RECURSOS HUMANOS PARA PROMOÇÃO DA SAÚDE
BUCAL: UM OLHAR NO INÍCIO DO SÉCULO XXI
PAULO CAPEL NARVAI
INTRODUÇÃO
O que a prática odontológica foi, é, e pode vir a ser, resulta de uma complexa
articulação de fatores externos e internos ao processo de trabalho, destacando-se o
conhecimento científico disponível em cada momento, as tecnologias, os ambientes,
os instrumentos e materiais utilizados, e os recursos humanos. Embora se admita a
importância de todos esses aspectos no processo de trabalho, o papel central dos
recursos humanos é reconhecido universalmente. Com efeito, o recurso humano é
decisivo em função de sua condição de sujeito do processo, constituído pela força
(energia) e pela capacidade (qualificação) de trabalho, as quais conferem diferentes
características a cada serviço odontológico produzido (produto do trabalho).
À semelhança de qualquer trabalho humano, o trabalho odontológico surgiu e se
desenvolveu para satisfazer necessidades humanas. Tais necessidades são a razão
de ser e dão sentido ao esforço cotidiano de milhares de profissionais em todo o
mundo. Ao longo dos séculos o processo de trabalho foi se tornando mais e mais
complexo até atingir o estágio atual que se caracteriza pela acentuada divisão técnica,
produto histórico do desenvolvimento científico-técnico. Mudanças nos processos de
trabalho vêm determinando mudanças nos sujeitos desses processos, conforme
assinalam vários autores entre os quais Pinto (2000) e Moysés & Watt (2000). Durante
séculos, o ambiente, as técnicas e o sujeito do trabalho odontológico preservaram
algumas características essenciais: em linguagem contemporânea, pode-se dizer que
o operador, ao lado da cadeira, realizava isoladamente procedimentos profissionais
num ambiente clínico de aproximadamente 10 m2.
A revolução industrial criou, também no campo odontológico, as condições para a
rápida transformação do processo de trabalho e do seu sujeito. Logo apareceram
diferentes especialistas, dividindo tecnicamente o trabalho em sentido horizontal e
também os auxiliares, direcionando verticalmente essa divisão. Dentre os auxiliares, o
“protético” e o “auxiliar de consultório” foram e são ainda hoje unanimemente aceitos.
Nos dias atuais, contudo, novos tipos de pessoal odontológico vêm sendo utilizados
em diferentes países e também no Brasil. O fato de a prática odontológica poder se
realizar para além dos limites do consultório (Kriger 2002), através por exemplo das
ações coletivas em saúde bucal, tem implicado mudanças no sujeito do trabalho
odontológico: o cirurgião-dentista (CD) trabalhando isoladamente vem cedendo lugar
à equipe de saúde bucal (Botazzo et al. 1989).
A equipe de saúde bucal é o novo sujeito da nova prática odontológica que se está
buscando criar e consolidar. A prática odontológica capaz de, efetivamente, promover
saúde bucal. Tal prática constitui uma exigência social no Brasil, pois:
a) não obstante os indicadores epidemiológicos disponíveis revelarem
um quadro melhor do que o observado no século XX, quanto à
prevalência e severidade da cárie dentária entre crianças, indicam
também níveis inaceitáveis em muitas comunidades e, ainda, proporção
significativa de dentes não tratados, com o qual a sociedade e os
profissionais da odontologia não aceitam mais conviver;
b) a legislação nacional sobre saúde e a própria Constituição da
República reconhecem que “a saúde é um direito de todos e um dever
do Estado” e que as ações e serviços para garantir o exercício desse
direito devem ser de “acesso universal e igualitário” e orientadas à
“promoção, proteção e recuperação”.
Reconhecer a saúde como direito de todos, ou seja, como um bem público que
não pode ser negado nem ficar condicionado a regras de mercado, implica admitir a
saúde “bucal” como parte integrante e inseparável da saúde, compreendida
amplamente, tanto em sua dimensão biológica quanto social. Tal como, aliás,
entenderam os participantes da II Conferência Nacional de Saúde Bucal (1993) ao
afirmar que “a saúde bucal é parte integrante e inseparável da saúde geral do
indivíduo e está relacionada diretamente com as condições de saneamento,
alimentação, moradia, trabalho, educação, renda, transporte, lazer, liberdade, acesso
e posse da terra, aos serviços de saúde e à informação”.
Cabe, porém, distinguir “saúde bucal” de “incapacidade bucal”.
Quando nos referimos à “saúde bucal” estamos falando, segundo Narvai (2001) de
“um conjunto de condições, objetivas (biológicas) e subjetivas
(psicológicas), que possibilita ao ser humano exercer funções como
mastigação, deglutição e fonação e, também, pela dimensão estética
inerente à região anatômica, exercitar a auto-estima e relacionar-se
socialmente sem inibição ou constrangimento. Essas condições devem
corresponder à ausência de doença ativa em níveis tais que permitam
ao indivíduo exercer as mencionadas funções de modo que lhe
pareçam adequadas e lhe permitam sentir-se bem, contribuindo desta
forma para sua saúde geral.”
Observa-se assim que as determinações da saúde bucal ultrapassam em muito os
limites e possibilidades da prática odontológica stricto sensu. Mas o trabalho
odontológico tem importante significado e pode ter profundo impacto ao lidar com a
“incapacidade bucal”, esta entendida, conforme Narvai (2001), como
“a impossibilidade, transitória ou permanente, de exercer uma ou mais
116
das funções de mastigação, deglutição ou fonação e, também, pelo
comprometimento estético. O grau da incapacidade, sua abrangência e
evolução variam de indivíduo para indivíduo, segundo o tempo, as
características clínicas, as possibilidades terapêuticas e a inserção
social de cada um”.
As características epidemiológicas, a magnitude e a qualidade das necessidades
da população no que se refere às ações de atenção à saúde bucal — aí incluídas as
atividades assistenciais individuais, tanto as orientadas ao controle da incapacidade
bucal quanto as de natureza preventiva —, se constituem no referencial básico para
tratar das questões relacionadas aos recursos humanos odontológicos no país. Nesse
sentido, é indispensável explicitar que se entende que, tanto as instituições
formadoras quanto as empregadoras de recursos humanos, devem orientar suas
respectivas missões institucionais à efetiva implantação e desenvolvimento do
Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil, imprescindível para a alteração, em
abrangência e profundidade, do nosso perfil epidemiológico. Isto implica, certamente,
profundas transformações, entre outras, também no sistema brasileiro de formação de
recursos humanos odontológicos, o qual se encontra, pelo menos desde os anos 70
do século passado, sem qualquer definição substantiva de diretrizes às quais os
formadores tenham de se submeter e que possibilite ao poder público efetivamente
avaliá-los. A generalidade das principais orientações do poder público e, também, a
tibieza com que o Estado brasileiro atua no setor, conduzem à frouxidão das regras e
exigências resultando, na prática, em sua inocuidade, prevalecendo critérios
ostensivamente mercantis. Essa leniência, de matriz liberal, tem significado a
ausência de controle efetivo por parte do Estado, o qual tem pautado sua atuação por
um formalismo e burocratização que, muitas vezes, beira à irresponsabilidade. Cabe
alertar, ainda, que este descontrole não decorre de um quadro “anárquico”, resultante
de uma suposta “incompetência” dos órgãos governamentais. Esta aparente
“anarquia”, ou ainda a “dificuldade para coibir os abusos evidenciados pelo Exame
Nacional de Cursos (Provão)”, esconde uma bem articulada ação dos empresários do
ensino, mais preocupados com a acumulação e reprodução do capital neste setor do
que propriamente com Educação e Saúde. Por isso, dotar a sociedade de recursos
humanos odontológicos adequados às suas necessidades, e atender às exigências da
Constituição, permanecem como o grande desafio colocado neste início de século,
nesse campo, a todos os que se ocupam das tarefas de transformar a prática
odontológica, direcionando-a para a promoção da saúde, sem perder de vista seu
papel no lidar com as incapacidades bucais.
Para enfrentar com êxito esse desafio é preciso compreender a história e a
situação atual dos recursos humanos odontológicos no Brasil. Pretendemos, neste
capítulo, contribuir para essa compreensão, ainda que tratando apenas em linhas
gerais dos aspectos anteriormente assinalados.
TRABALHO ODONTOLÓGICO NO BRASIL: ORIGEM E EVOLUÇÃO
Entre os mestres de ofícios vindos de Portugal para exercer atividades de saúde
no Brasil estavam os primeiros dentistas. Eram os mestres cirurgiões e barbeiros que
“curavam de cirurgia, sangravam e tiravam os dentes”. Para exercerem suas funções,
os mestres tinham que ter, obrigatoriamente, a Carta de Ofício, uma licença especial
dada pelo Cirurgião-Mor da Corte Portuguesa. Esta Carta de Ofício, que
regulamentava o ofício de barbeiro (“tiradentes”), surgiu em 1521 através de ato real
do Regimento do Físico Mor de Portugal, sendo modificada cerca de um século
depois quando, em 1631, a expedição da “Carta” passou a ser precedida da
“comprovação” de experiência de dois anos na atividade de barbeiro (Rosenthal
2001).
A institucionalização da formação e a organização das atividades profissionais na
área da saúde só tiveram início no país após a chegada da Família Real ao Brasil, em
janeiro de 1808. Após a instalação do Reino no Brasil, a primeira Carta de Dentista foi
expedida em 1811, para Pedro Martins de Moura, um português. Esta Carta o
autorizava expressamente a tirar dentes, não mencionando cirurgias, próteses,
curativos ou medicações. O primeiro brasileiro a receber tal Carta, também em 1811,
cinco meses após, foi Sebastião Fernandes de Oliveira, natural do Espírito Santo. Em
1856 foi instituído, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, exame para dentistas
se habilitarem ao exercício da profissão (Rosenthal 2001).
Primeiros Cursos - Em 25 de outubro (o dia do cirurgião-dentista, atualmente)
de 1884 foram criados, através do Decreto 9311, cursos de odontologia nas
Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Salles Cunha (1963) registra
que o artigo 8° do Decreto 9311 estabelecia que
“o curso de odontologia constará das seguintes matérias: (...) Physica
elementar; Chimica mineral elementar; Anatomia descriptiva e
topographica da cabeça; Histologia dentaria; Physiologia dentaria;
Pathologia dentaria e hygiene da bocca; Therapeutica dentaria; Cirurgia
e prothese dentaria (...)”.
