GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL RELATÓRIO DE PESQUISA “CÓDIGOS PÚBLICOS: um olhar quilombola sobre a resolução de conflitos” Relatório técnico relativo às atividades realizadas durante os meses de vigência do projeto (janeiro de 2012 a julho de 2012) São Luís Agosto/2012 .1 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL RELATÓRIO DE PESQUISA “CÓDIGOS PÚBLICOS: um olhar quilombola sobre a resolução de conflitos”. EQUIPE TÉCNICA CONSULTORA Coordenação: Karla Suzy Andrade Pitombeira Pesquisadores – juniores: Glenda Ribeiro Pinto Hélia Fernanda Moura Chaves Hesaú Rômulo Braga Pinto São Luís Agosto/2012 .2 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL Apresentação A pesquisa “Códigos Públicos: um olhar quilombola sobre a resolução de conflitos” consiste numa parceria entre a Terre des Hommes Lausanne no Brasil (TdH) e a Secretaria de Estado Extraordinária de Igualdade Racial (SEIR), um projeto piloto desenvolvido em 8 (oito) comunidades quilombolas localizadas nos municípios de Alcântara e São José de Ribamar (MA). Com foco na Justiça Juvenil Restaurativa, o projeto busca compreender por meio do diálogo aportado pelo instrumental antropológico, através de quais mecanismos os jovens das comunidades quilombolas1 estabelecem relações voltadas à resolução de conflitos2, considerando que estes compõem grupos tradicionais com elementos identitários socialmente diferenciados de outros agentes sociais. A identidade destes grupos está atrelada ao território ocupado e ao processo de ressignificação dos valores ancestrais e culturais e, por conseqüência, dos mecanismos engendrados para resolução de conflitos ocorridos dentro do espaço social que constituem seu território3. Portanto, o trabalho empreendido está balizado pela cosmovisão (valores, significados, e interpretação) que as comunidades tradicionais quilombolas em questão atribuem aos códigos públicos4 engendrados em sua práxis social. Ou seja, como estas 1 As comunidades quilombolas são grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas e com ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, conforme Decreto nº 4887/03. 2 A noção de conflito a que estamos considerando refere-se àquela abordada pelo sociólogo alemão George Simmel (1858-1919) que considera que as relações sociais podem prefigurar relações conflitivas (de interesse mútuo, subordinação e dominação). Assim, a sociedade é caracterizada como produto de interações individuais no qual se desenrolam os conflitos, ele entende que é o conflito que garante a unidade do grupo. Aliás, o conflito é necessário para que a sociedade consiga se manter em termos de coesão . O conflito é um meio de resolver as divergências e promover as mudanças. Tais mudanças são possíveis porque os elementos negativos e positivos que geraram o conflito interagem e interagindo levam lentamente as reformas na sociedade. 3 O território inscreve limites, indica a presença de fronteira concreta e/ou simbólica. 4 No contexto em questão os mecanismos de resolução de conflitos podem ser compreendidos como códigos públicos, na perspectiva de que a validação da aceitação de tais mecanismos é legitimada coletivamente. .3 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL comunidades constroem e validam coletivamente os mecanismos para resolução de conflitos, que nessa perspectiva podem ser interpretados como ações culturais. Trata-se, nesse sentido, de uma abordagem que permitirá outra leitura sobre o modus operandi acionado pelas comunidades quilombolas de Juçatuba (São José de Ribamar), Santo Inácio, Castelo, Jacaré, Tijuca, Vila Nova, Caratatiua e Capim-Açu5 (Alcântara) com vistas ao processo de administração de seus conflitos de modo a dimensionar os processos políticos e sociais como suscetíveis de enfoques interdisciplinares6, o que desvela possibilidades de interpretação crítica sobre o modelo de justiça estabelecido contemporaneamente. Noutros termos, sobre sua aplicabilidade em contextos plurais de forma indistinta. Metodologia Realizar uma pesquisa qualitativa em comunidades quilombolas já necessita de antemão de cautela no que diz respeito à forma como o tema em questão será abordado. Isto por diversos motivos. Primeiramente, por se tratar de um grupo humano de traços tradicionais, onde os vínculos entre os indivíduos se manifestam de maneira a reforçar alguns aspectos - de solidariedade, por exemplo - e apresentar diferenças em relação ao modo de vida urbano. Resumindo, trata-se, sobretudo, de uma forma de organização peculiar e diferente - levando em conta o olhar do observador. Em segundo lugar, por haver uma resistência da comunidade em permitir que “pessoas estranhas” entrem nos seus espaços, perguntem sobre suas vidas e não tragam nenhum resultado7. Há nesses lugares uma ação muito interessante do ponto de vista da defesa de seu patrimônio, tanto material (documentos, fotografias, registros históricos da comunidade) como imaterial (manifestações culturais, informações particulares e públicas) que os resguarda à posição de simplesmente rejeitar a possibilidade de estudo. 5 As comunidades quilombolas Jacaré, Tijuca, Vila Nova, Caratatiua e Capim-Açu estão localizadas na Ilha do Cajual, também conhecida como Santana dos Pretos. 6 Esta pesquisa também reflete o diálogo entre a ciência jurídica e as ciências sociais, sobretudo socioantropológico. 7 Destaque-se o mal estar da comunidade em relação à presença de pesquisadores no local, dada a experiências anteriores. .4 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL Assim, o tema do conflito - assim como diversas categorias que orbitam a seu redor- torna-se duplamente sensível no que tange a recepção em uma comunidade quilombola. A equipe adotou por estratégia a aproximação gradativa que, entre outras coisas, diz respeito a um processo lento de conquista de confiança dos moradores e futuros informantes. A pesquisa etnográfica requer do pesquisador a permanência no campo, o estabelecimento de relações de confiança e o diálogo com os “nativos”, o que se executa através da imersão do pesquisador no campo empírico envolvido (BEAUD & FLORENCE: 2007). A partir de tal postura metodológica, faz-se um esforço interpretativo da cultura8 dos pesquisados, realizando-se a pesquisa por etapas. Dessa maneira, a temática do conflito não foi a prioridade nos momentos iniciais da pesquisa, ademais, sequer mencionada. Buscou-se levantar dados referentes ao histórico da comunidade, suas formas de lazer, enfim, a sua organização social, seu modo de vida para em seguida, junto aos jovens das comunidades, identificar mais intimamente as práticas de resolução de conflito. A observação direta, a permanência na comunidade, o diálogo informal, a participação integral em atividades internas9 foram utilizadas de maneira a se apropriar, não do verdadeiro, mas de um ponto de vista aproximado sobre a realidade das comunidades. As comunidades pesquisadas foram escolhidas a partir de um diálogo da equipe com informações obtidas em instituições que trabalham com a questão fundiária de regularização de territórios étnicos e assentamentos (INCRA10), instituições de 8 O conceito antropológico de cultura é definido como um esforço interpretativo para se compreender os códigos empregados em determinadas culturas. Para Clifford Geertz (1978) deve ser entendida como uma teia de significados para os quais o pesquisador deve buscar a interpretação. 9 O jogo de futebol, os preparativos da festa, momentos de lazer, rodas de diálogo, a briga de bois. 10 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Órgão responsável pela política nacional de reforma agrária, a qual envolve, dentre outros aspectos, a regularização fundiária de territórios ocupados por remanescentes de quilombos, com base no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT/Decreto 5051/04) e no Decreto Presidencial 6040/07 que define povos e comunidades tradicionais como grupos étnicos com organização social distinta. .5 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL mapeamento territorial do Estado como o (ITERMA)11 e gestores locais. A partir disso, foi delimitada a região metropolitana de São Luís como área de atuação da pesquisa. Na ilha de São Luís (Ilha de Upaon-Açu), a comunidade quilombola de Juçatuba, pertencente ao município de São José de Ribamar, possui certificação pela FCP (Fundação Cultural Palmares) desde o ano de 2007, além de se encontrar em uma confluência: pertencer marcadamente à zona rural, no entanto, estar sob forte influência das possibilidades urbanas oferecidas pela cidade de São Luís. O projeto foi executado em municípios localizados na região metropolitana de São Luis, sendo encontradas comunidades quilombolas nos municípios de São José de Ribamar e Alcântara. Em São José de Ribamar foi identificada 12 apenas uma comunidade quilombola denominada de Juçatuba. Compreendendo também a região metropolitana de São Luís, no município de Alcântara foram identificadas 162 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares 13. Diante disso, tornou-se um desafio selecionar comunidades em um universo tão rico e disponível. Assim, a equipe selecionou as comunidades de Castelo e Santo Inácio 14, bem como as 5 (cinco) comunidades que compõem a Ilha do Cajual15. Além da escolha de comunidades pertencentes à região metropolitana de São Luís, adotou-se também como critério, escolher áreas com certificação da Fundação Cultural Palmares e não remanejadas, no caso de comunidades localizadas em Alcântara. Adotando o mesmo critério de pertencimento a uma área metropolitana, para 11 Instituto de Terras do Estado do Maranhão, ação de regularização de terras se restringe ao âmbito de competência do Estado. 