Irene Maria Vaquinhas*
Análise Social, vol. xxvi (112-113), 1991 (3.°-4.°), 689-703
Um espaço em transformação:
a extensão da cultura do arroz
nos campos do Mondego, 1856-88
INTRODUÇÃO
«Ainda ha meio século desconhecida nos campos de Coimbra [a cultura
do arroz] principiou a crescer e a desenvolver-se em tão rápida escala, que
ha dez annos occupava quasi a decima parte da vasta superfície sujeita às
innundações do Mondego»1, assim descrevia Adolfo Loureiro, em 1874, o
avanço tomado pela orizicultura nos campos do Mondego2.
Com efeito, sendo uma actividade antiga, mas praticada apenas a título
marginal em algumas propriedades, a orizicultura começou a ampliar-se geograficamente a partir de 1856, progredindo desde então, com avanços e
recuos, até se alargar definitivamente na actualidade. Desde essa data, e até
aos finais dos anos 80 do século passado, os arrozais não deixaram de aumentar, ocupando terrenos impróprios para outras culturas ou substituindo-se
ao milho ou outros géneros em terrenos cultivados.
Envolvida, desde o primeiro momento, numa acesa controvérsia em que
se opunham interesses económicos e questões de higiene pública, considerando-se os arrozais prejudiciais à saúde, a cultura do arroz foi para esta
área uma fonte de problemas e um foco de tensões e hostilidades. A sua
implantação deu azo a um verdadeiro «conflito de poder» entre os grupos
económico-sociais que exploravam e transformavam os campos do Mondego,
portadores de concepções irredutíveis e inconciliáveis de espaço e de utilização dos recursos disponíveis, corporizada no afrontamento entre comunidades rurais, representadas pelos seus órgãos dirigentes —as juntas de freguesia ou de paróquia e as câmaras municipais— e os proprietários e
cultivadores de arroz.
* Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
1
Adolfo Loureiro, «Memória sobre o Mondego e barra da Figueira», in Revista de Obras
Públicas e Minas, t. v, Agosto de 1874, n.° 56, pp. 351-352.
2
Este texto baseia-se, no essencial, em parte de um capítulo da minha tese de doutoramento
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e intitulada Violência, Justiça
e Sociedade Rural — Os Campos de Coimbra, de Montemor-o-Velho e de Penacova de 1858
a 1918.
689
Irene Maria Vaquinhas
Ao resistirem à extensão dos arrozais, ao porem em acção mecanismos
de autodefesa, arvorando bem alto razões de salubridade pública, as populações dos lugares infectos não se limitavam a recusar a transformação das
suas aldeias «numa segunda África onde as febres de origem palustre fizeram o seu quartel general», como referiam eloquentemente os representantes da Junta da Paróquia de Vila Nova da Barca em 18723, como também
o rompimento de equilíbrios económicos, sociais e ecológicos que esta
cultura, inevitavelmente, arrastaria. Tratando-se de uma zona tradicional
de compáscuo, as modificações introduzidas, directamente influenciadas
pelo modo de produção capitalista, vieram pôr em causa uma economia
autárcica.
Apreender alguns dos aspectos deste diferendo nos campos do Mondego,
em estreita articulação com a intervenção do Estado (ou a sua ausência),
é o assunto que me proponho tratar.
1. A EVOLUÇÃO DO ESPAÇO AGRÍCOLA: DA REGULARIZAÇÃO
E CORRECÇÃO HIDRÁULICA DO MONDEGO E SEUS CAMPOS
À CULTURA DO ARROZ
Formando uma faixa de terrenos de aluvião, compreendida dentro do
«perímetro da altura máxima atingida pelas cheias», numa extensão de cerca
de 167 km, os campos do Mondego estendiam-se por terras pertencentes aos
concelhos de Coimbra, Montemor-o-Velho, Soure e Figueira da Foz 4 . Constituídos por solos ricos, «de primeira qualidade», como então se dizia, esta
área será objecto, na 2. a metade do século passado, de providências e medidas legislativas que visavam, entre outros aspectos, minorar os prejuízos causados pelas cheias e sobretudo proporcionar o seu pleno aproveitamento agrícola.
Condicionalismos naturais, inerentes à topografia dos solos —baixos,
facilmente desagregáveis, escoadouros naturais do rio e sem inclinação que
lhes facilitasse a drenagem, tornando-os verdadeiras tinas de água estagnada,
insalubres e improdutivos, estando em algumas zonas o cultivo circunscrito
aos meses de Julho e Agosto —, constituíram factores suplementares, conferindo utilidade pública à recuperação deste meio lacustre e malsão. A ideologia produtivista, condicionante de grande parte da actuação da burguesia
dominante, fazia considerar a regularização e correcção hidráulica de algumas correntes de água como «assuntos de Estado», procurando-se assegurar a máxima rendibilização económica dos espaços alagados, das águas correntes e de alguns rios e ribeiros, entre os quais se incluem o Mondego e seus
campos.
3
O Conimbricense de 29 de Abril de 1872.
Por contingências inerentes ao tema de tese, a área dos campos do Mondego abrangida
neste estudo circunscreve-se apenas aos concelhos de Coimbra e de Montemor-o-Velho.
