revolucionários. Com o resultado da guerra, tornaram-se evidentes os temores de Martí13 e foram, a partir disso, denunciados por Zumeta. Diante da ameaça que os Estados Unidos passaram a representar com sua política imperialista no continente, o escritor defendeu que as repúblicas latino-americanas deveriam se armar para combater a ingerência deste país.14 Zumeta chamou a atenção para o perigo que a opinião desfavorável da imprensa a respeito da América Latina, tanto a europeia como a estadunidense, representava para a soberania do continente. Nesses lugares era corrente a ideia de que os povos latino-americanos eram “incapaces de los altos requerimientos del progreso”, e também eram “semi-civilizado[s]”,15 diante disso, ele advertiu que tais argumentos poderiam ser usados como pretexto para a intervenção na América Latina, visto que os interessados em sua submissão frequentemente anunciavam a sua desorganização política e a falta de habilidade para explorar os próprios recursos. Assim, conforme afirmava Zumeta, a própria desordem do continente poderia servir para legitimar as propostas de subordinação do continente aos interesses externos, daí insistir em uma mudança de comportamento dos latino-americanos e na necessidade das repúblicas armarem-se. Nessa perspectiva, ele alertou para o perigo que circundava a independência das repúblicas latino-americanas e criticou o seu comodismo frente a todas as ameaças. O autor considerava que o desfecho da guerra de independência cubana havia superado as conquistas de Bolívar para a “nuestra” América em Ayacucho, nos anos 1820. A partir do momento em que os Estados Unidos afirmaram, em fins do Oitocentos, que as Filipinas lhes pertenciam “por derecho de conquista”, estes se converteram em potências colonizadoras.16 5 O escritor venezuelano temia que a desorganização política e as disputas e hostilidades entre as repúblicas latino-americanas abrissem espaço para a intervenção (que já se fazia presente) das potências estrangeiras. Dessa forma, procurou meios para que essas nações se precavessem a respeito de tais perigos e estimulou, principalmente, o desenvolvimento de um exército forte e a unidade entre os países da América Latina. Para Zumeta, era fundamental que se armassem, pois somente assim conseguiriam afastar as ameaças externas e garantir a soberania. Alcides Arguedas17 publicou, em Barcelona, a obra Pueblo enfermo, que lhe deu notoriedade entre os intelectuais hispano-americanos e espanhóis. Após sua viagem à Europa, quando entrou em contato mais estreito com as teorias raciais, iniciou a sua reflexão a respeito da Bolívia. A partir daí, procurou, através de uma profunda análise sociológica, os elementos essenciais da identidade boliviana. Na Espanha, estabeleceu relação com os intelectuais ligados à “geração de 1898”. A geração do 1898 surgiu na Espanha e foi marcada pelo pessimismo, sua origem remete à derrota na guerra hispano-americana em 1898, e também está relacionada ao aparecimento da palavra intelectual, sobretudo na Espanha e na França em fins do século XIX, no momento em que homens de ciência e cultura começaram a intervir no debate público por meio de manifestos e da imprensa. Esta geração, também conhecida como regeneracionista, procurou num primeiro momento modernizar a Espanha por meio da razão, democracia e progresso econômico. Logo depois, afirmar a identidade espanhola, através do resgate da hispanidad. Diante da crise na qual a Espanha se encontrava, após a derrubada dos últimos rincões coloniais na América e Ásia, os intelectuais se uniram no anseio de regenerar seu país por meio de sua entrada na modernidade sem, contudo, perder sua identidade. A preocupação dos regeneracionistas, além das condições materiais, era, principalmente, com a regeneração espiritual da raça hispânica, entendida num viés cultural. Dentre os nomes associados a esta geração estão: Miguel de Unamuno, Ramiro de Maeztu, José Martínez Ruiz (conhecido como Azorín), Angél Ganivet, e José Ortega y Gasset.18 No prólogo que o escritor espanhol Ramiro de Maeztu escreveu para a primeira edição de Pueblo enfermo comparou o esforço de Arguedas ao da geração de 1898. Segundo ele, os intelectuais dessa geração “aparta[ran se] espiritualmente de él [España] para verlo mejor desde fuera, no ya con lentes españoles, sino al través de vidrios europeos”.19 De acordo com Maeztu, o escritor boliviano, da mesma forma que os intelectuais espanhóis na década anterior, procurou analisar a realidade da Bolívia sob vários aspectos: econômico, político, 6 étnico, geográfico, mental, religioso, moral, e assim chegar à raiz do “mal” que se abatera sobre o país andino. Dessa forma, Arguedas teria assumido a missão de identificar: “los males que gangrenan el organismo de [su] país, y los cuales […] no son exclusivos de él y sí muy generalizados no sólo en nuestros países hispano-indígenas”.20 Segundo o autor, a geografia constituía um elemento importante para o desenvolvimento de um povo, pois uma nação desprovida do litoral, como a Bolívia, cercado pela Cordilheira dos Andes, impossibilitava o contato com outras raças (europeias), e impedia que o “elemento étnico se renovasse”. Para Arguedas, o Chile, a Argentina e o Uruguai constituíam exemplos de nações que já demonstravam