12 Segundo dados do levantamento feito pelo INCRA acerca de comunidades quilombolas do Estado do Maranhão, o município de São José de Ribamar possui apenas a comunidade de Juçatuba, identificada e reconhecida pela Fundação Cultural Palmares em 2007, ano a partir do qual, a comunidade se autoidentificou como remanescente quilombola. Juçatuba possui processo de regularização fundiária de seu território no INCRA desde o ano de 2007, tramitando sob o n°. 54.230.000437/2007-43. 13 Dados obtidos no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) de Alcântara o qual desenvolve atividades de acompanhamento e assistência social junto às comunidades quilombolas daquele município. 14 Segundo dados do INCRA, as comunidades de Castelo e Santo Inácio formam um único território, possuindo processo de regularização fundiária tramitando nesta autarquia sob o n°. 54.230.004789/200425. 15 No INCRA consta o processo de n°. 54.230.001872/2007-95 referente à comunidade quilombola Vila Nova localizada na Ilha do Cajual. As outras quatro comunidades quilombolas que compõem a Ilha do Cajual são Caratatiua, Tijuca, Jacaré e Capim-açu. .6 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL as comunidades quilombolas de Alcântara, a equipe escolheu comunidades que, além de certificadas, não sofreram remanejamento. Ademais, foram escolhidas comunidades que não receberam pesquisas na área de ciências humanas16. É sabido que Alcântara17 recebe um número expressivo de pesquisadores, mesmo assim, existem comunidades que não são frequentadas com recorrência18. No caso da Ilha do Cajual19, o acesso é um fator que dificulta a entrada de pesquisadores. Ainda assim, as comunidades recebem estudantes, professores que buscam realizar pesquisas nas áreas paleontológicas e biológicas . O contato com os moradores é escasso, uma vez que atracam na praia e lá mesmo permanecem. RESULTADOS E DISCURSOS ○ Juçatuba/ São José de Ribamar Juçatuba pertence à zona rural do município de São José de Ribamar, estando localizado entre a Baía de São José e o município de São Luís. Apesar de pertencer à zona rural, a comunidade quilombola de Juçatuba possui infraestrutura urbana, com fornecimento de energia elétrica, transporte coletivo, coleta de lixo, duas escolas públicas de ensino fundamental e uma de ensino médio, posto de saúde, água encanada e, a maioria das casas construídas de alvenaria. 16 O Projeto Nova Cartografia Social da Universidade Federal do Amazonas lançou em 2007 o fascículo “Quilombolas atingidos pela Base Espacial-Alcântara”. O remanejamento compulsório de famílias quilombolas para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara, realizado na década de 1986 e 1987 pela Agência Espacial Brasileira, é tema de pesquisas como a realizada pelo historiador Davi Pereira Júnior em “Quilombos de Alcântara: território e conflito”, no qual o autor investiga a invasão e devastação de áreas quilombolas como as comunidades de Mamuna, Baracatatiua e Brito por empresas terceirizadas pela empresa binacional Alcântara Ciclone Space. 17 Em 2009 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN realizou um levantamento sobre os saberes e manifestações culturais de Alcântara reunidos no “Inventário Nacional de Referências Culturais do Município de Alcântara”, organizados pelos pesquisadores Benedito Souza Filho e Maristela de Paula Andrade, incidindo sobre as comunidades quilombolas denominadas Mamuna, São João de Cortes, Itamatatiua, Samucangaua, Cajual, Brito e a sede do município. 18 O caso de Santo Inácio e Castelo, que não estão em área de remanejamento, ou seja, não estão impactados diretamente pela Base de Lançamento Aeroespacial de Alcântara. Por esse motivo não se encontram em evidência que se equipare com outras comunidades do município. 19 Na Ilha do Cajual são realizadas pesquisas sobre fósseis e animais vivos, desde 1992. Alguns resultados de pesquisas podem ser encontrados no Museu de História e Arqueologia do Maranhão e na Universidade Federal do Maranhão – UFMA. .7 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL Nesta comunidade quilombola ainda são realizadas festividades tradicionais que mobilizam toda a comunidade, como o festejo de Nossa Senhora Mãe dos Homens, o levantamento de mastro, reza com ladainhas (em latim ressignificado) e têm rezadeira e uma parteira ainda viva. Eles possuem o “Boi de Juçatuba”, que faz apresentações folclóricas em períodos juninos e seis times de futebol20 que envolvem a maioria dos adolescentes da comunidade. Os moradores antigos relatam que a comunidade existe há aproximadamente 300 anos. Conta-se que escravos fugidos Portugal, por sobrenome Garcês, teriam chegado a este local numa embarcação e se refugiado ali, desenvolvendo atividades de pesca e agricultura. A partir da orla marítima teriam entrado mais para o continente e descoberto a abundância de juçara (açaí), daí o nome do bairro Juçatuba, derivar de juçara ou juçaral. Depois de certo tempo, um padre de sobrenome Monroe, vindo da Inglaterra se apaixonou por uma nativa e resolveu largar o ofício; a partir da união dos Garcês e Monroe, têm-se o tronco familiar que organiza as relações de parentesco em Juçatuba, composto também pelos descendentes de sobrenome Cascaes21. O povoamento então adentrou o interior do continente, estabelecendo-se a maior concentração demográfica a 7 km da orla marítima, que serviu de ponto inicial para o povoamento. Atualmente, a orla encontra-se tomada por empreendimentos de especulação imobiliária, articulados por pessoas com aparente poder econômico e político. Segundo relatos, a ocupação da orla22 começou há mais de 20 (vinte) anos, aproximadamente, com a venda de suas terras o que deu origem a uma rota turística à praia localizada no território da comunidade chamada Unicamping23, cujo acesso é feito atravessando o bairro a partir de sua estrada principal. Nesta praia se reúnem, sempre 20 Os times de futebol são: Estrela, Juventus, Atlético, Esporte, Grêmio e União. 21 As famílias Garcês, Monroe e Cascaes, são consideradas pelos pesquisados como as principais famílias de Juçatuba. Atualmente, as agentes de saúde registram a presença de outros sobrenomes como Correa, Costa, Gouveia e Sousa. Atualmente, existem 319 famílias cadastradas como moradoras do bairro, perfazendo um total de 1.429 pessoas, dos quais 195 são adolescentes e jovens. 22 Segundo informações dos agentes de saúde existem aproximadamente 30 casas na orla, cujos proprietários não aceitaram se cadastrar como moradores de Juçatuba. 