A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
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A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do
Século XXI: Questões da Agenda Internacional e suas
Implicações para o Brasil
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA*
Resumo
Este ensaio tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos problemas considerados mais importantes das relações internacionais contemporâneas da agenda mundial,
ao início do século XXI, e discutir suas implicações para o Brasil, enquanto ator ou
espectador de alguns dos processos ou eventos enfocados.
Abstract
This essay has as its purpose present and discuss some problems considered more
important for the contemporary international relations of world agenda in the beginning of the 21st century. The consequences for Brazil both as an actor and as an observer of the processes and events taken into account are debated.
DE
Este ensaio tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos problemas relevantes
da agenda mundial, ao início do século XXI, e discutir suas implicações para o Brasil.
Trata-se de uma exposição descritiva, que não se pretende abrangente, sistemática ou
completa, mas que cubra, ainda assim, os problemas considerados mais importantes das relações internacionais contemporâneas, introduzindo, para cada um deles,
sua interação ou impacto para o Brasil, enquanto ator ou espectador de alguns dos
processos ou eventos enfocados. Pode ser considerada uma “digressão livre”, pelo
fato de que não pretende fundamentar a análise dos tópicos tratados em remissões
exaustivas, baseadas em fontes documentais relativas aos casos selecionados ou em
referências bibliográficas completas; mas a lista de leituras indicativas, apresentada ao
final, oferece, ainda assim, um guia de informação complementar para a maior parte
dos problemas abordados no texto.
O ensaio recolhe algumas décadas de atento estudo das questões internacionais e
a experiência adquirida no trato profissional de vários dos assuntos nele abordados.
O texto foi organizado em três seções, apresentadas a seguir. Cada uma delas foi dedicada a um conjunto de questões com relevância internacional, nos planos político e
econômico, para as quais são mencionadas as implicações ou o seu significado para
o Brasil. A terceira seção aborda com maior grau de detalhe o impacto da presente
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ordem política e econômica mundial para o país. Este texto analítico-descritivo está
assim estruturado:
1) A ordem política mundial: novos problemas, velhas soluções?
1.1. Segurança estratégica
1.2. Relações entre as grandes potências
1.3. Conflitos regionais
1.4. Cooperação política e militar nos hot-spots;
2) A ordem econômica mundial: velhos problemas, novas soluções?
2.1. Regulação cooperativa das relações econômicas internacionais
2.2. Assimetrias de desenvolvimento
2.3. Cooperação multilateral e Objetivos do Milênio
3) A ordem política e econômica mundial e o Brasil
3.1. Crescimento econômico
3.2. Investimentos
3.3. Acesso a mercados
3.4. Integração regional
3.5. Recursos energéticos
3.6. Segurança e estabilidade
1) A ordem política mundial: novos problemas, velhas soluções?
A primeira observação que compete fazer a respeito desta seção, tem a ver com
o contraste oferecido em relação à seção seguinte, no sentido da inversão de caráter
entre o velho e o novo. No caso da ordem política, acredito que o mundo enfrenta
novos problemas, e eles não se situam apenas em supostas “ameaças globais”, como
os problemas do meio ambiente ou da ameaça do terrorismo fundamentalista. A curta
visão histórica das gerações presentes tende a crer que o “aquecimento global” tem
sido produzido pela Revolução industrial ou pelas atividades “civilizatórias” de modo
geral, esquecendo que, em escala geológica, o planeta Terra já enfrentou ciclos de
aquecimento e de resfriamento globais que impactaram profundamente – em alguns
casos fatalmente – o destino de sociedades humanas inteiras (ver Jared Diamond,
Armas, Germes e Aço e Colapso). Da mesma forma, independentemente do fato de
que os atuais fundamentalistas islâmicos matam, atualmente, um “pouco mais” de
gente do que os anarquistas de um século atrás – que tendiam a se concentrar em
lideranças políticas –, a violência indiscriminada como arma política está conosco há
muito tempo, sendo que as guerras globais do século XX foram insuperáveis em sua
obra homicida (Niall Ferguson: The War of the World).
Os problemas são novos no sentido em que, depois dessas matanças indescritíveis
do século XX, tão bem descritas por Ferguson, o mundo parece encaminhar-se para
um período de “relativa paz” no que se refere aos grandes sistemas imperiais. Minha
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leitura do problema da paz e da guerra – certamente situada na tradição aroniana
(Raymond Aron: Paz e Guerra entre as nações), mas dela divergindo quanto à natureza dos conflitos contemporâneos, que me parecem retroceder em relação ao
panorama de guerras totais, de estilo clausewitziano, que ele contemplava – pode
ser resumida da seguinte forma. As grandes nações guerreiras deixaram o cenário
de pequenas guerras de posição, muitas vezes travadas com o recurso eventual a
tropas mercenárias, típicas dos séculos XV e XVI, para as guerras de conquista e
ocupação, conduzidas pelos Estados-nacionais em formação dos séculos XVII e
XVIII. Importantes inovações táticas e estratégicas foram introduzidas pelo estilo
napoleônico de conduzir os combates, envolvendo a mobilização de forças nacionais em larga escala, o que dominou o cenário mundial na era dos grandes impérios
nacionais (basicamente o século XIX, até a Primeira Guerra Mundial). O século XX
conheceu, sob a forma das guerras globais (em duplo sentido), uma inacreditável
explosão de violência, que não mais poupou instalações ou populações de espécie
alguma, até o advento da arma atômica, que sinalizou um limite para o exercício
dessa violência. É minha crença – talvez subjetiva e otimista, mas ainda assim fundamentada numa certa percepção objetiva dos “custos” da guerra para os atuais
“impérios” – que as superpotências não mais voltarão a se enfrentar diretamente,
em grandes guerras totais, mas procurarão se acomodar mutuamente com o recurso
às negociações ou, quando for necessário, às guerras localizadas e aos conflitos
militares por procuração – proxy wars – que não mais envolverão a escalada final,
isto é, a destruição completa do inimigo (pois isso poderia significar a sua própria
destruição, quando não uma hecatombe em escala planetária).
Por outro lado, o desaparecimento do socialismo, que significava um messianismo
em bases universalistas, retira um dos mais poderosos indutores a um conflito global
no plano militar, pois, como disse Francis Fukuyama (“The End of History?”) – e
nisso estou em acordo com ele –, não existe mais uma alternativa credível aos sistemas de mercado e ao capitalismo, ainda que as democracias demorarão um pouco
mais para atingir a universalidade. Ou seja, os “impérios” porventura existentes –
americano, europeu, chinês, russo, indiano – se encontrarão na interdependência do
capitalismo global, ainda que possam ter suas divergências econômicas, políticas e
militares, e mesmo conflitos localizados, mas todos eles equacionáveis diplomaticamente em bases de mútua conveniência.
Os problemas são, portanto, “novos”, pois o recurso à guerra total já não é mais
possível na era nuclear, com a crescente interpenetração dos “impérios” regionais.
Isto não quer dizer que o direito internacional – e suas manifestações institucionais,
como a ONU e outras agências intergovernamentais – venha a prevalecer sobre a vontade dos Estados-nacionais e, sobretudo, acima desses impérios: a ameaça do uso da
força deve permanecer como a ultima ratio da política internacional durante um bom
tempo ainda, enquanto, pelo menos, a lógica westfaliana continuar a prevalecer (e
isto pode durar mais um século e meio, aproximadamente). As soluções são, portanto,
“velhas”, por isso mesmo: a lógica imperial e o uso da força continuarão conosco pelo
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futuro previsível, e esta me parece a base da segurança e da estabilidade do mundo
que conhecemos, que não corre nenhum risco de tornar-se “kantiano” antes de três ou
quatro gerações, pelo menos. A soberania continuará com os Estados-nacionais pelo
futuro previsível; menos na Europa, que está construindo sua própria soberania comunitária (mas este será um processo longo, pois os europeus não parecem acreditar
muito na força bruta, sendo, neste caso, suplantados pelos chineses e indianos, que
com russos e americanos continuarão a dominar o panorama da segurança estratégica
nas próximas décadas).
Quanto à ordem econômica, que me parece apresentar os mesmos “velhos” problemas de sempre – desigualdades de acesso e de riqueza entre as nações, diferenciais
de renda e de prosperidade, com convergências e divergências operando em ritmo
muito lento para eliminar os ainda imensos bolsões de miséria abjeta –, algumas novas soluções parecem estar em curso; elas se situam justamente na interdependência
crescente dos sistemas econômicos nacionais. Neste caso, o sistema “westfaliano” já
saltou pelos ares e o nacionalismo econômico parece uma coisa tão antiquada quanto
o machado de bronze e a roca de fiar. A internacionalização crescente das atividades
produtivas e de circulação de bens tangíveis e intangíveis me parece constituir a base
de uma sociedade global que existirá antes na prática do que no direito, este ainda
dominado pelos nacionalismos de base política que são duros de morrer. Aprofundarei
estes temas na seção pertinente.
Feita esta introdução de caráter geral, vejamos agora os problemas da agenda política mundial.
1.1. Segurança estratégica
Na equação estratégica contemporânea, a detenção de artefatos nucleares continua
a ser o elemento dominante, em ultima ratio, do jogo do poder. Existem, obviamente,
outros vetores de poder, em especial o tecnológico e o econômico, este constituindo, em última instância – segundo o modelo analítico marxista, que neste particular
conserva plena validade –, o elemento crucial de afirmação de supremacia, de modo
continuado. Não se compreende, aliás, o desenvolvimento e a posse de artefatos nucleares senão ao cabo de certo grau de avanço científico e tecnológico, que costuma
estar ligado ao nível de desenvolvimento econômico do país.
Certamente que países economicamente poderosos estão em condições de assegurar um modo de vida satisfatório aos seus cidadãos, podendo influenciar decisivamente a agenda política e econômica mundial e contribuir, no mundo contemporâneo, para
o desenvolvimento econômico e social de outros povos e países. Isso é plenamente
verdade. Mas, se formos decidir, em determinados momentos, sobre a paz e a guerra, e
definir quem, no momento decisivo, é capaz de impor sua vontade – ou de impedir que
outros imponham a sua própria vontade –, então, a posse de armas nucleares torna-se
o diferencial absoluto de poder, independentemente do poder econômico relativo de
cada um dos contendores.
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Como regular, então, as relações internacionais, ou melhor, as relações de poder,
nesse contexto da “arma de última instância”? O mundo dispõe de um acordo que não
é mundial, mas tão somente internacional, que regula parcialmente o problema, que
é o TNP, o tratado de não-proliferação nuclear (Washington-Moscou-Londres, 1968).
Esse tratado não é certamente universal e, sobretudo, não é multilateral, uma vez que
apenas três países o negociaram e depois o “ofereceram” à comunidade internacional.
Ele foi posteriormente “estendido” ao resto do mundo, na ausência – talvez na oposição – dos dois outros únicos países nucleares à época, que eram a França e a China
(que a ele só aderiram no início dos anos 1990). Essa extensão se fez sob os olhos por
vezes invejosos, outras vezes preocupados, de outros países, alguns deles interessados
em desenvolver seus próprios artefatos nucleares, alguns outros temerosos de que a
proliferação indevida dessas terríveis armas pudesse conduzir ao holocausto nuclear.
De fato, vários outros países tentaram – alguns continuam tentando – desenvolver
a tecnologia nuclear, para fins de dissuasão ou para simples manifestação primária de
poder. Entre esses países se encontravam, na América Latina, o Brasil e a Argentina,
sob a escusa, pouco credível, de sua utilização para fins exclusivamente pacíficos, ou
civis. Vez por outra, algum “estrategista”, aqui mesmo no Brasil, levanta a hipótese do
desenvolvimento de um artefato nuclear, mesmo na presença do obstáculo constitucional, com a justificativa de que as condições externas poderiam exigi-lo para fins de
“defesa”. Por certo, vários países estariam em condições de desenvolver rapidamente
um artefato nuclear, se a decisão política assim o determinasse; entre eles poderiam
figurar: Alemanha, Japão, Canadá, Suécia, Espanha, Itália e outros atores menores.
Brasil, Argentina, Egito e alguns outros demorariam mais tempo, em função de lacunas tecnológicas ou de insuficiência do “combustível” nuclear.
A questão nuclear, no seu sentido amplo, estratégico, apresenta três aspectos que
não estão necessariamente conectados entre si de modo estrutural, mas que foram
conceitualmente reunidos pelo próprio instrumento que “regula” a questão no plano
internacional: (a) a não-proliferação, que é obviamente o aspecto principal subjacente
às intenções dos proponentes do TNP; (b) a cooperação nuclear para fins civis, ou
pacíficos, que representa uma promessa e uma garantia das potências nuclearmente
armadas em direção de todas as outras; (c) o desarmamento, que é uma hipótese fantasiosa inventada pelos proponentes do TNP para atrair – enganar seria o termo mais
exato – os demais países a esse instrumento discriminatório e desigual. Em relação a
esta terceira dimensão da questão nuclear, se poderia repetir o velho argumento tantas
vezes utilizado em outras circunstâncias: em relação ao desarmamento, nós – ou seja,
as potências nuclearmente armadas –, fingimos que vamos desarmar, um dia, e todos
os demais fingem que acreditam nessa hipocrisia. De fato, parece difícil reverter a situação ao status quo ante: uma vez que o “gênio” nuclear saiu da sua lâmpada militar,
é praticamente impossível fazê-lo retornar à sua “inexistência” anterior.
Para todos os efeitos práticos, o que vale, para as potências do TNP é a garantia de
não-proliferação, com alguma cooperação na dimensão da cooperação – sob o olhar
vigilante da AIEA – e a total desconsideração da dimensão desarmamento. Para todos
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os “nucleares”, portanto, essa questão apresenta dois aspectos: o da projeção da força
e o da dissuasão. O primeiro aspecto, depois de Hiroshima e Nagasaki, não mais
voltou ao cenário internacional (a despeito de alguns “ensaios”, como em Cuba, em
1962). A arma nuclear não mais voltou a ser usada como arma de terreno para abreviar
o final de uma guerra, ainda que ela tenha sido cogitada em alguns cenários ou teatros
possíveis de operação (como a sugestão do general MacArthur, em face da ofensiva
chinesa durante a guerra da Coréia, e talvez algum outro general “maluco” por ocasião
da guerra do Vietnã). Mesmo no caso de Cuba, quando os dois grandes contendores
da fase pré-TNP parecem ter chegado “to the brink”, não estavam reunidas todas as
condições para que o jogo de pôquer, naquelas circunstâncias, chegasse a uma “solução final”, ao estilo do filme Dr. Strangelove.