Ao término do curso, “sem colar grau ou outras formalidades” os alunos recebiam
o título de “Dentista”. A denominação de “Cirurgião-Dentista” ao título dos egressos
dos cursos brasileiros viria 9 anos mais tarde, já no período republicano, com a
reforma Alvarenga, que introduziu modificações no ensino para compatibilizar tais
cursos às determinações de 1892 do Ministério da Justiça e Negócios Interiores
(Salles Cunha 1963). Esta denominação permanece até os dias atuais.
Prática Odontológica no Século XX - A prática odontológica hegemônica no país
no século XX, caracterizada por Narvai (1994) como Odontologia de Mercado,
apresentou características que expressam as profundas transformações
experimentadas pela sociedade brasileira ao longo de todo o século, com acentuado
crescimento econômico, industrialização e urbanização. Tais mudanças vêm
117
repercutindo intensamente na prática odontológica que vem se tornando complexa e
concentrando sofisticada tecnologia. Em conseqüência dessas transformações e em
coerência com as características gerais do capitalismo dependente que se consolidou
no país, tem sido observada grande expansão no número de cursos de odontologia,
sobretudo nas duas últimas décadas do século. Articulada a essa expansão, se fez
aprovar uma legislação restritiva do exercício das atividades odontológicas. Já em
1933 o Decreto no 23.540, de 4/12/33, limitava esse exercício aos praticantes não
portadores de diploma “até 30 de junho de 1934” (Rosenthal 2001).
A segunda metade do século XX registrou notável expansão do número de
cirurgiões-dentistas em atividade no país, conforme pode ser observado na Figura
19.1. Verifica-se também que nos primeiros anos deste século XXI o fenômeno segue
inalterado. O ano de 2001 se encerrou com 142 cursos de graduação em odontologia
em atividade nas várias regiões do país, segundo o censo escolar do Ministério da
Educação (ABO 2002).
O vertiginoso aumento do número de CD em atividade no Brasil produziu, ao longo
do século passado, o surgimento de uma categoria profissional de estrutura complexa
e com razoável poder corporativo. Assim é que, em 1964, foram criados o Conselho
Federal de Odontologia (CFO) e vários Conselhos Regionais de Odontologia (CRO),
originalmente autarquias do poder público federal, vinculadas ao Ministério do
Trabalho, incumbidos de fiscalizar o exercício profissional. Em 1966 a Lei 5.081
regulamentou o exercício da odontologia no território brasileiro.
Figura 19.1
Evolução da proporção CD:10.000
habitantes no Brasil
CD :
10.000
9,51
CIRURGIÕES-DENTISTAS
5,13
3,28
1960
1970
1980
1990
Tais fatos têm gerado uma profusão de críticas à prática da odontologia no Brasil,
tida de modo geral como inadequada às nossas diferentes realidades e condições
sócio-epidemiológicas por ser: ineficaz, ineficiente, de alto custo, de alta
complexidade, de baixa cobertura, essencialmente mercantilista e monopolizada pelas
elites, mal distribuída geográfica e socialmente, predominantemente dirigida às
atividades curativas, e ainda, por utilizar recursos humanos inadequados (CNS 1980).
Tal prática, afirma-se, está centrada nas ações clínico-cirúrgicas individuais e em
enfoques biologicistas em detrimento da compreensão e enfrentamento dos
determinantes sociais do processo saúde-doença (Narvai 1994). Essas características
da prática odontológica hegemônica no Brasil têm feito com que diferentes analistas
dos recursos humanos odontológicos apontem a necessidade de imediato abandono
do enfoque meramente quantitativo que o país estaria utilizando no planejamento
desses recursos e a adoção de critérios qualitativos para tipificá-los e dimensioná-los.
10,43
7,85
3,65
Constata-se que, no início dos anos 90, o Brasil concentrava cerca de 11 (onze)
por cento dos cirurgiões-dentistas em atividade em todo o mundo (Pinto 1992).
Embora no início do século XXI tal proporção não tenha diminuído, isto não tem
significado melhores condições de saúde bucal para o conjunto dos brasileiros. Ao
contrário: apesar de a cárie dentária ter diminuído entre escolares urbanos brasileiros
na segunda metade do século XX, nosso país continua sendo conhecido como o
“campeão mundial dos desdentados”. Entre nós a cárie dentária associa-se,
precocemente, às doenças periodontais para produzir uma verdadeira mutilação em
massa: embora dados oficiais sobre extrações dentárias no país não estejam
disponíveis, a análise dos componentes do índice CPOD nos levantamentos
epidemiológicos, tanto os de abrangência nacional quanto os mais restritos, revelam
um quadro sombrio. Constata-se que o trabalho odontológico não tem servido para
manter dentes nas bocas. A magnitude dessas necessidades e as estimativas dos
custos relacionados com a recuperação através da assistência aos doentes permitem
dimensionar, mesmo que precariamente, o problema a ser enfrentado. Entre os
especialistas há concordância num ponto: a prática precisa mudar e isso exige
mudanças, quantitativas e qualitativas, também no sujeito do trabalho odontológico.
2000
Fonte: CFO 2000, Pellegrino 1999
2010
A proporção cirurgião-dentista por habitantes chegou a 1 CD para
aproximadamente 1.008 habitantes em 2002, segundo o Conselho Federal de
Odontologia (CFO 2002). A proporção 1 CD para 2.000 habitantes, parece ser
adequada aos países, de modo geral. Chaves (1977) refere como “bastante boa” esta
proporção, considerando-a “razoável” quando situada na faixa de 1 CD para 10.000
ou menos habitantes. Assim, a situação brasileira pode ser considerada, basicamente,
de relativo desequilíbrio quantitativo e inadequação qualitativa.
Vale registrar, entretanto, para destacar os limites de qualquer análise que leve em
118
conta apenas proporções consideradas genericamente, as gravíssimas distorções de
distribuição observadas entre cirurgiões-dentistas. A partir de dados do IBGE e do
Conselho Federal de Odontologia, para 2002, pode-se estimar, entre outras, as
seguintes proporções CD:habitantes: 1 : 2.974 no Amapá, 1 : 789 em Minas Gerais, 1
: 680 no Rio de Janeiro e 1 : 615 no Estado de São Paulo. Tais distorções, cabe
assinalar, não se verificam apenas entre CD mas igualmente no conjunto dos
profissionais de saúde. E mais: não têm dimensão apenas geográfica mas sócioeconômica: Morumbi e Guaianases, em São Paulo, e Copacabana e Madureira, no
Rio de Janeiro, por exemplo, apresentam significativas diferenças na proporção
CD:habitantes não por razões geográficas mas em virtude, sobretudo, do poder
aquisitivo da maior parte de suas respectivas populações.
A propósito, Narvai (2000) considera que “não basta para o enfrentamento da
atual política de formação de recursos humanos em saúde — aí incluídos os recursos
humanos odontológicos —, a enfadonha citação de que ‘a Organização Mundial da
Saúde recomenda 1 dentista para 1.500 habitantes’.” O autor lembra que “há
variantes, como 1:1.000 ou 1:2.000” mas afirma que
“a OMS não recomenda coisa alguma. Em algum momento alguém
deve ter lido mal em algum lugar, citou erroneamente a OMS e, a partir
daí, tem havido uma repetição mecânica e acrítica dessa proporção.
Jamais encontrei a referência bibliográfica nos artigos que mencionam a
tal proporção. Nos documentos da OMS, aos quais tive acesso, nunca li
nada sobre o assunto. Até que algum pesquisador desvende esse
mistério, pode-se concluir que se trata de pura lenda. Como, aliás,
tantas outras atribuídas à "OMS". Felizmente é lenda. Seria mesmo um
absurdo supor que uma eventual proporção dentista por habitantes
pudesse ser estabelecida como ‘ideal’ sem levar em consideração
aspectos elementares envolvidos no planejamento de recursos
humanos odontológicos necessários em cada comunidade como, por
exemplo, o seu perfil epidemiológico.”
Ainda que reconhecendo os limites da proporção CD:habitantes como um
indicador para a análise de recursos humanos odontológicos, pode-se admiti-la como
um instrumento útil, desde que se leve em conta um amplo conjunto de variáveis
(Pellegrino 1999, Pinto 2000). É possível perceber, por exemplo, que o Brasil
apresenta um indesejável desequilíbrio estrutural na distribuição dos CD pelas
macrorregiões, em relação às suas respectivas populações. Na Figura 19.2, observase que em 2002 o Sudeste concentrava 61% da população de CD e 42% da
população total. O Sul, com 15%, e o Centro-Oeste, com 8% dos CD brasileiros,
apresentam relativo equilíbrio entre a população de CD e a população total: 15% da
população brasileira está no Sul e 7% no Centro-Oeste. Norte e Nordeste apresentam
pronunciado desequilíbrio. No Norte estão 3% dos CD brasileiros e 8% da população
total, e no Nordeste 13% dos CD e 28% da população. Constata-se, por outro lado,
conforme se pode observar na Figura 19.3, que esse desequilíbrio vem se mantendo
nas últimas décadas. Entre 1975 e 2002 foram mínimas as alterações na distribuição
de CD segundo as macrorregiões brasileiras, com exceção da região Centro-Oeste,
que dobrou sua participação (de 4% para 8%). As regiões Norte e Sul mantiveram sua
participação com, respectivamente, 3% e 15% dos CD brasileiros. Nordeste e
Sudeste, por sua vez, viram diminuir em 2% sua participação percentual no conjunto:
o Nordeste de 15% para 13% e o Sudeste de 63% para 61%. A rigor, portanto, não se
pode falar em tendência de aumento da concentração de CD no Sudeste uma vez
que, os dados assim indicam, tal concentração é estrutural.
Estima-se que cerca de 70 (setenta) por cento dos serviços odontológicos
produzidos no Brasil continuam sendo financiados em âmbito privado. Investimentos
nessa área não vêm sendo suficientemente priorizados nas políticas públicas de
saúde e as ações, quando existem, são dirigidas quase que exclusivamente ao
controle de dores e infecções. Apenas às crianças, com ênfase aos escolares, tem
sido possível ampliar e diversificar os tipos de serviços odontológicos oferecidos no
âmbito do SUS. A expansão das ações financiadas com recursos do orçamento da
saúde continua sendo, em todos os níveis de governo, muito lenta e estão muitíssimo
aquém das necessidades da população, sobretudo adultos. A omissão do Estado
brasileiro e a negação na prática da saúde bucal como um “direito do cidadão e um
dever do Estado” vem abrindo espaço à ampliação dos denominados “planos
odontológicos”. Segundo a Associação Brasileira de Odontologia eles estariam
cobrindo cerca de 4,5 milhões de brasileiros em 2002, por meio de 413 operadoras e
cooperativas, com a expectativa de ampliar esse número para 20 milhões até 2005
(ABO 2002). Ainda que se possa considerar essa expectativa muito otimista o
Sindicato Nacional das Empresas de Odontologia de Grupo (Sinog) informa que 68%
dos CD brasileiros “já têm algum tipo de vínculo” com essas empresas. Na Figura 19.4
pode-se observar a expansão, de acordo com o Sinog, do número de beneficiários de
planos odontológicos a partir da última década do século passado. Segundo o IBGE
(2000), os dados da PNAD-1998 indicam que os planos de saúde atingem 38,7
milhões de pessoas. A porcentagem chega a 76% dentre os cerca de 10 milhões com
rendimentos familiares superiores a 20 salários mínimos, mas não ultrapassa 3%
dentre os aproximadamente 15 milhões cujo rendimento familiar não chega a 1 salário
mínimo.