23 Relata-se que o nome UNICAMP foi atribuído por pessoas estranhas à comunidade que se instalaram na orla, no entanto a praia era chamada pelos nativos de “praia de Juçatuba”. .8 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL aos finais de semana, uma concentração bem expressiva de pessoas “estranhas” aos moradores de Juçatuba. A partir do entrelaçamento das famílias Garcês, Monroe e Cascaes, os moradores de Juçatuba se percebem como um grupo homogêneo, ou seja, dizem que formam uma só família. Os vínculos de parentesco se manifestam na maneira como estes quilombolas resolvem seus problemas e conflitos24 cotidianos, havendo uma clara distinção entre a maneira de resolução dos conflitos para os que pertencem ao grupo (os que são de dentro) e os que não pertencem (os que são de fora). Por exemplo, em conversa com os adolescentes e jovens do bairro foram citados alguns casos de tentativa de homicídio, manifestação pública, dentre outros, nos quais a comunidade acionou o sentimento de pertencimento em favor da manutenção do grupo. Na comunidade de Juçatuba, alguns dos informantes enfatizaram a ausência de conflitos no local, entendendo por conflito “guerra entre países”. Na verdade, situações conflitantes foram relatadas, no entanto a comunidade não a percebia desta forma. Segundo dados do Relatório de Ocorrências Policiais em Juçatuba (de 2008 á 2011), foram registrados alguns casos envolvendo o uso de arma de fogo, manifestação pública, perturbação do sossego alheio, conduta inconveniente, provocação de tumulto, dano e depredação. Não havendo registro de roubo ou homicídio naquele período. A partir das situações conflitantes mencionadas pelos entrevistados, selecionamos (06) seis casos, sendo que alguns deles constam no relatório policial citado; informou-se ainda que em Juçatuba, ocorrem brigas e desentendimentos entre vizinhos, insultos durante os jogos de futebol e discussões nos bares, mas que isso não se configura em motivo de rixas entre as famílias, ou mesmo desdobra-se em homicídio. Os casos A, B, C, D, E, F são informados a seguir. Uso de arma de fogo (caso A). Em 2010, um motorista e três motoqueiros estiveram envolvidos neste fato. Quando escutados sobre o caso A, os informantes 24 Para George Simmel (1858-1919), o conflito faz parte das ações interativas, estando presente, portanto, no cotidiano das pessoas. Outros autores definem o conflito como “uma situação de incompatibilidade de metas, ou a percepção de que estas são incompatíveis, ocorrendo em nível intrapessoal, interpessoal ou intragrupal”. (ARMANI, 1984, p.216, apud Callado, 2004, p. 23). Ou ainda segundo Jares (1991), “O conflito caracteriza-se por ser um tipo de situação em que as pessoas ou grupos sociais procuram ou preservam metas opostas, afirmam valores antagônicos ou têm interesses divergentes” (JARES, 1994, p.108, apud Callado, 2004, p. 23). .9 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL detalharam que se tratava de um policial e moradores do bairro. O primeiro vinha da praia, num dia de domingo à tarde e resolveu estacionar seu carro no meio da estrada, impedindo a passagem de outros transeuntes; um motoqueiro e seus caronas insultaramno e logo começaram a discutir com o policial que demonstrava sinais de embriaguez; o suposto policial embriagado atirou contra um dos rapazes da moto. Manifestação pública (caso B). Até o ano de 2008, os moradores dependiam de transporte publico fornecido apenas para os bairros de Santa Maria e Bom Jardim 25 e isso ocasionava muito constrangimento. No caso do bairro de Bom Jardim, os moradores de Juçatuba geralmente alegaram não manter boas relações com eles. O motivo está relacionado, provavelmente, devido a problemas fundiários, pois segundo informações, terras pertencentes à Juçatuba foram vendidas e transformadas no assentamento Bom Jardim. Perturbação do sossego alheio (caso C). O excesso de barulho causado pelas radiolas de reggae e pelos bares em horários inadequados tem gerado incômodos, sobretudo aos mais velhos. Mas o fato não chega a ser intensivo, geralmente ocorre quando há festividades no local. Brigas entre vizinhos (caso D). Um determinado morador resolveu construir sua casa em local impróprio impedindo o trânsito de outros moradores pelo local26; depois de muito discutirem entre si, a Associação de Moradores foi acionada. Brigas entre vizinhos são comuns em Juçatuba; às vezes, as pessoas podem até ficar sem se falar, mas não se tornam inimigas; depois de algum tempo, retomam suas relações, sem rixas. Insultos e palavrões (caso E). Durante os jogos de futebol podem ocorrer insultos, palavrões, e até agressões físicas, no entanto, assim como as brigas entre vizinhos, os desentendimentos se desfazem. Discussões no âmbito doméstico (caso F). Outras situações como brigas entre marido e mulher não chegam a envolver a coletividade, ou seja, a comunidade não interfere nestes tipos de relações, muito embora, cooperem com os casais no sentido de aconselhamento. 25 Bairros pertencentes também ao município de São José de Ribamar, que ficam próximos a Juçatuba. 26 Conta-se que a casa teria sido construída num “local de passagem” dos moradores, uma espécie de rua. .10 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL Práticas resolutivas Na comunidade de Juçatuba observou-se que as situações conflituosas podem ser divididas em dois tipos: envolver a coletividade ou apenas particulares. Nos Casos A, B e C, pode ser percebido o forte vínculo da comunidade em favor de interesses públicos, reforçando sua identidade27 como quilombolas. Os Casos D, E, F podem ser classificados como de particulares. No caso A, o que aconteceu foi grave e causou muito tumulto na comunidade. Como o ofensor era “de fora”, os moradores disseram que a comunidade se uniu e bateu no policial, tomou-lhe a arma, e ainda depredou o seu carro, logo depois a polícia foi chamada, mobilizando 13 viaturas. No caso B, a comunidade reuniu-se com empresários do setor de transporte e reivindicaram uma linha de ônibus para Juçatuba. No caso C, os informantes disseram que sempre solicitam que seja diminuído o som durante o dia28e no período noturno, após as 22:00h; em geral relata-se tais solicitações são atendidas. No caso D, a Associação de Moradores foi acionada pela moradora ofendida. As lideranças conversaram com o ofensor e conseguiram dissuadi-lo da sua construção inadequada. As desavenças são comuns entre os moradores de Juçatuba, mas devido o parentesco, não chegam a se transformar em rixas entre famílias, por exemplo. Os informantes enfatizaram pertencerem a “uma grande família”, referindo-se ao entrecruzamento das famílias Garcês, Monroe e Cascaes como motivo principal para que os desentendimentos não se estendam. 27 O conceito de identidade deve ser entendido não como algo “natural”, mas como um constructo social em que sujeitos se definem segundo critérios de classe, pertencimento social, raça, gênero, etnia, orientação sexual, etc. Atualmente, se utiliza o termo “processos de identificação” (Stuart Hall, 2011) ou “processos de hibridação” (Canclini, 2003) para caracterizar a situação moderna de formação dos sujeitos nos entre - lugares (Bhabha, 2001). Ou seja, a identidade enquanto característica própria do sujeito é problematizada a partir de situações de fronteiras e negociação. Atualmente, se discute a auto-atribuição (Barth, 1976) como critério subjetivo no qual se assume uma determinada identidade de acordo com o contexto favorável ou não à sua expressividade. 28 Para não incomodar as aulas, uma vez que os bares localizam-se nas proximidades das escolas existentes na comunidade. .11 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL No exemplo do caso D, pode-se dizer que a Associação de Moradores de Juçatuba representa a continuidade das tradições herdadas de seus ancestrais, enfatizando-se que “os antepassados resolviam tudo na conversa”. Essa maneira peculiar de resolução com base no diálogo é um dos mecanismos utilizados pelos moradores para neutralizarem os conflitos internos. O respeito à autoridade legitimada29 parece ser um dos fatores que proporcionam a coesão do grupo. No caso E, os informantes relataram ser bastante comum discutirem durante jogo de futebol e até insultarem a mãe um dos outros, mas quando passam das agressões verbais para as físicas, as pessoas em volta não permitem o enfrentamento por muito tempo e acionam o que eles chamam de a turma do “deixa disso” para separarem as brigas; geralmente, tais situações envolvem também conselhos para a prevenção de novas brigas. A intermediação e o aconselhamento podem ser visualizados no diagrama a seguir Conflito latente Diálogo Reflexão grupal Manifestação “Deixa disso” Diagrama 01: Intermediação e Aconselhamento/Juçatuba O diagrama acima representa os mecanismos acionados e reforçados durante situações conflitantes envolvendo somente pessoas da comunidade, pois somente funciona para “os de dentro”, devido à tradição do respeito e obediência aos mais velhos, estruturado em suas relações sociais. Nos jogos de futebol, quando ocorrem agressões físicas entre adolescentes e jovens, ou mesmo brigas entre adultos, a 29 No caso a Associação de Moradores representada por Dona Vanda. .12 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL comunidade costuma intervir dizendo “deixa disso, não é necessário brigar, somos todos da mesma família”. Com isso, separam os agressores e depois os aconselham, enfatizando os vínculos de parentesco. Devido aos vínculos de parentesco e o respeito à