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Nanotecnologia:
considerações
interdisciplinares sobre
processos técnicos, sociais,
éticos e de investigação
NANOTECHNOLOGY: INTERDISCIPLINARY
CONSIDERATIONS ON TECHNICAL, SOCIAL,
ETHIC AND RESEARCH PROCESSES
Resumo O presente texto visa refletir sobre o caráter epistemológico e metodológico
do tema nanotecnologia, sociedade e ética, mediante a contribuição das disciplinas oferecidas no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, da
Universidade Federal de Santa Catarina. A leitura e a discussão de textos e livros de
expressivos estudiosos das ciências naturais e humanas, concomitantemente à participação de professores de distintas disciplinas, promovem a possibilidade de uma formulação interdisciplinar dessa temática, pondo em relevo o desafio de dinamizar a relação entre nanotecnologia, sociedade e ética, ao considerar as suas implicações legais,
políticas e sociais. Tal desafio é ainda inédito no Brasil e constitui a indagação central
de um estudo a ser aprofundado e repensado.
Palavras-chave TÉCNICA MODERNA – NANOTECNOLOGIA – NANOMÁQUINA –
ÉTICA.
Abstract The present text aims at eliciting the epistemological and methodological
character of reflections on nanotechnology, society and ethics through the contribution
of disciplines that integrate the Interdisciplinary Post-Graduation Program in
Human Sciences of the Federal University of Santa Catarina. The reading and
discussion of texts and books of expressive scholars of the human and natural
sciences, together with the participation of professors of several disciplines, allow an
interdisciplinary formulation of the theme in question. It highlights the challenge of
dynamizing the relationship between nanotechnology, society and ethics when
considering its legal, political and social implications. This challenge is still unpublished
in Brazil and is the central question that must be deepened and rethought.
Keywords MODERN TECHNOLOGY – NANOTECHNOLOGY – NANOMACHINE –
ETHICS.
Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003
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MARISE BORBA DA
SILVA
Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC)
[email protected]
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INTRODUÇÃO
N
os fins dos anos 60, na década de 70 e parte da de 80
do século passado, quando o Brasil era marcado por
profundas transformações no seu sistema de ensino e
influenciado por um novo modelo de crescimento e
modernização, é interessante recordar que, na formação do biólogo, sobretudo na do graduando em ciências biológicas, não eram tão latentes e graves as restrições éticas e legais ligadas às práticas de investigação,
por exemplo, os problemas em relação à ética ambientalista ou quanto a
questões tecnológicas. Prevalecia, na época, uma preocupação maior com
as questões ambientais associadas à preservação e à conservação do meio
ambiente, destinadas prioritariamente a estabelecer limites e visões de futuro para essa área, ao passo que a idéia de uma ética de vida global não
era ainda um campo de reflexão.
Havia, no ensino das disciplinas curriculares – zoologia, botânica,
anatomia, fisiologia, genética, embriologia, histologia, física, química etc.
–, a impregnação da ciência experimental, predominando a idéia de que o
mundo é observado com base no real, no observável e no controle prático
da natureza. Assim, era comum e necessária a vivência da metodologia de
investigação pautada na capacidade do pesquisador de problematizar a realidade, formular hipóteses sobre os problemas suscitados pela observação
dos fenômenos, planejar metodicamente e executar as investigações para
desvendar as causas ou os efeitos dos fenômenos, mensurar e analisar dados, estabelecer críticas e fechar o ciclo com suas conclusões.
O método positivista das ciências biológicas, sem entrar no mérito
das suas contribuições à ciência, sobretudo no que diz respeito a “fornecer explicações dignas, bem fundadas e sistemáticas para numerosos fenômenos”,1 contribuía para o pesquisador, em sua formação inicial, colocar-se diante de um mundo predeterminado, com suas características
físicas, biológicas e sociais a serem por ele decifradas. Esse mundo, no entanto, regido por leis externas e independentes da intervenção subjetiva
do pesquisador, dificultava, desde então, uma aproximação entre as ciências naturais e as humanas, e tal distanciamento entre elas aliado ao método positivista representavam limitações para a análise de novas questões.
A biologia, por exemplo, tinha por objeto estudar os seres vivos, a
relação entre eles e o meio ambiente, cuidando dos processos e mecanismos reguladores da vida e de seus fenômenos decorrentes. Os profissionais formados na área eram, assim, capacitados especificamente para atuar
nas questões que diziam respeito ao conhecimento da natureza. Não se
cogitava, portanto, ao estudar tal conhecimento, a hipótese de uma necessária interface entre ciências duras (as formais, como física, química e
1
NAGEL, 1979, p. 18.