119
Figura 19.2
Figura 19.3
Número de CD e população por macrorregião.
Número e porcentagem de cirurgiões-dentistas por
Brasil, 2002
macrorregião no Brasil em 1975 e em 2002
NE
48.845.112
28%
CO
12.101.540
7%
N
13.504.599
8%
NE
22.473
13%
N
5.027
3%
SE
74.447.456
42%
S
25.734.253
15%
CO
13.316
8%
Fonte: IBGE 2002, CFO 2002
CO
1.515
4%
NE
22.473
13%
N
5.027
3%
N
5.027
3%
S
25.733
15%
População
NE
5.680
15%
SE
107.088
61%
CD
S
25.733
15%
SE
23.854
63%
CO
13.316
8%
S
25.733
15%
1975
SE
107.088
61%
2002
Fonte: IBGE 1975, 2002
120
nunca foram ao dentista (3,4% na macrorregião Sul). Mas essa porcentagem alcança
36,5% entre aqueles cujo rendimento familiar não chega a 1 SM — atingindo
dramáticos 43,4% entre os sem rendimentos da macrorregião Nordeste. Tais dados,
que deixaram "abismado" o então ministro da Saúde, José Serra, revelam que sentar
na cadeira do dentista continua sendo, no Brasil, um insuportável monopólio de classe
social. Um privilégio e não um “direito de todos” — mais uma cruel expressão das
iniqüidades que nos assolam.
Figura 19.4
Vendas de planos odontológicos
no Brasil no período 1996-2005
Milhões
20,0
Figura 19.5
Acesso a serviços odontológicos no Brasil, em 1998
(em milhões)
1,0
2,0
1996
1997
4,0
4,5
1998
Ano
2002
2005
(estimativa)
Fonte: SINOG 1999, ABO 2002
Embora recorrente no discurso odontológico oficial (Lapa 1986), e muito
reproduzida entre leigos (Biancarelli 2002), não se dispõem de dados que permitam
afirmar que serviços odontológicos sejam acessíveis para “apenas cerca de 5 (cinco)
por cento da população” (Biancarelli menciona um inusual “6%”). Aliás, constata-se
grande variabilidade nos números relativos a acesso a serviços odontológicos no
Brasil. César et al. (1999) observaram, por meio de inquérito domiciliar (n=10.199),
que 32% das pessoas declararam ter “consultado dentista” no período de 12 meses
anteriores à entrevista, na região metropolitana de São Paulo, no início dos anos 90.
Dados mais abrangentes foram divulgados pelo IBGE em agosto de 2000 e constam
do relatório da PNAD-1998 — Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE
2000). Constatou-se que 29,6 milhões (18,7% da população) nunca foram ao dentista
(Figura 19.5). A porcentagem sobe para 32% na área rural, onde o acesso ao CD é
inédito para 10,3 milhões de brasileiros (Figura 19.6). Entre os brasileiros cujo
rendimento familiar mensal é superior a 20 salários mínimos (SM), apenas 4,1%
29,6
130,4
NUNCA
18,7%
COM
ACESSO
81,3%
Fonte: IBGE 2000
121
Figura 19.6
Acesso a serviços odontológicos no Brasil, em 1998,
segundo alguns grupos etários e a zona de residência
(em milhões)
Æ
Æ Sem
Sem Acesso
Acesso (milhões):
(milhões):
29,6
130,4
19,3
19,3(zona
(zonaurbana)
urbana)
10,3
10,3(zona
(zona rural)
rural)
Æ
Æ Menores
Menores de
de 20
20 anos
anos::
25,2
25,2 milhões
milhões
Æ
Æ Menores
Menores de
de 44 anos
anos::
12,8
12,8 milhões
milhões
Fonte: IBGE 2000
Com um setor estatal que vem expandindo muito timidamente a oferta de
serviços e um setor privado com dificuldades para reduzir custos e aumentar sua
produtividade, de modo a tornar os serviços acessíveis a um número maior de
brasileiros, e com dificuldade crescentes para incorporar novos contingentes de CD à
força de trabalho odontológica, o Brasil necessita urgentemente rever sua política de
formação e, principalmente, de utilização de cirurgiões-dentistas, uma vez que,
conforme mencionado, é boa a proporção CD:habitantes. O que se verifica,
analisando o conjunto da força de trabalho, é que profissionais formados segundo um
elevado padrão de qualificação científico-técnica, vêm realizando no dia-a-dia, como
estratégia de sobrevivência no setor privado e porque não têm outra possibilidade no
setor público, procedimentos básicos cujos requerimentos de qualificação ficam
muitíssimo aquém da formação recebida. Não se trata, por certo, para alterar esse
quadro, de banalizar a formação, diminuindo ainda mais a qualidade do ensino. A
prática, infelizmente bastante difundida, de ensinar mal na graduação, reduzindo
conteúdos e deixando conhecimentos essenciais “para o curso de especialização” e
justificando tal redução com o argumento de que “vocês precisam ser bons clínicos
gerais pois é isso que o Brasil precisa” é inaceitável. O argumento que pretende
justificá-la é perverso: utiliza antigas e conhecidas debilidades do ensino quanto a
aspectos sócio-epidemiológicos, econômicos, culturais e políticos, e manipula a
inadequação dos serviços odontológicos, sobretudo os públicos, para justificar a
degradação do ensino, sobretudo o ensino de algumas especialidades mais
demandadas e valorizadas no setor privado. Trata-se, ao contrário, para alterar o
quadro de má utilização dos CD disponíveis no país, de melhorar a qualidade do
ensino e, no plano da organização e funcionamento dos serviços odontológicos,
imprimir-lhes padrões de qualidade utilizando o potencial de trabalho dos CD
brasileiros que vem sendo flagrantemente subutilizado, com evidentes prejuízos à
população que deles necessita.
Até os primeiros anos do século XXI vigorou no Brasil, no campo da formação e
utilização de recursos humanos odontológicos, o pensamento neoliberal. As
conseqüências são bastante conhecidas: os aspectos quantitativos impuseram-se aos
qualitativos, sob a égide do mercado e ao abrigo da liberdade de iniciativa, tanto no
setor educacional quanto no setor da saúde. Em ambos os setores o mercado não
vem funcionando como regulador eficaz e constitui erro gravíssimo aguardar que
funcione. O setor saúde, pela sua natureza, não pode prescindir da atuação
reguladora do poder público, com base no planejamento estratégico e nos princípios
da democracia. A propósito, são elucidativos os exemplos da Inglaterra, Canadá e
Japão, dentre outros. A ausência dessas condições tem produzido desequilíbrio
quantitativo que se expressa num descompasso inconveniente: enquanto o conjunto
da população cresce aproximadamente 2% ao ano, a população de cirurgiõesdentistas vem crescendo anualmente cerca de 7%. (IBGE 2002, CFO 2002).
A tal desequilíbrio quantitativo devem ser acrescidas as considerações
constantemente assinaladas quanto aos aspectos qualitativos da formação e das
condições de trabalho. Afirma-se, por exemplo, a necessidade de ruptura com a visão
extremamente tecnificada e redutora, predominante nos processos de formação, e a
incorporação de conhecimentos e práticas sociais nesses processos, por meio da
articulação entre as instituições prestadoras de serviços e as formadoras de recursos
humanos. Tão importante para a sociedade quanto dispor de adequada força de
trabalho odontológica é contar com recursos humanos qualificados, em condições de
produzir ações e serviços de alta qualidade científico-técnica e, sobretudo, capazes de
atuar de acordo com os preceitos da humanização das práticas de saúde.
Assim, reivindicar a ação reguladora do poder público sobre a formação, tanto no
aspecto quantitativo quanto no qualitativo, é um imperativo que conta com apoio
unânime dos CD. É preciso considerar, entretanto, que essa ação é necessária mas
não suficiente, por si mesma, para o desenvolvimento de uma prática de promoção da
saúde bucal. Dadas as extremas desigualdades sociais que vêm se perpetuando na
sociedade brasileira e, sobretudo, em função da iníqua distribuição da renda (ver
Figura 19.7), além de regular a formação de recursos humanos odontológicos, o poder
122
público deve investir mais recursos na assistência odontológica (para a qual, estimase que o gasto público médio per capita/ano tenha sido de aproximadamente 4
dólares nos anos 90) e viabilizar a expansão da cobertura dos serviços públicos,
tornando-os hegemônicos no sistema de prestação de serviços e tornando-os
acessíveis a todos os grupos populacionais. Isso deve ser viabilizado através dos
sistemas locais de saúde, sob comando dos poderes locais (municípios e consórcios
intermunicipais). Esta parece ser a melhor estratégia para, efetivamente, promover a
saúde bucal em bases populacionais e romper o citado monopólio do cuidado
odontológico, exercido pelos setores de maior renda e segmentos a eles vinculados
ou dependentes.
Distribuição de renda no Brasil nos
anos 90 do século XX
49,0
48,1
12,0
1990
47,1
46,7
13,6
13,4
12,9
1993
1995
50% + POBRES
1997
Qual CD? - Quanto ao tipo de CD ao instituir, em 2002, o que se denominou
“diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em odontologia”, o
Conselho Nacional de Educação (CNE) definiu o seguinte perfil de egresso para
os cursos brasileiros (Brasil 2002):
“profissional com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva,
para atuar em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor
técnico e científico. Capacitado ao exercício de atividades referentes à
saúde bucal da população, pautado em princípios éticos, legais e na
compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio,
dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício
da sociedade.”