autoridade dos mais velhos, os desentendimentos e brigas entre os quilombolas não geram problemas mais graves. Em todas as conversas com os moradores de Juçatuba, a turma do “deixa disso” foi mencionado como mecanismo de resolução de conflitos executado entre eles sempre que ocorrem situações conflituosas. ○ Santo Inácio (Alcântara) Mapa 01: Localização geográfica das comunidades de Santo Inácio, castelo e Ilha do Cajual. Fonte: Prefeitura Municipal de Alcântara (Com alterações) A comunidade quilombola de Santo Inácio possui aproximadamente 200 habitantes em um número de aproximadamente 56 casas. Sua história é fortemente ligada com a comunidade vizinha – comunidade de Castelo – e sua origem está .13 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL vinculada à terra herdada de um proprietário rural. Com a sua morte, contam os moradores, sua filha, que não tinha interesse em morar na fazenda, deixou a área para que os “escravos” pudessem nela habitar. O nome do lugar faz referência ao santo que ocupava a igreja (Inácio). A imagem, no entanto, fora capturada e levada da comunidade, que permaneceu com o nome e à espera do retorno do padroeiro30. Santo Inácio conta com uma escola de ensino básico, sendo que os alunos do ensino médio frequentam uma escola localizada há aproximadamente 40 minutos em um transporte escolar diário31. A comunidade não possui Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), tampouco posto de saúde. O tratamento preventivo e emergencial aos moradores fica a cargo da agente de saúde – que presta serviço por contrato para Prefeitura de Alcântara32. A concentração de casas da comunidade fica a 4km da rodovia estadual MA106. Não existe a presença sistemática da polícia militar ficando restrita, desta forma, quando solicitada, a presença pontual em períodos festivos, embora isso não seja uma constante. Cotidiano A principal atividade de Santo Inácio em ordem de predominância dá-se pela agricultura de subsistência (com casos específicos e sazonais de venda externa) a pesca e a pecuária. Tabela 01: Produção agrícola na comunidade de Santo Inácio. Produto Mandioca Banana Farinha Galinha Porco Boi Milho Quem Produz A maioria da comunidade A maioria da comunidade A maioria da comunidade Considerável parte Considerável parte Minoria da comunidade Parte significativa Comercializa Às vezes Sim Sim Não Não Sim Às vezes 30 De acordo com os moradores, a provável localização de Santo Inácio é o município de Pinheiro, em uma comunidade de mesmo nome. 31 Localizada no povoado de Oitiua, pertencente ao município de Alcântara. 32 Benivan Coelho, 42 anos, casada com um morador da comunidade. .14 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL Vale destacar que o boi é utilizado como meio de transporte de pessoas e coisas, no auxilio dos trabalhos mais pesados de aragem, bem como funciona como uma espécie de poupança33. As crianças começam a ser inseridas nas atividades cotidianas a partir dos nove anos de idade, como observadores, e ao passo que ganham força e estatura, assumem trabalhos mais elaborados. As mulheres realizam praticamente os mesmos trabalhos dos homens, diferenciando-se apenas no aspecto quantitativo de dispêndio de trabalho produzido durante um dia. Há um sistema de cooperação mútua e recíproca chamado de troca de horas responsável pelo revezamento e não sobrecarga de trabalho por parte dos moradores (as). Abaixo, um demonstrativo do funcionamento desse sistema. Tabela 02: Troca de horas/Santo Inácio Segunda Terça Quarta Quinta Sexta Sábado Roça 1 Roça 2 Roça 3 Roça 4 Roça 5 Roça 6 Mulher 1 Mulher 2 Mulher 3 Mulher 4 Mulher 5 Mulher 6 Mulher 3 Mulher 4 Mulher 1 Mulher 2 Mulher 3 Mulher 4 Mulher 5 Mulher 6 Mulher 5 Mulher 6 Mulher 1 Mulher 2 No esquema acima, cada mulher34 possui uma roça (número 1 ao 6) e é ajudada por suas companheiras em um dia específico. Para compensar, ela ajuda aquelas que a ajudaram. Leia-se que ela nunca trabalha dois dias seguidos, garantindo assim a possibilidade de cuidar de outras atividades. O preço do trabalho é pago com a aquilo que será produzido na roça ou com as horas trabalhadas em resposta ao trabalho executado. Em alguns casos, pagam-se as horas trabalhadas com dinheiro. Lazer As ações de lazer da comunidade estão ligadas a dois binômios de início indissociáveis: futebol e reggae. Orbitando sobre o futebol se aglutinam transmissões 33 O boi em uma família tradicional negra rural funciona como uma espécie de poupança. Uma vez que o animal serve, em casos emergenciais, como alternativa de geração de renda para a realização de uma viagem, compra de remédios, auxílio de um parente hospitalizado, ou investimentos de qualquer ordem. 34 Cabe aqui a ressalva do início do trabalho feminino por volta dos 14 anos, onde as adolescentes auxiliam no trabalho e incrementam o sistema de troca de horas. .15 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL televisivas, jogos entre os jovens da comunidade, festas comemorativas dos times. Circundando o reggae encontram-se o consumo de bebida alcóolica, encontros familiares, festas, etc. Um apreço musical que atua enquanto elemento agregador entre os jovens de Santo Inácio, mas não somente deles35. No entanto, com a presença uma Igreja Evangélica Pentecostal na comunidade, o número de moradores que se resigna de tais atividades aumentou consideravelmente, ainda que os frequentadores sejam em sua maioria mulheres adultas, existe uma pressão (latente) esboçada sobre os jovens de Santo Inácio para aderirem as práticas religiosas, ainda que isso não se manifeste de maneira explícita e configure uma fonte de conflito. Regras Diante da convivência com os jovens de Santo Inácio foi possível perceber que existem regras básicas que, senão de outra maneira, orientam a vida dos moradores e contribuem para um ambiente de não conflito36. Tabela 03: Códigos sociais/Santo Inácio Gênero Faixa etária Regra básica Percepção de justiça Não cumprimento das regras (15-21) Homens 12 Trabalho Associada a punição Nada acontece Mulheres 14 Respeito Retributiva Julgo da comunidade O quadro acima ajuda a elucidar uma visão sobre as regras da comunidade de Santo Inácio – mas não somente ela – e, ademais, problematiza essa visão no que tange à perspectiva de gênero37. No entendimento das jovens, a regra básica para um eventual novo morador seria o respeito. Cabe ressaltar que este atuaria como substrato da própria lógica e funcionamento da comunidade, observando seus limites, horários, permissões, pessoas e posses. No caso dos homens, trabalhar, em outras palavras, o ato laboral 35 O Reggae se manifesta nas comunidades visitadas como musicalidade recorrente e predominante. Marca o perfil dos adolescentes da comunidade como tema de conversas, rodas de diálogos, jogos e desafios. Mostra-se, sobretudo, um conhecimento relevante sobre as radiolas de reggae e suas turnês, músicas atuais dentre outros aspectos. 36 Um ambiente de não conflito seria o proporcional ao “clima de paz”. No entanto, tal termo não é usual e recorrente em comunidades quilombolas. A situação conjuntural de tranquilidade se sustenta pela ausência de conflito, pela inexistência momentânea de instabilidade das relações entre os indivíduos. 37 As visões dividas por género não são, por sua vez, excludentes entre si. Uma perspectiva de um gênero está presente na do oposto. A tabela foi construída a partir da frequência das respostas obtidas. .16 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL (roçando, pescando, cuidando de animais) seria imprescindível para a aceitação de um novo habitante. Um aspecto que chama a atenção é o modo de resolução de um eventual descumprimento de alguma dessas regras. Nas respostas masculinas, uma inércia quanto uma atitude tomada. No caso feminino, o descumprimento estaria sujeito à apreciação dos moradores, sob o comando de uma liderança de Santo Inácio, que mora em Alcântara. Núcleo Familiar Interventor Trata-se de um mecanismo adotado pela comunidade na resolução de conflitos 38, ou seja, o núcleo intervém em situações agudas de atrito. Os membros do núcleo são pessoas próximas do envolvido (a) e atuam no sentido da intervenção direta no conflito e coerção moral que inibe a reincidência. Os líderes da comunidade atuam, em alguns casos, como membros do núcleo, mas não se trata de uma regra engessada. Em algumas situações, os envolvidos não são tão próximos do líder, estando outras pessoas responsáveis pelo trato com o foco do conflito. Caso de homicídio A comunidade de Santo Inácio registrou um caso de violência física há três anos Na ocasião, três pessoas estavam envolvidas - moradores nascidos na comunidade e que, entretanto, não mais residiam no lugar -. A fonte do conflito originou-se de um triângulo amoroso onde marido e o suposto amante se desentenderam em uma festa 39 que acontecia na comunidade. No alto da festa, o marido desferiu golpes contra o amante, que foi a óbito. Em menos de uma hora, também assassinou a esposa e, depois de ferir-se na altura da nuca, enforcou-se do alto de um coqueiro, ao fundo do quintal de sua mãe. A comunidade, mesmo em choque, velou os três corpos lado a lado, no local do assassinato (o salão de festas). O que se percebeu sobre o acontecimento foi a solidariedade prestada aos familiares do marido e, ademais, a inexistência de uma exclusão do convívio social. Ainda que haja uma reclusão voluntária por parte da mãe, ela participa comedidamente dos eventos da comunidade. 