4
690
A cultura do arroz nos campos do Mondego
Nestas circunstâncias, a valorização desta área será condicionada a
dois projectos simultâneos e complementares: encanamento do Mondego,
saneamento e enxugo de pântanos e valas nas secções inferiores do rio
e arborização nas secções mais elevadas (Choupal, Vale de Canas, Remolhas), como forma de fortalecimento dos terrenos e acção preventiva contra as cheias5.
Delineado o plano, será à Direcção das Obras Públicas do Mondego que
competirá assegurar a sua viabilização prática6. Todavia, condicionalismos
de ordem económica e financeira vão imprimir falta de continuidade e sistematização às obras efectuadas, que apenas se realizaram, com regularidade,
nos anos 60 e 70. A partir do início da década de 80, a escassez de capitais
e o jogo das influências políticas travam a prossecução das obras de regularização e tornam inoperante aquele organismo oficial, que será suspenso em
1892. Limitadas, pois, as obras à década de 60-70, durante este período foram
devolvidos a cultivo 1200 ha de terras, segundo Adolfo Loureiro7, 3000 ha
segundo Henrique da Cunha-Matos de Mendia, autor de um relatório sobre
a cultura do arroz no distrito de Coimbra8, terras predominantemente situadas nos concelhos de Coimbra e Montemor.
A falta de coincidência dos dados não retira mérito ao facto essencial
— o aumento do espaço agricultável —, que é, aliás, confirmado por outro
tipo de fontes, embora possa reduzir a dimensão e a amplitude do fenómeno.
Adolfo Loureiro é mesmo de opinião que os novos arroteamentos teriam
ficado aquém das perspectivas desejáveis, mantendo-se a parte de área
inculta, relativamente à área cultivada, bastante elevada em todo o distrito
de Coimbra: 60%.
Transgressões à Carta de Lei de 26 de Dezembro de 1867, regulamentadora do reordenamento agrícola e hidráulico da bacia do Mondego, confirmam este afã expansionista, demonstrando lavrarem-se terras confinantes
com o rio ou as valas de esgoto, tirando-se, enfim, partido das obras de drenagem. Este movimento é descrito pelo jornal O Conimbricense de 10 de
Setembro de 1872 em termos bastante optimistas: «Desde que a Direcção
das Obras do Mondego tem dado impulso à abertura das valias já se vêem
bellas searas em terrenos ainda há poucos annos completamente perdidos
e quasi todos os annos encharcados.»
5
Adolfo Loureiro, art. cit., in op. cit., pp. 331-420, e «Memória sobre o melhoramento
do Mondego entre Coimbra e Foz-Dão», in Revista de Obras Públicas e Minas, t. xi, Janeiro
de 1880, n.° 121, pp. 1-44; Manuel Afonso de Espregueira, «Memória sobre as obras executadas nos campos do Mondego — desde 1 de Julho de 1866 até 31 de Outubro de 1870», in Revista
de Obras Públicas e Minas, t. II, Abril de 1871, n.° 16, pp. 118-150.
6
A Direcção das Obras Públicas do Mondego foi criada em 26 de Abril de 1841. Sobre algumas das vicissitudes por que passou este organismo oficial veja-se, entre outros, O Conimbricense de 24 de Março, 1, 15, 18, 22, 25 e 29 de Abril e 2, 9, 13 e 16 de Maio de 1893.
7
«Memória sobre o Mondego [...]», in op. cit., p. 355.
8
A Cultura do Arroz no Districto de Coimbra — Relatório dos Trabalhos da Commissão
Nomeada por Portaria de 16 de Setembro de 1882, Lisboa, Imprensa Nacional, 1885, p. 174.
691
Irene Maria Vaquinhas
Não sendo um movimento inteiramente novo, estes arroteamentos continuam um processo em curso iniciado no séculoXVIII,mas com particularidades distintas. Enquanto, neste século, a ocupação de terras se realizou
essencialmente nas chamadas «terras de monte», colocadas topografícamente
a um nível superior ao leito do Mondego e, por conseguinte, não sujeitas
ao regime diluviai do rio, no século xix, os arroteamentos têm sobretudo
lugar nas terras baixas, ditas «terras de campo». Mercê da intervenção administrativa, tornou-se possível estender o cultivo a terras alagadas ou assoreadas, de baixa ou quase nula produtividade.
A análise de um documento de origem fiscal, o Registo do Cadastro de
Villa Nova de Anços, da Burralha e Outros, de 1850, mandado efectuar por
Costa Cabral, demonstrou que ao binómio terras de monte-terras de campo
correspondem dois tipos de estruturas fundiárias de fertilidade diferencial
(quadro n.° l) 9 .
Fertilidade do solo: rendimento médio por hectare em alqueires de cereal
[QUADRO N.° 1]
Classes por hectares
Freguesias da vila de Montemor
Até 0,27
De 0,27 a 0,54 . . .
De 0,54 a 2,05 . . .