uma “homogeneidad envidiable”, no tocante à sua população.21 Arguedas considerava que os mestiços trariam os defeitos das raças que os compunham. No capítulo De la sangre y el lodo en nuestra historia, o autor sublinhou que a preponderância do sangue mestiço em seu país teria feito com que predominassem os defeitos na ética social, o que impediria o aperfeiçoamento moral do homem boliviano. Arguedas percebia o fracasso da sociedade americana para alcançar o progresso, como consequência do flagelo que a raça hispânica teria encontrado no Novo Mundo. Tal flagelo – indígenas – seria o responsável pelo atraso do continente. O autor considerava que não haveria nada a fazer de imediato para resolver a situação de seu país cujo “pueblo enfermo, hoy [está] más enfermo que nunca”.22 Para Arguedas, somente a regeneração da Bolívia, a partir de uma revolução moral em sua população, permitiria o seu desenvolvimento e, sem uma mudança nos costumes, o país jamais experimentaria a modernização. O autor não podia vislumbrar uma transformação da população que compunha o seu país por meio da imigração europeia, tal como foi defendida, por muitos intelectuais da época. A condição geográfica e o fato da maior parte da população boliviana ser de origem indígena, na concepção de Arguedas, impossibilitavam esse processo. Sendo assim, a transformação deveria ocorrer na moral e nos costumes do povo boliviano, que, naquele momento, se apresentava como a melhor alternativa de transformação da realidade. Um olhar sobre o contexto mais específico em que essas obras foram produzidas pode revelar questões importantes que guardam relação com as angústias e os temores de ambos os autores. César Zumeta escrevera El continente enfermo no período imediato ao desfecho da guerra de independência cubana e no momento em que a política imperialista estadunidense se tornava mais evidente. Com efeito, o autor ressaltou a necessidade dos povos hispanoamericanos armarem-se frente às potências, pois considerava que “los fuertes conspiran 7 contra nuestra independencia y el continente está enfermo de debilidad”. 23 Outro fator que pode estar relacionado a essa preocupação de Zumeta, diz respeito à difícil situação na qual a Venezuela se viu envolvida e que evidenciou as desiguais relações internacionais entre seu país e outras potências. Em 1898 discutia-se a arbitragem pelos territórios em disputa com a Guiana Inglesa. Nesse processo, não foi reconhecido internacionalmente o direito da Venezuela de nomear seus próprios árbitros.24 Já Arguedas, escrevia no momento em que as consecutivas derrotas bolivianas nos conflitos sul-americanos, desde o século anterior, faziam com que o sentimento nacional se encontrasse abalado. Apesar da Guerra do Pacífico ter ocorrido entre 1879-1883, foi em 1904 que o tratado que oficializava a perda da saída do mar da Bolívia, em benefício do Chile foi assinado, além da perda de importantes jazidas de Nitrato. Também foi no início do século XX, que a questão do Acre foi definida, o que levou novamente a mais uma amputação de seu território. Não é de surpreender, portanto, que Arguedas identificasse na história, na sociedade e na política da Bolívia os perigos que a cercavam. Assim sendo, os intelectuais latino-americanos preocupados em sanar as enfermidades das quais padecia o continente se empenharam em buscar na história política, social, psicológica e moral a raiz dos males e, a partir disso, propor soluções para a transformação. Embora haja aspectos comuns entre as análises dos autores, principalmente atribuírem uma condição patológica à América Latina, há particularidades entre eles. Se, para Arguedas, a conformação social era o grande empecilho para o desenvolvimento do continente, para Zumeta, a desorganização política era o que colocava em perigo a soberania das nações. 8 Doutoranda do programa de Pós-graduação em História da Ciência e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/COC). Orientadora Drª. Maria Rachel de Gomensoro Fróes da Fonseca, Coorientador Dr. Marcos Cueto. Bolsista da Fundação Oswaldo Cruz. [email protected], (21)7494-3713, Rua Joaquim Murtinho, 641, Santa Teresa, Rio de Janeiro. 1 Embora desde a primeira metade do século XIX, os estados nacionais latino-americanos vinham consolidando seu território, nas últimas décadas do Oitocentos essa questão ainda não estava definida. Vários conflitos assolavam alguns países do continente, guerras civis e revoltas armadas se faziam presentes no contexto americano, como a Guerra Grande (1843-1851) no Uruguai, e a rivalidade caudilhista entre federalistas e unitários na Argentina durante as primeiras décadas de emancipação política. O Brasil, desde a independência também enfrentou uma série de revoltas, principalmente durante o período das regências. Além de grandes conflitos, em disputas por fronteiras, como a Guerra do Paraguai (1860-1865), envolvendo Brasil, Uruguai e Argentina em uma aliança contra o Paraguai; e a Guerra do Pacífico (1879- 1884), que resultou na perda para o Chile de parte do território peruano e a saída do mar da Bolívia. GOLDMAN, Noemí e SALVATORE, Ricardo (compiladores). Caudilhismos Rioplatenses: nuevas miradas a un viejo problema. Buenos Aires: Eudeba, 2005. E PAMPLONA, Marco Antonio e DOYLE, Don H. (orgs.). Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de Estados-Nação no século XIX. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 25. 2 STEPAN, Nancy. “A hora da eugenia” raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. p. 75. 3 FUNES, Patricia. ANSALDI, Waldo. “Patologías y rechazos. El racismo como factor constitutivo de la legitimidad política del orden oligárquico y la cultura política latinoamericana”. Publicação eletrônica disponível em: www.catedras.fsoc.uba.ar/udishal, 1991. p. 4. 4 Destacamos as obras: Manual de Patología Política (1889) do argentino Juan Alvarez; Los negros brujos (1906) do cubano Fernando de Ortiz; Enfermedades Sociales (1906) do argentino Manuel Ugarte; Nuestra inferioridad económica (1912) do chileno Francisco Encinas; La enfermedad de Centroamérica (1912) do nicaraguense Salvador Mendieta; e Nuestra América: ensaio de psicologia social (1912) do argentino Carlos Octavio Bunge. 5 Nessa época foi incentivada a imigração eugênica que defendia o valor étnico como condição para a entrada no país. O médico e eugenista Renato Kehl foi enfático em relação a tal imigração. Para ele, eram necessárias leis severas que estabelecessem as condições para a entrada de imigrantes no Brasil. MARQUES, Vera Regina Beltrão. A medicalização da raça: médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas: UNICAMP, 1994. p. 91. Para mais informações Cf. STEPAN, Nancy. “A Eugenia no Brasil - 1917 a 1940”. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (orgs.). Cuidar, controlar, curar: ensaios sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de janeiro: Editora Fiocruz, 2004. 6 A esse respeito Cf. SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 7 GERSTLE, Gary. “Raça e nação nos Estados Unidos, México e Cuba, 1880-1940”. In: PAMPLONA, Marco Antonio V. e DOYLE, Don H. (orgs.). Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de Estados-Nação no século XIX. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008. p. 440. 8 ZEA, Leopoldo. Pensamento Positivista Latinoamericano. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979. p. 62. 9 AGASSIZ, Louis. apud LE BON, Gustave. Leis psychologicas da evolução dos povos. Lisboa: Edição da Typografia de Francisco Luiz Gonçalves, 1910. p. 53. 10 STEPAN, Nancy. Op. cit. p. 11. 11 César Zumeta nasceu em 1863, em Caracas. De origem humilde, muito cedo, Zumeta ficou aos cuidados de uma família de posses. Teve a oportunidade de frequentar boas escolas e ingressar na faculdade de Direito, apesar de não tê-la concluído. Em 1883, publicou seu primeiro opúsculo, que dedicou a Simon Bolívar. No mesmo ano, ingressou no jornalismo colaborando para o jornal El Anunciado, que fazia oposição ao governo. Em virtude disso, foi preso e desterrado em Bogotá. Ao regressar à Venezuela, foi preso novamente e seguiu para os Estados Unidos, onde passou a fazer parte da redação de La América (1884-1889). Sua produção é vasta e foi publicada em diversos jornais sob variados pseudônimos: Ignotus, Blumentha, Luis Avila e Junius. Faleceu em Paris, em 1955. 12 Este folheto foi reeditado posteriormente, em 1961, com compilações de vários artigos escritos por Zumeta ao longo do século XX, formando uma obra maior sob o mesmo título. 13 Desde o final da década de 1880, José Martí já alertava para o perigo que os Estados Unidos poderiam representar à soberania das repúblicas latino-americanas. 14 ZUMETA, César. Las Potencias y la Intervención en Hispanoamérica. Caracas: Publicaciones de la Presidencia de la Republica. Colección “Venezuela Peregrina”, 1963. p. 10. 15 ZUMETA, César. El continente enfermo. Caracas: Colección “Rescate”, 1961. p. 26. 16 Ibid. p. 20. 9 17 Alcides Arguedas nasceu em 1879 em La Paz, proveniente de uma família de prestígio. Estudou Direito na Universidad de San Andrés, mas nunca exerceu a profissão. Contribuiu para vários jornais na Bolívia e revistas importantes como Mundial e Revista de América. Devido aos ataques ao presidente, através dos jornais, foi desterrado na Europa. Atuou como diplomata em Paris e Londres. E quando residia na França deu início a uma amizade com García Calderón e Ruben Darío. Participou intensamente da vida política de seu país, foi deputado, senador e ministro. Publicou vários livros, principalmente sobre a história da Bolívia. 18 CAPELATO, Maria Helena. “A data símbolo de 1898: o impacto da independência de Cuba na Espanha e Hispanoamérica”. In: História, São Paulo, 2003. pp.39-40. 19 MAEZTU apud ARGUEDAS, Alcides. Pueblo Enfermo. Chile: Ediciones Ercilla, 1937. p. 10. 20 SOLDÁN apud ARGUEDAS, Raza de Bronce. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2006. p. 14. 21 Op. cit. p. 14. 22 Ibid, loc cit. 23 ZUMETA, César. El continente enfermo. Op. cit. p. 31. 24 GUERRERO, Carolina. “La reacción positivista al imperialismo intelectual en el pensamiento político de Venezuela del 98”. In: ZEA, Leopoldo y SANTANA, Adalberto (compiladores). El 98 y su impacto en Latinoamérica. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 55-56. Adolf Hitler: formação ideológica e antissemitismo Vinícius Bivar Marra Pereirai RESUMO: O presente artigo apresenta de forma condensada os resultados da pesquisa realizada durante a confecção do trabalho de conclusão de curso acerca do contexto que tornou possível a formação e consolidação da ideologia antissemita do ditador Adolf Hitler. A presente análise se estrutura em três momento buscando compreender as transformações no conceito de antissemitismo, sua influência sobre a formação de Adolf Hitler, bem como sua manifestação política posterior, com objetivo de contextualizar suas origens e problematizar suas consequências. Palavras Chave: Antissemitismo, Adolf Hitler, Holocausto ABSTRACT: This paper aims at presenting the results from research conducted in order to receive the Bachelor degree from the University of Brasilia. It focuses on understanding the development and consequences of the antisemitism professed by Adolf Hitler. It is divided in three parts regarding the changes on the concept of antisemitism, their influence on the ideological framework of Adolf Hitler and its further political appropriations. Keywords: Antisemitism, Adolf Hitler, Holocaust Introdução O presenta artigo tem como objetivo sintetizar o esforço de pesquisa que resultou na monografia de final de curso intitulada “As Origens de uma Obsessão: Um estudo sobre o antissemitismo de Adolf Hitler.”ii Faz-se necessário, portanto, introduzir elementos relativos a questões historiográficas e metodológicas que nortearam o trabalho e permitem uma compreensão mais ampla da inserção deste trabalho no debate acerca do nacional-socialismo. A comunidade dos historiadores vem estudando de maneira sistemática o nacional-socialismo ao longo dos últimos 60 anos, algumas obras, no entanto, foram publicadas ainda na década de 1940, caso de Ernst Fraenkel e Franz Neumann.iii Ao longo das décadas seguintes, ao menos até meados da década de 1990, o debate se polarizou entre defensores de correntes opostas denominadas funcionalismo, ou estruturalismo, e intencionalismo. A primeira advoga a em favor de uma relevância limitada da figura de Adolf Hitler e um papel predominante das estruturas na manutenção e radicalização do regime. A segunda aponta na direção oposta, propondo um interpretação em que a figura do ditador austríaco seria determinante para o desenrolar dos acontecimentos. O antissemitismo tem lugar de destaque nessa controvérsia, pois parcela significativa do debate esta relacionada a explicação da “Solução Final”. Porém, ao contrário do que muitos acreditam, ainda não se atingiu um consenso acerca da relevância do antissemitismo para o assassinato em escala industrial levado a cabo sobretudo após 1941. Parcela dos historiadores enxerga o antissemitismo como condição suficiente para que o Holocausto ocorresse, outros, caso de Jocelyn Helligiv, veem o antissemitismo como condição necessária, porém não suficiente, para o genocídio. A segunda abordagem se estrutura sobre o argumento de que o antissemitismo não era um fenômeno exclusivo da Alemanha, bem como não seria o antissemitismo alemão o mais radical quando comparado por exemplo com o existente na França. A perspectiva supracitada tem se tornado cada vez mais popular a medida em que o debate se torna mais complexo. Sobretudo a partir da publicação da obra de Daniel Goldhagen, a polarização observada anteriormente cedeu lugar a abordagens mais complexas que buscam conjugar as duas perspectivas, tradição na qual se insere este trabalho. O objetivo da pesquisa realizada foi compreender Adolf Hitler inserido em um contexto, o que permitiu que suas ideias se formassem e se desenvolvessem oferecendo um abordagem mais complexa da importância do ditador nos acontecimentos que se seguiram e culminaram na concretização da “Solução Final”. O trabalho se divide originalmente em três capítulos, dedicados a cronologias distintas, porém fundamentais a compreensão das ideia manifestas por Adolf Hitler ao longo de sua vida. O primeiro momento esta relacionado a atualização do antissemitismo ocorrida ao longo do século XIX. O segundo momento está relacionado a infância e adolescência de Hitler, com destaque para o período em que o ditador viveu em Viena e para sua participação na Primeira Guerra Mundial. O terceiro momento está situado após o fim da Guerra, seu período em Munique e início de sua carreira política já durante a República de Weimar. Metodologicamente os desafios ao realizar uma pesquisas acerca desse tema são variados. O primeiro reside na escassez de fontes disponíveis acerca de diversos momentos da vida do à época jovem Hitler, o que demanda a utilização de mecanismos de imaginação histórica para compreender de forma razoável sua trajetória, como reconhecido inclusive por seus biógrafos. A língua alemã também representa um obstáculo. Visando minimizar o impacto metodológico do uso excessivo de traduções, recorri diversas vezes aos originais em trechos de especial interesse para a pesquisa, possibilitando a interpretação mesmo com um conhecimento ainda reduzido do idioma em questão. Aliado as fontes, parte da vasta historiografia acerca do tema foi consultada visando ampliar a compreensão dos aspectos analisados, tornando viável a realização do trabalho. O “Antissemitismo Moderno” O conceito utilizado por Einhart Lorenzv ilustra de maneira eficiente a transição que forneceu embasamento para o desenvolvimento das grandes teorias pseudo-científicas do século XIX. Historiadores como os já citados Daniel