38 39 É importante assinalar que o nível familiar não está restrito aos vínculos sanguíneos A festa comemorava o aniversário do time de futebol. .17 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL ● Castelo (Alcântara) Como tantas comunidades quilombolas, a origem de Castelo se confunde com a história de uma fazenda que pertencia a um senhor de escravos chamado Mariano Silveira, por volta do século XVIII. Nessa época, as fazendas da região se destacavam como grandes produtoras de arroz e algodão, produção esta sustentada pelo trabalho escravo. No entanto, houve um período de decadência, oriundo do fim da escravidão, em que muitos produtores rurais, inclusive o Sr. Mariano Silveira, foram embora da cidade, deixando para a neta Rosilda Silveira as suas terras e um pedido: que os negros permanecessem na terra. A partir de então, as terras da fazenda chamada de Castelo40, foram vendidas a dois senhores: Francisco Moraes e José Cirico, o qual, depois de certo tempo, vendeu para Epifânio. As terras de Francisco Moraes foram herdadas pelo seu filho Joca, onde hoje se concentra a maior parte dos moradores de Castelo. A comunidade de Castelo está localizada a 35 km da sede do município de Alcântara, sendo formada por aproximadamente 53 famílias (e 35 jovens). Possui uma escola de educação básica para as crianças da comunidade, ressaltando-se que os jovens da comunidade frequentam o ensino médio na escola mais próxima, que fica localizada na comunidade de Oitiua41. Sem posto de saúde, os moradores de Castelo também se dirigem à comunidade de Oitiua quando necessitam de assistência médica. À comunidade de Castelo fica restrito o atendimento preventivo de um agente de saúde 42. A principal atividade de subsistência da comunidade é a agricultura e a pecuária. Na roça, os moradores cultivam arroz, maniva, milho, entre outras culturas, menos cultivadas pela comunidade. Quando a colheita é grande, envolve a participação de outras pessoas da comunidade, não se restringindo apenas àquela família 43. Quanto à 40 A história conta que um dia, sentado com sua esposa na porta da Casa Grande, o Sr. Mariano Silveira admirando a paisagem do local disse à sua mulher que aquele lugar parecia um “castelo”. A partir daí, a fazenda passou a ser chamada de Castelo. 41 A Prefeitura do Município de Alcântara fornece o transporte para o deslocamento dos jovens até a comunidade de Oitiua. 42 Insatisfeitos com o serviço prestado pela agente de saúde, a comunidade de Castelo, provisoriamente, está sendo atendida pelo mesmo agente de saúde da comunidade de Oitiua. 43 Destaca-se a atividade econômica como um fator engendra os vínculos sociais entre os moradores, não ficando restrito laços sanguíneos. .18 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL criação de animais, a comunidade cria bois, galinhas e porcos. A outra fonte de renda 44 identificada é o recebimento de benefício governamental, como o Bolsa-Família. Com um grande festejo no mês de novembro, a comunidade de Castelo se reúne para festejar o dia de Nossa Senhora da Batalha, padroeira da comunidade. No último fim de semana de novembro, a festa começa na sexta-feira, com o levantamento do mastro e a dança do tambor de crioula; no sábado acontece a festa; no domingo, a comunidade realiza um grande churrasco com uma procissão no fim da tarde e continua com a festa, e a segunda-feira é conhecida por todos como “lava-pratos”, em que há o derrubamento do mastro e o sorteio dos próximos “donos” da festa. Ressalta-se, aqui, o sistema de “troca de visita”, muito comum em época de festejo, onde a comunidade convida moradores de outras comunidades como Itamatatiua e Santo Inácio para a festa e devolve a visita nos festejos dessas comunidades. A presença recente da Assembleia de Deus Monte Moriá não impede a realização do festejo católico da comunidade. A venda de lanche por parte da mesma faz parte da estrutura do festejo e contribui na arrecadação de verbas para a manutenção da própria Igreja. Antes desse grande festejo, no mês de agosto, há um campeonato de futebol, o qual mobiliza toda a comunidade, em especial os jovens 45, que se reúnem frequentemente em torno da prática desse esporte. No entanto, o fator agregador - o futebol - em algumas situações, tem-se configurado em uma fonte de conflito. Os relatos da comunidade contam que houve um caso de homicídio originado em uma partida de futebol. Definido como uma “briga de bola”, os dois rapazes, que não residiam na comunidade e, apenas um possuía laços sanguíneos na mesma, se desentenderam numa ocorrência comum de futebol e, após a partida houve o confronto. O rapaz, que era sobrinho de uma moradora da comunidade, foi assassinado e nada aconteceu com o agressor, que fugiu do local antes da chegada da polícia. A outra forma de reunião dos jovens de Castelo ocorre em frente a um dos comércios da comunidade46, onde os jovens conversam debaixo de uma árvore. Há 44 Destacada nos questionários aplicados pela equipe. 45 O jogo de futebol tem-se mostrado como um fator recorrente no lazer das comunidades trabalhadas, que reservam um horário da semana para a prática do esporte e para um momento de socialização com os demais moradores. 46 O comércio do Sr. Domingos. .19 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL ainda as reuniões do grupo de jovens da Igreja Assembleia de Deus Monte Moriá, que às terças e quintas-feiras reúne aproximadamente onze jovens. Há mais de vinte anos, a comunidade de Castelo possui uma associação denominada de Associação de Produtores e Moradores Rurais da Comunidade Quilombola47 de Castelo. A esta compete o acompanhamento de questões diárias como problemas com o cercado de terras. No entanto, os problemas que surgem são resolvidos com diálogo e intermediados pela associação. Além do cercado de terras feito irregularmente, questões como a criação de porcos e a colheita da juçara verde são focos de conflito levados para a associação. Quanto à criação de porcos, que causava problemas por serem criados livres e, por isso “invadiam” as roças alheias, a comunidade se reuniu por várias vezes até ficar decidido que os porcos deveriam ser criados presos, ficando a cargo do dono da criação. Quando mencionam a colheita da juçara verde como um problema para a comunidade, observa-se a preocupação da mesma com o uso dos seus recursos. Ao perceberem que moradores de outras localidades estavam furtando juçara, em grande quantidade e ainda fora do período de colheita, os moradores de Castelo se reuniram para impedir o uso inadequado por parte dessas pessoas. Com uma visão própria acerca do uso comum e preservação do território e recursos, a comunidade, depois de impedir o furto, dividiu a juçara entre os moradores de Castelo. Em geral, Castelo apresenta-se como uma comunidade unida. Fato contestado por alguns moradores que criticam a falta de união da mesma quando se precisa de melhorias na comunidade. Todavia, a coesão é lançada pelos seus moradores como um mecanismo de defesa, quando os mesmos precisam se afirmar perante os outros frente a ameaça ao seu território. Dessa forma, tal mecanismo é utilizado quando a comunidade se depara com a presença de novos moradores48. 47 Ressalta-se, aqui, que o termo somente foi acrescido na denominação da associação há quatro anos. Depois da presença de um traficante de drogas, que se instalou em uma casa abandonada, a comunidade por intermédio da associação se reúne para decidir sobre o novo morador, se este deve permanecer ou deve se retirar de Castelo. 