A arma nuclear é usada, portanto, para fins essencialmente dissuasórios, e é como
tal que Israel a concebe, em face de uma coalizão agressiva de Estados árabes que
gostariam de varrê-lo do mapa. Existem, certamente, militares, que concebem alguma
utilização tática da arma nuclear; mas os estadistas responsáveis e planejadores sensatos dos países nuclearmente “capazes” – e não apenas daqueles nuclearmente armados – assim imaginam sua equação nuclear nacional. De fato, repassando a lista dos
nucleares, veremos que eles sempre tiveram em mente algum perigo estratégico, para
o qual se buscou a solução de última instância.
Com a possível exceção da França – que estava exercendo uma opção de “orgulho
nacional”, depois de tantas humilhações sofridas desde o século XIX – e, possivelmente, da África do Sul – que se sentia acuada por todos os demais países africanos no
momento do apartheid –, todos os demais países tinham algum contendor em mente
no desenvolvimento do seu programa nuclear. A China se armou contra os EUA e
contra a própria URSS; a Índia o fez contra a China, menos do que contra o Paquistão;
o Paquistão contra a Índia, with a little help from China; Israel contra os países árabes,
e eles eram muitos; a Coréia do Norte contra os EUA (e possivelmente o Irã, também,
mais do que contra o Iraque). As aventuras nucleares de Saddam Hussein (ditador do
Iraque até sua derrubada pelos EUA em março de 2003) e as do coronel Kadhafy, da
Líbia (estas, finalizadas depois de duras sanções contra o país), entram nesta equação
a título de bizarrice, embora o ditador do Iraque tivesse o “inimigo” iraniano no seu
planejamento militar. De todos esses países, o único que desarmou voluntariamente
foi a África do Sul; mas ela o fez no momento da transição para o regime de maioria
negra, e esse elemento pode ter entrado no cálculo estratégico da liderança branca
que assim decidiu no início dos anos 1990. Quanto à Coréia do Norte, a supor que
ela desarme, efetivamente, tal fato pode ser atribuído à dupla pressão da China e dos
EUA, nessa ordem.
Parece haver uma teoria das relações internacionais contemporâneas – mas não
testada na prática – que afirma que os Estados que se tornam nuclearmente armados
passam a se comportar de modo mais responsável e condizente com suas novas responsabilidades no plano internacional. Este foi certamente o caso da China, de Israel,
da Índia, embora haja desconfianças em relação ao que possam algum dia fazer o
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Paquistão, a Coréia do Norte e, eventualmente, o Irã. Mesmo com relação à China,
se questiona se seu papel foi responsável, uma vez que ela pode ter sido decisiva na
capacitação nuclear do Paquistão, que por sua vez foi, em parte, negligente com o seu
programa: um físico desse país está na origem de uma das mais importantes redes de
disseminação de tecnologia e materiais nucleares, num contexto de “proliferação” por
empreendimento individual, um pouco como faziam os piratas de antigamente, que
também podiam servir de corsários para seus Estados respectivos. Alguns cenários
podem ser preocupantes, nessa hipótese de uma proliferação não controlada pelos
atores responsáveis, o que poderia ser o caso do Paquistão, da Coréia do Norte e do
Irã, precisamente.
Mesmo quando um país nuclearmente “capaz” não parece ameaçar a paz mundial,
cenários de conflito são sempre imprevisíveis, pois as fontes podem emergir não da
situação objetiva de um país determinado, em seu contexto geopolítico próprio, mas
como resultado da paixão dos homens, falíveis por definição. Imaginemos, por um
instante, uma ocupação das Malvinas por tropas argentinas respaldadas por um artefato nuclear que teria sido previamente desenvolvido pela ditadura militar. A história
poderia ter sido bastante diferente.
O TNP vem se “universalizando” nos últimos anos, em que pese sua notória falta
de legitimidade intrínseca. Por outro lado, mais países estão se tornando nuclearmente
capazes, quando não nuclearmente armados. A Índia já criou uma situação nova e vem
sendo aceita como uma potência nuclear de fato, ainda que não o venha a ser de direito. O grande responsável por essa transformação foi, a rigor, a potência garantidora,
por excelência, do TNP e aquela teoricamente mais engajada na não-proliferação: os
EUA. A dissuasão e o cálculo estratégico estão aqui bem presentes. As boas relações
entre Índia e EUA, nesse terreno, têm a ver com a China, embora equivocadamente
considerada como a fonte possível de desafios estratégicos para os EUA. O acordo
nuclear entre EUA e Índia vale estritamente para fins civis, e não tem o poder de
qualificá-la para o clube formal das potências nucleares, o que de toda forma exigiria
reforma do TNP, algo praticamente impossível de ocorrer nessas bases.
O TNP precisa, sim, de reformas, mas elas teriam de ser bem mais radicais do que
poderiam admitir os cinco privilegiados da atualidade. Nem eles poderiam admitir o
seu desarmamento, o que obviamente não ocorrerá, nem eles vão querer estimular em
demasia o desenvolvimento nuclear – ainda que para fins eminentemente pacíficos –
dos demais países. Assim, parecem existir poucas chances de progresso institucional na
questão nuclear, com base nos instrumentos atualmente disponíveis, em primeiro lugar
o TNP. Haverá, portanto, muita hipocrisia e muito more of the same nesta agenda.
Não se concebe, com efeito, as potências nuclearmente armadas favorecendo o
ingresso de países “candidatos” no clube nuclear. Eles precisariam “forçar a porta” e
garantir o seu ingresso, mas sempre serão passageiros incômodos, por não disporem
do bilhete desde a partida. Em outros termos, não haverá nenhum levantamento de
restrições à transferência de tecnologia. Mas os próprios países que aspiram ingressar
no grande jogo estratégico terão de buscar sua equiparação progressiva – embora rudi-
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mentar – com os cinco grandes, com base em sua própria capacitação. Esta dependerá
em grande medida do aprendizado próprio – ou seja, ciência e indústria, com base
em tecnologia endógena ou copiada –, da política dirigida ao comércio de materiais
sensíveis, alguma cooperação bilateral e um pouco de espionagem.
Quanto ao problema da reforma da Carta das Nações Unidas e a ampliação do seu
Conselho de Segurança, esse processo não tem a ver, diretamente, com a posse de algum artefato nuclear. O Japão – potencialmente capaz de desenvolver a arma, mas que
prefere, por enquanto, viver castrado nessa dimensão – e a Índia são, teoricamente,
os dois únicos países que estariam na lista dos EUA para ingresso no CSNU, mas não
por algum cálculo de natureza estratégica que envolva a posse de armas nucleares. De
toda forma, o alegado desejo dos países membros e dos candidatos em promover uma
“democratização” das estruturas de poder internacional não passa de uma hipótese
pouco credível para quem acompanha a realidade das relações internacionais. Os cinco permanentes atuais não desejam a reforma e não pretendem diluir o seu poder com
novos candidatos. O status quo lhes convém e assim será mantido até que novos dados
da realidade alterem substancialmente a equação estratégica do cenário internacional
contemporâneo. Uma coisa é certa: o “gênio” nuclear continuará fora da garrafa.
E o Brasil, como se situa ele, neste cenário de unilateralismo arrogante, de arranjos
oligárquicos e de pressões sobre os países “desviantes”? Ele mesmo poderia ser incluído nessa categoria, ao persistir sua recusa do Protocolo adicional ao TNP, mesmo
depois de aceitar relutantemente esse instrumento discriminatório em 1996. É certo
que, na origem, isto é, nos anos 1950, o Brasil mantinha concepções otimistas – talvez
ingênuas – sobre a utilização do poder nuclear, tanto sob a forma de energia, como
em aplicações médicas e mesmo em obras de engenharia civil. Depois ele alimentou
o sonho de aceder à tecnologia de processamento e de sua eventual utilização militar,
ao empreender, entre outros programas, a cooperação nuclear com a Alemanha (que,
junto com o Brasil, foi objeto de intensas pressões dos EUA). Sua capacitação interna
foi prejudicada por insuficiência de recursos e de vontade política, independentemente
do eventual sucesso tecnológico do acordo com a Alemanha, que não foi conduzida a
termo. Foi, provavelmente, melhor assim, pois o espectro de uma corrida nuclear com
a Argentina foi afastado e ambos os países terminaram não apenas acedendo ao TNP,
como também desenvolveram um programa exemplar de cooperação em salvaguardas
nucleares que pode servir de modelo para outras situações do gênero (talvez no sul da
Ásia, com o impasse indo-paquistanês ainda pendente).
Continuam pendentes, portanto, o problema da recusa brasileira ao Protocolo adicional ao TNP – que parece ter a ver com uma hipotética “tecnologia original” utilizada na fábrica de processamento de Resende – e a questão da postura em relação à
“doutrina nuclear” de Bush, que envolve o controle das atividades civis, em todos os
seus aspectos (comerciais, tecnológicos, produtivos). Tendo em vista o nacionalismo e
o soberanismo brasileiros, não haverá progresso sensível no futuro imediato, mas essa
questão não é crucial no plano da segurança estratégica para a ordem política mundial:
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afinal de contas, o Brasil não é um elemento desestabilizador da ordem internacional e
o mundo pode facilmente conviver com esse tipo de nacionalismo “nuclear”.
Existem outros vetores de segurança estratégica no cenário mundial e eles têm
a ver com os esquemas regionais (ou geopolíticos) de defesa e de aliança militar: o
único esquema que sobreviveu à Guerra Fria e que continuou a se expandir gloriosamente foi a OTAN, que teve um notável sucesso em suas novas roupagens “camaleônicas” de “pau para toda obra”, ao incorporar em seu programa temas como
direitos humanos e defesa do meio ambiente (incrível, mas verdadeiro). A OTAN não
é mais “atlântica”, mas mundial, pois que suas tropas estão no Afeganistão, como
poderiam estar em outros cenários, sempre e quando o comando americano assim o
decida. A Eurásia continua a ser, como nos tempos de Mackinder, o elemento-chave
do equilíbrio estratégico mundial, mas os europeus continuam numa encruzilhada de
vocações: eles não sabem se retomam suas antigas tradições imperiais – afogadas
desde os antigos desvarios nazistas e ameaças do hoje inexistente inimigo soviético,
parcialmente revivido no novo czarismo russo – ou se continuam atados ao guardachuva nuclear da OTAN (de fato americano). Sua proverbial incapacidade de engajar
recursos consideráveis em tecnologia bélica promete continuar reduzindo-os a nada
mais do que assistentes militares do império americano, o que muito os desgosta (mas
eles não fazem muita coisa para mudar a situação).
No plano global, de toda forma, essas indecisões européias são irrelevantes para
o equilíbrio estratégico internacional: a dissuasão continua a funcionar e o mundo
é mais seguro do que jamais o foi no decorrer do século XX. No plano regional, os
cenários de conflito potencial continuam situados em zonas periféricas e empobrecidas da Ásia, da África e do Oriente Médio, pois não se imagina que as regiões dinâmicas e os países mais engajados na globalização (e, ipso facto, de alto crescimento
econômico) venham a se deixar envolver em uma escalada de enfrentamentos que
possam precipitar algum conflito de grandes proporções.
A América Latina continua a ser uma região isenta de grandes enfrentamentos e
o TIAR (1947) continuará a exibir sua inoperância relativa (o que não representa um
problema para o Brasil, talvez, antes, uma solução). Depois dos “anos clássicos” de
alinhamento ideológico, mas fora do cenário de enfrentamentos, durante a Guerra
Fria, o que menos interessa ao Brasil é ter a América Latina como o teatro de uma corrida armamentista (que poderia ser protagonizada por novos candidatos a caudilho).
Os novos desafios se situam inteiramente na evolução democrática do continente e
na sua integração física, base indispensável para o desenvolvimento da integração
econômica. O único desafio “militar” na região parece ser o anacrônico problema da
narcoguerrilha, que na verdade se confunde com o crime organizado e está, portanto,
mais próximo de um problema policial do que da segurança estratégica no conceito
tradicional do termo. A paz relativa na América do Sul, ou seja, a ausência de focos
declarados de tensão inter- ou intra-estatais (a despeito mesmo da afirmação indigenista em alguns países e, portanto, potencialmente um fator de fragmentação nacional), deve contribuir para o baixo nível de dispêndio militar na região. Mas a recusa
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das Forças Armadas em assumir o novo papel de “caçadores de traficantes” – que lhes
pretendem atribuir os EUA – pode continuar a ajudar a preservar os focos de instabilidade localizada da narcoguerrilha, que ameaça extravasar para o sistema político e
“invadir” as cidades (se já não o fez).
Um pouco de “futurologia” na questão estratégica global permitiria antecipar uma
mudança, já em curso, nos cenários: dos velhos enfrentamentos entre Estados aos
conflitos assimétricos típicos da contemporaneidade, ou seja, conflitos geralmente
regionais, de baixa intensidade e localizados, tipicamente envolvendo lutas civis (étnicas, religiosas) e um ou outro enfrentamento territorial. O que pode já estar em
curso, também, é o novo intervencionismo militar com base em pressões da opinião
pública nos centros imperiais democráticos (pois não se imagina os “impérios” não
democráticos atendendo a apelos de ONGs humanitárias): a questão que se coloca é
a de saber se esse tipo de limitação ao “direito de massacrar o seu próprio povo” – tal
como exercido por alguns “ditadores de opereta” (eles ainda existem) – representa o
começo do fim da soberania estatal. A outra questão que se coloca, e que representa
um problema para o Brasil, é a de saber se ele, ou pelo menos o seu establishment
militar e diplomático, está preparado para esse tipo de missão. Provavelmente não,
pois isso exigiria, mais do que a simples capacitação técnica – em armas e táticas de
combate –, uma verdadeira revolução conceitual, difícil para um país que tem em Rui
Barbosa o seu paradigma de comportamento soberanista.
1.2. Relações entre as grandes potências
As relações entre as grandes potências – ou, como querem alguns, as guerras entre
os impérios – sempre estiveram no centro da política mundial, por qualquer prisma
que se examine a agenda internacional. No plano estrito dos equilíbrios estratégicos,
esta é uma verdade quase absoluta, embora a natureza desse relacionamento – e suas
possíveis conseqüências no plano militar – tenha evoluído ao longo do tempo. Os
antigos sistemas imperiais estavam baseados: na conquista militar, na extração de
recursos e a conseqüente escravização ou submissão de povos submetidos ao poder
incontrastável de sistemas políticos unificados, dotados de meios militares relativamente mais avançados ou de técnicas de dominação mais condizentes com a vontade
de poder de seus dirigentes.
