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O PORTADOR DE SOFRIMENTO MENTAL COMO PARTE NO JUDICIÁRIO ESTUDO DE CASO
Cácio Oliveira Manoel*
Meu papel aqui é o de narrador de um caso concreto, um processo no qual
venho trabalhando há pouco mais de um ano e meio. Antes de adentrar
especificamente no caso e nas suas particularidades, considero importante destacar
o processo de formação que o Juiz do Trabalho recebe desde a criação da Escola
Nacional da Magistratura Trabalhista - ENAMAT -, decorrente da EC n. 45/04, que
corrobora um trabalho já existente há mais tempo, sete anos, na Escola Judicial do
TRT da 3ª Região.
Os juízes recém-aprovados na magistratura trabalhista permanecem por
30 dias na Escola Nacional, onde recebem uma gama de informações e
treinamentos necessários ao exercício da magistratura e, na Escola Judicial do
TRT de Minas, é-lhes dada a chance de aprofundarem as discussões sobre o
tema da doença mental e sua interferência no mundo do trabalho, por meio do
trabalho desenvolvido pela psicanalista Judith Euchares Ricardo de
Albuquerque, responsável pelo Centro de Direito e Psicanálise e coordenadora
do grupo NIEP-J (Núcleo de Investigação e Estudo em Psicanálise e Psiquiatria
Judiciária), composto por juízes e profissionais da área de saúde mental.
Todas as informações trazidas pela interdisciplinariedade entre o Direito, a
Psicanálise e a Psiquiatria são de grande importância no processo de formação do
juiz, uma vez que o simples fato de alguns conseguirem superar a linha tênue
entre os pretendentes ao cargo e os efetivos magistrados não lhes dá a capacidade
de entender, compreender e resolver questões tão complexas quanto às
relacionadas à saúde mental.
Questão importante para os Juízes do Trabalho é o fato de que não é
incomum a questão da doença mental na relação de emprego, como também sua
interferência no próprio desenrolar do processo, além de termos que considerar a
existência do jus postulandi na nossa área de atuação, o que muitas vezes é um
grande complicador.
O caso trazido para apresentação, no qual tenho trabalhado atualmente, é
de um processo de um reclamante portador de uma patologia mental grave, que
trouxe, em consequência, tumultos processuais dos mais variados.
É possível fazer uma paródia daquilo que podemos denominar “quem quer
ser um milionário”. Nesse processo existe um valor disponível líquido em uma
conta bancária oficial em torno de R$1.700.000,00; quantia que o reclamante se
recusa terminantemente a receber.
Para que seja entendido, é necessário narrar o ocorrido no processo ao
longo do tempo e em que condições ele encontra-se hoje.
Trata-se de uma ação de complementação de aposentadoria, onde se busca
o reconhecimento judicial de algumas parcelas que lhe seriam devidas, em face
* Juiz substituto da JT-MG. Membro do NIEP-J.
Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.51, n.81, p.443-447, jan./jun.2010
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do plano de previdência privada, tendo sido reconhecidas as suas pretensões em
juízo, com a procedência da demanda em primeira instância. Importante ressaltar
que o processo iniciou-se há 17 anos, em 1993, sendo o reclamante inicialmente
representado por advogado no processo, mas que veio a renunciar à procuração
antes mesmo da sentença de primeira instância. A demanda encontra-se ainda
sem solução.
Após a renúncia do advogado, o reclamante passou a exercer o que já
havia mencionado anteriormente que é o jus postulandi, ou seja, ele passou a
sozinho conduzir os atos processuais de incumbência do reclamante.
Ao folhear as primeiras páginas dos autos, que atualmente se encontram
com 47 volumes e mais de 10.000 páginas, pode-se constatar a existência de
petições feitas por advogado, dentro de uma lógica jurídica e nos padrões aos
quais estamos acostumados. O processo foi ao Tribunal e a decisão de primeira
instância foi mantida, ou seja, do ponto de vista de prestação jurisdicional, o
reclamante alcançou êxito e todas as suas pretensões foram atendidas.
Entretanto, quando o processo chegou ao Tribunal, iniciaram-se os primeiros
sinais de problemas psicológicos do reclamante. Até então, ele falava por
representação, mas, ao começar a falar por si, é possível observar uma mudança
drástica nas petições que, segundo os especialistas, aponta para um padrão de
comportamento condizente com delírio paranóico por parte do reclamante. Há a
criação de um universo próprio que inclui uma conspiração contra sua pessoa,
iniciada quando do envio do processo ao Ministério Público do Trabalho para análise
do recurso ordinário; procedimento esse de praxe para os processos que chegam
ao segundo grau de jurisdição.