> 2,05
Arrabaldes
Taipal
Borralha
13,5
4,81
2,41
0,93
5
2,22
0,74
0,56
7,59
4,07
2,22
0,56
Freguesias de Vila Nova da Barca
Até 0,27
De 0,27 a 0,54 . . .
De 0,54 a 2,05
> 2,05
Anços
Arrebentão
21,5
8,52
4,44
0,19
13,9
5,37
2,59
0,74
Freguesias de Verride
Até 0,27
De 0,27 a 0,54
De 0,54 a 2,05
> 2,05
Borralha
Fim de Ereira
Monte de Ereira
Verride
10
4,63
2,59
0,56
47,4
10,7
6,85
22,6
9,07
2,41
1,11
10,4
5,56
2,41
0,74
Fonte: Registo do Cadastro de Villa Nova de Anços, da Burralha e Outros.
9
692
Este documento, que se encontra na Biblioteca Municipal de Montemor-o-Velho, constituía o elemento que servia de base à elaboração da matriz predial, destinada a fixar a capacidade tributária de cada contribuinte em função do rendimento líquido da terra. Este incide sobre
alguns campos que actualmente pertencem aos concelhos de Montemor-o-Velho e Soure. No
caso do primeiro concelho, o inventário cobre os campos da Borralha (partilhado entre as freguesias de São Martinho, Montemor e Verride); Taipal e Arrabaldes, da freguesia de Montemor; Anços e Arrebentão, da freguesia de Vila Nova da Barca, e Monte de Ereira, Fim de Ereira
e Verride, da freguesia de Verride.
A cultura do arroz nos campos do Mondego
Enquanto nas primeiras predomina a pequena ou pequeníssima propriedade, de dimensão inferior a 0,27 ha, que atingem níveis de fertilidade do
solo, isto é, rendimento médio por hectare em alqueires de cereal, elevados,
chegando a atingir num dos campos analisados (Fim de Ereira) o índice de
47,4 alqueires por hectare, nas «terras de campo», pelo contrário, é maioritária a média propriedade, de dimensão superior a 2,05 ha, mas de produtividade escassa. No campo do Taipal, por exemplo, para esta cota fundiária, a fertilidade é de apenas 0,56 alqueires por hectare.
A necessidade de rendibilizar as «terras de campo», tendo em vista as
características específicas dos solos, submersos durante parte do ano, impôs
a cultura do arroz.
Em face do exposto, a reconversão à nova cultura parece ser, pois, o culminar de um processo em que intervêm a actuação do Estado e de particulares. A transformação jurídica da propriedade, com a abolição dos pastos
comuns pelo Código Civil, veio a facilitar este processo. A adopção do princípio da propriedade privada arrastaria como corolário a possibilidade de
o cidadão proprietário organizar o processo produtivo em condições de total
liberdade no que se refere, entre outros aspectos, ao tipo de culturas a efectuar. Finalmente, os estímulos conjunturais e os altos rendimentos obtidos
foram argumentos decisivos em favor da produção do arroz.
2. AS RAZÕES DOS PROPRIETÁRIOS E CULTIVADORES. PAUTAS,
PREÇOS E RENDIMENTOS: O ARROZ COMO UMA CULTURA
LUCRATIVA
Datam de 10 de Janeiro de 1837 as primeiras tributações específicas onerando o arroz importado. Foi, todavia, a partir de 1852, em consonância
com a pauta alfandegária desse mesmo ano, que onerou o arroz importado
em 1240 e 740 réis por 100 arráteis, conforme se tratasse de arroz descascado ou sem qualquer preparo, que a orizicultura começou a estender-se
«mais decididamente»10.
As pautas alfandegárias seguintes —22 de Dezembro de 1856, 14 de Agosto
de 1858, 23 de Agosto de 1860, 18 de Dezembro de 1861, 25 de Agosto de
1871 — mantêm os direitos de importação sobre o arroz, não obstante algumas alterações no sentido do seu agravamento ou redução. Estas alterações
pontuais, porém, nunca chegaram a pôr em causa a política económica de
fundo, tendo sido adoptadas medidas restritivas à entrada do arroz estrangeiro ou colonial, mas sem nunca se cair num proteccionismo excessivo11.
10
Henrique da Cunha-Matos de Mendia, op. cit., p. 176.
A política económica dominante adoptou, quanto a este género, uma coerência e continuidade sem paralelo com outros géneros alimentares. Sobre o assunto veja-se Henrique da
Cunha-Matos de Mendia, op. cit., p. 177, e Maria Manuela Tavares Ribeiro, Conflitos Ideo11
lógicos do Século XIX — O Problema Pautai, separata da Revista de História das Ideias, vol.
1, Coimbra, 1976.
693
Irene Maria Vaquinhas
A elevação dos preços desta gramínia nos países coloniais, seus tradicionais exportadores, repercutiu-se na diminuição das importações, o que estimulou o cultivo desta planta em solo nacional. A quase ausência de tradição de cultivo de arroz em Portugal, que convinha desenvolver, condicionou
a política proteccionista, sobrecarregando-se de pesados ónus o arroz estrangeiro ou, com menor incidência, o proveniente dos territórios ultramarinos.