Foi assim que “povos bárbaros” conquistaram sistemas imperiais aparentemente
fortes e até mesmo seculares: esse destino alcançou o Egito, a Assíria, a Pérsia, o
império criado por Alexandre, a China e Roma clássica. Por outro lado, a ineficiência
econômica, o atraso tecnológico e erros políticos levaram à decadência os impérios
ibéricos que dividiram o mundo entre os séculos XVI e XVIII; paralelamente, desapareciam de cena os impérios árabe, mogul e, em nossa época, o otomano, antecedendo
a fragmentação da comunidade multinacional dos Habsburgos e o irresistível declínio
dos britânicos, dentre uma longa lista de sucessões hegemônicas ao longo dos tempos
(que inclui, por exemplo, os holandeses, embora estes não tenham decaído absoluta-
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mente, mas, sim, souberam unir-se aos ingleses na preservação de uma prosperidade
alimentada pelo comércio).
Os modernos sistemas “imperiais” baseiam-se bem menos na dominação direta ou
na extração forçada de recursos – e, obviamente, não mais na escravização ou colonização direta de populações mais “atrasadas” – e mais na organização da produção, no
controle dos circuitos de distribuição e na “extração” de ganhos quase-monopolistas
derivados dos fluxos de capitais financeiros, de tecnologia proprietária e de rendas
diversas obtidas a partir, justamente, de sua posição dominante ou hegemônica. O recente debate sobre a natureza do “império” americano – que Niall Ferguson pretende
ser um império de fato, mas envergonhado de sê-lo e, por isso mesmo, um pouco
desastrado – obscurece um pouco a questão de saber se vivemos, inevitavelmente,
sempre sob a égide de sistemas imperiais, ou se tudo se desenvolve num continuum
que se caracteriza, simplesmente, pela sucessão de hegemonias políticas, alimentadas
por fatores temporários – embora alguns possam durar séculos – de preeminência econômica ou tecnológica. O livro de Ferguson sobre o “império” americano (Colossus)
é mais um alinhamento de argumentos em favor de uma tese do que propriamente
uma prova irrefutável da natureza imperial do sistema americano atual, dominante e
hegemônico como ele pode ser.
Da mesma forma, a natureza precisa do “império soviético” – ele, sim, em grande
medida derivado das ambições territoriais dos Romanoff ao longo dos séculos XVIII
e XIX, depois alimentado por Stalin com base nas vitórias militares da segunda guerra
mundial e na sua paranóia de uma nova invasão alemã, ou ocidental – carece, ainda,
de uma definição e de estudos similares aos efetuados pelos historiadores e cientistas
políticos ocidentais para os “impérios” ibéricos, da Europa central, otomano, britânico e americano. Os velhos sistemas imperiais europeus não resistiram ao impacto de
suas próprias idéias – liberdade, direitos humanos, autonomia nacional – bem como à
criação do sistema político multilateral do pós-guerra: autodeterminação e a soberania
estatal são dois princípios fundadores das Nações Unidas, tanto quanto a resolução
pacífica dos conflitos, a defesa dos direitos humanos e a cooperação em prol do desenvolvimento.
Por maior que seja, atualmente, o predomínio da força do direito sobre o direito da
força, as grandes potências não renunciam, obviamente, à projeção de poder militar,
cada vez que seus interesses maiores sejam ameaçados. O cenário contemporâneo
mudou muito desde o declínio dos velhos impérios, a partir da primeira guerra mundial, com a emergência simultânea das duas grandes potências do pós-guerra. De 1945
até o final da Guerra Fria, o mundo viveu em bipolaridade estrita; mas de 1947 a 1972,
a tensão situou-se em níveis elevados, começando pelo conflito em torno de Berlim,
a guerra da Coréia (1950-53) e o problema de Cuba (1962), que levou a uma “quaseconfrontação” nuclear entre as duas superpotências. Durante os anos 1950, após a
conquista da paridade nuclear (1949) e termo-nuclear (1954) pela União Soviética, as
relações estratégicas entre as duas potências inimigas foram enfeixadas sob a doutrina
MAD, Mutually Assured Destruction, o que significa que, em caso de escalada, a
162
III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
confrontação poderia levar à aniquilação total dos dois contendores. Nesse período,
o alinhamento do Brasil aos EUA e ao “Ocidente” de modo geral, foi indefectível,
mesmo se no final dessa fase (1961-64) o crescimento do movimento neutralista e
não-alinhado tenha contribuído para criar no país propostas de uma diplomacia alternativa, materializada na chamada Política Externa Independente.
Desde a crise dos mísseis russos em Cuba (1962), mais concretamente a partir
da presidência Nixon (1969-1974), ensaios de coexistência pacífica foram feitos, levando à distensão nuclear e à negociação de diferentes acordos de controle de armas entre os EUA e a URSS, com o aprofundamento do processo nos anos 1980 e a
conclusão de alguns tratados de redução de mísseis balísticos. O Brasil, ao longo do
período, bateu-se pela chamada agenda dos três “d” que, nos anos 1960, equivaliam
à descolonização, desarmamento e desenvolvimento, tendo sido o primeiro “d” substituído, nos anos 1990, pelos direitos humanos. O Brasil esperava que, com o ocaso
do socialismo e o surgimento de uma nova ordem mundial, nos anos 1990, da nova
distensão criada entre as grandes potências emergiriam os chamados “dividendos da
paz” para o desenvolvimento; mas não foi exatamente o que ocorreu. A ordem política
mundial, depois do desaparecimento da URSS, passou a ser caracterizada pela assim
designada “unipolaridade imperial”, com o domínio dos EUA sobre os problemas
mundiais desde 1992 e durante a maior parte da década, enquanto a Rússia atravessa
uma das maiores crises de sua história. A lacuna política criada nas relações entre as
grandes potências persistiu até que novos desafiantes surgissem no jogo imperial, na
figura da China.
Persiste, em todo caso, um equilíbrio instável entre os objetivos econômicos e os
políticos da nova ordem; os primeiros orientados para a interdependência econômica,
nos quadros da globalização; os segundos sempre marcados pela rivalidade implícita
entre os interesses nacionais das grandes potências. Para o Brasil, os desafios agora
colocados são os da sua adequação à nova ordem da globalização, que são todos derivados de reformas internas nos aspectos fiscais e no sistema educacional. No que se
refere à construção de cenários externos para a atuação de uma potência média como
o Brasil, não existem, propriamente, novos desafios para o país, senão aqueles derivados de uma diplomacia presidencial especialmente ativa, feita de novas orientações e
novos parceiros, todos eles situados na direção do Sul e da América do Sul. Não há,
contudo, obstáculos estruturais à ascensão do Brasil na ordem econômica mundial,
uma vez que o sistema globalizado se apresenta como essencialmente aberto a novos
participantes, o que não é exatamente o caso da ordem política, cujos requisitos de ingresso dependem de capacitação específica no plano estratégico e militar, o que ainda
parece distante de ser atingido pelo Brasil.
1.3. Conflitos regionais
O que há de novo no atual cenário da ordem política internacional é que a antiga
confrontação global deixa de ser dominante, subsistindo focos de conflito potencial; bem mais em âmbito local ou regional do que em escala continental, ou entre
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
163
alianças militares (de resto, quase nenhuma conserva importância, sendo que a mais
relevante, a OTAN, transcende agora seu antigo âmbito geográfico de atuação). A
organização mais recente no plano da estabilidade e da segurança estratégica, a
OSCE, derivada da antiga Conferência sobre segurança e cooperação na Europa,
do tempo da Guerra Fria, tem hoje uma agenda de trabalho bem mais voltada para
construção democrática do que para dissuasão de conflitos militares, embora o aspecto de confidence building continue relevante, em vista do novo endurecimento
político-militar registrado na Rússia. De fato, a Rússia pós-Ieltsin (ou seja, de Putin)
vem dando sinais crescentes de retomada de suas antigas pretensões a “redistribuidora de cartas” na Europa sul-oriental e na Ásia central, numa tendência à crescente
afirmação de sua preeminência militar, que ela vê, em essência, como um projeto
anti-hegemônico aos EUA.
Já no período anterior ao final do comunismo, os conflitos inter-estatais também eram predominantemente regionais, e não globais; mas mesmo esses conflitos
regionais, agora mais freqüentes, perdem o vetor ideológico da época da Guerra
Fria, para adquirir contornos de guerras civis ou de conflitos de natureza étnica. Na
verdade, os principais focos de tensão continuam inter-estatais: Israel-países árabes, conflito indo-paquistanês em torno da Cachemira, as duas Coréias. Mas são os
conflitos internos aos Estados que provocam atualmente o maior número de mortos,
de deslocamento de populações e de violações de toda ordem aos direitos humanos: a África, obviamente, continua a oferecer vários exemplos do gênero, mas em
regiões da Ásia Pacífico, na Ásia do sul e central são constantes, igualmente, as
erupções de violência com grandes perdas humanas. Na América Latina, a despeito
de uma ou outra questão de fronteiras ainda não resolvida – Guiana-Venezuela,
Chile-Peru-Bolívia e outras menores –, a única situação militar que ainda cobra um
preço em termos de vidas humanas é a anacrônica “guerra civil” da Colômbia, que
já descambou, na verdade, para o crime organizado em torno das drogas e a indústria de seqüestros.
Para o Brasil a diminuição dos focos de tensão e o desaparecimento do maniqueísmo da Guerra Fria são pontos positivos e bem-vindos, na medida em
que alinhamentos daquela época se tornam anacrônicos. Um ponto preocupante,
para países ciosos de seus direitos soberanos sobre os recursos naturais com
impacto global, como é o caso da Amazônia brasileira, é o desenvolvimento de
um novo tipo de intervencionismo de feição humanitária, mas também ecológica, que tem suscitado preocupações – e também alguma paranóia – em setores
nacionalistas temerosos de que o princípio possa vir a ser algum dia aplicado
no sentido da “internacionalização” dos recursos da biodiversidade amazônica.
Não parece credível, contudo, que esse novo intervencionismo venha se estender para as vertentes política ou militar, com implicações para a soberania do
Brasil, que de resto possui, como observado várias vezes, poucos “excedentes
de poder”, isto é, capacidade de ação e meios militares compatíveis com suas
dimensões e importância regional.
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III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
1.4. Cooperação política e militar nos hot-spots;
Um dos temas mais debatidos, logo no início dos anos 1990, em torno da ordem
política internacional que teria emergido com o fim da Guerra Fria, foi o de saber
se o colapso dos países socialistas representava algo como o “fim da História”. O
“introdutor” do conceito foi um cientista social americano que durante certo tempo
trabalhou para o Departamento de Estado, mas que já vinha observando os desenvolvimentos políticos na União Soviética desde o início dos anos 1980, pelo menos. A
esquerda marxista, ou o que restou dela, fez pesadas críticas a essa “tese”, de vaga inspiração hegeliana, sem ter aparentemente registrado que o artigo original – publicado
em meados de 1989 na revista The National Interest – comportava um significativo
“?” em seu título, e que as menções à URSS não previam, em absoluto, seu desaparecimento ou mesmo a derrocada completa do socialismo de tipo autoritário. As críticas
foram, em sua maior parte, superficiais, e se contentaram em “desmentir” Fukuyama
por meio do “contra-argumento” banal de que a história não poderia, obviamente, ter
terminado, aduzindo esses críticos, então, inumeráveis “exemplos” sobre a “crise” do
capitalismo e da própria globalização.
O fato é que Fukuyama, em nenhum momento, pretendia “decretar” o fim da
História como tal. O que ele fez, apenas, foi consolidar seu entendimento conceitual
de que, depois da adesão de Gorbatchev a valores democráticos universais e a princípios da economia de mercado, e depois da conversão dos comunistas chineses em
aprendizes de capitalistas, não havia mais sentido considerar que pudesse haver, no
sentido teórico ou mesmo prático, alternativas credíveis às democracias liberais de
mercado (haveria, em suas palavras, “total exhaustion of viable systematic alternatives to Western liberalism”). Seu argumento “filosófico” não foi, até agora, desmentido
no plano da racionalidade instrumental. Isso não impede, obviamente, que continuem
existir ditaduras, autocracias ou outras formas de regimes autoritários, assim como
sistemas econômicos nacionais que se distanciam consideravelmente dos mecanismos
de mercado. Isso tampouco elimina o fato de que os mercados mundiais funcionam,
em grande medida, de modo relativamente uniforme (ou seja, segundo a velha lei da
oferta e da procura, a despeito mesmo de alguns cartéis que se empenham em manipular os preços de algumas commodities).
A maior relevância da “tese” de Fukuyama, porém, seria, teoricamente, no plano
dos conflitos globais, que segundo seu argumento tenderiam a perder sua roupagem
ideológica, abrindo caminho a uma cooperação cada vez maior entre as grandes potências e os países responsáveis no plano da política mundial pela manutenção da paz,
da segurança, isolando ditadores e outros “vilões” do status quo. Não foi obviamente
o que ocorreu – nem mesmo depois da implosão da URSS – e os processos sob exame
do Conselho de Segurança continuaram a ter uma tramitação tão complicada quanto
antes, ainda que o “cálculo” quanto ao “enfraquecimento” do “império opositor” não
mais se aplique no caso das duas grandes superpotências. Em outros termos, se acreditava que, com o “fim da história”, conflitos como os do Oriente Médio ou de outros
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
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pontos quentes do planeta poderiam conhecer uma negociação “abreviada” ou, até
mesmo, ter uma “solução” à vista em questão de meses, senão de semanas.
Na verdade, a tese sobre o fim da história não requer que todos os países se convertam em democracias liberais, com o que, supostamente, nenhum conflito mais seria
possível entre eles; apenas que não exista mais, no plano das sociedades, pretensões à
existência de formas de organização política e social superiores à democracia liberal.
Mas como adverte o próprio Fukuyama, o nacionalismo e a religião são forças bem
mais consistentes – e, portanto, difíceis de serem “diluídas” no cadinho comum das
sociedades – do que o foram, em suas épocas, o fascismo e o comunismo, que atuaram
bem mais na superfície das coisas, algo como a superestrutura das sociedades, em termos marxistas. Por isso mesmo é tão difícil conseguir a eliminação dos conflitos entre
sociedades ou a cooperação entre algumas delas para diminuir, ou mesmo suprimir,
alguns dos conflitos mais deletérios em termos de violações dos direitos humanos e
de perda de vidas.