48 .20 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL ○ Ilha do Cajual/Alcântara (Jacaré, Tijuca, Vila Nova, Caratatiua e Capim- Açu) Mapa 02: Mapa ilustrativo da Ilha do Cajual Fonte: Google Maps, 2012. (com destaques dos pesquisadores). A Ilha do Cajual tem dimensões territoriais49 impressionantes e abriga, além de guarás, fósseis pré-históricos e ampla diversidade biológica. O mapa acima indica a representação dos povoados habitados. Respectivamente, de Sul a Norte o total de residências atualmente com moradores: Caratatiua com 5 casas, Tijuca com 26 casas, Vila Nova e Jacaré com 7 casas e mais a Nordeste, Capim-Açú com 2 casas. Os três pontos de acesso de chegada e saída da comunidade são os portos do Caratatiua – principal acesso para o Cujupe50 –, do Jacaré – o mais frequentado dos três, 49 Situa-se no interior do Golfão Maranhense, limite leste da Área de Proteção Ambiental das Reentrâncias Maranhenses, possui um área de aproximadamente seis mil hectares. 50 A referência feita ao Cujupe diz respeito a uma nomenclatura que não é compartilhada pelos moradores. Segundo eles, Cujupe é uma comunidade que não se encontra no local que usualmente o nome é atribuído. O “Cujupe” onde o Ferry Boat atraca é chamado por eles, e grande parte dos moradores das redondezas, de Porto Novo. .21 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL com capacidade de embarque e desembarque de um número maior de pessoas e mercadorias – e o Porto Grande, ponto mais avançado a noroeste da ilha, com possibilidade de embarque e desembarque independentemente da altura da maré 51. A nordeste, ficam as terras do Sr. Pereira latifundiário conhecido tanto na comunidade como na cidade de Alcântara como “Pereirão”. Todas as comunidades habitadas da ilha não possuem energia elétrica ou quaisquer tipo de saneamento básico. Na Ilha não foram identificados centros de referência (CRAS ou CREAS) ou mesmo algum trabalho dessas instituições junto aos jovens e adolescentes. Ainda assim, não estão isolados: realizam trocas comerciais com comunidades vizinhas, tanto dentro da ilha como no continente52, demonstrando relações de interdependência que os povoados mantém entre si. Cada povoado tem suas especificidades e, juntos, acabam por constituir-se socialmente numa teia de relações sociais e comerciais. O número de jovens e adolescentes, num somatório aproximado das cinco comunidades, está dividido entre os que moram nos povoados53 e os que moram fora da ilha54 - em sua maioria em São Luís - mas que frequentam a ilha pelo menos três vezes por ano. Algumas situações puderam ser verificadas durante a presença da equipe na Ilha do Cajual, entre elas, o conflito não dito entre famílias55, fruto de desentendimentos que remontam à anos, por vezes uma década, onde o silêncio se apresenta enquanto elemento que auxilia na mediação de contendas. A comunidade conta com uma 51 O acesso à ilha, necessariamente, é feito de barco, com saída de Alcântara (através de barco a motor fretado), ou com saída de São Luís, via Ferry-Boat, até o Cujupe. Do Cujupe, freta-se um barco a remo para atravessar até a ilha. 52 A saber, Porto Novo (Cujupe), Iguaíba e mesmo Alcântara. 53 De 12 a 18 anos: 15 pessoas; De 18 a 21: 6 pessoas. 54 Número de adolescentes: 9 pessoas; Número de jovens: 7 pessoas. 55 Seguindo a perspectiva já apresentada de um núcleo familiar interventor, percebe-se que ele atua na eliminação do foco do conflito imediato. No âmbito juvenil, repreende moralmente as ações que se configuram como fora do padrão moral. Dito de outra maneira, seu trabalho não se resume, na orientação de conduta dos jovens da comunidade, a impedir que o conflito se alastre, mas de uma ação constante diária, que atua na vigilância (implícita) dos jovens e adolescentes. .22 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL associação de moradores que, em termos práticos, não se visualiza no cotidiano em virtude da sua presidenta56residir atualmente em São Luís no acompanhamento de um parente enfermo57. Dessa maneira, todo atrito entre indivíduos é mediado, inicialmente, por duas etapas que, a nosso ver, estruturam a lógica de organização social dos quilombolas da ilha. (1) O sentimento de pertença do indivíduo em relação à comunidade, ou seja, diante de uma situação aguda, o indivíduo toma sua decisão em função do grupo, no caso específico, o laço de parentesco que estrutura as ações. “Fazemos parte de uma família só; Somos uma família.” Esse fator é preponderante para limitar o conflito em um âmbito verbal. Como fora percebido na fala dos jovens, sem esse componente “familiar”, discussões mais acaloradas poderiam facilmente terminar em agressões físicas, lesões ou mesmo morte; . A reclusão58 do indivíduo situado no núcleo do conflito, em casos específicos, do jovem, e de todo seu núcleo familiar. Em alguns casos, a casa fora construída em um ponto mais distante do lado ofensor – ou ofendido – para que fosse evitado o contato visual e eventuais necessidades de ajuda por uma ou outra parte. Há casos de saída da própria ilha, estando um dos envolvidos longe da comunidade por cinco, seis ou sete anos, até que se restabeleça uma “atmosfera social favorável59”. Outros casos simplesmente passam despercebidos aos olhos alheios, uma vez que as pessoas que outrora se desentenderam frequentam os mesmos espaços, participam das atividades, eventualmente visitam casas de parentes simultaneamente e só um olhar mais aguçado perceberá que ambos não trocam olhares entre si, tampouco 56 A presidenta da associação é conhecida como D. Vanda. 57 Na ausência da presidente, quem trata das questões a ela relacionadas é a professora da comunidade, Josilene Pereira Penha. 58 Entenda-se por afastar-se e/ou evitar o convívio social por um determinado tempo. 59 Esse exemplo não ajuda a generalizar o caso. É fruto de uma particularidade. A atmosfera social favorável refere-se a um clima entre as partes de trégua latente. No sentido em que não se fala sobre o assunto e continua-se a vida de maneira a deixar o que ficou para trás. .23 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL dirigem a palavra ao outro. Às vezes pode ficar evidenciada tal situação quando – leigos quanto o histórico das duas pessoas envolvidas – fazemos uma pergunta sobre o outro. A resposta é quase invariavelmente a mesma, e não se resume a um elemento: o semblante fechado, a fisionomia de quem não ouviu direito ou não entendeu a pergunta e o silêncio revelador sobre uma situação que não quer ser comentada60. Entende-se que o silêncio em uma comunidade tradicional, aliado ao tempo61, atuam de maneira sintomática na resolução de conflito. O que se pode garantir é que não existe um ponto comum, um resultado partilhado sobre que seja apreciado e digno de afirmar que o conflito fora sanado. As variáveis presentes, sobretudo as configurações que se apresentam determinam a efetividade da combinação e a mensuração de tempo/silêncio/distância que foram dadas ao conflito pretérito. Percebe-se que, diante da situação aguda cotidiana, os jovens da Ilha do Cajual encontram barreiras de vigilância e coerção, exercida pelos mais velhos e mais próximos - inclusive os amigos de mesma faixa etária. Considerações sobre a resolução de conflitos em comunidades quilombolas A perspectiva analítica que utilizamos para compreender os mecanismos/disputas que ocorrem nos territórios quilombolas e as estratégias acionadas62 pelos agentes sociais está balizadas na abordagem do sociólogo Georg Simmel, que percebe o conflito como característica inerente ao processo de socialização63. O que já dimensiona que a leitura que propomos fazer sobre o conflito está na contracorrente dos pressupostos teóricos e metodológicos que gravitam em torno da temática da justiça restaurativa. 60 Existe uma manifestação sutil de descontentamento, de insatisfação, que se processa no nível mais particular do indivíduo. Do outro lado, existe uma repressão pública coletiva, exercida pelo núcleo familiar interventor, que não elimina de um todo a insatisfação do adolescente. No entanto, impede que ela se prolifere. 61 Não necessariamente o tempo cronológico, do calendário, mas um tempo que é contado por expressões idiossincráticas “faz muito tempo”; “isso já faz muito tempo”; “não consigo lembrar quando foi”. 62 Estratégias estas acionadas por meio de formas de organização social própria transmitidas pela tradição e resignificadas pelas práticas cotidianas que se desenrolam de forma diferenciada. 