Figura 19.7
%
orientar-se no sentido da prevenção e da humanização e para o reconhecimento de
que as ações (inclusive muitas ações clínicas) requeridas para esta prática sejam
ações realizadas por pessoal auxiliar de nível médio. Esta constatação é de
importância fundamental para nós brasileiros. Orientar a prática profissional no sentido
da prevenção e incorporar ao sujeito do trabalho odontológico outros profissionais
além do cirurgião-dentista implica, além da transformação do tipo de CD que estamos
formando, formar outros tipos de recursos humanos.
45,7
14,5
1999
10% + RICOS
Fonte: PNAD 2000
Apesar da grande expansão do número de cursos de odontologia no Brasil e de
cirurgiões-dentistas em atividade, o percentual de brasileiros com acesso a cuidados
odontológicos regulares é pequeno. Aliás, há consenso entre pesquisadores em que
não há associação entre o número de CD e melhores condições de saúde bucal. Mas,
dado o papel de CD na diminuição da incapacidade bucal, não resta dúvida quanto à
importância da ampliação do acesso até torná-lo universal.
Em todo o mundo, entretanto, nos dias atuais, as discussões sobre recursos
humanos odontológicos convergem para a necessidade de a prática odontológica
No mesmo documento legal o CNE estabeleceu (art. 12) a necessidade de o aluno
elaborar, sob orientação docente, um trabalho “para conclusão do Curso de
Graduação em Odontologia”. Afirmou ainda (art. 4º) que a formação do CD tem por
objetivo “dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das
seguintes competências e habilidades gerais:
I — Atenção à saúde: os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito
profissional, devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção,
promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual
quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua prática seja
realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do
sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os
problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos. Os
profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos
padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética, tendo em conta
que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato
técnico, mas sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em
nível individual como coletivo;
II — Tomada de decisões: o trabalho dos profissionais de saúde deve
estar fundamentado na capacidade de tomar decisões visando o uso
apropriado, eficácia e custo-efetividade, da força de trabalho, de
medicamentos, de equipamentos, de procedimentos e de práticas. Para
123
este fim, os mesmos devem possuir competências e habilidades para
avaliar, sistematizar e decidir as condutas mais adequadas, baseadas
em evidências científicas;
III — Comunicação: os profissionais de saúde devem ser acessíveis e
devem manter a confidencialidade das informações a eles confiadas, na
interação com outros profissionais de saúde e o público em geral. A
comunicação envolve comunicação verbal, não-verbal e habilidades de
escrita e leitura; o domínio de, pelo menos, uma língua estrangeira e de
tecnologias de comunicação e informação;
IV — Liderança: no trabalho em equipe multiprofissional, os
profissionais de saúde deverão estar aptos a assumirem posições de
liderança, sempre tendo em vista o bem-estar da comunidade. A
liderança envolve compromisso, responsabilidade, empatia, habilidade
para tomada de decisões, comunicação e gerenciamento de forma
efetiva e eficaz;
V — Administração e gerenciamento: os profissionais devem estar
aptos a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto
da força de trabalho, dos recursos físicos e materiais e de informação,
da mesma forma que devem estar aptos a serem empreendedores,
gestores, empregadores ou lideranças na equipe de saúde; e,
VI — Educação permanente: os profissionais devem ser capazes de
aprender continuamente, tanto na sua formação, quanto na sua prática.
Desta forma, os profissionais de saúde devem aprender a aprender e
ter responsabilidade e compromisso com a sua educação e o
treinamento/estágios das futuras gerações de profissionais, mas
proporcionando condições para que haja benefício mútuo entre os
futuros profissionais e os profissionais dos serviços, inclusive,
estimulando e desenvolvendo a mobilidade acadêmico/profissional, a
formação e a cooperação através de redes nacionais e internacionais.”
Nos artigos 9º e 10, as diretrizes mencionam também a necessidade da definição
de um “projeto pedagógico” para cada curso, destacando que tal projeto deve ser
“construído coletivamente, centrado no aluno como sujeito da
aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do
processo ensino-aprendizagem. Este projeto pedagógico deverá buscar
a formação integral e adequada do estudante através de uma
articulação entre o ensino, a pesquisa e a extensão/assistência
[contribuindo também] para a compreensão, interpretação, preservação,
reforço, fomento e difusão das culturas nacionais e regionais,
internacionais e históricas, em um contexto de pluralismo e diversidade
cultural.”
As diretrizes foram definidas a partir de proposições apresentadas ao CNE pelo
Grupo de Estudos sobre Ensino de Odontologia, do Núcleo de Pesquisas sobre
Ensino Superior da Universidade de São Paulo (Nupes), pela Comissão de Ensino da
Associação Brasileira de Ensino Odontológico (Abeno), pela Comissão de
Especialistas de Ensino de Odontologia da SESu/MEC e pela Comissão de
Odontologia do Exame Nacional de Cursos (DAES/INEP/MEC).
Assim, bem mais do que competência nos domínios de aspectos biológicos
envolvidos na prática profissional, deve-se preparar o CD para que desenvolva
competência também quanto às dimensões ética e social do seu trabalho. No plano
das proposições tal entendimento não encontra, atualmente, opositores declarados. A
imagem-objetivo é boa. Mas muitas vezes, um oceano — para não dizer um planeta
inteiro — separa a intenção do gesto, o discurso da prática. As diretrizes são
abrangentes o suficiente para, ao seu abrigo, se desenvolverem experiências
educacionais muito distintas orientadas à formação de CD no Brasil. Assim, é
necessário, imprescindível mesmo, examinar permanentemente a experiência
concreta e os rumos de cada instituição.
PESSOAL AUXILIAR
Ao logo do tempo, o cotidiano do trabalho dos responsáveis pelas “ações
odontológicas” (os praticantes da arte dentária — Botazzo 2000) esteve marcado, de
algum modo, pela presença de tipos variados de “auxiliares”, que vão do ajudante no
transporte de equipamentos e instrumentos — muitas vezes também encarregado de
“chamar a atenção” em feiras e mercados — à realização de tarefas sob delegação
(Carvalho 1999). Se a existência de algum tipo de assistente “é tão antiga quanto a
própria prática profissional odontológica” (Carvalho 1999), nos dias atuais, não cabe a
menor dúvida sobre a importância, desde o ponto de vista das necessidades da
população, de se incorporar recursos humanos de nível médio ao cotidiano dessas
práticas. As bem-sucedidas experiências desenvolvidas originariamente nos Estados
Unidos (Dunning 1958) e na Nova Zelândia (Logan 1978), com a Higienista Dental e a
Enfermeira Dentária Escolar, respectivamente, não deixam margem a dúvidas: não
utilizar pessoal auxiliar significa “um luxo” que, hoje, nenhuma sociedade pode se
permitir. Um luxo que, vale enfatizar, penaliza a população, sobretudo os pobres. Leite
& Pinto (1983) ponderam que
“é um erro colocar um indivíduo com um elevado padrão científico,
adquirido em sofisticadas universidades, a efetuar ações elementares e
de baixos requerimentos tecnológicos, apenas porque não se quer abrir
espaço para o trabalho de ‘estranhos’ à profissão. Esta atitude tem dois
resultados principais: o encarecimento da ação, tornando-a proibitiva
financeiramente a um grande número de pessoas necessitadas; e a
desilusão e desinteresse do profissional que obviamente nutre
124
aspirações por um trabalho mais elaborado que lhe permita aplicar o
universo de conhecimentos que adquiriu na Universidade.”
O Brasil vem, há vários anos, formando e utilizando outros tipos de recursos
humanos odontológicos, que não exclusivamente o profissional de nível universitário.
As pressões da população para conseguir acesso aos serviços odontológicos fizeram
com que, sobretudo a partir dos anos 70, o Estado brasileiro, em diferentes níveis de
governo, ampliasse a oferta de serviços odontológicos públicos. Esta ampliação, ainda
que pequena face às necessidades da população, combinando-se com o enorme
contingente de trabalhadores odontológicos que já vinham exercendo funções
auxiliares em consultórios e clínicas privadas, criou as condições favoráveis à
aprovação, em 6/2/1975, do Parecer 460/75, do Conselho Federal de Educação
(CFE), autorizando e estabelecendo as exigências para a formação de dois tipos de
pessoal auxiliar odontológico: o atendente de consultório dentário (ACD) e o técnico
em higiene dental (THD). Apesar de o então CFE ter autorizado a formação de ACD e
THD em 1975, apenas nove anos depois, em 1984, o CFO aprovou a Decisão 26/84,
disciplinando o exercício dessas profissões no Brasil. A histórica Decisão 26/84 foi
posteriormente incorporada e complementada pelas Resoluções 155/84, 157/87 e
153/93 do Conselho Federal de Odontologia (CFO 1984, 1987, 1993).
A partir de 1984, foi desencadeado um amplo processo de regularização da
situação profissional de um grande contingente de trabalhadores no exercício dessas
funções em todo o país e, também, de sua formação. Segundo Pezzato (1999), a
Secretaria de Estado da Saúde do Paraná deu início, em 1984, ao “primeiro curso
autorizado pelos órgãos de educação do país” para formar THD. Tratava-se, com
efeito, de uma proposta pedagógica inovadora e bastante audaciosa, utilizando a via
do então denominado ensino supletivo e explorando as possibilidades de uma de suas
modalidades, a Qualificação Profissional. O plano de curso previa a integração
ensino-serviço e teoria-prática, durante a jornada e no próprio local de trabalho. O
êxito da proposta, desenvolvida no âmbito de um programa nacional de formação em
saúde conhecido como Projeto Larga Escala — resultante de um acordo
interministerial com apoio da Organização Pan-americana da Saúde (Moysés et al.
2002) — teve grande repercussão em todo o país e serviu de motivação para
iniciativas semelhantes em outros estados.
Com a criação do SUS pela Constituição da República (1988), e a atribuição ao
SUS de “ordenar a formação de recursos humanos” para a saúde, foram
impulsionados fortemente os programas de formação de pessoal auxiliar odontológico,
pelas próprias Secretarias de Saúde. Cursos particulares de ACD e THD foram
também aprovados pelos respectivos Conselhos Estaduais de Educação, em vários
Estados. A partir de então, os números indicam um lento mas firme e progressivo
aumento no número de trabalhadores de nível médio na odontologia brasileira, com a
incorporação de mais de 30 mil novos trabalhadores num período de 20 anos (Figura
19.8).