Uma cooperação política e militar entre as principais potências nos hot-spots do
mundo implicaria, antes mesmo de algum entendimento sobre a forma de resolver um
conflito em especial, uma visão comum quanto aos seus interesses nacionais, o que
não parece fácil conseguir no horizonte previsível. Não foi assim no decorrer do século
XX, ainda que os sessenta anos depois da conclusão da Segunda Guerra Mundial não
mais assistiram às terríveis mortandades de sua primeira metade (ver Niall Ferguson,
The War of the World), quase tanto quanto o período de paz relativa que dominou o
cenário europeu desde o fim das guerras napoleônicas até a Primeira Guerra Mundial.
Algumas interpretações pretensamente marxistas sobre os dois conflitos mundiais do
século XX colocam suas raízes em supostas “contradições interimperialistas” entre as
principais potências européias, que teriam subido aos extremos pela disputa por mercados coloniais e o acesso a matérias-primas. Na verdade, os conflitos entre Estados,
antes de se tornarem globais, são sempre regionais como demonstrado, justamente,
pelos conflitos europeus do terrível século XX (ver Arno Mayer, The Persistence of
the Old Régime).
Tampouco tem sido assim no pós-comunismo. Os conflitos continuam regionais,
ou mesmo nacionais, e não há concordância entre as grandes potências para diminuir
ou eliminar seu caráter destruidor. A convergência de “opiniões”, não sendo possível
no plano regional, seria ao menos presumível no âmbito do sistema de segurança
mundial, ou seja, nas competências e atribuições do órgão encarregado, por excelência, da paz internacional? Tal possibilidade passa, eventualmente, pela reforma da
Carta da ONU e uma hipotética ampliação de seu Conselho de Segurança, o que tem
se revelado uma missão impossível.
A despeito de declarações favoráveis à reforma por parte dos atuais membros
permanentes do CSNU, provavelmente hipócritas, o fato é que nenhum deles está
verdadeiramente interessado na reforma e na ampliação do número desses membros
permanentes. Em primeiro lugar, porque qualquer expansão do órgão significaria a diluição do seu próprio poder; em segundo lugar porque as potências não se entendem,
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III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
justamente, sobre o equilíbrio regional da nova composição, tanto no plano de seus interesses nacionais, quanto no âmbito da representação política das próprias potências
regionais. Várias delas têm enormes problemas com o ingresso de um ou outro dos
candidatos regionais, sejam eles amigos ou “inimigos”, assim como os candidatos podem ter vizinhos recalcitrantes em relação à sua admissão. A China, por exemplo, não
considera que o Japão tenha feito o seu dever de casa no que se refere ao reconhecimento dos crimes de guerra (e contra a humanidade) cometidos desde as primeiras invasões da Manchúria e depois da própria China nos anos 1930. França e Grã-Bretanha
têm resistências em ver admitido mais um europeu, no caso a Alemanha, uma vez que
a pressão para uma representação da UE, em lugar desses países, individualmente, se
tornaria irresistível. A Índia tem contra si o Paquistão, assim como o Brasil não conta
com a boa-vontade – para dizer o mínimo – da Argentina para sua candidatura. Os
africanos, por sua vez, não se entendem sobre quais seriam os possíveis dois candidatos do continente, que para a União Africana deveriam ser três, todos dispondo do
direito de veto. Nem os EUA, nem a Rússia, a despeito das tergiversações habituais,
apreciariam, na verdade, qualquer ampliação do CSNU, embora os EUA afirmem
apoiar o Japão e mais uma candidatura – possivelmente a Índia, ambos potencialmente para diluir o poder da China – num processo de ampliação limitado.
Em outros termos, o imbróglio não parece perto de uma solução viável e aceitável
para todos, e o mais provável é que simplesmente não ocorra nenhuma reforma da
Carta – pelo menos para a ampliação do seu Conselho de Segurança – e que o impasse
sobre o número exato de “mais iguais” permaneça não resolvido pelo futuro previsível. Isto não impede, obviamente, cooperação no CSNU – entre os permanentes
e os rotativos – para o encaminhamento de diversas questões atinentes à paz e à estabilidade mundial. Grandes potências tendem ao conservadorismo, uma vez que elas
assumem a liderança de alguns processos e não pretendem colocar em risco situações
consolidadas em suas próprias regiões. Também parece haver entre elas a consciência
– e nisso vai toda a diferença com os impérios do passado e com os candidatos a novos
hegemons ainda no século XX – de que não existem ganhos garantidos no enfrentamento direto com as outras potências.
Mas a cooperação entre as grandes potências para a solução de conflitos regionais
nem sempre é garantida, tampouco, tudo dependendo de como elas mesmas percebem
seus interesses vitais no problema em questão: o oportunismo é de rigor e diversos
fatores entram na equação complexa que traça cada uma para si mesma na consideração de uma questão específica vis-à-vis as estratégias que podem ser mobilizadas
para defender os seus interesses. Alguns problemas regionais são percebidos como
ameaça para todos, daí as possibilidades de cooperação entre eles; outros problemas
os colocam em posições opostas, daí os impasses prováveis; outros problemas sequer
os atingem, diretamente, daí a indiferença relativa com que esses problemas se arrastam sem solução aparente durante longos anos, com o “desengajamento ativo” – se a
expressão é aceitável – das grandes potências, salvo forte movimento de pressão da
opinião pública para fazê-las mover-se.
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
167
Alguns exemplos, nessas diversas categorias, podem ilustrar as possibilidades de
cooperação, ou não, entre as grandes potências no tratamento de conflitos regionais.
A primeira guerra do Golfo, em janeiro de 1991, por exemplo, apresentou-se quase
como uma “cruzada” de liberação do pequeno Kuwait, invadido pelo vilão Saddam
Hussein em agosto do ano anterior. Foi possível ter o acordo de todas as potências do
CSNU para a aprovação de uma resolução que demandava a retirada sem condições
do Iraque do país invadido, sob pena dessa retirada ter de ser efetuada por todos os
meios adequados, isto é, pela força, se necessário. Curioso que a coalizão de “willing
nations” que participou da operação não o fez sob comando de uma força onusiana de
“imposição de paz”, mas sim sob o comando exclusivo das forças militares dos EUA,
que estabeleceram sua própria estratégia e linhas de atuação para essa “expulsão” do
vilão do território de um membro da ONU. Na verdade, esse é o padrão das forças de
“imposição” de paz – em oposição às operações de peace keeping, apenas, na quais o
comando onusiano é possível – que ficam sob o controle da potência interessada, que
obviamente não abdica do comando militar (a guerra da Coréia é o exemplo típico
dessa situação, que confirma a quase impossibilidade de a ONU vir a dispor de forças
armadas próprias).
Já o quadro de massacres interétnicos ocorridos em Ruanda pouco tempo depois,
com milhares de mortos antes de qualquer intervenção humanitária, bem como as
guerras civis e a situação deplorável dos direitos humanos em diversos países africanos, arrasados em conflitos que se arrastam durante meses e anos, ilustra perfeitamente a “negligência irresponsável” – se o termo também se aplica – da comunidade
internacional no caso de problemas que não afetam nenhum dos interesses vitais das
grandes potências. A ação multilateral para pacificar o país dos tutsis e hutus demorou
enormemente, assim como outras guerras civis se prolongam na quase indiferença de
grandes e médias potências. A ONU não pode ser considerada responsável por essas
lamentáveis situações, pois não dispõe de autonomia sequer para decidir qualquer tipo
de intervenção e, ainda que dispusesse, não teria condições efetivas – ou seja, tropas
próprias – para fazê-lo.
A mesma impotência involuntária da ONU revelou-se nos diversos conflitos dos
Bálcãs, ao longo dos anos 1990, desde as primeiras separações traumáticas – Eslovênia
e Croácia – até o caso ainda não resolvido do Kossovo, passando, obviamente, pela
terrível fragmentação da Bósnia-Herzegovina, onde foram perpetrados os piores massacres vistos na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, geralmente da população
islâmica pelos sérvios. A ONU e os próprios europeus da UE se revelaram incapazes
de pacificar os contendores ou de evitar as piores violações humanitárias, que ocorreram no caso da capital da Bósnia, Sarajevo, e de alguns outros enclaves de composição mista, nos quais os sérvios passaram à ofensiva. Nos Bálcãs, a Europa se revelou
uma anã militar; não fosse pelo forte clamor da opinião pública, não teria havido
envolvimento da OTAN, sob a forte liderança militar americana, para terminar com
a terrível situação da população civil. A mesma situação se colocou no Kossovo, embora por razões e circunstâncias diferentes. Mais uma vez as exações sérvias perma-
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III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
neceram impunes pelos europeus e pela ONU até que o poderio aéreo americano, sob
a bandeira da OTAN, conseguiu pacificar a província rebelde, criando uma situação
de autonomia de fato em relação à República iugoslava da Sérvia e do Montenegro.
Esta última república, por fim, também se declarou autônoma, em janeiro de 2006,
confirmando a vocação histórica daquela região e fechando um ciclo que trouxe os
Bálcãs de volta ao sentido original de província fragmentada entre impérios.
A segunda guerra do Golfo, envolvendo novamente o Iraque, trouxe um elemento novo no que se refere ao papel da ONU. Chamado a endossar uma decisão
que já estava tomada pela cúpula conservadora americana – o presidente Bush e
seus neocons –, o CSNU, depois de longos debates de procedimento e de substância,
recusou-se a se curvar às exigências dos EUA no sentido de obter uma autorização
para o uso da força contra o regime de Saddam Hussein, sob o pretexto – que depois
se revelou falso – de que ele estaria desenvolvendo armas de destruição em massa,
que poderiam, segundo alegou a administração americana, ser colocadas à disposição de grupos terroristas. A invasão do Iraque, já decidida desde o dia seguinte aos
ataques terroristas contra alvos nos EUA, em 11 de setembro de 2001, deu-se de
qualquer forma em março de 2003, e o governo e o exército iraquianos foram efetivamente aniquilados em questão de dias pelo ataque maciço do maior poder militar
existente no mundo contemporâneo.
Pode-se considerar o episódio como um “fracasso” da ONU no sentido de evitar
ou prevenir o uso da força fora das situações previstas no direito internacional, ou
seja, a própria Carta da ONU e as decisões do CSNU (que são, obviamente, eminentemente políticas e não necessariamente a expressão do direito internacional,
pelo menos não no sentido estrito da palavra). De fato, a ONU não tem esse poder
de evitar o recurso à força por parte de Estados que se colocam à margem do direito
internacional, pelo menos não num caso como este, envolvendo uma grande potência. Mas, pode-se também interpretar o evento como uma confirmação da vontade
da comunidade internacional no sentido de não se dobrar à vontade dos poderosos
em quaisquer circunstâncias. Pouco mais adiante, incapaz de administrar a situação
caótica que ele mesmo criou no país ao desmantelar todas as estruturas de Estado
existentes no Iraque, o governo americano foi obrigado a novamente fazer apelo
à ONU, para tentar criar uma aparência de normalidade no país, sem que a pacificação tenha tido êxito e sem que os grupos terroristas fossem intimidados em sua
vertigem assassina (ao contrário). A lição a ser tirada de todo esse doloroso processo
é, ao mesmo tempo, de uma constatação de relativa impotência da ONU e de seus
órgãos nas tarefas de prevenção de conflitos e de manutenção da paz e da segurança,
conjugada, no plano conceitual pelo menos, ao reconhecimento de sua legitimidade
para a tomada de decisões em todas as questões que envolvem o uso da força nas
relações internacionais.
Quanto ao Brasil, quais seriam as implicações desses episódios no que se refere
aos seus interesses nacionais, bem como à expressão desses interesses no plano
regional e no contexto internacional? Candidato a ingressar no CSNU desde a for-
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
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matação original da estrutura das Nações Unidas, sem ter logrado tal ambição à
época da discussão da Carta, em 1945 (de forma algo similar à candidatura frustrada
ao Conselho da Liga das Nações, em 1926), o Brasil sempre teve uma participação
ativa nas deliberações do Conselho, tendo sido um dos países que mais vezes figurou naquele órgão na condição de membro temporário, não se eximindo, em várias
oportunidades, de participar, com forças de interposição ou com observadores militares, de operações de manutenção da paz. Nunca houve, por razões de ordem
política e constitucional, decisão em favor da participação do Brasil em operações
de imposição da paz (peace making). Mas não está excluída tal evolução conceitual
se a opinião interna no país se manifesta claramente em favor da assunção de um
maior protagonismo mundial para o Brasil.
A candidatura ao CSNU ganhou novo alento depois da redemocratização do país
em 1985, mais concretamente quando o presidente Sarney, em pronunciamento feito
na Assembléia Geral em 1989, postulou essa pretensão, então apresentada como o
desejo de o país assumir maiores responsabilidades com a cooperação e a manutenção da paz no âmbito internacional, sem que tal postulação significasse a exigência
de concessão do direito de veto no CSNU. O Brasil se apresentava, então, como
uma espécie de candidato “natural” a essa elevação de status no plano mundial, em
função de seu papel positivo no contexto regional e internacional, como aderente
estrito às regras do direito internacional e seu respeito às normas da convivência
pacífica, do respeito à soberania e aos princípios da não interferência nos assuntos
internos e da solução pacífica de controvérsias políticas entre os Estados. Tendo em
vista objeções previsíveis, já manifestadas no passado, entre alguns vizinhos, a essa
pretensão, o Brasil não colocava sua candidatura como uma expressão da vontade
“regional”, mas seria inevitável que a questão da representação em nível regional
fosse colocada durante os debates em torno da reforma da Carta. Mesmo tendo feito
intensa campanha em favor de sua candidatura, na nova administração surgida em
2003, o Brasil não viu ainda contemplada sua aspiração. Quando ela o seria? Difícil
dizer, em vista do quadro complicado não apenas em torno das representações regionais, mas igualmente em função de visões divergentes entre os cinco membros
permanentes – talvez, convergentes, todos eles, em uma única consideração: a do
desinteresse completo pela ampliação do CSNU a novos membros permanentes –,
o que torna essa questão uma das incógnitas mais evidentes de toda a agenda internacional da atualidade.