63 Socialização para Simmel está relacionada as formas ou os modos pelos quais os atores sociais se relacionam. .24 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL No intuito de investigar “o ponto de vista dos nativos”64 sobre os mecanismos de resolução de conflitos65, atentos em perceber a representação das ações que resultam em um tipo de relação que torna viável a dissipação66 em um contexto em que não há a constância de agentes policiais que intermediem/atuem na lide instaurada, é válido destacar que as regras costumeiras estruturadas nas interações sociais cotidianas das comunidades quilombolas possuem princípios que viabilizam o atual modelo justiça restaurativa. Como alternativa ao modelo de justiça penal instaurado, as pessoas dessas comunidades quando afetadas pelo conflito participam coletivamente na construção de estratégias que torne viável a convivência, buscando resoluções com vistas ao não conflito67. Os atos infracionais68 são vistos como violação a conduta moral estabelecida nessas comunidades, de modo que cometê-lo significa afetar/envolver a comunidade e o núcleo familiar, de modo a restaurar a relação entre as partes envolvidas no conflito e consequentemente a comunidade. Imbuídas dessas características, o diálogo é um elemento acionado de forma mais imediata, atrelado aos laços de proximidade - que podem ser de parentesco ou não - entre os envolvidos, o que se configura como um direcionamento para se repensar atos que tenham causado reprovação (por parte da comunidade) e atuado nos termos de uma coerção moral69. Logo, o cometimento do ato reprovável não afeta apenas as partes envolvidas no conflito, mas os interesses comunitários. É interessante ressaltar que repensar os atos cometidos, não significa necessariamente que o dano será reparado de forma materializada. O ideal reparador 64 Utilizando a expressão de Geertz( 1983). 65 O conflito é inerente a toda e qualquer organização social, contudo os elementos que estruturam sua existência e administração são compostos de relações sociais que variam quanto a forma. Portanto, a compreensão de resolução não é compreendida como um objeto moral. 66 Dissipação de um conflito. 67 O não conflito pode ser representado como uma situação harmoniosa. 68 Segundo Estatuto da Criança e do Adolescente (Art. 103) considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. 69 De acordo com a perspectiva Durkheimiana seria a força que os fatos exercem sobre os indivíduos, obrigando-os a conformarem-se às regras impostas pela sociedade em que vivem, não havendo, contudo, a vontade ou escolha dos indivíduos. .25 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL (dimensão simbólica) pode ser expresso por meio do afastamento, da mudança do local de moradia, ou mesmo do silêncio de forma a resguardar o convívio social do confronto desagregador, o que poderia tornar as relações cotidianas inviáveis. A legitimação de práticas sociais que atuam nesse contexto - ao contrário de um relativismo radical- nos instrumentaliza a repensar os procedimentos adotados junto aos adolescentes/jovens a quem se atribui o cometimento de um ato infracional. Contudo, a análise das práticas/mecanismos encontradas nas comunidades pesquisadas está indubitavelmente associada a um contexto socio-histórico-cultural sobre a produção dos valores morais construídos coletivamente e que são utilizados como norteadores, em que o conflito é engendrado numa relação social em que a comunidade é o centro dessa relação, o que demarca uma característica peculiar das comunidades tradicionais em relação à sociedade contemporânea, de cunho individualista e com tendência a desagregação. Dessa forma, observou-se que tais mecanismos estavam direcionados para a prática de uma justiça que privilegia os mecanismos de diálogo (ver quadro abaixo). Tal maneira de resolução condiz com a principal característica da Justiça Restaurativa, que abarca os principais atores (vítima e ofensor) do ato infracional, como também envolve a família e a comunidade. O resultado desse encontro é um acordo entre os envolvidos que garanta a reparação ou a restituição daquela situação anterior e está centrado na reintegração social da vítima e do ofensor70. Não obstante, as comunidades pesquisadas utilizam71 à sua maneira os princípios da Justiça Restaurativa considerando os valores intrínsecos do seu caráter comunitário. A identificação de “uma grande família”, por parte dos moradores em relação às pessoas que convivem na mesma comunidade72, contribui para que a resolução dos conflitos existentes permaneça no âmbito da comunidade e não 70 Ver Benedetti (2009), que afirma que a Justiça Restaurativa, por mobilizar emoções íntimas, funciona bem quando aplicada a conflitos penais protagonizados por pessoas próximas, vinculadas por laços de tipo comunitário. 71 Mesmo sem compreendê-la sob esse signo, embora pratique-as há dezenas de anos. 72 As pessoas que moram nessas comunidades em grande parte, são parentes. Sendo uma das principais portas de entradas para a permanência nessas comunidades é está atrelado a algum membro da comunidade, como por exemplo, através do casamento. .26 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL necessitem da ação de agentes externos à dinâmica da mesma. Sublinhe-se que a partir dos relatos dos moradores foi possível verificar que não é usual o registro de ocorrência em delegacias. Em relação ao núcleo de Justiça Restaurativa do município de São José de Ribamar, por exemplo, não há registros de jovens/adolescente oriundos da comunidade quilombola de Juçatuba. Tabela 04: Mecanismos de resolução de conflitos identificados nas comunidades pesquisadas. Comunidade Ilha do Cajual/ Santo Inácio/ Castelo/ Juçatuba Santo Inácio/ Castelo/Ilha do Cajual Fonte de conflito Boato Mecanismo Resolução Diálogo de Animal solto Diálogo Juçatuba Bebida alcóolica Discussão Santo Inácio/ Juçatuba Barulho; Diálogo específico com núcleo familiar interventor; Diálogo entre escola e proprietário. Reunião com Associação; Castelo/ Juçatuba Castelo Ilha do Cajual/ Ilha do Cajual/ Santo Inácio/ Juçatuba Ilha do Cajual Propriedade fora do limite; Cercamento de terra. Extração ilegal de produto da comunidade Roubo Agressão doméstica Adultério Impedimento de saída Inexiste quando a fonte de conflito é de âmbito externo Mecanismo privado (não envolve a comunidade) Não existe mecanismo coletivo Consequências Distanciamento entre as partes envolvidas Princípio envolvido Respeito Cercamento das criações; Cercamento das roças Situação em suspensão (não resolvido73) Consenso sobre o horário de funcionamento das radiolas Solidariedade pelos mais velhos; respeito a instituição escolar Parte envolvida acatou a decisão da comunidade Noção de propriedade privada Divisão do produto com toda a comunidade Desprezo pelo assunto; Noção de propriedade coletiva Sentimento de união (reforçado pela identidade coletiva) Limite do âmbito familiar Comentário Comentário Noção de propriedade privada Diálogo Limite do âmbito familiar. 73 Vale a ressalva de que em alguns casos onde a fonte de conflito é a bebida alcoólica, o mecanismo do diálogo entra enquanto instrumento posterior ao foco do conflito. De toda maneira, ele está presente, ainda que de maneira retardada, para minar eventuais prolongamentos de discussão. Outro ponto importante é a inexistência de quaisquer princípios envolvidos quando a discussão por motivação alcóolica, ou em decorrência dela. .27 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL APONTAMENTOS Diante do contexto percebido nas comunidades pesquisadas, o conflito enquanto elemento intrínseco e transversal à organização social, apresenta-se sob várias nuanças a partir de temas74 que se configuram de forma recorrente, porém não sistemática. No entanto, existe uma presença de temas que são associados com o conflito. Importante é destacar as peculiaridades de cada comunidade - como no caso do adultério na Ilha do Cajual, ou do barulho em Santo Inácio - e confrontá-las com aquilo que se manifesta de maneira recorrente- porém não sistemática -. Não significa afirmar que o adultério seja uma exclusividade dos moradores da Ilha, ou a bebida alcóolica seja própria de Juçatuba, mas entender que cada variável dessa está posta de acordo com sua predominância e caracterização enquanto elemento causador de instabilidade dentro da comunidade. Existem, por outro lado, fontes de conflito que são entendidas pelos moradores enquanto tal, mas que não causam atrito interno. Exemplo disso são os casos de roubos praticados por moradores com pessoas de fora da comunidade. Enquanto ato que não interfere e causa dano aos indivíduos estabelecidos na lógica própria da comunidade, o roubo é tido como fonte de conflito manifesta quando envolve 75 vítima e autor inseridos na lógica da comunidade. Assim, os adolescentes das comunidades estão inseridos nesse contexto e, não isentos de sua participação, atuam no interior do conflito ora como coadjuvantes, ora como membros de núcleo interventor. Ainda há a participação enquanto protagonista no foco do conflito, agindo assim, em função da resolução, valores que funcionam como pilares para o estado de não violência entre os indivíduos. 