A partir de então, suas petições passaram a adotar um tom agressivo e
insultoso, tanto em face dos Desembargadores quanto em face dos Representantes
do Ministério Público, que ocasionaram, a partir de então, os primeiros impedimentos
e suspeições no processo, pois as autoridades se sentiram afrontadas e
desrespeitadas pela conduta do reclamante. Esse foi o marco da mudança na
estrutura do processo.
A estrutura dos textos mudou drasticamente e suas letras se tornaram bem
maiores, as petições passaram a ter várias dobras e desdobras, com recortes de
jornais e montagens com letras e textos desconexos.
Nessas condições o processo saiu do Tribunal e foi ao Tribunal Superior do
Trabalho. No TST, por ser o reclamante jus postulandi e fazer sustentações orais
que ofendiam os Ministros, obteve, ao longo desses 17 anos, 14 processos criminais
e 04 processos de indenização por danos morais.
O problema é que, durante toda a tramitação do processo até sua chegada
à segunda instância, não havia sido cogitado o adoecimento mental do reclamante
e, parece que, em função dos reflexos disso na dinâmica do processo, o pleno do
TST proibiu o exercício do jus postulandi no Tribunal Superior. Apesar de não haver
provas materiais, sabe-se de registros de profissionais que na época atuavam
como advogados, que afirmam que a decisão do TST sobre a matéria tenha sido
inspirada no caso apresentado. Tentei investigar nos fundamentos da súmula, mas
não encontrei nenhum registro específico dessa alegação.
Nesse processo, com mais de 10.000 páginas, constatei a atuação de mais
de 37 juízes diferentes, sendo que nenhum deles se preocupou em analisar o caso
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sob o prisma da doença mental. Optou-se pela punição do reclamante e não pela
identificação das causas das agressões cometidas por ele.
Por volta de 2003, e aí já se vão mais ou menos 10 anos de processo, foi
feita a primeira tentativa de se investigar a doença mental do reclamante. Entramos
aí um pouco na questão debatida hoje, nesta mesa, pela Drª Naray Paulino, pois,
ao ser nomeado um perito médico, que nem mesmo chegou a vir ao processo,
pois teve recusada pela reclamada a antecipação de seus honorários, a possível
discussão sobre doença mental foi encerrada, mesmo antes de ocorrer, pelo fato
de que tal discussão não estava incluída na causa de pedir do processo.
Em 2005, o Ministério Público Estadual, ao ser intimado, logo após o
Ministério Público do Trabalho ter declinado de sua competência, abriu um
procedimento administrativo para verificação da condição do reclamante e sua
possível interdição. Ocorreu, então, uma dupla falha, pois o juiz que conduzia o
processo não procurou informações sobre o andamento do procedimento e, por
outro lado, o Ministério Público também não informou ao juiz o resultado do
procedimento administrativo.
Passam-se mais alguns anos e o processo ingressou na fase de liquidação,
quando então foi fixado o valor devido ao reclamante. Nesse momento, os colegas,
no meu entendimento por estarem aprisionados ao eixo imaginário do conflito, não
deram continuidade aos atos executórios e permanecerem na criação de
procedimentos criminais e no envolvimento do processo em procedimentos
desnecessários.
O reclamante, no exercício do jus postulandi, apresentou então a impugnação
aos cálculos de liquidação, onde questionou alguns pontos apresentados pelo
reclamado e pleiteou algumas diferenças. Em função das múltiplas agressões
sofridas, meus colegas deixaram de analisar os elementos processuais e se
limitaram a coibir a conduta do reclamante no processo. Deixaram de receber a
impugnação ao cálculo para a receberem como embargos à execução, porém
julgados improcedentes após análise. O reclamante e a reclamada interpuseram
agravo de petição. O da reclamada, todo técnico, foi encaminhado para o Tribunal
e o do reclamante sequer foi analisado pelo juiz de primeiro grau. Os autos
retornaram e restou apenas a obrigação de serem pagos os valores devidos ao
reclamante, visto a reclamada haver desistido do seu agravo. Tal fato foi o estopim
para o agravamento da situação psíquica do reclamante, pois ele interpretou a não
análise do seu agravo de petição como comprovação de toda sua teoria da
conspiração.
Minha atuação no processo se dá nesse momento, sendo minha primeira
função a de proceder à entrega do valor liquidado ao reclamante.