Concluindo esta seção sobre a ordem política mundial, a questão que se coloca
é a de saber se poderia ser confirmado o diagnóstico feito ao início, de que se trata
de novos problemas e de velhas soluções. Provavelmente sim, no sentido em que
o mundo já não parece mais enfrentar o terrível espectro de um holocausto militar
global, que seria desta vez “definitivo”, a partir dos novos instrumentos de morte
e de destruição maciços trazidos pelos artefatos nucleares e termonucleares, “refugiando-se” agora em conflitos de mais baixa intensidade, mas continua a ser regido
pelo direito dos mais fortes e pela imposição da vontade das grandes potências sobre
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III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
a maioria, numa reprodução das velhas vocações imperiais do passado. A situação
atual não é, obviamente, similar à sucessão de impérios e de hegemonias como no
passado, uma vez que o mundo caminhou para a gradual afirmação da força do direito sobre o direito da força e, mesmo que a ONU não seja, ainda, o “Parlamento
da Humanidade” – como pretenderia Paul Kennedy –, ela, sem dúvida, está mais
próxima de atingir o objetivo de aumentar o grau de cooperação voluntária entre os
Estados membros da comunidade internacional do que jamais esteve, em qualquer
época, a Liga das Nações ou esquemas similares de equilíbrio de poderes. A paz e
a concórdia universal ainda não estão plenamente asseguradas, mas a guerra e o
uso ilegítimo da força tendem a se tornar cada vez mais raros no cenário contemporâneo. Esta é, talvez, mais a manifestação de uma aspiração do que a expressão
concreta da situação real nas relações internacionais contemporâneas; mas há fortes
razões para acreditar que as bases para tal desejo estejam efetivamente se consolidando no cenário mundial.
Seria esta uma situação “definitiva” ou incontornável? Difícil dizer, uma vez
que nos assuntos humanos o imponderável sempre está presente. Mas existem fortes
chances de que, pelo menos entre os dirigentes atuais (e supostamente entre os futuros, também) das grandes potências, a racionalidade instrumental tenda a se impor
sobre os velhos impulsos guerreiros que levaram seus antecessores a se enfrentar
nos campos de batalha. Finalmente, das cinco grandes potências que existiam um
século atrás – Reino Unido, França, Alemanha imperial, Rússia e Áustria-Hungria
–, duas já deixaram de existir em seu formato original (Alemanha imperial, liderada
pela Prússia, e a Áustria-Hungria); uma (Rússia) ascendeu, decaiu e viu seu império ser reduzido consideravelmente, e as duas primeiras (Reino Unido e França)
deixaram, efetivamente, de contar entre as mais fortes do globo, amputadas que
foram de seus vastos domínios coloniais e de sua vocação imperial, para assumirem
papéis mais modestos no atual cenário estratégico. As duas potências então “periféricas” – Rússia e EUA – ascenderam no domínio global durante cerca de duas
gerações a partir do final da Segunda Guerra Mundial, ao cabo da qual elas, de certo
modo, “partilharam” o mundo (tendo Ialta representado uma espécie de tratado de
Tordesilhas da modernidade).
O fato dominante em nossa época é que os EUA “reinam” quase “incontestáveis” no cenário estratégico contemporâneo, mas a China vem emergindo paulatinamente em seu encalce. Pretende ela forçar a porta do clube dos “mais iguais”?
De certa forma, ela já faz parte desse conselho de poderosos, mesmo ainda mantida formalmente à margem do G-8. Duvidoso que a China, mesmo militarmente
mais forte, se lance em uma corrida para a “conquista” de poder político e de
hegemonia estratégica sobre seus competidores atuais, como o fizeram dirigentes
imperiais de um passado não muito distante. A razão não está tanto em que a natureza humana mudou sensivelmente nas últimas décadas (ou séculos), mas em
que a nova ordem econômica, caracterizada pela interdependência efetiva entre
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
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as nações, impõe limites às vocações imperiais. É o que caberia examinar a partir
de agora.
2) A ordem econômica mundial: velhos problemas, novas soluções?
Em que sentido, a ordem econômica é caracterizada por velhos problemas e novas
soluções? Os velhos problemas são, indiscutivelmente: os da miséria e da prosperidade; o da manutenção do crescimento econômico com estabilidade (isto é, sem inflação e com o máximo de pleno emprego possível); o da repartição social das riquezas
assim criadas; o do acesso às matérias-primas e aos recursos essenciais aos processos
produtivos, entre os quais as fontes de energia e de água são estratégicos; os da abertura de mercados aos bens e serviços em condições de livre concorrência; enfim, o da
manutenção da dinâmica econômica com transparência nas regras do jogo, de maneira
a oferecer oportunidades mais ou menos iguais para todos os agentes econômicos.
Sobre esses “velhos” problemas, que já ocupavam os “pais” da economia política
antes mesmo da formulação dessa disciplina, nos quadros do Iluminismo escocês,
alguns novos problemas vieram se agregar às preocupações dos estadistas contemporâneos: o da transformação estrutural dos sistemas produtivos (inovação tecnológica)
com garantia de preservação da riqueza proprietária; o acesso a fontes de informação
em condições igualitárias; os efeitos ambientais nefastos das atividades produtivas
humanas; a escassez crescente de fontes de energia não renovável e da própria água;
a pressão humana sobre os recursos da biodiversidade e os desequilíbrios constantemente criados pela dinâmica econômica em condições de assimetria de informação
(fluxos de capitais não controlados, crises de oferta ou de demanda de determinados
insumos), para não se referir ao crescimento do crime transnacional estimulado pela
própria globalização capitalista.
E quais seriam as “novas” soluções que são mencionadas no título da seção? São
de duas ordens: uma geográfica, a outra institucional. A primeira é mais geopolítica,
do que propriamente geográfica, mas vale aqui o contraste com a história. Não é verdade, obviamente, que a história tenha terminado; tal compreensão restrita do processo histórico jamais passou pela mente do formulador original desta “tese”, Fukuyama.
O que ele considerou, como já se mencionou, seria a inexistência prática de alternativas viáveis aos sistemas democráticos de mercado, o que nos parece ser uma “tese”
basicamente correta, nas condições atuais da economia e da política internacional.
Ocorre que, se o processo histórico continua a sua dinâmica de poderes ascensionais
e outros em declínio, com conflitos residuais ou remanescentes entre muitos deles, a
geografia, por seu lado, parece ter alcançado seus limites propriamente “geográficos”.
Vejamos isto com maior grau de detalhe.
No início do século XX, as cartas da África e de certas partes da Ásia (para nada
dizer do imenso espaço amazônico) mostravam imensos espaços em branco, as chamadas terras incógnitas (rios, seus afluentes e mesmo cadeias inteiras de montanhas).
Tudo isso foi sendo incorporado aos domínios imperiais e objeto de cartografias mais
172
III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
ou menos confiáveis, com a ajuda de aventureiros, exploradores, missionários e soldados. Mapeada a superfície da Terra, o mundo permaneceu, entretanto, dividido e
fragmentado, tanto pela existência de projetos “imperiais” rivais – como podem classificados o mundo capitalista e seu contestador socialista – como pela própria irrelevância de certas áreas para fins de “exploração” capitalista, ou para sua “conquista”
pelo sistema socialista. Aliás, o próprio socialismo era “irrelevante” – salvo em poucas matérias primas – em termos de mercados de bens, serviços, capitais, tecnologia,
enfim, em produtos inovadores e desejados pelos consumidores. Como diria Marx,
as relações socialistas de produção tinham se tornado anacrônicas e prejudiciais ao
desenvolvimento das forças produtivas; tinham de ser abolidas, pois representavam
grilhões para o desenvolvimento econômico. Foram abolidas e, com isso, a globalização retomou a marcha triunfal que tinha começado com Marco Pólo e Colombo,
vários séculos antes.
O que assistimos, portanto, na década final do século XX, foi um verdadeiro “fim
da geografia”, com o desaparecimento do socialismo – para todos os efeitos práticos,
a China não mais pode ser contada com um representante da espécie – e a unificação do mundo conhecido em torno de regimes mais ou menos abertos ao sistema
de mercados capitalistas: com exceção daqueles poucos países auto-excluídos das
trocas mundiais – como podem ser Cuba, Coréia do Norte e alguns poucos territórios
africanos –, já não mais existem “terras incógnitas” para fins dos mercados capitalistas. Trata-se, portanto, de uma “solução geográfica” (ou geopolítica) ao problema do
acesso desimpedido às fontes de matérias primas e recursos naturais: com exceção de
alguns poucos setores ainda oligopolizados ou cartelizados – como é o da produção de
petróleo, por exemplo – a maior parte das commodities (inclusive algumas industriais,
como são os circuitos integrados) tem os seus preços fixados nos mercados de futuros,
pelo livre jogo das leis da oferta e da procura. Um problema, portanto, que conduziu
alguns impérios do passado às guerras de conquista e a conflitos por garantia de acesso a insumos e mercados, já está praticamente resolvido com a unificação capitalista
do mundo (ainda incompleta, por certo, mas cada vez mais “global”).
A nova solução “institucional” aos velhos problemas da ordem econômica está,
justamente, na existência de organismos intergovernamentais que regulam a cooperação entre Estados de uma forma como nunca foi possível em épocas anteriores à
unificação capitalista do mundo. Não pretendo aprofundar-me na exposição sobre a
emergência e o desenvolvimento do multilateralismo econômico, já tratado em alguns dos meus livros (ver Paulo Roberto de Almeida, O Brasil e o multilateralismo
econômico). Bastaria dizer que esse movimento também foi irregular e submetido às
injunções políticas do cenário mundial nos últimos 150 anos. Surgidas desde meados
do século XIX, para responder aos desafios da ampliação dos mercados (patentes ou
padronização de produtos) e da conexão transfronteiriça de meios de transportes e de
comunicações (ferrovias e fios telegráficos), as “uniões” ou “associações internacionais” logo se desenvolveram a partir dos núcleos originais europeus, para alcançar
virtualmente todo o “mundo civilizado” (e regiões então inóspitas também). A coope-
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
173
ração intergovernamental – algumas vezes puramente privada – implicava, de certo
modo, a uniformização dos meios de pagamento (como o franco-ouro, por exemplo)
ou o estabelecimento de um padrão comum para as compensações internacionais (daí
a aceitação rápida do padrão-ouro no final do século XIX).
Após uma breve interrupção por ocasião da Primeira Guerra Mundial e sua retomada pela Liga das Nações, no entre-guerras, o movimento “cooperativo” mundial
ganhou impulso com a ONU e a criação de suas muitas agências especializadas no
pós-Segunda Guerra. Especial preeminência para o tema que agora nos ocupa tiveram as chamadas instituições de Bretton Woods – o Fundo Monetário Internacional
e o Banco Mundial –, que deveriam ter sido complementadas, logo em seguida,
por uma entidade especialmente dedicada ao intercâmbio comercial, a Organização
Internacional do Comércio, efetivamente criada na conferência de Havana de 194748, mas que não logrou entrar em vigor por falta de ratificações dos Estados membros.
O GATT, acordo geral sobre tarifas, cumprindo algumas das funções concebidas para
a OIC, permaneceu provisoriamente em vigor durante 50 anos, até finalmente ser incorporado à OMC, criada ao final da Rodada Uruguai (1986-1993) do GATT.
Este é, portanto, o quadro jurídico através do qual se desenvolvem as relações
econômicas internacionais, objeto da digressão que segue abaixo. É importante registrar, desde logo, que nem todos os países membros da ONU foram membros ou
afiliados às suas muitas agências reguladoras, sobretudo as de caráter econômico e
financeiro, uma vez que a maior parte dos países socialistas – estes, durante algumas
décadas, estavam representados por dezenas de países, cobrindo boa parte da superfície geográfica do globo e quase 2/3 da população mundial – se manteve a margem
dos mercados capitalistas de bens, serviços e capitais, que por sua vez representavam
o grosso dos intercâmbios mundiais. Com o fim do socialismo, e dos exageros nacionalistas em outros países protecionistas (geralmente em desenvolvimento), o quadro
de membros de órgãos como o FMI tende por vezes a superar o próprio número de
países membros da ONU.
2.1. Regulação cooperativa das relações econômicas internacionais
O “mundo” de Bretton Woods – isto é, o do gerenciamento das taxas de câmbio
pelo FMI e da adoção de um padrão de câmbio ouro-dólar, fixado como obrigação
do governo dos EUA em 1944 – funcionou, se tanto, durante cerca de dez anos,
em sua forma clássica, isto é, depois da conversibilidade das moedas européias, no
final dos anos 1950 até o final dos anos 1960, quando a inflação americana, o déficit
comercial dos EUA e o excesso de dólares circulando nos mercados internacionais
foram responsáveis, conjuntamente, pela decisão do governo daquele país de suspender unilateralmente esse regime. Entre 1971 – quando o governo Nixon anuncia
que não mais converteria dólares em ouro, como estipulado na convenção original
– e 1973, quando o FMI finalmente emenda seu instrumento constitutivo para dele
não mais constar a supervisão sobre a taxa de câmbio das moedas nacionais, o
mundo de Bretton Woods viveu o que poderia ser chamado de end of illusions, isto
174
III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
é, a crença – economicamente irracional – de que as economias poderiam conviver
indefinidamente com taxas cambiais mais ou menos estáveis e a promessa de um
padrão fixo para o ouro.
A conseqüência, simplesmente, foi a flutuação generalizada das moedas, a queda
imediata do valor do dólar nos mercados internacionais – e, portanto, do valor de todas as commodities cotadas nessa moeda, entre elas o petróleo – e o recrudescimento
da inflação (combinada ao crescimento do desemprego, que gerou a keynesianamente
impossível stagflation). O aumento brutal dos preços do petróleo em 1973 e o choque
de oferta que seguiu imediatamente após, foram os impactos mais visíveis do “fim”
de Bretton Woods. A repercussão mais importante, porém, foi o estabelecimento de
um novo regime cambial, no quadro de um “não-sistema” financeiro internacional,
cujos resultados, no médio e longo prazo, seriam a suspensão dos controles sobre os
movimentos de capitais e o aumento da volatilidade financeira nos mercados internacionais. Datam dessa época as propostas de uma taxa sobre os movimentos de capitais
puramente especulativos, algo inaplicável, na prática, pois suporia uma coordenação
de políticas macroeconômicas e uma convergência de interesses fundamentais das
economias nacionais que nem mesmo o G-7, depois de trinta anos de experiências, é
capaz atualmente de assegurar.
Essa “regulação cooperativa” das relações econômicas internacionais é, portanto, sempre tentativa e sujeita às “chuvas e trovoadas” do sistema financeiro internacional. No plano do comércio internacional, a forte expansão dos intercâmbios nos
primeiros trinta anos do pós-guerra não impediu o recrudescimento de sentimentos
protecionistas nos países desenvolvidos, à medida que mais e mais países em desenvolvimento ascendiam na escala do desenvolvimento industrial, passando a oferecer
produtos manufaturados a preços competitivos nos mercados desenvolvidos. Esse
neoprotecionismo gerou, como era previsível, novos desafios ao sistema multilateral de comércio, até então regido exclusivamente pelo GATT e por arranjos ad hoc
que tendiam a segmentar e a proteger determinados mercados segundo critérios
claramente mercantilistas (têxteis e confecções, produtos siderúrgicos, mercados
agrícolas em geral).