Goldhagen e Jocelyn Hellig, bem como Raul Hilbergvi, advogam em favor de uma interpretação com ênfase na longa duração chegando em alguns casos até o século XV. Porém esse autores muitas vezes tratam o século XIX de forma superficial, com objetivo de evidencias a longevidade do antissemitismo. Apesar de ser relevante compreender o antissemitismo de forma mais ampla na longa duração, as mudanças ocorridas no século XIX são determinantes para uma análise mais profunda da ideia de antissemitismo que forneceu suporte as concepções hitleristas acerca dos judeus. Trata-se de um período em que o paradigma científico se inseria em um ambienta anteriormente eminentemente religioso. Uma das obra que evidencia essa mudança é a de William Paley “Natural Theology”, ainda no século XVIII, que busca conjugar as duas perspectivas utilizando a ciência como ferramenta probatória da existência de Deusvii. Ao contrário do que as interpretações de Hellig, Hilberg e Goldhagen podem suscitar a relação das nações europeias, entre elas a Alemanha, com os judeus seguia uma tendência emancipadora como evidencia Harket. “Em alguns estados onde a emancipação se deu mais cedo, esta ficou fortalecida após o Congresso de Viena, em 1815, desde que não tivesse chegado na ponta da baioneta. Especialmente em Berlim, capital da Prússia, onde a bandeira da emancipação fora içada já antes da Revolução Francesa.viii A inversão desse momento favorável se deu sobretudo com a adoção do conceito de antissemitismo como ferramenta de luta política. Movimento que se popularizou na Alemanha já unificada com a contribuição de Wilhelm Marr e a criação da Liga Antissemita em 1879, responsável pelo publicação dos Antisemitische Hefte, Cadernos Antissemitas. Einhart Lorenz localiza um ponto central da transição referida anteriormente nesse mesmo ano, com a “benção acadêmica” conferida pelo historiador Heirich von Treitschke.ix Seus efeitos foram potencializados pela nacionalismo característico desse momento histórico. A Alemanha, talvez mais que qualquer outra nação europeia, precisou ser cunhada o que demandava a exclusão de determinados grupos que não partilhavam dos modelos de Deutschtum propostos. Além dos judeus os poloneses também foram alvo, já sob Bismarck, de um processo de “germanização”. Um discurso emblemático proferido por Bismarck em 1886 ilustra sua insatisfação com a situação dos poloneses, que em sua opinião não eram dignos de confiança.x No que tange a situação dos judeus o documento emblemático foi produzido pelo Congresso Antissemita de Dresden realizado em 1882. Esse evento é particularmente relevante pois grande parte das ideia apropriadas por Hitler estavam em maior ou menor grau postas no documento produzido pelos participantes.xi Alguns dos pontos presentes nesse documento são: o argumento da “nação dentro da nação”, os judeus como grande beneficiários da especulação no sistema financeiro global, o judeu como raça e seu consequente plano de dominação mundial. Todos facilmente associáveis as ideias apresentadas em Mein Kampf. É nesse contexto que nasce Adolf Hitler. As ideias presentes no referido documento irão ser desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo do processo de formação do futuro Führer, sendo improvável que Hitler não tivesse de alguma forma tido contato com esse referencial ideológico, ao contrario, as fontes apontam para um contato precoce com o ideário antissemita, porém é necessário certa cautela ao afirmar que Hitler seria um antissemita convicto nesse momento. A conversão A principal fonte utilizada por historiadores que defendem uma conversão precoce é a obra “Mein Jungendfreund” escrita por August Kubizek, melhor amigo do futuro ditador. Gerald Fleming é um dos historiadores que tomas essa perspectiva como referencia. Porém é importante ressaltar que Kubizek escreveu seu livro cerca de mais de 20 anos após os acontecimentos, possivelmente, como indica Kershawxii, por encomenda do Partido Nazista(NSDAP). Apesar de questionar o relato, Kershaw não põe em causa o contato de Hitler com ideias antissemitas, porém rejeita que ele, Hitler, houvesse se tornado um antissemita precocemente. Existem porém outras três hipóteses para a conversão do ditador. A primeira advoga que Viena teria sido o cenário na conversão, enquanto a segunda coloca a guerra como elemento fundamental e ainda a terceira que atribui a Munique a cristalização das ideias antissemitas de Hitler. Este capítulo se concentra nas duas primeiras enquanto o terceiro se dedica a avaliar a terceira. Viena foi sem dúvida um momento marcante na vida de Hitler, porém também não pode ser tratado como marco da “conversão”. Apesar da relevância atribuída por Hitler a esse momento de sua vida, criou-se entre os historiadores relativo consenso sobre uma conversão posterior. Não se trata de negar a importância de Viena na formação da ideia de antissemitismo, porém a ausência de outras fontes que corroborem o testemunho do ditador fez com que vários dos principais nomes da historiografia, dos quais podemos citar Kershaw, Evans e Lukacs, adotassem 1919 como momento decisivo para o antissemitismo de Hitler. Viena no entanto apresentou Hitler a uma das figuras que se tornaria um modelo, abordagem defendida por Lukacsxiii em uma de suas