Ao apoio oficial, expresso no regime pautai favorável, acresciam os «lucros»
obtidos com este cultivo e decorrentes quer dos rendimentos alcançados, proporcionalmente mais elevados do que no milho, quer dos preços praticados.
Os cálculos apresentados por Henrique da Cunha-Matos de Mendia, que
confronta os rendimentos do arroz com os do milho e feijão, são, neste
aspecto, esclarecedores. Por 0,064 hl de milho lançados à terra obtém-se um
rendimento médio de 20 780 réis por hectare. Conjugado com o feijão,
género com que habitualmente é alternado, o rendimento sobe para 27 030
réis. Exigindo o arroz maior quantidade de sementes por hectare, 1,277 hl,
o rendimento líquido obtido, deduzidas as despesas de exploração, atinge
83 333 réis, ou seja, cerca do triplo do rendimento conjunto do milho e do
feijão (quadro n.° 2).
Rendimentos comparados entre o milho, o feijão e c• arroz
[QUADRO N.° 2]
Culturas
Milho
Feijão
Arroz
Hectolitros de sementes
por hectare
Média de produção
por hectare
Rendimento médio
por hectare (em réis)
0,064
0,032
1,277
0,016
1,92
38,33
20 780
6 250
83 333
Fonte: A Cultura do Arroz no Districto de Coimbra — Relatório dos Trabalhos da Comissão Nomeada por Portaria
de 16 de Setembro de 1882.
Os preços são também compensadores. Reflexo provável de um consumo
urbano em alta, os preços deste género na Figueira da Foz, principal porto
exportador da região centro, mantêm-se elevados. A análise dos preços do
arroz com casca e do arroz pilado, extractados dos Livros de Preços desta
cidade, registam uma subida entre 1856 e 1886 para qualquer destas qualidades, mais pronunciada para o arroz pilado: b= 10,71 e 2,38 (gráficos I
eu)12.
Estimulados, pois, pelo regime pautai e pelos preços e rendimentos alcançados, os campos de arroz multiplicavam-se, ocupando terrenos pantanosos ou substituindo-se ao milho ou outros géneros em terrenos cultivados.
De acordo com os resultados obtidos pela Comissão de Inquérito dos Arrozais, os campos de arroz no concelho de Coimbra, em 1868, reduziam-se a
7 propriedades, ocupando uma extensão de 225,02 ha. No concelho de Mon-
694
12
A fórmula da regressão linear utilizada foi a seguinte: y = b + m. Ax, ou seja, arroz
(alq.) = 841,2 (alq.) + 10,71 (alq.) . (ano — 1854).
A cultura do arroz nos campos do Mondego
temor, pelo contrário, estendiam-se por 561 propriedades, ocupando uma
área de 25 694,58 ha, e eram localizados, na sua maioria, em «terrenos aptos
para outras culturas». Alguns anos mais tarde, a situação altera-se signifi-
Preços do arroz pilado na Figueira da Foz (por alqueire)
0=10,71
600
1854 1856 1858 1860 1862 1864 1866 1868 1870
1872 1874 1876 1878 1880 1882 1884 1886
Preços do arroz com casca na Figueira da Foz (por alqueire)
300
1854 1856 1858 1860 1862 1864 1866 1868 1870 1872 1874 1876 1878 1880 1882 1884 1886 1888
cativamente. Os arrozais continuam a aumentar em ambos os concelhos dos
campos do Mondego, mas o ritmo de progressão inverte-se, passando a ser
superior no concelho de Coimbra.
695
Irene Maria Vaquinhas
Segundo um recenseamento dos campos de arroz de 1881, que confronta
dados relativos a 1871, os arrozais ocupavam, neste ano, no concelho de
Coimbra, 5975,21 ha (quadro n.° 3) 13 .
Área de cultivo do arroz nos campos do Mondego (em hectares)
[QUADRO N.° 3]
Anos
Concelhos
Taxa de crescimento anual
1871
Coimbra
Condeixa
Montemor
Soure
Total
1 999,81
643,91
9 928,35
1 131,53
13 703,6
1881
5 975,21
1 001,21
13 050,74
1 404,13
11,6
4,5
2,8
2,2
21 431,29
4,6
Fonte: A Cultura do Arroz no Districto de Coimbra [...)
Em 1871, a área abrangida era de apenas 1999,81 ha, sendo o ganho em
superfície de 3975,40 ha, aumentando este cultivo à taxa de crescimento anual
de 11,6%.
No concelho de Montemor, a área que lhes era consagrada era superior
em extensão —9928,35 ha em 1871, 13 050,74 ha em 1881—, mas a taxa
de crescimento anual é inferior à registada naquele primeiro concelho: 2,8%.
A análise dos dados sugere, por conseguinte, um movimento diferenciado
na implantação da orizicultura nestes dois concelhos dos campos do Mondego. Mais precoce, e tirando-se partido das obras de drenagem e regularização do rio Mondego, a extensão dos campos de arroz acelerou-se na década de
60 nos campos de Montemor, só prosseguindo na década seguinte pelos campos de Coimbra. Com efeito, as obras de correcção hidráulica do Mondego,
contrariamente às previsões dos subscritores das cartas de lei que regulamentavam o seu modo de execução, contribuíram para incrementar o cultivo do
arroz. Por muitas e variadas maneiras descritas pelas transgressões de posturas —caleiras, cubos, presas feitas com leivas ou, num reduzido número
de casos, máquinas de vapor— eram desviadas as águas das valas para campos que eram encharcados artificialmente para o cultivo do arroz.