Figura 19.8
Porcentagem de crescimento do PIB
brasileiro no século XX
%
8,8
7,1
6,1
6,0
4,3
4,2
5,1
3,3
3,0
1,7
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
Fonte: BC e IBGE 2001
A despeito desses números, persistem muitas dúvidas sobre a “regulamentação”
das profissões de ACD e THD sendo freqüentes os questionamentos da competência
do CFO para registrar esses trabalhadores na medida em que não há documento
legal que trate do exercício de suas respectivas profissões — fato que os tornariam
“inalcançáveis” pelo órgão autárquico.
Polêmica - Pessoal auxiliar não foi sempre uma questão tranqüila no meio
odontológico brasileiro. Muitas discussões acaloradas têm acompanhado a história
desses trabalhadores. E não apenas no Brasil. Também nos Estados Unidos (Dunning
1958, Woodall 1987, Pimenta 1994) e Canadá (Stewart et al. 1987), entre outros
países. Mas entre nós a polêmica está acesa desde que, no início dos anos 50, o
então Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), atual Fundação Nacional de Saúde,
introduziu o auxiliar de higiene dentária (AHD) nos serviços odontológicos das suas
unidades básicas de saúde (Loures & Freire 1964, Pires-Filho 1974). A aprovação do
Parecer 460/75, pelo Conselho Federal de Educação, manteve aceso o debate,
principalmente sobre THD, suas funções e implicações no mercado de trabalho do CD
(Leite & Pinto 1983). Nove anos depois, a Decisão 26/84 do Conselho Federal de
Odontologia (CFO), disciplinando o exercício profissional do ACD e do THD acirrou,
125
notavelmente, os ânimos em amplos segmentos da categoria odontológica. Posições
contrárias ou favoráveis ao pessoal auxiliar, particularmente o THD, vêm
confrontando-se desde então e, ainda no final dos anos 80, os ânimos continuavam
exaltados. A linguagem dura, expressão do combate travado, beirou o chulo em várias
ocasiões. Apenas para ilustrar, recorde-se a significativa opinião sobre pessoal
auxiliar publicada pela Associação Odontológica da Prefeitura de São Paulo (AOPSP
1988):
“... além de prostituírem a odontologia, daria ensejo ao serviço público
diminuir cada vez mais o mercado de trabalho do Cirurgião-Dentista (...)
e à formação de falsos profissionais (THD) colidindo frontalmente com a
dignidade de nossa profissão...”
A posição da AOPSP não foi isolada. Não foi “coisa de radicais”. Ela teve o mérito
de tornar público o pensamento de setores ponderáveis da categoria profissional dos
cirurgiões-dentistas, naquele contexto histórico. Inúmeras outras manifestações neste
sentido poderiam ser lembradas mas fazê-lo seria enfadonho e desnecessário. Basta
uma: a do ex-presidente do CRO-SP, Osmar Soares de Freitas:
“... os THDs em breve se constituirão numa multidão de ‘práticos’ no
país das 80 Faculdades de Odontologia...” (Freitas 1987).
No outro lado da trincheira têm estado, dentre outros, muitos coordenadores de
saúde bucal de instituições vinculadas ao SUS, professores da área de odontologia
preventiva e social, entidades como a ABOPREV e a Federação Interestadual dos
Odontologistas (FIO), movimentos como o de Renovação Odontológica e, mais
recentemente, a Associação Brasileira de Saúde Bucal Coletiva.
A despeito de os THD não terem sido fator de inibição à abertura de novos cursos
de odontologia (142 em 2001, muitos dos quais sob direção de dirigentes e exdirigentes de entidades odontológicas), parece relevante assinalar que, não raro, o
tom do debate chegou ao puro e duro bate-boca.
Objeções ao THD - Contra o THD, sua existência e seu trabalho, têm sido
apresentados argumentos de todo tipo — alguns respeitáveis, outros evidentemente
mal intencionados. Narvai et al. (1989) assinalam que, entre esses argumentos,
afirmam-se, por exemplo, que o THD:
1.
“rouba o mercado de trabalho que é por direito do CD” (AOPSP 1988a, 1988b);
2.
Vai se transformar em falso dentista (“prático”);
3.
Não é capaz de realizar trabalhos com a mesma qualidade que o CD;
4.
Põe o CD em risco perante a justiça, pois este é responsável pelo trabalho que
aquele realiza.
Estas são, entre tantas outras, as objeções mais freqüentes à existência do THD,
cuja extinção pura e simples chegou a ser pedida, pela Associação Paulista de
Cirurgiões-Dentistas (APCD), em abaixo-assinado que circulou em janeiro de 1986
durante o XII Congresso Paulista de Odontologia (APCD 1986), dirigido ao Ministro da
Educação. Cabe esclarecer que, em 1994, a APCD adotou outra posição e, por
intermédio de sua Escola de Aperfeiçoamento Profissional, vem mantendo um curso
para formação de THD, devidamente reconhecido pelo Conselho Estadual de
Educação. A primeira turma desse curso concluiu suas atividades em 25 de julho de
1995 (APCD 1995).
Sobre os principais argumentos contra o THD pode-se afirmar, pelo menos, que:
1. No contexto do modo de produção capitalista, de tipo monopolista dependente,
como o vigente no Brasil, a questão do mercado de trabalho e do pleno emprego para
cirurgiões-dentistas e demais trabalhadores odontológicos só pode ser enfrentada
com seriedade se não se ignorar o modelo de desenvolvimento imposto ao país pelo
regime militar após o golpe de Estado de 1964 — e até hoje não alterado em seus
fundamentos. Uma das características marcantes desse modelo, com notável impacto
sobre a possibilidade de consumo de serviços odontológicos, é a brutal concentração
da renda. Em nosso país, os 10% mais ricos da população abocanham praticamente a
metade da renda (ver Figura 19.7). Esta perversa distribuição da renda, alterada
minimamente nas últimas décadas, fica agravada nas conjunturas recessivas,
penalizando ainda mais os que vivem de salários. Quando se observa a evolução do
Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro ao longo do século passado constata-se que as
duas últimas décadas foram, nesse aspecto, um período especialmente difícil, não
contribuindo, de modo algum, para alterar para melhorar essas características
estruturais da economia brasileira. Verifica-se que o crescimento econômico registrou
média de 8,8% nos anos 70, 3,0% nos anos 80 e, caindo mais, ficou em 1,7% nos
anos 90 (Figura 19.8). Sabe-se por outro lado que, no Brasil, o trabalho humano está
entre os de pior remuneração em todo o planeta. Enquanto aqui o salário mínimo tem
oscilado historicamente entre 60 e 80 dólares, na Europa Ocidental está em torno de
600 dólares e nos Estados Unidos e Japão aproximadamente 800 dólares. Mesmo no
âmbito da América Latina, a maioria dos países remunera melhor que o Brasil. Para
agravar ainda mais esse quadro, observa-se que nos 90 a participação dos salários
no PIB brasileiro piorou: foi de 44% em 1993 para apenas 33% em 1999. Com
semelhante aviltamento da remuneração da força de trabalho, com o padrão de
distribuição de renda, e com o desemprego estrutural atingindo todos os setores
econômicos, somente ingênuos (ou mal intencionados) não compreendem o impacto
significativo dessas condições sobre a assistência odontológica (possibilidades e
impossibilidades), os níveis de emprego e os padrões de remuneração dos
trabalhadores da área, incluindo evidentemente os CD. Como esperar de uma
economia com tais características que viabilize trabalho para todos os CD e, mais
ainda, com um padrão de remuneração “europeu” ou “norte-americano” ao trabalho
odontológico, como desejam alguns? Sobre tais relações, oportuna projeção foi feita,
ainda nos anos 80, por Cauduro-Neto (1987) a partir de dados do IBGE. Segundo
126
essa projeção, 112 milhões de brasileiros, que auferiam renda média mensal inferior a
3 salários mínimos (SM), participavam de apenas 1% da renda obtida por CD em
consultórios particulares. Desses 112 milhões, apenas 2,5 milhões iam todos os anos
ao CD particular. Por outro lado, 88% dos rendimentos dos CD provinham de 6
milhões de pessoas que apresentavam renda mensal superior a 10 SM — das quais
4,6 milhões iam todos os anos ao CD. Não há qualquer indício nos indicadores
econômicos e sociais disponíveis que permitam admitir que, no início do século XXI,
tal padrão tenha se alterado significativamente.
Figura 19.9
Proporção ACD-THD:CD no Brasil em 1992 e 2002
2002
1992
CD
ACD-THD
113.509
173.637
36.883
6.785
0,21 : 1
0,06 : 1
Fonte: CFO 1992, 2002
As conseqüências desse quadro são bem conhecidas. Manfredini & Narvai (2001)
mencionam que “milhares de jovens cirurgiões-dentistas chegam anualmente ao
mercado de trabalho em todas as regiões do país [trazendo] expectativas de
desenvolver atividades profissionais para resolver, ou pelo menos diminuir, os
problemas de saúde bucal de milhões de brasileiros (...)” mas que há uma situação
paradoxal: o mercado de trabalho é exíguo mas o campo de trabalho é de “grande
magnitude no Brasil pois são expressivas as necessidades odontológicas da
população, exigindo ações nas diversas especialidades.” Os autores assinalam que
“persiste, portanto, o desafio de diminuir a distância que hoje vem
separando campo e mercado de trabalho odontológico. O modo como a
sociedade brasileira vem produzindo bens e serviços e os nossos
imensos problemas, com profundas desigualdades na distribuição da
riqueza, está na origem desse distanciamento. Superar tais iniqüidades
é imprescindível para resolver esse paradoxo. O campo de trabalho é
amplo. O mercado, exíguo. O desafio, enorme.”
Outro aspecto da maior relevância na questão do mercado de trabalho do CD é a
relativa baixa empregabilidade do setor privado. Embora não estejam disponíveis
dados confiáveis, analistas estimam que cerca de três quartos dos postos de trabalho
assalariado para CD sejam ofertados no setor público, mesmo com o relativo baixo
investimento nessa modalidade assistencial. Segundo Nobre (2001) “em Roraima
92% trabalham pelo SUS. No Rio Grande do Sul, 46%. Na média, 51% dos dentistas
brasileiros já trabalham de alguma maneira no governo, para as pessoas mais
carentes” (sic). No setor privado o segmento não lucrativo (sindicatos de
trabalhadores, serviços sociais e outros) responderia por mais da metade dos postos
de trabalho assalariado em todo o país, superando o setor empresarial tradicional —
excluindo-se, portanto, as modalidades mais recentes dos denominados “planos”
odontológicos.