notas, Karl Lueger. Fest define bem tal relação ao afirmar que “sua influência sobre Hitler marcou menos sua ideologia do que a patologia que lhe servia de base”. De fato, as fonte indicam que Hitler teria sido mais significativamente influenciado por outras fontes tais como Jörg von Liebenfels e Georg Ritter von Schönerer. Porém, Lueger moldou Hitler para além do antissemitismo que professava. Se tornou um modelo de atuação política para o ditador. Lukacs compara o encanto exercido por Hitler sobre as mulheres ao de Luegerxiv. Suas posturas como orador e conforto diante das massas certamente beberam na fonte do político austríaco, elemento corroborado pelo elogio em Mein Kampfxv. Os relatos não são conclusivos, alguns afirmam que Hitler teria se mudado para Munique em 1913 um antissemita convicto, outros afirmam que ele não seria de forma alguma um antissemita. O consenso se estrutura sobre o fato de esta passagem de Mein Kampf provavelmente foi utilizada como ferramenta retórica visando criar uma espécie de “estrada de Damasco” antissemita. Ao contrario das abordagens apresentadas até aqui, a hipótese de que sua conversão teria se dado durante a guerra tem apoio de grandes nomes da historiografia tais como Kershawxvi, Evansxvii e Friedlämder.xviii No entanto o principal nome defensor dessa tese é o jovem historiador Thomas Weber. Em seu livro intitulado “Hitler's First War”xix, Weber questiona alguns aspectos relacionados ao período em que Hitler serviu as forças armadas alemãs. Para esse autor estava claro, ao menos em 1916, que Hitler já havia se tornado um antissemita. Ele cita o ódio de Hitler por um oficial judeu, Hugo Gutmann, o que exemplifica para esse autor a abertura com que Hitler tratava o tema ainda durante a guerraxx. A guerra acabou se tornando um terreno fértil para extremismos, dentre os quais o autor destaca o avanço da extrema direita, o que possibilitou o florescimento do antissemitismo em meio a sociedade alemã, sobretudo nos grandes centros urbanos.xxi A principal fonte utilizada na análise de seu retorno a Baviera, e tida como prova fulcral da conversão de Hitler é uma declaração escrita em 1919, em resposta a Adolf Gemlich. Já nesse documento, Hitler retoma vários dos argumentos apresentados no Congresso Antissemita de Dresden, porém sua defesa acerca do judaísmo como raça é curiosamente vaga e superficial. A única referência a elementos biológicos no texto está implícita no conceito de “raça”. Hitler busca construir a imagem da “raça judaica” por meio da negação do judaísmo como parte da germanidade, “das Deutchtum”, ou seja, características “raciais” alemãs. Hitler parece buscar seu embasamento, de forma indireta, em Haeckel e Gobineau, dois teóricos que defendem uma noção de raça direcionada a elementos culturais, tais como evolução linguística e moral. Apesar da existência trabalhos que sustentassem abordagens biológicas, como os de Francis Galton e August Weissman, Hitler parece não os conhecer ou não dar importância a eles, adotando o que poderíamos chamar de “antissemitismo völkisch”. Seu antissemitismo tem menos embasamento em elementos genéticos, concentrando-se em aspectos formadores de identidade, caracterizando “o judeu” por meio da oposição ao que ele, Hitler, acreditava ser o alemão. O “antissemitismo völkisch” manifestado por Hitler nesse momento caracteriza-se portanto por uma rejeição ao outro com base em sua identidade nacional e não propriamente a sua nacionalidade. Hitler inclusive prevê a possibilidade de que características raciais sejam abandonadas voluntariamente.xxii Antissemitismo: determinante ou acessório? Esse último momento a ser tratado aqui pode ser dividido em dois períodos distintos. O primeiro se caracteriza pela difusão das ideia antissemitas de Hitler abertamente, direcionado sobretudo para seus correligionários. O segundo seria caracterizado por uma utilização reduzida de argumentos antissemitas que ocorre sobretudo após a tentativa fracassada de golpe e tem por objeto atrair um público mais amplo para a base do NSDAP. Heilbronner sintetiza esse fenômeno na seguinte passagem. “Millions of Nazi voters did not cast their vote for the party because they were antisemites. They were prepared to accept the Nazi Party’s 1920 programme, including the antisemitic paragraph, only if the party offered them bread, jobs and hope for the future.” xxiii Porém não podemos ignorar, sob pena de subestimar seu papel, que o antissemitismo expandiuse dentro do território alemão após 1918. Nesse mesmo ano movimentos populares de cunho antissemita ocorreram em Munique e Berlim.xxiv Novamente em 1923/24, de forma ainda mais radical, em varias partes do território alemão.xxv Apesar dos episódios citados, não parece pertinente comparar a atmosfera de Munique, mesmo após a guerra, com o que Hitler vivenciou em Viena, onde o antissemitismo era demasiado virulento. Observa-se nesse cenário uma diminuição acentuada no número de discursos cujo cerne é a difusão de argumentos antissemitas. Isso é o que leva muitos historiadores. Cabe ressaltar que mesmo após 1924, como nos lembra Needler, o antissemitismo era um fator importante de coesão e que conferia certa continuidade as propostas apresentadas ao longo desse período.xxvi Para esse autor, mesmo diante