Ao chegar à Vara, fui informado pela Diretora de Secretaria de que havia
um alvará à minha espera para ser assinado. A essa altura, o processo já possuía
41 volumes, o que me demandou algum tempo a mais para analisá-lo na íntegra
antes de assinar o alvará que identificava o valor total devido na época de
R$1.363.000,00. Como havia uma multa aplicada ao reclamante por litigância
de má-fé, calculada sobre o valor da causa, tive que enviar ao perito para
atualização, pois o valor da causa em 1993 não estava em real. Feita a
atualização e o decote do valor, assinei o alvará e o intimei para pagamento, o
que por si só já é um contrassenso, uma vez que, nesses casos, as partes e os
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advogados já estão batendo à porta do juiz com a seguinte pergunta: “Não
assinou o alvará por quê?”.
Passado o prazo de cinco dias para recebimento, o reclamante não apareceu.
Determinei, então, que o Oficial de Justiça fosse até a casa do reclamante para
fazer a entrega do alvará, o que também não aconteceu, pois ele se recusou a
recebê-lo com a explicação de que pretendia continuar no processo, haja vista que
seu agravo de petição não havia sido recebido.
Marquei uma audiência de tentativa de conciliação. Imaginei que, uma vez
presente o reclamante, eu poderia explicar-lhe que o valor do alvará já lhe era
devido, independentemente da análise e eventual provimento do seu agravo de
petição.
Nesse momento, solicitei a presença da psicanalista da Escola Judicial,
com quem tive a oportunidade de conversar sobre o caso e ela se comprometeu a
estar presente na audiência. Entretanto, o reclamante não compareceu à audiência.
Decidimos então, Judith e eu, irmos até a residência dele, onde constatamos seu
sério problema psicológico.
O reclamante mora em um sobrado da década de 50, totalmente fechado
com cercas enferrujadas. Havia uma rachadura enorme do piso ao teto, que
compromete a estrutura da casa. O primeiro andar, com o parapeito caído, está
envolto por correntes. A campainha, presa por fita adesiva, encontra-se em local
quase indecifrável. Nós a tocamos várias vezes mas ele não nos recebeu, apesar
de notarmos que ele estava em casa.
Conversamos com alguns vizinhos que nos informaram estar o reclamante
há mais de 04 anos sem contato com o filho e sua ex-mulher; que morava com sua
mãe, atualmente falecida, mas que lhe infringia maus tratos. Odiado pelos vizinhos,
por criar todo o tipo de problemas, já teve várias vezes a polícia comparecido à sua
porta. Também fomos informados de que o reclamante tem o hábito de sair todos
os dias entre as 08:00/08:30 e retornar por volta das 10:00/10:30.
Diante do insucesso da diligência, li novamente o processo onde, ao longo
de infindáveis petições delirantes, ele conta toda a sua história de vida e seu
sofrimento mental. Decidi fazer um novo despacho, pois percebi que ele acompanha
o andamento processual pela internet, e informei que retornaríamos à sua
residência, em hora e dia estipulados, para que ele pudesse apresentar seus
questionamentos diretamente a um juiz.
No dia marcado, Judith e eu novamente comparecemos, mas não fomos
recebidos. Ao retornar à Vara, constatei que ele havia juntado uma nova petição,
onde, no início, apresentava seus argumentos em uma boa lógica jurídica e de
modo respeitoso, mas deixava claro no restante da petição o seu delírio. Interessante
e importante também o fato de que o reclamante protocolou sua petição na mesma
hora e dia declinados no despacho publicado, o que me sugeriu estar aí, dada por
ele, a nossa possibilidade de diálogo: através de petições e despachos, por meio
de significantes próprios do Judiciário.
Busquei nova intervenção do Ministério Público Estadual. Nós nos reunimos
inicialmente com a Promotoria do Idoso, até que, após um tempo, identifiquei que
a atuação anterior havia sido feita pela Promotoria da Doença Mental. Discutimos
então com o Promotor a necessidade de intervenção imediata para a curadoria do
reclamante.
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Por meio de despacho, informei ao reclamante todas as medidas processuais
que foram tomadas, inclusive as relacionadas à sua possível interdição parcial ou
total, bem como sobre a continuidade do processo, mesmo com o levantamento
da quantia incontroversa. Informei-lhe também que não poderá peticionar no
processo até a conclusão dos procedimentos pelo Ministério Público e que, caso
queira falar comigo nesse meio tempo, estarei à sua disposição.
Tenho a intenção de, em julho, época de meu retorno à Vara, reverter ao
reclamante ao menos uma parte do dinheiro que ele ganhou, mesmo que para isso
seja necessário nomear um curador para o processo.
O caso narrado é para mim a constatação de que conceitos e discussões
de outras áreas são de fundamental importância para nós juízes, tão demandados
na sociedade atual para atuarmos na resolução de conflitos que nos exigem
conhecimentos além de nossa formação jurídica e que nos tocam profundamente
como pessoas.
Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.51, n.81, p.443-447, jan./jun.2010
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estudo de caso - TRT da 3ª Região