Assim, numa estrutura e dinâmica complexas de produção-consumo de serviços
odontológicos é muito simplista atribuir ao pessoal auxiliar odontológico, em especial
ao THD, “roubo de mercado de trabalho”. Ao contrário, há evidências de que o THD
tem contribuído intensamente para aumentar, no setor público, os postos de trabalho
privativos de CD. Com efeito, para Barros (1994) “os THD não estão tirando emprego
de nenhum CD. Ao contrário, estão abrindo perspectivas de novos e melhores
empregos para os profissionais, pois com sua atuação, aumenta-se a produtividade”.
Santos (1995) refere, também, que o emprego de THD contribui para a necessária
mudança do modelo de atenção em saúde bucal. Analisando o emprego de ACD e
THD no Estado de São Paulo, Frazão (1998) destaca que na maioria dos municípios
pesquisados a participação na promoção da saúde bucal é mais significativa quando
se trata da realização de ações coletivas em escolas ou outros espaços sociais e que
isso contribui “para a transformação das práticas da odontologia em saúde coletiva e
para a mudança do modelo de atenção conforme as diretrizes de saúde bucal e os
princípios do Sistema Único de Saúde em construção no Brasil.” A propósito, pela
oportunidade, convém registrar que o papel da autoridade sanitária (a instituição e a
pessoa física que age em seu nome) é prover saúde bucal e assistência odontológica
a todos os cidadãos e não se render aos interesses particulares de corporações,
sejam quais forem.
2. O temor de que o THD vai se transformar em “prático” ronda permanentemente
os CD. É compreensível que seja assim. Afinal, a categoria profissional dos CD
brasileiros atravessou várias décadas lutando para afirmar a profissão, estruturando-a,
desenvolvendo-a no plano técnico-científico, e angariando prestígio e reconhecimento
social pela qualidade dos serviços prestados. E tudo foi e vem sendo feito com a
necessidade de combater o exercício ilegal da profissão.
127
Vale destacar que a luta por prover à população serviços de qualidade, produzidos
por profissionais capazes de incorporar às suas práticas os avanços e conquistas do
conhecimento científico, tem apoio unânime dos CD. Não há unanimidade, porém,
quanto aos métodos de combate aos “falsos dentistas”. Alguns analistas, entre os
quais Garrafa (1981), acreditam que a sobrevivência dos “práticos” decorre
fundamentalmente da exigüidade da cobertura. Tal exigüidade deriva do caráter
mercantilista da prática e da histórica ausência do poder público nesse tipo de
atividade, situando-se muito aquém da presença observada em outras modalidades
assistenciais. O tratamento policial do problema, ainda que bem-sucedido
temporariamente, tenderia ao fracasso a médio e longo prazos, se a questão da
cobertura não for equacionada.
A proposta de formar e utilizar pessoal auxiliar odontológico de nível médio, para
desenvolvimento de ações no ambiente do consultório e fora dele (entenda-se: utilizar
THD) emergiu e ganhou importância no Brasil num contexto histórico de indiscutível
fracasso por um lado, das políticas repressivas ao “prático” — segundo Pinto (1982)
no início dos anos 80 seu número ainda estaria em torno de 25.000 — e, por outro
lado, de desenvolvimento de sistemas de trabalho inovadores, decorrentes da
aplicação de princípios ergonômicos ao processo de trabalho odontológico. Sob o
título “Práticos: mais uma mazela brasileira” o Jornal da APCD informou, em sua
edição de junho de 1996, que em Imperatriz, Maranhão, com cerca de 350 mil
habitantes, havia 53 CD e aproximadamente 200 “práticos” e que, no estado do
Espírito Santo, cerca de 1.000 “práticos” disputavam o mercado de trabalho com os
2.098 CD inscritos no CRO-ES (APCD 1996). Naquele ano o estado capixaba
contabilizava 2 (dois) THD inscritos no CRO-ES. Leite et al. (1996) ressaltaram a
importância dos recursos humanos “na definição do novo modelo assistencial” e
enfatizaram “a desqualificação do pessoal de nível médio [que na Odontologia ainda
se encontra em altas proporções, tanto no setor público como no privado], como um
dos principais problemas que afetam o Sistema Único de Saúde” propondo a
ampliação dos “programas de formação (...) visando uma profissionalização dessa
categoria”. Para Calvielli (1996), “a odontologia deve ir ao encontro das necessidades
da população, com o CD adequando-se a estas necessidades.”
Nesse contexto, de mudanças no sujeito do processo de trabalho odontológico e
da criação de alternativas para ampliar o acesso aos serviços e reduzir a presença de
pessoal não habilitado na prestação dos serviços, o THD não se confunde com o
“prático”. Ao contrário, deve ser compreendido como componente estratégico de
qualquer proposta que tenha entre seus objetivos evoluir para um contexto onde tais
praticantes não sejam necessários, desaparecendo ou permanecendo residuais e,
portanto, sem maior importância do ponto de vista da saúde pública. Assim, não há
razões para tratar o THD como um falso dentista, um “prático”. Ele não é isto. E não
atende aos interesses da população, nem dos CD, vê-los assim — nem, muito menos,
levá-los a serem isto, a serem “práticos”.
3. A questão da qualidade do trabalho do pessoal auxiliar é complexa e remete à
própria qualidade dos serviços produzidos por CD; à sua eficácia do ponto de vista
epidemiológico e até mesmo à iatrogenia. O certo é que, no Brasil, não se fazem
muitas pesquisas analisando qualidade de serviços. Uma dessas poucas pesquisas,
realizada por Cordón (1986) em programa que vinha utilizando THD ainda em
formação (o Programa de Itu, SP), merece ser conhecida, e é esclarecedora. O autor
analisou 269 restaurações de amálgama de prata realizadas em 94 escolares, por
equipes de saúde bucal (CD-THD-ACD). Desse total, 218 restaurações foram
consideradas adequadas e 51 inadequadas. Destas, 14 foram realizadas
exclusivamente por CD e 37 por CD+THD+ACD. Destas 37, 29 apresentaram
pequenas alterações, como ponto de contato prematuro, sobremargens ou deficiência
mínima de contorno. Tais alterações não implicaram danos estéticos ou funcionais
significativos. Entretanto, dos 94 escolares examinados, 14 (15%) apresentaram
transtornos de ATM. Em nenhum caso, contudo, esses transtornos estavam
associados às restaurações realizadas. As alterações de ATM decorriam, em todos os
casos, de perdas precoces de primeiros molares permanentes em conseqüência de
cáries não tratadas. Por certo, dada a natureza da questão, uma única pesquisa não
basta. Mas seus resultados esclarecem sobre o que é, efetivamente, relevante na
questão da qualidade, e fazem indicações que devem ser levadas em consideração.
De qualquer modo, o intenso desenvolvimento da odontologia preventiva, em
especial da cariologia, nas últimas décadas, vem alterando em profundidade as bases
científicas sobre as quais se apóiam as ações programáticas em saúde bucal. Assim,
embora ainda importantes nas condições sócio-epidemiológicas atuais no Brasil —
sobretudo em localidades e comunidades onde são escassos ou inexistem
profissionais de nível universitário —, as funções tipicamente curativas do pessoal
auxiliar (THD em especial) não vêm aparecendo como as funções mais “nobres” do
perfil do pessoal auxiliar. As funções de promoção e de proteção específica parecem
estar ganhando esse status, conforme assinalam Sheiham & Moysés (2000). Mais do
que com a assistência odontológica, o pessoal auxiliar (THD em especial) vem
participando crescentemente de atividades de atenção à saúde bucal (aqui entendida
como “o conjunto de atividades intra e extra setor saúde que, incluindo a assistência
individual, não se esgota nela, atingindo grupos populacionais com o objetivo de
manter a saúde, e requerendo ações concomitantes sobre todos os determinantes da
saúde-doença” – Narvai 1994). É esta pelo menos a tendência que se observa nos
serviços odontológicos, públicos ou privados, que se desenvolvem com base em
programas, conforme assinalam Frazão & Castellanos (1999).
Biazevic et al. (2001) analisaram a percepção que THD (n=177) do estado de São
Paulo têm da qualidade do trabalho preventivo que realizam, em comparação com a
qualidade do mesmo trabalhado feito por CD. Para 82% seu trabalho tem a mesma
qualidade; 1% a considerou inferior; e 17% acharam que a qualidade do seu trabalho
é superior ao do CD. Segundo os autores, essa opinião não pareceu estar
128
influenciada por fatores sócio-demográficos (sexo, idade, estado civil e escolaridade)
ou profissionais (se trabalha ou não como THD, tipo de serviço – público ou privado –,
extensão da jornada, número de empregos, registro profissional e participação em
alguma associação), com exceção da remuneração pelo trabalho, uma vez que houve
associação significativa entre maiores salários e qualidade do trabalho melhor que o
do CD. Os autores acreditam que
“este achado sugere que o salário influencia diretamente a percepção
do profissional sobre seu trabalho. Ao receber salário maior, o
profissional tende a se sentir mais valorizado, e subjetivamente, isto
pode resultar num profissional capaz de realizar tarefas de melhor
qualidade.”
Analisando dados da segunda metade dos anos 90 provenientes dos estados de
São Paulo e Minas Gerais, Carvalho (1999) assinala que, “em geral, o ganho médio
mensal do ACD e do THD figurava em torno de 1 a 4 salários mínimos”.
Por tudo isso, também a questão da qualidade dos serviços exige tratamento que
deve ir além da simples troca de insultos e acusações...
4. Quanto a pôr em risco o CD perante a Justiça, cabe reafirmar que o CFO
estabelece claramente a exigência de “supervisão do CD” ao trabalho de ACD e THD.
Esta supervisão (direta) refere-se ao desempenho de atividades clínico-cirúrgicas, não
se aplicando, salvo melhor juízo, ao desenvolvimento de atividades educativas, onde
a supervisão indireta é suficiente e, obviamente, mais adequada. A supervisão direta
implica trabalho no mesmo ambiente clínico. Assim, o THD integra, necessariamente,
uma equipe de saúde bucal, comandada técnico-cientificamente por CD. As
competências de diagnóstico e alta entre outras de natureza irreversível, são
exclusivamente do CD, e intransferíveis. Isto significa, sem qualquer margem à
dúvida, que cabe ao CD a responsabilidade final pelo trabalho da equipe de saúde
bucal (nela incluído o THD). O argumento de que “uma pessoa não pode
responsabilizar-se pelo trabalho de outra” é inconsistente e não se aplica, uma vez
que não se trata de trabalho “de outra”, mas de trabalho coletivo tecnicamente
dividido, onde a responsabilidade parcial é de cada indivíduo segundo o que lhe
compete, e a responsabilidade pelo produto final é de quem dirige o processo de
trabalho, ou seja, o CD.