Depois de várias rodadas de negociações comerciais preferencialmente voltadas
para tarifas e acesso a mercados, o regime multilateral de comércio embarcou no mais
ambicioso ciclo de negociações, a Rodada Uruguai (1986-1993), da qual resultou a
então criada OMC, no quadro de um sistema mais previsível e também mais amplo
do que o GATT, inclusive por incluir arranjos específicos para serviços (GATS), para
propriedade intelectual (TRIPs), para investimentos (TRIMs) e um acordo sobre agricultura, basicamente insatisfatório do ponto de vista dos países em desenvolvimento
e dos países exportadores agrícolas não subvencionistas (como Brasil, Argentina e
vários outros). Por outro lado, a dificuldade de se lograr acordos multilaterais abrangentes, com o elevado número de participantes do sistema de comércio – que passou
de duas dezenas, em 1947, a mais de 150, atualmente, sendo o mais recente a Ucrânia,
depois de 14 anos de negociações –, levou vários membros a traçar estratégias “mini-
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
175
lateralistas”, que contornam as regras multilaterais existentes e redundam no elevado
número de exceções ao princípio básico da “nação-mais-favorecida”, sob a forma dos
acordos regionais. Os perdedores são todos os excluídos desses instrumentos de liberalização do comércio em escala restrita, em geral países em desenvolvimento com
volume reduzido de comércio. Da mesma forma, não há dúvida sobre a questão de
saber quem perde mais, com os impasses da atual rodada Doha da OMC.
Do ponto de vista do Brasil, pode-se dizer que ele é um “usuário” modesto das organizações econômicas internacionais, sobre as quais seu poder normativo é pequeno,
muito embora se tenha beneficiado, de modo satisfatório, com as regras relativamente
abertas que presidiram – de certa forma ainda presidem – às relações econômicas internacionais no último meio século. A participação do Brasil nas trocas internacionais
sempre foi modesta, tendo ele se beneficiado como free-rider de alguns dos mecanismos existentes, tanto no plano do comércio – acesso aos mercados desenvolvidos, sem necessariamente conceder abertura equivalente – como no financeiro, tendo
absorvido a poupança externa, mas mantido estrito controle de capitais, para fins de
equilíbrio do balanço de pagamentos. A abertura econômica e a liberalização comercial conduzidas nos anos 1990 – parcialmente revertidas desde então – fizeram mais
pela modernização de seu sistema produtivo do que décadas anteriores de projetos
desenvolvimentistas; mas o país ainda hesita entre as estratégias regionais e multilaterais de inserção econômica internacional, pois cada uma tem custos diferenciados
e oportunidades específicas, em função das políticas que as acompanham. O Brasil é
ofensivo em agricultura e defensivo em bens e serviços, como corresponde às suas
vantagens comparativas aparentes; mas hesita ainda quanto à abertura de seu sistema
produtivo nacional, pois mantém a idéia de que, na era da globalização, deveria continuar a lutar por “políticas de desenvolvimento nacional”, segundo os cânones de um
passado julgado positivo no plano industrial.
No período recente, o Brasil aumentou seu grau de envolvimento na regulação
cooperativa das relações econômicas internacionais, assumindo um maior poder sobre
os mecanismos decisórios, mesmo se a sua participação nos fluxos de comércio continua modesta (com maior interface de absorção no que se refere aos investimentos
diretos estrangeiros, em função da dimensão do seu mercado interno e do esquema de
integração no Mercosul). Essa responsabilidade acrescida – através do G-20, nas negociações comerciais da OMC, por exemplo – ou a pretensão de vir a ser o centro focal de um espaço econômico integrado na América do Sul, significam novos desafios
para sua elite diplomática, na medida em que a noção restrita de interesse nacional –
isto é, projetos puramente nacionais de desenvolvimento – tem de ser compatibilizada
com essas novas missões assumidas no plano regional ou mundial (o que significa
maior dispêndio externo ou maior abertura de sua economia).
2.2. Assimetrias de desenvolvimento
A ordem econômica internacional é certamente caracterizada pelas chamadas assimetrias de desenvolvimento entre os países que a compõem, processo resultante
176
III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
da “grande divergência” ocorrida nos últimos dois ou três séculos entre economias
de alta e de baixa produtividade. Atualmente, quando as teorias da “exploração” ou
as teses sobre o “intercâmbio desigual” já estão completamente desacreditadas – por
sua inconsistência teórica ou total contradição com a própria realidade histórica –,
o que se requer é que os países em desenvolvimento se insiram nessa nova ordem
econômica internacional do capitalismo globalizado sem qualquer camisa de força
ideológica, como as do passado, que os faziam tratar as multinacionais como ameaça
à soberania estatal, impondo-lhes, em conseqüência, controles e restrições que não
mais se justificam nestes tempos de “fim da história” e de globalização como oportunidade, não como risco.
Não obstante os notáveis progressos registrados nas últimas duas décadas, em
termos de avanços na interdependência econômica mundial, não seria supérfluo recordar que continua inexistente qualquer regulação multilateral dos investimentos
estrangeiros, o que constitui, sem dúvida, uma das mais notórias falhas do sistema
econômico multilateral. Os países recorrem aos famosos acordos bilaterais de proteção e de promoção dos investimentos estrangeiros (APPIs) ou dispõem, entre eles,
de regras de adesão voluntária que liberalizam amplamente esses fluxos, de acordo
com a cláusula do tratamento nacional (como nos códigos existentes na OCDE). O
Brasil, que sempre disse sim aos capitais estrangeiros – mas não aos capitalistas,
propriamente –, assinou mais de uma dúzia desses instrumentos bilaterais, mas não
colocou nenhum em vigor, por temor de que eles diminuíssem sua capacidade de
regular políticas públicas num sentido “desenvolvimentista”, sempre privilegiado.
Assim, a despeito das novas configurações da economia mundial, com o surgimento
de emergentes dinâmicos – como os BRICs, entre os quais o próprio Brasil é colocado – a diplomacia econômica do país continua a ostentar pouca disposição em
prol de maior liberalização no âmbito da OMC, sobretudo naqueles setores nos
quais supõe ser sua baixa capacidade competidora (serviços, ramos industriais de
ponta, investimentos e propriedade intelectual).
A razão das hesitações do Brasil (e de outros países em desenvolvimento) em face
de maiores propostas de abertura é o temor que esta possa resultar no aprofundamento
dessas assimetrias; sobretudo porque a agenda da “graduação”, tal como colocada
pelos países ricos, vem condicionada à contrapartida de que os emergentes devem
pagar um preço pela redução do protecionismo agrícola e a maior abertura dos mercados avançados, com a redução de suas próprias barreiras ao comércio de produtos
industriais, aos serviços e aos investimentos. Para muitos países em desenvolvimento,
as assimetrias são típicas distorções derivadas dos mercados livres, que só podem ser
corrigidas por “adequadas políticas públicas”, de tipo setorial (geralmente industrial,
mas também apoiadas em uma política comercial de tipo protecionista). O Brasil teve
relativo sucesso em suas políticas “substitutivas”, que mobilizaram, justamente, esse
tipo de instrumento; mas a partir de certa etapa do seu processo de desenvolvimento,
as mesmas políticas que tinham sido responsáveis pela ascensão de sua capacitação
industrial, levaram, em combinação com choques externos e com graves descontroles
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
177
no plano fiscal, à estagnação do seu crescimento econômico: o protecionismo exacerbado gerou distorções no perfil distributivo da população e várias debilidades na
competitividade externa da indústria brasileira.
Não deveria haver, a rigor, nenhuma razão para insistir em políticas de claros efeitos distorcivos no plano industrial e em seu impacto social; mas persiste uma adesão
política a velhas práticas do passado, como, no âmbito multilateral, a defesa acirrada
da manutenção, para o país, do tratamento preferencial para países em desenvolvimento, de nítida feição oportunista. As chamadas assimetrias estruturais poderiam
ser vistas, nessa perspectiva, mais como uma oportunidade para uma maior inserção
desses países no sistema internacional, do que como um impedimento a essa integração, na medida em que elas são, de certo modo, “vantagens comparativas” que
podem ser mobilizadas em seu favor num mundo caracterizado pela alta mobilidade
de fatores de produção, em todos os níveis e direções. Os fenômenos de “out-sourcing” e de “off-shoring” representam dois aspectos, justamente, desses processos de
intensa deslocalização da produção que estão beneficiando intensamente países como
China e Índia, que decidiram se inserir de modo mais ativo nas correntes dinâmicas
da globalização capitalista.
2.3. Cooperação multilateral e Objetivos do Milênio
A ordem internacional compreende, também, projetos e programas de cooperação
econômica multilateral que todos eles visam reduzir os imensos gaps de desenvolvimento que ainda caracterizam o mundo. Existem dúvidas fundadas, explicitadas ainda
nos anos 1950 por economistas como Peter Bauer, sobre se a ajuda externa promove,
de fato, o desenvolvimento; ou se ela, ao contrário, diminui as chances de um país
pobre alcançar seu próprio estilo de crescimento e de inserção econômica internacional, com base em estímulos de mercado, geralmente baseados no comércio, mais do
que com base em (ou em substituição a) programas de ajuda externa. O Brasil, por
exemplo, tornou-se uma potência industrial graças às iniciativas de seus empreendedores nativos, aos aportes voluntários de investimentos estrangeiros e ao papel indutor
do Estado; os dois primeiros basicamente guiados pelos retornos de mercado, tendo
a cooperação bilateral com países avançados se dado essencialmente no capítulo da
formação de recursos humanos.
Não se quer, com isto, dizer que a crença na cooperação internacional seja uma
ilusão completa – uma vez que a cooperação técnica pode representar uma contribuição extremamente benéfica, justamente, para os países menos capacitados; mas o
fato é que o processo de desenvolvimento precisa ter bases genuinamente endógenas,
do contrário ele não seria capaz de gerar efeitos indutores extensivos para o resto da
economia e para a sociedade como um todo. Uma demonstração prática do caráter
meramente subsidiário – e alguns críticos diriam até nefasto – da ajuda oficial ao desenvolvimento seria o fato de que, após várias “décadas do desenvolvimento” oficialmente patrocinadas pela ONU, ademais dos imensos aportes financeiros transferidos
para países africanos ao longo dessas décadas, muito poucos países em desenvolvi-
178
III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
mento conseguiram efetivamente alçar-se de sua antiga condição “subdesenvolvida”
para manter um processo sustentado de crescimento econômico e de transformação
estrutural, com distribuição social desses benefícios do crescimento. Aqueles que o
fizeram – muito poucos, na verdade –, em absoluto deveram seu desenvolvimento à
cooperação externa.
Qualquer que seja o julgamento intelectual – e prático – que se possa ter sobre os
modestos resultados (se algum) da ajuda ao desenvolvimento, o fato é que a comunidade
internacional firmou, em 2000, um compromisso formal com as “Metas do Milênio”, um
conjunto de oito grupos de objetivos a serem alcançados até 2015, no sentido da redução
da pobreza, das desigualdades sociais e de gênero, de acesso a meios básicos de vida e de
saúde e educação. Não é seguro que as metas do milênio sejam alcançadas pela maioria
dos países a que elas se destinam. O problema maior não está exatamente na falta de financiamento para se atingir essas metas, embora este possa ser também um problema no
provimento de medicamentos básicos e serviços essenciais em países que carecem das
mais elementares estruturas de Estado. A questão é justamente esta: vários dos paísesalvo das metas entraram numa linha de desestruturação dos serviços públicos essenciais
que os qualificam para figurar na categoria dos “Estados falidos”, num momento em que
vários dos países doadores podem estar passando por uma situação de retração que já foi
identificada como donors fatigue. Em outros termos, a questão da crise da ajuda oficial
pode não ser mais uma simples questão de dinheiro – embora isto também possa estar em
causa – ou de recursos materiais vindos de fora; mas de uma avaliação realista quanto às
carências de governança nos próprios países objeto da ajuda. Muito deles, em especial os
africanos, estão praticamente vivendo de assistência pública internacional, quando não
ocorre desses recursos serem em parte desviados por elites pouco comprometidas com a
causa do desenvolvimento nacional.
A diplomacia brasileira recente engajou-se, no mais alto nível, aliás – isto é, com o
envolvimento do próprio presidente –, num ambicioso programa mundial de redução da
fome e da pobreza extrema, com modestos resultados na prática. Na verdade, não existe
propriamente carência de programas oficiais de combate à fome, assim como os meios
de financiamento não são, exatamente, o obstáculo principal a tal programa. O problema
está, justamente, em fazer more of the same, ou seja, tentar tornar factível a mobilização
multilateral em favor dos países mais pobres segundo linhas mais do que tradicionais de
ação, que supõem, de um lado, a coleta de fundos e, de outro, seu direcionamento para os
“necessitados”. Diversos economistas – entre eles William Easterly, que trabalhou muitos anos para o Banco Mundial, na África – já reduziram as expectativas em relação a
esse tipo de ação que tende a recriar as mesmas estruturas de dependência desses países
da ajuda internacional. O único caminho correto, como já tinha identificado Peter Bauer
bastante tempo antes, seria a mudança estrutural dessas economias e sua integração plena
nos circuitos do comércio internacional, para o que os países desenvolvidos, em primeiro
lugar as ex-potências coloniais européias, deveriam imperativamente abrir seus mercados
e eliminar os aspectos mais nefastos da política agrícola comum: os subsídios à produção
interna e as subvenções às exportações.
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
179
3) A ordem política e econômica mundial e o Brasil
Está na hora de repassar os grandes temas da agenda internacional em relação
às suas implicações para o Brasil, com destaque para os temas econômicos, que
compõem o essencial da agenda do nosso relacionamento externo. O Brasil não
tem – parece óbvio, mas cabe repetir – grandes demandas por segurança que derivem de ameaças externas, ainda que os próprios militares possam “descobrir”
toda uma série de ameaças potenciais que poderiam fragilizar nosso país, caso
surjam “imprevistos” na Amazônia – sempre ameaçada de “internacionalização”,
não se sabe bem por parte de quem, mas se supõe que seja supostamente do grande
império do norte –, nas plataformas de petróleo off shore, aparentemente ameaçadas por terroristas aquáticos, por parte de guerrilheiros vizinhos convertidos em
narcotraficantes; enfim, não faltariam perigos rondando o Brasil, para os quais
soluções “tecnologicamente sofisticadas” sempre serão necessárias. À falta de
ameaças credíveis, percebidas ou não, resta o papel acessório que o país poderia
desempenhar nos esquemas de segurança internacional sob a égide da ONU, até
aqui de peace keeping, mas eventualmente também de peace making (para o quê
uma evolução conceitual, e constitucional, seria desejável).