dessa ausência, o antissemitismo continuou a ser um elemento de propaganda importante para os nazistas. Porém, quando avaliamos de forma ampla o apelo antissemita do NSDAP, torna-se pertinente a referência a Allen ao analisar a ascensão do nazismo em uma pequena cidade alemã, referindo-se ao antissemitismo popular como consequência do apoio ao nazismo e não o contrárioxxvii. Não há muito a acrescentar em relação ao segundo momento tratado até aqui, porém a evolução das ideias de Hitler que culminariam na obra Mein Kampf são pertinentes a reflexão traçada ao longo do trabalho. Muitos dos argumentos apresentados em 1919 se mantem o que denota certa continuidade , porém a medida em que nos aproximamos de 1924 eles sofrem pequenas atualizações. Não cabe aqui tratar uma a uma, no entanto parece pertinente citar alguns elementos essenciais. Uma das essências da argumentação de Hitler é a “ausência de idealismo” dos judeus. Hitler atribui ao judeu a característica essencial da autopreservação, elemento que permeia todo o texto. Esse seria para Hitler o cerne do “comportamento judeu” do qual derivam outros desvios inerentes a raça “que apresenta maior contrate com o ariano”xxviii. Sua coesão, chamada “solidariedade racial”xxix por Hitler, se manifestaria diante de um contexto em que se sintam ameaçados. Hitler compara os judeus a um grupo de lobos que caçam juntos, mas separam-se após saciar sua fome. Uma consequência direta desse instinto de autopreservação seria o caráter supranacional da “nação” judaica. Como vimos em Friedländerxxx, os judeus estavam longe de constituir um todo coeso, mesmo em momentos de crise. A assimilação se dava em níveis distintos, mas sua identificação nacional residia majoritariamente no país que os acolheu. Para o Führer a ausência de um correspondente territorial advinha da supracitada ausência de idealismo, por sua vez intimamente relacionada uma atitude positiva em relação ao trabalho.xxxi Ao contrário do ariano, “o judeu”, para Hitler, era avesso ao trabalho o que o tornaria incapaz de erguer um Estado próprio. Além do trabalho a não constituição de uma civilização é outro elemento que impossibilitaria o estabelecimento de um Estado-nação judeu, que no texto é exemplificado pela ausência de uma expressão artística própria. Os judeus seriam portanto parasitas, que se beneficiavam da apropriação de elementos de outras raças. Apesar da existência de documentos produzidos por outros autores, o que possibilitaria uma análise mais detalhada, eles não foram utilizados, pois desviariam o foco do trabalho das especificidades da formação ideológica de Hitler, acarretando prejuízos a análise. Considerações Finais O presente artigo teve por objetivo comunicar os resultados da pesquisa realizada para confecção de trabalho de conclusão de curso, apesar das limitação que não permitiram um desenvolvimento mais aprofundado acredito ter elucidado alguns dos pontos que abordei ao longo da pesquisa que podem ser condensados em algumas conclusões essenciais. O primeiro ponto está relacionado a inserção de Hitler em seu contexto. Ao analisarmos o seculo XIX, podemos constatar um certo grau de continuidade entre as ideias professadas por antissemitas do período e posteriormente as ideias defendidas por Hitler. Portanto, Hitler não foi inovador, a única inovação reside talvez na condensação de correntes distintas do pensamento antissemita em um único conjunto de premissas. O segundo ponto esta relacionado a ideia de progresso. Apesar de haver certo consenso acerca da conversão de Hitler após a guerra, acredito ser relevante compreender tal momento em sua totalidade. Um processo que culminaria não em 1919, mas em Mein Kampf. Seria necessário, porém, um estudo mais aprofundado das ideias professadas ao longo da década de 1930 pare estabelecer se houve de fato uma cristalização das ideias antissemitas professadas por Hitler ou se as mudanças se estendem além de Mein Kampf. O terceiro e último elemento esta relacionada a importância do antissemitismo na ascensão de Hitler e do NSDAP ao poder na Alemanha. Observa-se uma mudança clara na estratégia adotada após o fracassado Putsch da Cervejaria, o que denota que o antissemitismo possui impacto relativo como meio de propagando ao contrário do que defende Goldhagen. Trata-se de uma pesquisa mais ampla, em que temas foram abordados em maior detalhe bem como suas implicações foram analisadas com maior clareza, gerando resultados outros além dos expostos nesse breve artigo. Porém para os fins propostos de divulgação dos resultados a presente iniciativa se mostra satisfatória oferecendo ao leitor uma breve reflexão acerca de um dos elementos cuja influência no século XX é inegável. Fontes Stenographische Berichte über die Verhandlungen des Preußischen Hauses der Abgeordneten[Stenographic Reports on the Proceedings of the Prussian House of Representatives], 19 LP, III Session, Vol. 1, pp. 173-74. Disponível em: http://germanhistorydocs.ghidc.org/sub_document.cfm?document_id=771 Acessado em: 17/07/2013 Stenographische Berichte über die Verhandlungen des preußischen Abgeordnetenhauses [Stenographic Reports on the Proceedings of the Prussian House of Representatives], 14th legislative period 1885/88, 1st Session, vol. 1, 8th Meeting, Berlin, January 28, 1886, pp. 164ff; reprinted in Otto von Bismarck, Werke in Auswahl. Jahrhundertausgabe zum 23. September 1862 [Selected Works. Centennial Edition for September 23, 1862], ed. 