Este incremento dificilmente pode ser comprovado com os cômputos da
produção orizícola. As fontes oficiais, mais concretamente os mapas estatísticos dos Relatórios do Governo Civil de Coimbra, não oferecem grande
credibilidade, além de se cingirem ao período de 1857-66. Limitando-se a
contabilizar montantes de produção de propriedades legalizadas, cuja percentagem relativamente ao total de propriedades que praticavam o cultivo
de arroz é difícil, se não impossível, determinar, apresentam valores muito
baixos e não condizentes com as áreas relativamente extensas ocupadas por
esta cultura. A crer-se nesta fonte, em 1866, no concelho de Montemor, ape696
13
Henrique da Cunha-Matos de Mendia, op. cit., p. 172.
A cultura do arroz nos campos do Mondego
nas teriam sido produzidos 1936,03 hl de arroz. Se se dividir este montante
pelo número de hectares de área consagrada a esta cultura, em 1868, ano
mais próximo daquela data com indicação oficial de área, obtém-se a quantidade irrisória de 0,000 75 1 por hectare, o que é francamente improvável.
Mesmo partindo do pressuposto de que «a superfície das propriedades licenseadas occupavam a quarta parte apenas da área total dos arrozaes»14, os
valores obtidos, feitas as necessárias multiplicações —53,087 hl por hectare—
deveriam ficar aquém dos números reais da produção, pois, como admite
Henrique da Cunha-Matos de Mendia, por «cada licença concedida se
seguiam mais dez propriedades, novamente cultivadas de arroz»15.
Outro factor explica também a subestimação das estatísticas: o carácter
descompassado do cultivo. Sob a pressão das autoridades administrativas
ou das reacções populares, ou ainda por contingências inerentes à própria
planta, que esgota rapidamente os solos, obrigando a variar-se frequentemente de localização geográfica, ora se semeavam arrozais, ora se destruíam,
sem continuidade e sistematização, o que se reflectia nos cômputos da produção.
Cultura economicamente rendível, polarizando grandes interesses, a sua
lei era, pois, a do lucro, semeando-se arrozais à revelia das autoridades, sem
as competentes licenças que lhes conferiam estatuto legal, em terrenos considerados sanitariamente impróprios ou não se dando cumprimento às legislações regulamentadoras deste cultivo. A este avanço dos arrozais opunham
as populações razões de salubridade pública. Nesta contradição se fundamentavam os conflitos com os órgãos do poder local e com as populações
residentes em localidades próximas dos campos de arroz.
3. AS RAZÕES DAS POPULAÇÕES: ARROZAIS E PALUDISMO
Mal endémico dos campos do Mondego, o paludismo recrudesceu a partir do momento em que o cultivo do arroz se passou a efectuar em larga
escala.
Periodicamente, nos meses de Verão ou desde que as condições atmosféricas proporcionassem o desenvolvimento do Anopheles maculipennis atroparvusy principal vector da doença, as febres ateavam-se e, conquanto não
conduzissem directamente à morte na maioria dos casos, «consumiam a saúde
dos povos e devastavam as povoações», como referiam os relatórios
médicos16. Por vezes, as endemias agudizavam-se, transmutando-se em epidemias de intensidade variável, fazendo aumentar o número das vítimas e
obrigando os organismos competentes a tomarem consciência dos efeitos e
incidência da doença. De entre estas convém salientar a epidemia que ocor14
15
16
Henrique da Cunha-Matos de Mendia, op. cit., p. 166.
ld., ibid., mesma página.
ld., ibid., pp. 65-71.
697
Irene Maria Vaquinhas
reu na vila de Montemor em 1862-63, atingindo 65,8°7o da sua população,
na maioria pertencente aos estratos mais desfavorecidos, «impossibilitados
de se retirarem [...] como fazem os mais abastados»17. Em 1877 nova epidemia varria esta vila, motivada pelo facto de se ter semeado de arroz o
campo do Taipal, nos seus arredores.
Poder-se-iam multiplicar os casos de ocorrências epidémicas. Mas o que
convém reter deste tipo de informação é o carácter permanente desta doença,
que se manterá endémica até aos finais da década de 80 do século passado.
Esta conclusão é retirada da análise do movimento clínico dos hospitais da
Universidade de Coimbra e de Montemor-o-Velho durante o período de
1870-8218. Neste segundo hospital, as «febres intermitentes» constituem
mesmo a principal afecção tratada, sendo a percentagem de doentes palúdicos, relativamente ao total de doentes assistidos, de 45,6%, isto é, cerca de
metade do movimento hospitalar.