As grandes questões da interface externa do Brasil são, antes de tudo, questões
de economia; e antes de economia interna do que propriamente internacional,
como um simples argumento pode demonstrar. O ambiente econômico internacional, mesmo sem a continuidade da atual fase de bonança – com o crescimento
sustentado de vários países emergentes, que tendem senão a substituir, pelo menos
compensar várias das antigas locomotivas do crescimento mundial, como os EUA,
o Japão ou a Alemanha – ofereceu e continua a oferecer oportunidades excelentes
a um país capitalista como o Brasil (que nunca foi socialista como a China, tendo,
portanto, instituições de mercado plenamente funcionais, e nem tão nacionalista
e estatizante quanto a Índia). O Brasil é um país notoriamente carente de investimentos, algo que a economia internacional tem de sobra para economias que se
abrem a parceiros estrangeiros. Tampouco existe falta de liquidez nos mercados
financeiros internacionais, onde a captação e os preços se dão em função dos riscos percebidos pelos provedores, riscos oferecidos por determinadas economias,
algo, portanto, que depende basicamente delas mesmas. Enfim, todas as variáveis
que se possam conceber no plano econômico internacional parecem favoráveis ao
Brasil, cabendo ao próprio país fazer o seu “dever de casa” em termos de preparação para o crescimento e o desenvolvimento sustentado.
Em uma expressão: todas as questões de economia política internacional do
Brasil são, antes de tudo, problemas de política econômica nacional e é com essa
compreensão que deve ser avaliada a discussão que vem oferecida nesta seção
final deste ensaio. Não obstante, algumas outras questões da agenda internacional
que interessam ao Brasil de perto serão examinadas, independentemente de seu
caráter ou interface internacional.
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III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
3.1. Crescimento econômico
O problema básico do Brasil, como para a maioria dos paises emergentes, é o do
crescimento econômico, capaz de sustentar um processo de transformação produtiva,
com vistas a ganhos de produtividade que, por sua vez, contribuirão para a competitividade dos nossos produtos nos mercados internacionais, produzindo, assim, riquezas
e empregos internos. O mundo está ajudando de maneira excepcional nessa tarefa:
pela primeira vez em 30 anos, é registrado o mais forte crescimento na economia
mundial, com taxas nos países emergentes jamais igualadas por quaisquer outras economias, salvo em curtos períodos sem continuidade ou consistência. Infelizmente, o
Brasil e a América Latina crescem muito pouco, abaixo da média mundial e três vezes
menos que os emergentes mais dinâmicos. Esta modéstia no ritmo de crescimento
se dá a despeito dos mais altos preços nas commodities exportadas pela região – que
é, como se sabe, abundante em recursos naturais – e da grande demanda externa por
esses produtos (o que confirma, mais uma vez, que pode haver alguma “maldição” na
dependência de recursos naturais).
O baixo crescimento do Brasil e da América Latina também se dá a despeito da
maior disponibilidade de capitais de risco e da menor vulnerabilidade financeira externa (pelo menos aparentemente): estaria a região, de fato, imune a novas crises?
Por um lado, as reservas internacionais desses países nunca foram tão altas – para
algo serviram as crises financeiras dos anos 1990 – e, por outro, as taxas de juros
e spreads cobrados nos empréstimos e lançamentos de bônus internacionais desses
países também se situam em patamares historicamente baixos, não necessariamente
devido à nova onda de “confiança irracional” dos mercados financeiros nesses países,
mas porque há, de fato, abundância de liquidez nesses mercados.
O que, então, explicaria as baixas taxas de crescimento do Brasil e de grande parte
dos vizinhos? (Alguns dos países que estão crescendo, a exemplo da Argentina e da
Venezuela, o fazem em razão da recuperação e da saída de crises incorridas no período
recente, ou devido à demanda elevada puxada por gastos estatais, no caso das receitas
de petróleo.) Basicamente, em virtude do baixo nível dos investimentos externos,
resultado de uma “despoupança estatal” visível no caso brasileiro – com uma carga
fiscal igual à de países desenvolvidos, para uma renda per capita seis vezes menor –
e de desequilíbrios fiscais que lançam dúvidas aos olhos dos investidores privados,
sobre as perspectivas futuras de crescimento, tendo em vista as trajetórias da dívida
interna e dos juros reais. Ou seja, a despeito de que a estabilidade macroeconômica,
duramente conquistada no passado recente, permitiu criar essa sensação de good fundamentals, as percepções de risco ainda estão presentes, o que limita o volume total
de investimentos na economia.
Cabe descartar aqui os fatores tradicionalmente invocados para justificar as baixas
taxas de crescimento na economia brasileira, que seriam a ameaça de estrangulamento
externo em função dos desequilíbrios cambiais e da famosa volatilidade dos capitais
especulativos. Capitais financeiros são, por definição voláteis, e não há nada que se
possa fazer quanto a isso, seja uma grande economia desenvolvida, seja uma pequena
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
181
economia em desenvolvimento. Esses capitais se movimentam continuamente, de que
são prova os movimentos cambiais contínuos entre as principais moedas de reserva
internacionais. Por outro lado, o câmbio nunca esteve tão valorizado no Brasil – uma
taxa muito superior àquela registrada nos tempos da banda cambial administrada
(1995-1998), que a oposição atualmente no poder caracterizava como sendo “populismo cambial” – e, no entanto, não cessam de crescer, ano a ano, as exportações
brasileiras. Quanto à volatilidade, uma coisa precisa ser clarificada: ela é, na verdade, inerente à natureza dos capitais “especulativos”, mas só produz efeitos nefastos
quando a política econômica é, por sua vez, volátil, o que soe acontecer de maneira
muito freqüente nos países latino-americanos, sobretudo em razão de desequilíbrios
orçamentários, que se traduzem em crises fiscais.
Caracterizada, portanto, a natureza inteiramente interna dos problemas brasileiros
de crescimento e de “volatilidade”, caberia examinar quais seriam, dentre os fatores
internos e externos de crescimento dos BRICs – entre os quais o Brasil está incluído,
malgré lui, isto é, a despeito de ser o atrasado do pelotão –, as causas do desempenho
modesto de sua economia. Dentre os fatores endógenos de crescimento sempre podem
ser encontrados: o adequado provimento de insumos básicos, dos quais o Brasil parece adequadamente bem provido; energia barata e abundante; mão-de-obra suficiente,
barata e adequada, isto é, adestrada; infra-estrutura de transportes e comunicações à
altura das necessidades dos agentes privados; mercado de capitais funcional, líquido e
a custos razoáveis; judiciário expedito ou instrumentos ágeis de solução de disputas (o
que pode significar arbitragem privada), o que representa baixos custos de transação;
regras do jogo estáveis, transparentes e com o mínimo de intrusão possível por parte
dos “rentistas” sempre existentes no setor público, em seus vários níveis. Com relação
a esses fatores, sabemos que o Brasil padece terrivelmente de deficiências notórias
em vários deles, a começar pela tributação excessiva e pela intervenção exacerbada
do Estado na vida dos agentes econômicos privados (e não só pelo lado fiscal, mas
burocrático também).
Essas deficiências pelo lado regulatório, tributário, burocrático, pelas carências
de infra-estrutura e de mão-de-obra competente e competitiva – seja pelo lado dos
salários, seja pelo lado da produtividade – e por vários outros fatores, que estão,
na maior parte, ligados às responsabilidades governamentais, explicam, provavelmente, a longa e lenta marcha do Brasil para o investment-grade na classificação de
risco das agências mundiais de rating. Essa classificação será sem dúvida atingida,
em prazo intermediário, inclusive porque o Brasil é uma grande economia em escala
mundial e vem consolidando as bases de sua estabilidade macroeconômica (com
algum dever de casa a ser feito no lado fiscal). Não obstante esse lado positivo cabe
registrar que, no contexto das novas configurações da economia mundial, com a
ascensão fulgurante da China em quase todos os grandes mercados de importância
– produtivo e manufatureiro, por certo; como demandante de commodities e outras
matérias-primas, sobretudo energéticas; financeiro e tecnológico de modo crescente;
sem esquecer o lado militar e político –, seguida de perto pela Índia e alguns outros
182
III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
parceiros (tanto ricos, como em desenvolvimento), o Brasil aparece como um small
player no cenário econômico e estratégico internacional, em vista de sua modesta
capacidade de influenciar decisivamente qualquer processo ou evento dotado de impacto mundial. Isso não diminui suas chances de vir a integrar um possível G-13,
caso este seja formado em algum momento nos próximos anos. Mas a pergunta que
se coloca seria: deseja o Brasil realmente vir a integrar tal clube restrito, em vista
das mudanças inevitáveis que isso implicaria para sua atual condição de país em
desenvolvimento?
Trata-se de uma questão relevante, que não será respondida nos quadros deste ensaio, mas que permanece como um dos elementos-chave na conformação presente e
futura da diplomacia econômica brasileira e de sua estratégia de inserção internacional.
3.2. Investimentos
Os investimentos estrangeiros diretos sempre foram parte integrante do cenário
econômico brasileiro, assumindo um papel decisivo em seu processo de industrialização. De resto, trata-se de fator preponderante em qualquer economia aberta que
pretenda obter ganhos tecnológicos em prazos relativamente curtos, ocorrendo uma
contrapartida na balança de serviços pelo fato das remessas das “rendas do capital”,
a título de dividendos, lucros, royalties, pagamentos técnicos de natureza diversa e
outras transferências. Seus efeitos, mesmo com algum peso no balanço de pagamentos, são eminentemente positivos, em face da incorporação de know-how e dos ganhos de produtividade que ele permite. O Brasil sempre foi um beneficiário, bastando
consultar a lista da Forbes das 500 maiores empresas mundiais, para constatar que
mais de quatro quintos desse número já se encontram instaladom no Brasil, nos diferentes ramos da economia, direta ou indiretamente. Podem causar estranheza, assim,
as reações que o capital estrangeiro desperta ainda no país.
Não existe, como se sabe, uma regulação multilateral atinente aos investimentos
estrangeiros diretos, assim como não existe um único instrumento mundial disciplinando as relações entre investidores privados e Estados receptores desses investimentos diretos. A Carta de Havana (1948), não ratificada, previa algumas poucas regras
a esse respeito, que nunca foram colocadas em vigor, oportunamente implementadas
de modo bilateral e parcialmente nos acordos de promoção e proteção de investimentos negociados entre os exportadores e os importadores de capitais (os países ricos
possuindo, quanto a eles, regras inscritas no código de liberalização de investimentos
da OCDE, que segue, tanto quanto possível, os princípios de NMF e de tratamento
nacional). As lacunas legais e as carências regulatórias são, assim, supridas de maneira ad hoc por instrumentos diversos, geralmente seguindo um modelo padrão relativamente uniforme, que sustentou, desde os anos 1950, a proliferação de acordos
bilaterais conhecidos como APPIs. Não obstante ter assinado mais de uma dúzia, sem
ter ratificado nenhum – em virtude de forte oposição nacionalista interna –, o Brasil
possui uma legislação abrangente, que confere relativa estabilidade e abertura ao capital estrangeiro, estando ela em vigor desde meados dos anos 1960. Os registros e as
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Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
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autorizações de movimentação são conferidos de modo praticamente automático pelo
Banco Central, e não parecem existir reclamações no plano puramente instrumental.
Subsistem, contudo, algumas restrições ao investimento estrangeiro na economia
brasileira, assim como permanece certa insegurança jurídica quanto a eventuais disputas que possam ocorrer entre o investidor estrangeiro e parceiros nacionais ou entre
aquele e o Estado brasileiro. Na segunda metade dos anos 1990, o Brasil participou
do exercício do MAI – Multilateral Agreement on Investments – na OCDE, frustrado
em sua conclusão em virtude de desentendimentos entre os próprios países participantes – notadamente os EUA e a França – e não em função das manifestações dos
antiglobalizadores, como equivocadamente se considera em certos meios. Permanece,
assim, uma situação de impasse quanto ao tema investimentos na agenda multilateral,
uma vez que são poucos e insuficientes os dispositivos existentes no âmbito da OMC
(acordo de TRIMs). O Brasil participa ativamente (ma non troppo) das discussões,
mas não pretende avançar muito no terreno negociador, uma vez que tem restrições
aparentemente “filosóficas” a essa regulação, já que pretende preservar os famosos
policy spaces internamente.
3.3. Acesso a mercados
Acesso a mercados é o grande tema da diplomacia econômica brasileira, que
considera que as promessas da Rodada Uruguai permaneceram sem implementação
prática, em especial no setor agrícola. Tendo concedido sua aprovação a novas regras
em novos campos (serviços, propriedade intelectual, investimentos), e sentindo-se
frustrado pela não-reciprocidade efetiva, o Brasil apreciaria dispor de maior abertura
nos mercados desenvolvidos para seus produtos competitivos. Ele mantém, notoriamente, uma atitude mais ofensiva do que defensiva em aceso a mercados, em especial
na agricultura, tendo liderado o movimento que resultou na formação do chamado
G-20 na reunião de Cancún da Rodada Doha (2003). Depois disso, e não apenas
por sua insistência numa agenda do desenvolvimento, ocorreram diversos impasses
reais e de procedimento em reuniões nas quais o Brasil sempre foi um protagonista
de primeiro plano, junto com a Índia, os EUA e UE: em Hong-Kong, em Potsdam e
em Genebra, não havendo, até o início de 2008, certeza quanto às possibilidades de
conclusão da Rodada nos próximos meses.
As implicações para o Brasil são de ordem não apenas comercial, uma vez que
a diplomacia econômica do país considera que, em função do grau de abertura que
ele será obrigado a conceder nas áreas de forte demanda ofensiva dos desenvolvidos,
dependerá o sucesso, ou, até, a manutenção de seu projeto de desenvolvimento industrial, considerado em bases essencialmente nacionais. Não se conhecem avaliações
independentes quanto aos custos da liberalização, embora os industriais sejam sempre
alarmistas quanto aos limites da abertura que eles estão dispostos a conceder. O setor
de serviços, tradicionalmente protegido da concorrência externa, tampouco se mobiliza ativamente para o sucesso das negociações, ao passo que o agronegócio, expor-
184
III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
tador competitivo, parece ser o único a demandar abertura ampliada dos mercados,
nos dois sentidos.