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Oxford: Oxford University Press, 2010. i Bacharel e Licenciado em História pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected] ii Trabalho de conclusão de curso orientado pelo professor Wolfgang Döpcke. Disponível em: http://bdm.bce.unb.br/bitstream/10483/5786/1/2013_Vin%C3%ADciusBivarMarraPereira.pdf iii BERG, Nicolas. The invention of “Functionalism”: Josef Wulf, Martin Broszat, and the Institute for Contemporary History (Munich). p. 37 iv HELLIG, Jocelyn. The Holocaust and Antisemitism: a short history. Oxford: Oneworld, 2003. v LORENZ, Einhart. Berlim: O Desenvolvimento do “Anti-Semitismo Moderno”. In: ERIKSEN, at al. História do AntiSemitismo. Lisboa: 70, 2010. p.295-314 vi HILBERG, Raul. The destruction of European Jews: precedents. In: BARTOV, O. The Holocaust: Origins Implementation, Aftermath. New York: Routledge, 2001. pg. 21-42. vii Para maiores detalhes ver: TESS, Cosslett. Science and Religion in the Nineteenth Century. New York: Cambridge University Press, 1984. p.25 viii HARKET, Håkon. Alemanha: No pensamento da violência. In: ERIKSEN, at al. História do Anti-Semitismo. Lisboa: 70, 2010. pg. 194 ix Ver: LORENZ, Einhart. Berlim: O Desenvolvimento do “Anti-Semitismo Moderno”. In: ERIKSEN, at al. História do Anti-Semitismo. Lisboa: 70, 2010. pg. 297 x Stenographische Berichte über die Verhandlungen des preußischen Abgeordnetenhauses [Stenographic Reports on the Proceedings of the Prussian House of Representatives], 14th legislative period 1885/88, 1st Session, vol. 1, 8th Meeting, Berlin, January 28, 1886, pp. 164ff; reprinted in Otto von Bismarck, Werke in Auswahl. Jahrhundertausgabe zum 23. September 1862 [Selected Works. Centennial Edition for September 23, 1862], ed. Gustav Adolf Rein et al., 8 vols, vol. 7, Reichsgestaltung und Europäische Friedenswahrung [Formation of the Reich and Keeping Peace in Europe], Part 3, 1883-1890, ed. Alfred Milatz. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2001, pp. 352-78. Disponível em: http://germanhistorydocs.ghi-dc.org/sub_document.cfm?document_id=1840 xi Manifest an die Regierungen und Völker der durch das Judenthum gefährdeten christlichen Staaten laut Beschlusses des Ersten Internationalen Antijüdischen Kongresses zu Dresden am 11. und 12. September 1882[Manifesto to the Governments and Peoples of the Christian Nations Threatened by Judaism”: The First Anti-Jewish Congress in Dresden (September 11-12, 1882)]. Chemnitz, Sachsen: Verlag von Ernst Schmeitzner, 1882, pp. 1-14. [Bundesarchiv, ZSg 2/15 (4)]. Dispon;ivel em: http://germanhistorydocs.ghi-dc.org/sub_document.cfm?document_id=581 xii KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. pg.45 xiii LUKACS, John. O Hitler da História. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.196n.23 xiv Idem. xv KERSHAW, Ian. Hitler: Um perfil no poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p.27 xvi KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. pg. 94 xvii Evans, Richard J. (22 June 2011)."How the First World War shaped Hitler".The Globe and Mail(Phillip Crawley). xviii FRIEDLÄNDER, Saul. From Anti-Semitism to Extermination. Jerusalem: Yad Vashem, 1976. pg. 5. Disponível em: http://www.yadvashem.org/untoldstories/Documents/studies/Saul_Friedlander.pdf xix WEBER, Thomas. Hitler's First War. Oxford: Oxford University Press, 2010. xx Idem. p. 173 xxi Idem. xxii „Hitler an Gemlich. München, 16. September 1919“, HStA München. Abt. II. Gruppen Kdo. 4. Bd. 50/8. Abschrift; abgedruckt in Ernst Deuerlein, „Hitlers Eintritt in die Politik und die Reichswehr“, Vierteljahrshefte für Zeitgeschichte, 7. Jahrgang, 2. Hefte/Abril 1959, pg. 203-05. Disponível em: http://germanhistorydocs.ghidc.org/sub_document.cfm?document_id=3909 xxiii HEILBRONNER, Oded. German or Nazi Antissemitism? In: History in Focus, Londres, vol. 7, 2004. p. 9. Disponível em: http://www.history.ac.uk/ihr/Focus/Holocaust/stone.pdf xxiv ABEL apud KATER, Michael H. Everyday Antisemitism in Pre-War Nazi Germany: The Popular Basis. Jerusalem: Yad Vashem, 1984. p. 5. Disponível em: http://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205618.pdf xxv WISSMANN apud KATER, Michael H. Everyday Antisemitism in Pre-War Nazi Germany: The Popular Basis. Jerusalem: Yad Vashem, 1984. p. 5. Disponível em: http://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20%205618.pdf xxvi NEEDLER, Martin. Hitler's Anti-Semitism: A Political Appraisal. In: The Public Opinion Quarterly, Vol. 24, No. 4, 1960. p. 668. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2746534 . xxvii ALLEN apud HARTMANN, Dieter. Anti-Semitism and the Appeal of Nazism. In: Political Psychology, Vol. 5, No. 4, 1984. p. 636. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3791234 . xxviii HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo: Centauro, 2001. p. 222 xxix Idem. p. 224 xxx FRIEDLÄNDER, Saul. Nazi Germany and the Jews 1939-1945: The Years of Extermination. New York: Harper Perennial, 2008. pg. 6 xxxi HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo: Centauro, 2001. p. 225