Nestas circunstâncias, não são, pois, de admirar as constantes reclamações e protestos enviados aos órgãos administrativos pelas populações locais,
através dos seus elementos representativos —juntas de paróquia, de freguesia ou camarários —, pedindo previdências para o que era qualificado de
«praga dos arrozais». Estas solicitações eram apoiadas por relatórios médicos e paroquiais, que associavam o incremento da mortalidade com a extensão dos arrozais, assim como pelo próprio movimento higienista.
A inoperância da terapêutica em enfermidades cuja etiologia era ainda desconhecida fazia da prevenção das epidemias o verdadeiro cavalo de batalha
do movimento higienista. Reforçada pelas teorias médicas que acentuavam
a importância do meio ambiente como responsável por elevado número de
doenças, a génese das «febres intermitentes» era atribuída às emanações das
«zonas miasmáticas», pântanos naturais ou aqueles artificialmente criados
para o cultivo do arroz19.
Extinguir os arrozais, ou, pelo menos, proceder à «sua mais larga e considerável redução», era, deste ponto de vista, a única solução como forma
de combate a uma doença responsável pelo depauperamento físico de povoações inteiras, bem como pelo aumento da mortalidade, pois, como referia
a comissão nomeada por Portaria de 16 de Setembro de 1882 para proceder
a um estudo sobre os arrozais no distrito de Coimbra, «os registos parochiaes
accusam maior mortalidade naquelles annos em que outros documentos afirmam maior desenvolvimento da oryzicultura local»20. Anos antes, Andrade
698
17
O Conimbricense de 9 de Maio de 1865. Para uma análise mais aprofundada das diversas
epidemias que ocorreram nos campos do Mondego, de 1850 aos primeiros anos da década de 70,
veja-se João Lourenço Roque, Classes Populares no Distrito de Coimbra no Século XIX
(1830-1870), vol. I, t. I, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1982, pp. 386-403.
18
Henrique da Cunha-Matos de Mendia, op. cit., pp. 66-71 e 84.
19
Sobre a insalubridade de pântanos e arrozais de acordo com a «teoria miasmática» veja-se, entre outros, José Ferreira de Macedo Pinto, Medicina Administrativa e Legislativa, parte
I, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1862, pp. 247-268 e 337-378.
20
Henrique da Cunha-Matos de Mendia, op. cit., p. 198.
A cultura do arroz nos campos do Mondego
Corvo, em relatório oficial, exprimira o seu horror perante este cultivo
«homicida», ao chegar à trágica conclusão de que «a produção de 16 hectolitros de arroz custa uma vida» 21 .
A ciência médica ainda não evoluíra o suficiente para poder solucionar
esta doença sem alterar a infra-estrutura económica. Só a partir de finais
do século xix, acompanhando o desenvolvimento da bacteriologia, se avançou no conhecimento etiológico e nosológico do paludismo, comprovando-se a sua transmissão pelo mosquito fêmea anopheles. A consolidação da
«teoria anofélica» abriu o caminho ao tratamento desta doença. A utilização do quinino na terapêutica do doente palúdico, o uso do DDT como larvicida nos arrozais, acompanhados por uma luta sanitária organizada,
encarregar-se-ão de pôr fim a esta doença22.
Antes, porém, que a doença se extinguisse, os arrozais continuariam a
somar vítimas e a causar as mais sérias apreensões. Sem pôr em causa o seu
efeito na degradação do estado sanitário das povoações localizadas nas suas
proximidades, nada prova uma correlação, directa e mecânica, entre esta cultura e o aumento da mortalidade, como salientavam tantos autores.
As informações paroquiais referentes às freguesias da área estudada e reproduzidas no Relatório sobre a Cultura do Arroz /.../ são, neste aspecto, contraditórias, não oferecendo respostas concludentes. Algumas freguesias acusam
uma diminuição da mortalidade a partir do momento em que o cultivo do
arroz começou a efectuar-se, enquanto outras registam um aumento do número
de óbitos. Encontram-se na primeira situação, entre outras, as freguesias de
Antuzede e Taveiro, no concelho de Coimbra, e Gatões, no concelho de Montemor. Com uma média anual de óbitos de 20,2, 24,8 e 10,2, respectivamente,
antes do início do cultivo, esta baixou para 18,6, 20,7 e 7,9 depois de se ter
dado início ao cultivo do arroz em larga escala. Na freguesia de Vila Nova
da Barca, pelo contrário, os dados vão ao encontro dos receios suscitados por
esta cultura, tendo o número de óbitos aumentado a partir do momento em
que os arrozais se começaram a ampliar, passando a média anual de 10,6 para
16,2, tendência que era agravada pela diminuição dos nascimentos.
As características do paludismo, que, em regra, causa uma pequena mortalidade imediata, e o carácter descontínuo e descompassado no plantio do
arroz, variando frequentemente de lugar, dificultando demarcar-se com rigor
a cronologia desta cultura, explicam o carácter aparentemente paradoxal dos
dados, impedindo que se estabeleça uma relação causal entre arrozais e
aumento da mortalidade. Só um estudo em profundidade, que prolongue
no tempo este tipo de análise, poderá vir a dar uma resposta conclusiva.