O Brasil vem insistindo na estratégia multilateralista e já recusou acordos parciais de acesso a mercados – como os compromissos em matéria de liberalização
de produtos eletrônicos, firmados no âmbito do Information Technology Agreement,
adotado em Cingapura, em 1996 – que o confrontem diretamente a países mais competitivos no plano industrial. Tampouco foi possível concluir acordos limitados de
acesso a mercados com países desenvolvidos, a exemplo do projeto hemisférico da
Alca – recusada formalmente por “inconveniente”, no seu modelo americano – e do
acordo interregional entre o Mercosul e a UE, não só por motivo de dificuldades de
compatibilização das demandas ofensivas em matéria agrícola e defensiva na área
industrial, mas também porque os parceiros desenvolvidos pretendem um pouco mais
do que o simples acesso a mercados, adentrando em áreas regulatórias ou sistêmicas
que encontram oposição na atual diplomacia brasileira.
3.4. Integração regional
Trata-se, provavelmente, da prioridade estratégica mais relevante da diplomacia brasileira, desde o início dos anos 1990, ou talvez até antes, desde as primeiras tentativas
de formação de um mercado comum bilateral com a Argentina, na segunda metade dos
anos 1980. Essa integração das duas grandes economias da América do Sul é vista como
a base indispensável para a conformação de um grande espaço econômico integrado em
todo o continente, havendo, em conseqüência, um enorme investimento diplomático do
Brasil na consecução dessa idéia. Essa prioridade não impede, obviamente, a existência
de disputas comerciais entre os dois países, com cláusulas de salvaguarda aplicadas de
modo aparentemente abusivo pela Argentina contra produtos brasileiros.
Todo o processo do Mercosul – constituído pelo Tratado de Assunção, de março
de 1991, sob a forma de uma união aduaneira em implementação progressiva – vem
sendo apresentado como parte de um esforço de “regionalismo aberto”, ou seja, disposto a incorporar os vizinhos progressivamente. Mas o fato é que as tentativas de
ampliação do bloco acabam resultando na criação de novas e crescentes exceções nacionais tanto à zona de livre-comércio (ZLC) como à união aduaneira (UA). De fato,
a primeira funciona com algumas exceções setoriais, notadamente no setor de açúcar
(fortemente protegido na Argentina) e na indústria automotiva, onde vigora um acordo de compensação baseado em quotas que vem sendo prolongado com alterações
desde o início. Diversos acordos de liberalização comercial foram concretizados entre
o Mercosul e os vizinhos andinos da CAN, com cláusulas de exceção, dispositivos de
origem ou regras de acesso limitado que muitas vezes se exercem no plano bilateral
dos países envolvidos.
Os novos candidatos ao ingresso pleno no Mercosul – sendo que até o momento
três países são associados à sua ZLC: Chile e Bolívia, desde 1996, Peru, desde 2003
– sempre reivindicam exceções especiais à ZLC e flexibilidade na aplicação da Tarifa
Externa Comum (TEC) da UA. A Bolívia, por exemplo, gostaria de ingressar ple-
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Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
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namente no Mercosul sem ter de adotar a TEC, ao passo que a Venezuela, admitida
politicamente em 2006 na esdrúxula condição de “membro pleno em processo de
adesão”, apresenta notórias dificuldades para aceitar o conjunto de regras já adotas
pelo Mercosul, como, provavelmente, para incorporar a TEC de modo pleno. Não se
prevê, no futuro imediato, progressos sensíveis no capítulo comercial, mas os países
vêm expandindo uma agenda não comercial que envolve, crescentemente, grande número de atores sociais, nas áreas cultural, educacional, trabalhista e outras.
Conferindo alta prioridade à integração da América do Sul, a diplomacia brasileira
se lançou em iniciativas ambiciosas, como a constituição de uma Comunidade SulAmericana de Nações, efetivamente criada em dezembro de 2004, mas substituída,
em abril de 2007, pela União de Nações Sul-Americanas, com um tratado constitutivo
previsto para ser assinado em junho de 2008 e um secretariado a ser instalado em
Quito. Trata-se da recuperação parcial, mas com maior significado político, do projeto
lançado em setembro de 2000, a convite do presidente Fernando Henrique Cardoso, no
sentido de ser constituída a Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA),
com vistas a favorecer a vinculação física e grandes obras de infra-estrutura entre os
países da região.
Independentemente do maior ou menor êxito de todos esses projetos, o fato é que
os países da região estão quase todos unidos informalmente por uma rede de acordos
comerciais de liberalização econômica que tem no seu centro os EUA, o promotor
original da idéia da Alca, recusada por Argentina, Brasil e Venezuela. Os EUA, numa
estratégia ofensiva de conquista de mercados, que os levou do antigo multilateralismo
ao minilateralismo de fato, a pretexto de oferecer acesso ao seu enorme mercado a
países que dispõem de pequena base industrial ou até agrícola, acabam patrocinando
ampla discriminação contra os países mais competitivos da região, que são justamente os do Mercosul. As implicações para o Brasil são importantes, uma vez que
a estratégia dos EUA pode levar o Mercosul a uma maior introversão do que seria
recomendável, bem como ao aumento dos conflitos bilaterais como regra de “convivência”. Não se trata, obviamente, de cenário desejado pelo Brasil ou pelo Mercosul,
que são, assim, obrigados a empreender uma disputa para o estabelecimento de redes
de acordos paralelos.
Com esse tipo de comportamento, os dois mais importantes países do hemisfério, EUA e Brasil, acabam contribuindo, voluntariamente ou não, para o reforço de
uma das piores deformações do sistema multilateral de comércio na atualidade: o
chamado spaghetti bowl – ou seja, um emaranhado de acordos comerciais não necessariamente compatíveis entre si, mas convivendo no mesmo “prato” – de que fala o
economista indiano da Columbia University, Jagdish Bhagwati. O cenário previsível
é o do aumento dos conflitos e um stress inevitável no sistema de solução de disputas
da OMC, onde diversos casos têm sido concluídos, sem que os resultados finais tenham sido acatados pela parte perdedora, geralmente poderosa (como no exemplo do
algodão, desrespeitado solenemente pelos EUA, contra interesses legítimos do Brasil
e de muitos outros países exportadores do produto).
186
III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
3.5. Recursos energéticos
A economia mundial já sofreu com os “velhos” e volta a conviver com novos
choques do petróleo: as diferenças entre uns e outros podem estar na natureza do
elemento provocador, um choque de oferta, nos anos 1970, um choque de demanda,
atualmente. Mas os impactos para os importadores líqüidos são sempre prejudiciais,
refletindo pressões inflacionárias sobre todos os preços vinculados a essa mercadoria
estratégica e conduzindo a novas transferências líqüidas de renda de consumidores
para produtores. O Brasil dispõe de recursos energéticos diversificados, mas sua dependência do petróleo, como combustível e insumo industrial, continua significativa,
agora diminuída em função do aumento da oferta nacional. Subsistem, contudo, fragilidades, em razão da estrutura industrial do refino (ainda fortemente baseada em
petróleo importado).
A alegada auto-suficiência, na verdade, não é um ganho permanente, mas um processo que deve ser perseguido constantemente, com base nos investimentos de risco
em exploração – agora compartilhados com o capital estrangeiro – e na diversificação dos usos industriais, como princípio: tipos e fontes de combustíveis fósseis vêm
sendo ampliados em bases nacionais e até mesmo regionais, não sem riscos de investimentos, como os casos da Bolívia e do Equador demonstram de maneira eloqüente.
De toda forma, novas alternativas vêm sendo buscadas, não apenas para contemplar
nossa própria matriz energética – com base no consagrado etanol de cana-de-açúcar
e em novas fontes de biocombustível de origens diversas – como também na cooperação com parceiros em realidades geopolíticas relativamente inéditas do novo mapa
petrolífero mundial (Ásia central e do sul, costas da África, etc.).
A equação energética brasileira dificilmente conseguirá assegurar a autonomia
completa em combustíveis fósseis: a busca constante de fontes internas, de petróleo
ou de gás, terá de ser necessariamente complementada em fontes regionais, e aqui a
geopolítica é bastante complicada pela emergência de forças nacionalistas que colocam em risco os investimentos já realizados ou planejados da grande estatal brasileira
do setor (Petrobras). O cenário para o Brasil passa a ser o de apostar na boa convivência com vizinhos por vezes difíceis (como a Bolívia), ao mesmo tempo em que continua a sua busca por fontes próprias de fósseis ou por soluções tecnológicas eficientes
em renováveis. Neste último terreno, tendo em vista sua dotação favorável de fatores,
o Brasil tem todas as condições de aparecer no mundo como um major player (apenas
não se sabe se “politicamente correto”, em vista dos problemas continuados de devastação ambiental nas fronteiras agrícolas e pecuárias da Amazônia).
3.6. Segurança e estabilidade
Finalmente, no que se refere aos cenários geopolíticos de possíveis conflitos – e,
talvez, de novas hecatombes humanas, em vista da proliferação nuclear e do terrorismo fundamentalista –, existem dúvidas sobre se o Brasil será chamado a desempenhar um papel de relevo na segurança internacional, embora ele conserve bastante
importância no plano regional. A América do Sul parece ser uma região relativamente
A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da
Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil
187
imune aos riscos mais evidentes de envolvimento em conflitos de grandes proporções;
mas ela não pode ser considerada ao abrigo de seus efeitos indiretos, sobretudo quando esses riscos assumem novas formas, para as quais não existem fatores credíveis de
dissuasão.
O terrorismo de cunho fundamentalista islâmico, que parece ser a fonte mais provável das novas ameaças às potências ocidentais, não deve fazer da América do Sul
uma base de operações, embora não se possa descartar tanto o proselitismo religioso,
como a mobilização de recursos de tipos diversos entre as comunidades de uma mesma afinidade religiosa ou étnica. Os riscos de grandes ataques terroristas, no plano
mundial, continuarão a ser combatidos – sobretudo sob comando dos EUA – pela
conjunção de operações de inteligência com a repressão pura e simples, o que promete
muitas vítimas no futuro de médio prazo. A diplomacia brasileira atual tem afirmado
sua preferência por atuar sobre causas das ameaças terroristas, o que pode revelar
uma incompreensão quanto à natureza do fenômeno e as possibilidades de “dissuasão
preventiva”, pelo menos no curto prazo. Não deverá ocorrer evolução significativa
no tratamento dessa questão antes de novos desenvolvimentos, talvez dramáticos, do
fenômeno terrorista.
No que se refere à não-proliferação nuclear e aos regimes restritos para o controle
de tecnologias sensíveis, existem novos desafios, igualmente, que tampouco serão
resolvidos com base na pressão pura e simples ou na chantagem econômica, como
parece ser o método habitual das grandes potências. Ao não oferecerem promessas
credíveis de desarmamento efetivo e de não recurso aos artefatos de que dispõem
em caso de conflitos graves, elas deixam aberta a porta para alguns proliferadores
estatais. Em todo caso, existem atores nesse processo, nem todos estatais, que são
imunes a quaisquer tipos de “persuasão” antinuclear: ditadores megalomaníacos e
terroristas profissionais estarão sempre dispostos a enveredar pelo caminho atômico,
ainda que de uma “bomba suja”. As possibilidades que se abrem em alguns países
– o Paquistão, desestabilizado pela anarquia política interna, aparece como um dos
“ventres sensíveis” da proliferação descontrolada, mas a própria Rússia e países da
Ásia central podem entrar no jogo involuntariamente – são por demais preocupantes
e fazem com que essa questão se mantenha no topo da agenda das grandes potências
no futuro previsível.
O papel do Brasil nesse tipo de questão é propriamente marginal, a não ser como
membro temporário do CSNU ou permanente da Conferência do Desarmamento, se é
que questões desse tipo podem ter tratamento eficaz nesses foros de discussão política. Outras instâncias podem ser acionadas para o encaminhamento sigiloso de alguns
casos; a participação do Brasil em discussões ou medidas práticas dependerá de quão
confiável ele pode aparecer aos olhos dessas grandes potências para seu envolvimento
nesses casos.
Também permanecerá na agenda internacional, durante muitos anos à frente,
e na pauta diplomática brasileira, a questão da reforma do CSNU: quem entraria,
exatamente, e quais seriam as bases de alguns acertos regionais, inevitáveis, realis-
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III ANUÁRIO BRASILEIRO DE DIREITO INTERNACIONAL | V. 2
ticamente falando? O Brasil aparece como um eterno candidato, com os sucessos e
frustrações de uma luta de longo curso, na qual pequenos compromissos táticos são
o preço a pagar por alguma grande vitória estratégica mais à frente. Durante algum
tempo, se considerou que sua participação em missões de paz da ONU, a exemplo da
Minustah, no Haiti, poderia representar uma espécie de bilhete de ingresso no CSNU,
o que não é obviamente o caso. No jogo das grandes potências, boa vontade política
e disposição para a cooperação desinteressada não parecem ser, necessariamente, requisitos qualificadores. Apenas a manifestação de poder, em bases próprias, qualifica
para o exercício de responsabilidades mundiais, como parece pensar a Índia. Abre-se,
aqui, uma possível fonte de desentendimentos políticos – com conseqüências práticas
– entre soldados e diplomatas, os primeiros, presumivelmente, considerando que a
detenção de artefatos nucleares confere respeitabilidade e, portanto, “aceitabilidade”
de candidatos ao clube dos grandes, os segundos procurando pautar-se pela letra dos
tratados e das obrigações internacionais.
De toda forma, a questão parece ter sido definitivamente resolvida pelo pacto
constitucional, que submete todas as atividades nucleares à sua utilização pacífica, o
que veda, em princípio, seu desvio para outras finalidades. Não se vê, de toda forma,
em quê a posse de um artefato nuclear poderia adiantar a causa do Brasil no plano
internacional. Suas causas básicas são as do desenvolvimento econômico, da cooperação técnica, da luta pelos direitos humanos e, presumivelmente, da democratização
do sistema mundial de poder. A segurança internacional exige um pouco mais do que
isso, pois depende, também, de meios adequados para o exercício da força e de vontade política e capacidade de decisão para querer e poder utilizá-la, em circunstâncias
determinadas, supostamente sempre de acordo com as regras do direito internacional
e do respeito às instituições que conferem legitimidade ao seu uso. Em qualquer hipótese, o Brasil precisaria dispor de condições adequadas e efetivas para entrar nesse
“jogo de grandes”: os requisitos indispensáveis para isso, sem que a ferramenta nuclear entre necessariamente em linha de conta, seriam soldados e capacidade econômica. O Brasil precisaria se preparar para isso, consciente de que esses requisitos são
construídos inteiramente dentro de sua própria casa.
Leituras Complementares:
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