74 Pode ser compreendido também como fonte do conflito. 75 Os casos de roubo foram postos de forma a construir um universo hipotético onde os moradores se sentissem provocados pelo tema. Casos de roubo não atingiram patamares expressivos, sequer relevante. .28 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL O esquema acima representa um fluxo mais ou menos sistemático de como as práticas de resolução de conflito funcionam nas comunidades quilombolas76 e, para além da identificação, explica como os mecanismos são acionados e quais direções eles seguem. Existe uma atmosfera que antecede o conflito, isto é, um clima de desconforto no seio da família, do subgrupo ou mesmo da comunidade, ela se perpetua em função do valor acionado pela comunidade enquanto instrumento de visualização do foco do conflito. A prática de resolução de conflito adotada pela comunidade opera em função dos valores presentes no interior dos núcleos familiares. Dessa maneira, existe uma relação entre as variáveis de modo a constituir um esquema representativo sobre a eficácia das boas práticas de resolução de conflito77 situadas no âmbito das relações entre os indivíduos, em especial aos jovens e adolescentes. Isso está intimamente relacionado aos princípios que norteiam as ações dos indivíduos em uma comunidade, de maneira geral, funcionam como instrumento de 76 Podem ser considerados como boas práticas, pelo viés da Justiça Restaurativa. 77 Em síntese, o esquema esclarece uma questão que orienta a equação qualitativa: Quando a prática de resolução de conflito é executada de maneira a compreender os princípios que regem a comunidade, o ambiente social que se configura posteriormente à resolução possui traços restaurativos. .29 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL coesão e enquanto elemento comum no sentido de uma identificação com relação a esses princípios. O esquema abaixo demonstra como esses princípios se vinculam com o cotidiano de uma comunidade quilombola78. Nesse sentido, esses princípios dizem respeito a um importante aspecto sobre as boas práticas de resolução de conflito. Uma vez que não aparecem de forma isolada, podendo em certos casos se manifestar de maneira mais ou menos evidente. Entretanto, as articulações necessárias e imprescindíveis entre eles fundamentam as ações dos moradores, como no caso dos adolescentes e/ou jovens - em processo de inserção da vida adulta e participação ativa e efetiva nos negócios públicos da comunidade. 78 Cabe ressaltar que o esquema busca os princípios que são comuns nas comunidades pesquisadas. .30 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL MARCOS NORTEADORES Diante da constatação de um modelo específico, mas em conformidade com o modelo de Justiça Restaurativa, depara-se com a indagação sobre a possibilidade da aplicação de tal modelo em outros lugares que não obedecem à configuração de uma comunidade tradicional79 com princípios e valores tão vinculados ao âmbito comunitário. Tendo em vista que a lógica da Justiça Restaurativa repousa sobre a integração entre atores diretos do ato infracional, como também sobre a participação da família e da comunidade, observar essa prática em uma sociedade que não prioriza a coletividade, torna-se cada vez mais desafiador. No entanto, pensar sobre esse modelo de resolução de conflito em um contexto que apresenta um grande número de adolescentes infratores no Estado do Maranhão requer uma revisão das práticas adotadas pelo sistema de justiça tradicional de maneira 79 O Decreto 6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) que define esses povos como grupos culturalmente diferenciados, que possuem formas próprias de organização social. Esses grupos ocupam e usam, de forma permanente ou temporária, territórios tradicionais e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Para isso, são utilizados conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição .31 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL que as práticas de resolução de conflito adotada pelas comunidades quilombolas possam agregar novos elementos ao sistema judiciário. Dessa maneira, torna-se necessário que os apontamentos dessa pesquisa sejam compartilhados e dialogados com as instancias jurídicas maranhenses para que, a partir da troca de experiências e contribuições dialéticas, almeje-se alguma mudança significativa no contexto do tratamento com jovens e adolescentes do Estado. Nessa perspectiva, a pesquisa realizada contribui para proporcionar alternativas às práticas hoje utilizadas pelo sistema de justiça convencional quando estabelece um vínculo entre os mecanismos utilizados por essas comunidades e os pressupostos da iniciativa restaurativa - que em alguns pontos se assemelham com as ações observadas nas comunidades. Assim, frente ao produto qualitativo da pesquisa, a equipe sugere um olhar atencioso aos mecanismos de resolução de conflito que as comunidades quilombolas oferecem. Em outras palavras, a noção de identidade compartilhada, o respeito à própria história e aos ancestrais, aquilo que é marcadamente de propriedade coletiva. Não significa uma transposição integral de valores, mas perceber de que maneira essas práticas - que são, por sua vez orientadas por regras fundamentais de convivência podem ser eficazes fora do contexto tradicional quilombola em que brotaram. Assim, espera-se que a rede maranhense que trabalha a questão da justiça juvenil possa servirse dessas ferramentas no sentido de ampliar e potencializar as habilidades locais na resolução e prevenção de conflitos. Por esse viés, o fortalecimento das relações familiares - num contexto não quilombolas- poderia ser visto como um aspecto que agregaria não só o núcleo familiar elementar, mas os parentes e amigos próximos por extensão. De forma a assinalar que o adolescente/jovem estaria inserido numa teia de relações que atuaria como suporte para prevenção à um pretenso cometimento de ato infracional. Tal ambiente implicitamente se diferencia do contexto impessoal em que se desenrola a resolução de um conflito apropriado pelo Estado em que este se restringe as partes envolvidas, extrapolando os limites dos fatos estritamente relacionados ao conflito. .32 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL Por outro lado, isso significa também que os princípios - que norteiam a resolução de conflitos nas comunidades quilombolas - devem ser fortalecidos, considerando que as interações com contextos não quilombolas são cada vez mais recorrentes, situação esta verificada em todas as comunidades abordadas 80 pela pesquisa, onde verificou-se a mobilidade dos moradores dessas comunidades com São Luís, Alcântara, entre outros municípios. A restauração das relações sociais, por essa via deve ser oferecida ao jovens/adolescente no ambiente em que ele estiver, mesmo que este seja provisório. Porque seria acionado enquanto elemento regulador, a vergonha frente à fonte do conflito, em que a reintegração do indivíduo às relações sociais fragilizadas seria efetiva sobre o individuo, uma vez que estaria sedimentada na intimidade das relações que é partilhada, atribuindo assim, uma dimensão coletiva na resolução dos conflitos . Conferir essa abordagem diferenciada a resolução do conflito e que envolva, ademais, profissionais de outras áreas torna viável compreender os outros elementos que estão atrelados - direta ou indiretamente- a fonte do conflito, desvelando desta forma o 80 Em Juçatuba, o grau de interação parece-nos ser o mais intenso. .33 GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO SECRETARIA DE ESTADO EXTRAORDINÁRIA DA IGUALDADE RACIAL caráter superficial em que o conflito é abordado pelo sistema de justiça convencional, onde o indivíduo não é considerado na totalidade de suas relações sociais. Assim, se adotada, essa estratégia de abordagem na resolução dos conflitos pode adequar-se aos marcos legalistas configurando-se como promissora, embora seja necessário reconhecer que o distanciamento cada vez maior entre os indivíduos possa ser um elemento dificultador para efetivação plena da mesma, na complexidade das relações contemporâneas. REFERÊNCIAS BARTH, Frederik. Los grupos étnicos y sus fronteras. Introducción. 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