21
Relatório sobre a Cultura do Arroz em Portugal e a Sua Influência na Saúde Pública
Apresentado a Sua Excellência o Senhor Ministro dos Negócios do Reino pela Commissão
Creada por Portaria de 16 de Maio de 1850, Lisboa, Imprensa Nacional, p. 552.
22
Ricardo Jorge, Sobre o Estudo e o Combate do Sezonismo em Portugal, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1903; F. J. C. Cambournac, Sobre a Epidemiologia e a Luta Anti-Sazonática em Portugal, separata dos Anais do Instituto de Medicina Tropical, vol. ix,
n.° 2, Junho, 1952, p. 395.
699
Irene Maria Vaquinhas
Em face do exposto, torna-se mais fácil compreender as hesitações de uma
governação, sempre indecisa nas medidas a adoptar. Extinguir ou, pelo
menos, reduzir os arrozais? Como seria possível avançar nesta direcção se
a sua destruição punha em causa o «direito sagrado» da propriedade, fundamento do estado social, e principalmente, se fortes interesses económicos
de grandes proprietários, verdadeiros caciques locais, estavam subjacentes
às questões de salubridade pública? Por mais que a ciência da época alertasse a opinião pública para a ameaça dos arrozais, a questão era insuperável: o arroz produzia doenças, mas também muito dinheiro.
4. AS HESITAÇÕES LEGISLATIVAS: PERMITIR OU PROIBIR OS
ARROZAIS
Dado o «avultadissimo lucro», nada parecia deter o avanço do cultivo do
arroz, como concluía o governador civil de Coimbra em 1874: «Todas as
providências adoptadas para limitar essa cultura tem sido infructiferas.»23
A defesa dos interesses dos proprietários cultivadores, além das vantagens
económicas já postas em relevo, fundamentava-se ainda no peso político
representado por muitos de entre estes e que a imprensa periódica deixava
subentender: «[...] como o arroz dá grandes interesses aos abastados proprietários e as autoridades querem estar de acordo com eles por causa das
eleições, não dão providências contra essa cultura, embora d'ella resulte a
morte dos povos que tem de viver nas suas proximidades», esclarecia
O Conimbricense de 26 de Abril de 1879. De uma forma frontal, mas raramente explícita, fulanizando os ataques, este periódico equacionava uma
questão capital. A extensão da cultura do arroz deve ser interpretada à luz
do fenómeno vulgarmente designado por «caciquismo», em que se articulam o uso político do poder, da propriedade e das influências.
Alguns dos proprietários promotores desta cultura representavam uma
força política, capazes de manipular votos em período de eleições, verdadeiros caciques locais que convinha não desprezar. Escudados num poder
que se apoiava na corrupção das autoridades político-administrativas —os
administradores do concelho, os regedores e, em alguns casos, o próprio
governador civil do distrito—, alguns proprietários chegavam a exibir a sua
impunidade, desprezando em absoluto as leis promulgadas, prevaricando
ostensivamente, semeando arrozais em terrenos qualificados como impróprios, apoiando e dando cobertura à insolência de subordinados nos plantios à revelia da lei ou nos confrontos com populares ou guardas rurais.
As críticas à «imoralidade» e «arbitrariedade» sucediam-se na imprensa
periódica, indiferentemente formuladas por progressistas ou regeneradores,
de acordo com as respectivas conveniências. Às farpas lançadas pel'O Tri23
700
Relatório Apresentado à Junta Geral do Districto de Coimbra na Sessão Ordinária de
1874 pelo Governador Civil, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1874, p. 20.
A cultura do arroz nos campos do Mondego
buno Popular, órgão regional do Partido Progressista, que em 3 de Junho
de 1882 denunciava que «Estão destruídas as searas do inimigo da situação, as dos indifferentes, e mesmo as de algum pobre amigo insignificante;
mas nas dos grandes pontentados ainda não se arrancou um fio de hera,
e persiste-se em afirmar-lhe que farão em paz as suas colheitas», correspondem as d'O Conimbricense, afecto ao Partido Regenerador, que, através da pena de Joaquim Martins de Carvalho, dava a conhecer a «imoralidade progressista» em artigos subordinados ao sugestivo título «A política
pelos arrozais».
Os abusos do poder, que constituíam a própria essência do caciquismo,
repercutiam-se, não apenas nas numerosas «entorses» às legislações reguladoras do cultivo do arroz, mas igualmente nos conteúdos das próprias
cartas de lei. O desconhecimento nosológico e etiológico das «febres intermitentes», agravado com os resultados contraditórios das estatísticas e depoimentos paroquiais ou de facultativos médicos, originava um vazio propício
à especulação que apenas beneficiava os grandes proprietários, a quem a proximidade dos centros de poder político proporcionava múltiplas ocasiões de
poderem fazer ouvir a sua voz.
Desconhecendo como combater esta enfermidade, o Governo hesitava nas
disposições a adoptar, contradizendo-se, e legislações de aplicação geral eram
restringidas ou anuladas ao nível local ou regional. A análise das principais
cartas de lei reguladoras da matéria dá conta destas ambiguidades legislativas, dos avanços e dos recuos, enfim, da falta de coerência e sistematização
das medidas governamentais.