Aspectos Legais - Boa parte das críticas ao pessoal auxiliar odontológico resulta
de desconhecimento dos dispositivos normativos existentes e que, a rigor, deveriam
bastar para disciplinar o trabalho de equipes de saúde bucal sob comando,
coordenação e controle do CD. Outra parte das críticas resulta, ao contrário, das
notáveis imperfeições do Parecer 460/75, reproduzidas mecanicamente pelo CFO na
Decisão 26/84 e nas Resoluções 155/84, 157/87 e 185/93 (CFO 1975, 1984, 1987,
1993). Tais imperfeições vão das denominações à descrição das competências.
Cabe registrar, antes de prosseguir, as competências de ACD e THD. Compete
aos ACD, segundo a Resolução CFO-185/93 (art. 20) “sempre sob a supervisão do
CD ou do THD:
a) orientar os pacientes sobre higiene bucal;
b) marcar consultas;
c) preencher e anotar fichas clínicas;
d) manter em ordem arquivo e fichário;
e) controlar o movimento financeiro;
f) revelar e montar radiografias intra-orais;
g) preparar o paciente para o atendimento;
h) auxiliar no atendimento ao paciente;
i)
instrumentar o cirurgião-dentista e o técnico em higiene dental junto à cadeira
operatória;
j)
promover isolamento do campo operatório;
l)
manipular materiais de uso odontológico;
m) selecionar moldeiras;
n) confeccionar modelos em gesso;
o) aplicar métodos preventivos para controle da cárie dental;
p) proceder à conservação e à manutenção do equipamento odontológico.”
Em relação a tais competências caberiam, dentre outros, os seguintes
comentários:
- na letra “a”, não se trata simplesmente de “orientar” “pacientes” sobre “higiene”
bucal. Trata-se de participar da educação de pessoas (não necessariamente
“pacientes”) sobre saúde-doença na boca;
- na letra “e” trata-se, evidentemente, de participar do controle do movimento
financeiro. Ou alguém acredita que a algum auxiliar se lhe permita “controlar” o
movimento financeiro? Ou mesmo se deve ter tal atribuição?
Uma omissão relevante nas atribuições do ACD diz respeito aos procedimentos de
limpeza, desinfecção e esterilização. Tais atividades ocupam boa parte do cotidiano
de trabalho de ACD em todo o país e são, efetivamente, de enorme importância.
Entretanto não são, a rigor, da sua competência...
Compete aos THD, segundo a Resolução CFO-185/93 (art. 12) “sempre sob a
supervisão com a presença física do CD, na proporção máxima de 1 CD para 5 THD,
além das de ACD, as seguintes atividades:
129
a) participar do treinamento de atendentes de consultório dentário;
b) colaborar nos programas educativos de saúde bucal;
c) colaborar nos levantamentos e estudos epidemiológicos como coordenador,
monitor e anotador;
d) educar e orientar os pacientes ou grupos de pacientes sobre prevenção e
tratamento das doenças bucais;
e) fazer a demonstração de técnicas de escovação;
f) responder pela administração de clínica;
g) supervisionar, sob delegação, o trabalho dos atendentes de consultórios dentários;
h) fazer a tomada e revelação de radiografias intra-orais;
i)
realizar teste de vitalidade pulpar;
j)
realizar a remoção de indutos, placas e cálculos supragengivais;
l)
executar a aplicação de substâncias para a prevenção da cárie dental;
m) inserir e condensar substâncias restauradoras;
n) polir restaurações, vedando-se escultura;
o) proceder à limpeza e à antissepsia do campo operatório, antes e após os atos
cirúrgicos;
p) remover suturas;
q) confeccionar modelos;
r) preparar moldeiras.”
Sobre estas atribuições cabem muitos comentários. É relevante destacar que:
- na letra “b” não deveria se tratar de apenas “colaborar”, mas de participar. Aos
que, inadvertidamente, consideram estas expressões “a mesma coisa”, vale lembrar
que são conceitos profundamente diferentes...
- na letra “c”, a competência para “coordenar” levantamentos e estudos
epidemiológicos é evidente exagero e deveria ser suprimida;
- na letra “d” quem educa, orienta. Assim, “e orientar” poderia ser suprimido.
Considerando também que nem sempre o educando é um “paciente”, esta expressão
deveria ser substituída:
- na letra “e”, além da “demonstração” o técnico deveria poder supervisionar a
prática da escovação;
- na letra “f” a atribuição de que ao THD cabe “responder pela administração da
clínica” só pode ter sido obra de quem, com perdão do trocadilho, não responde pelo
que faz. Ora, se o THD integra uma Equipe e trabalha “sempre sob supervisão” de
CD, como pode ele “responder” pela administração (!) da clínica? Pode e deve auxiliar
em procedimentos administrativos, não responder por eles...
- a letra “i” deveria ser simplesmente suprimida, pois quem faz algum teste clínico
faz com finalidade de diagnóstico e este não é uma atribuição do técnico;
- na letra “p” a prudência recomenda explicitar o que está implícito, ou seja:
“remover suturas, após avaliação profissional”;
Quanto às denominações, o Conselho Federal de Odontologia, ao estabelecer as
competências de ACD e de THD, utilizou as mesmas denominações do Parecer CFE
460/75: atendente de consultório dentário e técnico em higiene dental. Foi um erro
(mais um entre tantos que o CFO vem cometendo ao lidar com questões de interesse
do pessoal auxiliar odontológico), uma vez que estas denominações, por inadequadas
às atribuições e ao seu nível de habilitação, deveriam ter sido abandonadas. Aliás,
devem ser abandonadas, pois estão causando prejuízos, inclusive salariais, tanto para
ACD quanto para THD. Em muitas instituições, “atendentes” (e ACD é “atendente”...)
não podem ser registrados como “auxiliares” e, assim, recebem salário menor. O CFO
deveria tratar de redefinir essas denominações, exercendo sua autonomia, nesse
âmbito, frente ao Ministério da Educação. Vejamos:
Atendente de Consultório Dentário - A expressão atendente é utilizada
informalmente para designar pessoal de enfermagem sem qualquer qualificação
específica, empregado para realizar atividades ou tarefas de baixíssima complexidade
em serviços de saúde. Na própria área de enfermagem, embora a expressão
atendente continue sendo utilizada informalmente, o Conselho Federal de
Enfermagem não a preconiza mais. Não há razão, portanto, para que se continue
utilizando esta expressão na área odontológica. “Consultório Dentário”, por outro lado,
é igualmente inadequado no presente, seja porque o tradicional consultório não é
mais o único ambiente de trabalho onde a atividade odontológica pode ser exercida,
seja porque há muito o exercício desta atividade no Brasil não está limitado aos
dentes mas abrange todo o campo da odontoestomatologia. Tratando-se de
habilitação em nível de segundo grau e constituindo-se em habilitação parcial do
técnico, parece-nos que, em atendimento à legislação, a denominação mais precisa
para esse tipo de pessoal é a de “Auxiliar...”, expressão aliás, ainda que informal,
consagrada pelo uso na área odontológica.
Técnico em Higiene Dental - Se o vocábulo “técnico” está perfeitamente ajustado
ao que se pretende denominar, tanto em relação ao nível da habilitação quanto em
relação às atribuições desse tipo de recurso humano odontológico, a expressão
“higiene dental” é um equívoco. Tem origem, provavelmente, na denominação dental
hygienist, empregada nos Estados Unidos, Japão, Europa Ocidental e outros países,
para designar um tipo de pessoal odontológico cuja formação data de 1913 quando
130
Fones propôs sua utilização para realizar “profilaxia oral” e ensinar técnicas “corretas”
de escovação dental (Dunning 1958, Pires-Filho 1974). As competências
estabelecidas pelo CFO ao técnico habilitado em nível de segundo grau caracterizam
um tipo de pessoal odontológico que não deveria ser confundido com o dental
hygienist. Embora Pinto (2000) se refira ao THD como o equivalente brasileiro do
“higienista dentário”, as atribuições do THD caracterizam-no com um perfil bem mais
abrangente e, sobretudo, não restrito à “higiene”. Tais atribuições, se nos permitimos
uma referência à mitologia grega, situam-se tanto no campo próprio de Hygéia (a
protetora da saúde; a conselheira) quanto no de Panacéia (a recuperadora da saúde;
a manipuladora das ervas), pela simples razão de que a odontologia contemporânea
não pode se permitir o erro de separar a prevenção da cura, como se entre elas fosse
possível erguer uma Muralha da China. Prevenção e cura são duas dimensões
inseparáveis e indispensáveis quando se pensa a saúde-doença como processo que
exige ações integrais. Ou seja: as pessoas necessitam, ao mesmo tempo, tanto de
ações preventivas quanto curativas. Assim, se o termo “higiene”, além de se vincular
fortemente em sua origem no Brasil a práticas individualistas e autoritárias (padrões,
regras, advertências) é limitado em relação às competências, “dental” também o é
pela razão já exposta.
Está patente, portanto, que atendente de consultório dentário e técnico em higiene
dental são denominações inadequadas. Assim, tendo em vista o nível das
habilitações, e as denominações tecnicamente corretas de auxiliar (habilitação parcial)
e técnico (habilitação plena) e considerando ainda que o campo de trabalho do
pessoal auxiliar é o da saúde bucal, mais amplo que o da assistência odontológica
individual e cujos níveis de saúde nas populações não decorrem exclusivamente da
assistência mas são determinados por variáveis não biológicas sobre as quais se
deve agir, acreditamos que as denominações tecnicamente mais adequadas para o
ACD e o THD seriam, respectivamente, “Auxiliar de Saúde Bucal” e “Técnico em
Saúde Bucal”.
Para-odontológicos? - Às vezes nos deparamos, em textos ou em falas, com a
expressão “para-odontológico” para designar o pessoal auxiliar odontológico.
Entendemos que tal expressão deve ser abandonada; como aliás os médicos de há
muito abandonaram a expressão “para-médicos”, na qual ela evidentemente se
inspirou. E deve ser abandonada não porque os médicos o tenham feito mas porque,
efetivamente, é incorreta e discriminatória. É incorreta porque o prefixo para significa
“ao lado de...”, “fora de...”, tendo conotação de algo paralelo. Ora, o pessoal auxiliar
não está “fora” mas sim dentro de..., junto de... E é discriminatória porque traz em si a
idéia de que odontologia é sinônimo, exclusivamente, de cirurgião-dentista. O que,
nos dias atuais, no Brasil, é simplesmente irreal.