Em 28 de Junho de 1852, numa portaria do Ministério dos Negócios do
Reino dirigida ao governador civil interino de Coimbra, punha-se em dúvida
a insalubridade dos arrozais e arguia-se aquele funcionário por ter mandado
destruir alguns. Dias mais tarde, em 5 de Julho, nova portaria, dirigida ao
mesmo governador civil, estabelecia os preceitos sobre o modo como deviam
proceder as autoridades administrativas na concessão de licenças para a cultura do arroz.
Na sequência do relatório sobre os arrozais, mandado efectuar por Portaria de 16 de Maio de 1859, seria promulgada a Carta de Lei de 1 de Julho
de 1867, ordenando, no n.° 1 do artigo 31.°, «a destruição immediata ou
pelos proprietários ou pelos agentes da auctoridade, mas por conta dos proprietários, de todos os arrozaes que forem cultivados sem licença ou sem processo pendente para ella», classificando-se ainda os arrozais de acordo com
a sua salubridade, ordenando-se que, no primeiro ano, «cesse a cultura dos
mais insalubres, e no segundo anno a dos restantes».
Eminentemente restritiva no seu conteúdo programático, a aplicação desta
carta de lei ficou aquém dos resultados visados. Apesar dos esforços despendidos no seu cumprimento, as infracções sucediam-se, denunciadas por
populares e pela imprensa periódica. Sintoma inequívoco da falta de cumprimento é a extensão das áreas ocupadas pelos arrozais que, longe de diminuírem, aumentavam.
701
Irene Maria Vaquinhas
As legislações seguintes repetem, de uma forma geral, as disposições anteriores, ora avançando no sentido de extinção dos arrozais, ora recuando,
impondo cláusulas restritivas às legislações promulgadas. Por Decreto de 23
de Novembro de 1871 determinava-se a imediata destruição dos arrozais que
se cultivavam em terrenos submetidos anteriormente a outras culturas; o
decreto imediato, de 29 de Janeiro de 1872, restringira a sua aplicação apenas aos arrozais cultivados sem licença. Estas disposições repetir-se-ão nas
cartas de lei seguintes, de 23 de Março e 5 de Abril de 1882, na sequência
da denúncia feita pelo bispo de Coimbra, D. Manuel Correia de Bastos Pina,
em 1881, contra a cultura do arroz nesta diocese.
Desta forma, a indecisão governativa pautaria todas as legislações sanitárias subordinadas a esta cultura. Como se os interesses em jogo determinassem vaivéns num e noutro sentido, as disposições governativas ora avançavam, ora recuavam, sem nunca sanarem um problema que se arrastará
durante anos, transitando de geração para geração. Só neste século, o estabelecimento definitivo da «teoria anofélica» veio a determinar novas legislações de conteúdo preventivo, e não repressivo, como as anteriores.
CONCLUSÃO
702
Desde a segunda metade do século xix, a economia agro-pastoril dos campos do Mondego entrou numa fase de grande transformação, subordinando-se progressivamente às leis do mercado. Facilitadas pelas obras de drenagem e regularização do caudal do rio Mondego, largas faixas de terrenos
assoreados, alagados ou mesmo cultivados serão reconvertidos à cultura do
arroz. Os preços e os valores da produção alcançados por esta gramínea,
mais elevados do que os obtidos pela cultura tradicional — o milho —, justificam, em grande parte, a extensão da orizicultura.
Porém, sendo uma cultura impositiva, «tirânica», como a qualificam
alguns autores, que alaga os solos e impede o florescimento de outras produções, o arroz é subsidiário, nesta área, da média e da grande propriedade,
assim como de uma sociedade suficientemente forte, em termos políticos,
para submeter vozes dissidentes e resistir ao afrontamento das comunidades rurais, que, em nome da saúde pública, exigiam a sua suspensão ou, pelo
menos, o cumprimento de legislações regulamentadoras do seu cultivo.
A sua extensão estava na origem de infecções palúdicas, cuja gravidade
dependia, em larga medida, das técnicas de cultivo utilizadas ou das condições geoclimáticas dos locais onde este cultivo se implantava.
De uma forma geral, a insalubridade era atenuada, ou mesmo inexistente,
em zonas onde se praticava a «orizicultura de água corrente», visto que a
renovação da água retirava aos pântanos a faculdade de multiplicarem os
insectos portadores do sezonismo; ou em zonas de relevo pronunciado, colocadas na intercessão de correntes de vento ou próximas de florestas que purificavam o ar, combatendo os «eflúvios» nocivos.
A cultura do arroz nos campos do Mondego
Os conflitos advinham desta contradição que os governos oitocentistas
nunca conseguiram solucionar, hesitando nas decisões a tomar e evitando,
a todo o custo, reprimir uma cultura na qual estavam envolvidos «influentes
locais», dos quais dependiam resultados eleitorais. Os demasiados interesses em jogo — económicos, sociais e políticos — foram, enfim, circunstâncias determinantes na transformação de parte de um espaço, sobrepondo-se
às suas consequências humanas. Mas não é este, afinal, um dos preços do
«progresso»?
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Um espaço em transformação: a extensão da