Só no Serviço Público? - Outra discriminação freqüente ao pessoal auxiliar diz
respeito às suas oportunidades de trabalho. É muito comum que se recomende a
participação do trabalho do THD apenas na saúde pública ou no serviço público. Ora,
esta proposta é equivocada e ilegal. Seria um erro crasso, de relevante custo social,
impedir que CD pudessem contar com THD (assim como podem contar com ACD),
para modernizar suas técnicas de trabalho, aumentar sua produtividade e atender um
maior número de pessoas, simplesmente por pretenderem fazer isto “fora da saúde
pública”... E seria ilegal por uma razão muito simples: o exercício de qualquer trabalho
é garantido pela Constituição da República, promulgada em 5/l0/88. Em seu Título II,
Capítulo I (dos direitos e deveres individuais e coletivos), Artigo 5o, a Carta Magna
não dá margem à dúvida:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XIII - É livre o exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas às qualificações
profissionais que a lei estabelecer” (Brasil 1988).
Não há dúvida, portanto: pessoal auxiliar odontológico devidamente habilitado ao
exercício de suas funções pode trabalhar onde conseguir trabalho. A lei garante.
A propósito, um aspecto que vem ganhando relevância é o amparo legal ao
trabalho de ACD e THD, para além das garantias constitucionais. A partir da I
Conferência Nacional de Saúde Bucal, quando foi aprovada “a formação urgente e a
incorporação imediata de (...) ACD e THD como forma de viabilizar a extensão de
cobertura e o aumento da produtividade [devendo] o Poder Público buscar formas
adequadas de enquadramento (...), objetivando a regulamentação de sua situação
profissional, sem prejuízo dos programas comunitários odontológicos onde se
encontram inseridos” (CNSB 1986), os setores da odontologia e da saúde pública que
defendem o SUS vêm lutando arduamente para obter a regulamentação do exercício
profissional desses trabalhadores. Lamentavelmente, sem êxito até o presente. Cabe
registrar que logo após a I CNSB um projeto de lei tratando da regulamentação das
profissões de ACD e THD começou a tramitar no Congresso Nacional (PL nº 53).
Depois de tramitar durante cerca de cinco anos o Projeto de Lei nº 53 foi finalmente
aprovado e encaminhado à sanção presidencial. Após tantas idas e vindas,
substitutivos e emendas, acreditava-se que a sanção presidencial não passaria de ato
protocolar. Mas no penúltimo dia de 1993 o Presidente da República (Itamar Franco)
vetou a lei aprovada no Congresso sob o frágil argumento de que a regulamentação
“desmotiva o aperfeiçoamento profissional". De tão frágil, é de se admitir que a razão
substantiva do veto não veio a público — por razões que ainda precisam ser
esclarecidas. Assim, não se sabe o que o teria levado ao veto. Mas o passar dos anos
tem mostrado que erraram os que agiram nas sombras para que essa fosse a decisão
tomada pelo Presidente. Sua desastrada estratégia produziu um vazio normativo que,
além de prejudicar trabalhadores qualificados, tem ensejado questionamentos sobre a
própria competência do CFO quanto a registros, fiscalização do exercício profissional
e outros procedimentos relativos a ACD e THD. Permitir que as posições das
131
entidades odontológicas sobre esses assuntos continuem a serem definidas a partir
das proposições de setores obscurantistas constitui grave erro. O exemplo mais
relevante até o presente, gerado por esse vazio, foi a proposição ministerial de criação
de cursos de tecnólogo em saúde, incluindo o “tecnólogo em saúde bucal”.
Tivéssemos o THD regulamentado e tal iniciativa provavelmente nem seria cogitada.
Cabe assinalar contudo que, a persistir o quadro que a gerou, outras certamente
virão.
Monopólio – Apesar dos avanços obtidos nos anos 90, persiste no Brasil, no início
do século XXI, uma evidente monopolização do processo de trabalho pelo CD,
conforme se pode observar na Figura 19.9: em 1992 a proporção ACD+THD:CD era
de 0,06:1; em 2002 a mesma proporção registrava 0,21:1. Melhorou, sem dúvida, mas
se encontra ainda muito distante de uma proporção razoável (2:1, por exemplo).
Já no início dos anos 80, esse “caráter monopolista do atual modelo de prática e
assistência odontológicas” era apontado na VII Conferência Nacional de Saúde
(Brasília, 24-28 de março de 1980):
“CARÁTER MONOPOLISTA - Que se traduz na resistência à
transferência de conhecimentos e à sua utilização por parte de outros
tipos de recursos humanos, que não o profissional de nível superior,
numa opção que fere o princípio de divisão do trabalho já reconhecido e
utilizado largamente por outros setores das ciências médicas.” (CNS
1980).
Ainda que se tenham realizado importantes avanços para alterar esse quadro, a
monopolização do processo de trabalho continua sendo um dos principais desafios a
serem enfrentados nas próximas décadas no Brasil quanto aos recursos humanos
odontológicos, uma vez que, segundo o Conselho Federal de Odontologia, em
Estados como Tocantins e Espírito Santo praticamente não há THD: eles eram 1 e 10,
respectivamente, em outubro de 2002. Na mesma época, a proporção ACD+THD:CD
era 0,41:1 na macrorregião Norte (a melhor proporção do país) e 0,17:1 na
macrorregião Sul (a pior proporção). Como muitos ACD e THD não têm registro no
CFO, pode-se admitir que essas proporções estejam subestimadas. Ainda assim,
esses números conformavam uma proporção muito baixa, muito aquém do que seria
necessário para assegurar acesso universal num país com as características do
Brasil.
RECURSOS HUMANOS PARA QUEM?
As lideranças mais representativas no Brasil parecem concordar quanto à
necessidade de introduzir mudanças na prática odontológica. Há reconhecimento da
importância da prevenção e não seria exagero falar em unanimidade. Pelo menos no
plano discursivo, não se observa nenhuma liderança expressiva recusando essa
importância. O mesmo não ocorre, porém, com relação a quem deve ser o
beneficiário fundamental dessa mudança. As várias propostas que se vêm
apresentando revelam, umas mais claramente que outras, diferentes enfoques sobre
para quem deve ser orientada a nova prática que se pretende desenvolver no país.
Em nosso entendimento, não basta a essa nova prática ser preventiva ou
promotora da saúde bucal... É indispensável que assuma um compromisso inequívoco
com a universalidade da atenção. Não é uma questão menor saber se a prática
“preventiva” ou “promotora da saúde bucal” que estamos defendendo está dirigida a
todos os brasileiros ou apenas àqueles que hoje conseguem acesso aos serviços
públicos e privados. O fato de o cuidado odontológico ser monopólio das elites no
Brasil constitui um divisor de águas, no campo odontológico: há os que não aceitam
conviver com essa situação e há aqueles para os quais isso não faz a menor
diferença. E esta é uma questão relevante.
Nos situamos entre aqueles que não aceitam que os recursos humanos
odontológicos estejam direcionados apenas à satisfação das necessidades
odontológicas das elites. Por essa razão, vale registrar que, tão importante quanto ser
preventiva ou promotora da saúde bucal, a nova prática odontológica deve ser
desenvolvida por recursos humanos quantitativa e qualitativamente adequados às
necessidades de todos os brasileiros, sem qualquer tipo de discriminação. Assim, as
propostas de práticas “inovadoras”, “renovadoras”, “progressistas” ou tenham
qualquer outra denominação, cumprirão melhor sua função social quanto mais
radicalmente assumirem o compromisso de tornar tais práticas acessíveis a todos os
brasileiros, uma vez que não nos parece aceitável continuar convivendo com a
aberração de cuidados odontológicos serem negociados no mercado, como uma
mercadoria qualquer, e sendo acessíveis apenas aos que podem pagar por isso —
excluindo, portanto, milhões de pessoas dos benefícios proporcionados por
conquistas científico-técnicas da humanidade que parece ético e justo sejam
compartilhadas por todos. Ademais de esse acesso ser, no caso brasileiro, um
imperativo legal. Se isso constrange e deixa indignados os que trabalham na área de
saúde bucal no Brasil, não pode nos paralisar e tornar conformistas. Esse
constrangimento e indignação deve resultar em ações capazes de levar à superação
desse quadro, fazendo os enfrentamentos inevitáveis em situações de quebra de
monopólios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise que se apresenta neste capítulo sintetiza discussões que se vêm
fazendo no país há várias décadas, e resulta de um amplo processo coletivo de
abordagem e crítica das inúmeras questões relativas à problemática dos recursos
humanos no Brasil. Por ser uma síntese, está certamente incompleta, tendo a
finalidade precípua de introduzir, sem esmiuçar, as questões e posições que ao autor
132
pareceram as mais relevantes sobre o assunto, no contexto brasileiro e de modo
genérico.
10. Biancarelli A. Cirurgiã diz que a prevenção de saúde bucal deve ser feita em casa. Folha de
S.Paulo 27 out 2002, p. C6.
Assim, à guisa de conclusão, vale reafirmar que o poder público não deve se
eximir do estabelecimento de diretrizes para a formação e desenvolvimento dos
recursos humanos odontológicos no país e não pode deixar de exercer o papel
regulador que lhe cabe nesse campo, sob risco de causar prejuízos à população. Tais
diretrizes devem se centrar na ênfase à formação e utilização de pessoal auxiliar
como elemento estratégico de uma política de transformação da prática odontológica
hegemônica no país, com vistas a adequá-la às necessidades do conjunto da
população; ou seja, uma prática orientada à promoção da saúde bucal. Isto pressupõe
ajustar o número e alterar as características científico-técnicas dos cirurgiõesdentistas graduados anualmente no Brasil. Quanto ao número deve, ao contrário do
que se verifica hoje, estar adequado à dinâmica populacional e não a fatores de outra
ordem (a mercantilização do ensino, por exemplo). Já as características científicotécnicas devem ter como referência as demandas do conjunto do nosso sistema de
saúde. Assume enorme importância, nesse sentido, o papel desempenhado pela
Universidade. Mais do que com a simples quantidade de profissionais que forma, tem
a Universidade que se capacitar para vencer o desafio da qualidade dos profissionais
que prepara para a sociedade. Desvendar o que significa qualidade para cada
comunidade, para cada classe social, para cada brasileiro, é tarefa da Universidade
livre, pluralista e democrática.
11. Biazevic MGH, Loureiro CA, Araújo ME. Perfil do técnico em higiene dental do estado de
São Paulo: qualidade da prestação dos serviços. Revista Brasileira de Odontologia em Saúde
Coletiva, 2 (1): 47-54, 2001.
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