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matemática, e as naturais clássicas) e as brandas
(as sociais e humanas), pois, de certa forma, essa
conexão tornaria opaca ou diluiria os limites próprios de cada ciência, podendo incorrer no aparecimento de questões de investigação inéditas,
com as quais não se saberia lidar fora da especialidade.
À história do desenvolvimento dessas ciências, contudo, veio somar-se, no final do século
passado e no início deste, a história das técnicas.
A essência da técnica moderna transformou de
tal modo a natureza em algo diferente do que era
anteriormente, introduzindo ações de magnitude
bastante diversas, com objetos e conseqüências
tão novos, que o marco da ética anterior não poderia mais abarcá-los.2 Hans Jonas sugere que,
pela enormidade de suas forças, a técnica moderna impõe à ética uma nova dimensão de responsabilidade,3 que não pode igualar-se à ética da
época de Kant, uma vez que essa não era pensada
para levar em conta as condições globais da vida
humana, do futuro remoto e, sobretudo, a própria existência da espécie.
Na ordem atual das coisas, o avanço das modernas técnicas de manipulação de material biológico humano, o fato de a vida e a civilização humana nada poderem dizer por si só, sem levar em
conta a artificialização4 da natureza pela cultura
(ou a desnaturalização do mundo), e a constatação de que a ciência não é infalível, nem livre de
custos e lucros, e seu mau uso depende de quem
a utiliza, apenas muito recentemente demandaram para os biólogos, entre outros profissionais
formados nas ciências duras, a necessidade de novas abordagens científicas naturais, sociais e humanas. É importante destacar que essa
artificialização da existência suscitou novos desafios éticos e culturais, que passaram a depender
da mobilização das ações individuais e coletivas.
2
JONAS, 1995.
Ibid.
Sobre isso, cf. BATESON (1997, p. 23). A autora observa que a
rotulação de determinados objetos e materiais, de comidas a fibras e
moléculas, como naturais ou não naturais gera um domínio desvirtuado
do natural. Considera a natureza como algo que não acaba ou é substituído e que, na verdade, tudo é natural, pois, se não o fosse, não existiria. De acordo com Bateson, “As coisas são assim: naturais”.
3
Assim, com a demarcação do campo da bioética,
no final da década de 70,5 surgiu essa nova disciplina como capaz de possibilitar a passagem para
uma melhor qualidade de vida. No Brasil, ela
consolidou-se nos anos 90. Desde então, foram
criadas diferentes associações (como a Sociedade
Brasileira de Bioética) e a bioética foi gradativamente incorporada nos currículos das graduações
e pós-graduações, em especial da área da saúde,
com um triunfo construído de forma acrítica em
seu processo de afirmação, lacuna essa repensada
atualmente por estudiosos, entre eles, alguns indicados neste estudo.
Embora tenha se processado verdadeira reviravolta no campo das ciências naturais, com a
introdução crescente das tecnologias modernas, a
possibilidade mediadora de dilemas éticos nas ciências biológicas demandou, em princípio, um tempo
mais demorado de adaptação às novas orientações bioéticas, no que se refere a reduzir os riscos
ambientais e, ao mesmo tempo, manter os benefícios tecnológicos. O próprio Código de Ética
do Profissional Biólogo6 não menciona o termo
bioética em seu texto, referindo-se apenas às normas éticas. A discussão sobre a que veio a bioética
é fundamental. Saber melhor sobre o surgimento
desse campo não tem tanto a preocupação de dar
uma resposta ou alternativa à crise própria do niilismo, mas corre o risco de ser uma das suas mais
completas expressões.7 Esse impasse pode representar uma ponte entre as ciências naturais e as
sociais e humanas, vislumbrando, com isso, a
possibilidade de integração entre seus diferentes
aspectos, o aprofundamento de temas relativos à
sobrevivência da humanidade, da dignidade e da
liberdade humanas e uma discussão interdisciplinar séria diante dos desafios dos avanços tecnológicos emergentes.
Os recentes avanços da técnica, como também alguns progressos científicos, têm gerado
fortes intervenções na vida humana, de forma
4
Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003
5
DINIZ & GUILHEM, 2002.
Conselho Federal de Biologia. Resolução n. 2, de 5/mar./02: “Aprova
o Código de Ética do Profissional Biólogo”.
7 <http://www.pucsp. br/fecultura/esposi01.htm>. Acesso em: 27/
out./03.
6
77
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que “os âmbitos da técnica e da natureza começam a se confundir”.8 Não obstante, reconhecendo a vida como um valor humano ou social, agora
numa condição em que se interpenetram técnica
e natureza, é alvo inédito dessa preocupação nada
menos que a inteira biosfera do planeta.9 Cresce
a necessidade de reflexão sobre o poder da técnica moderna e seus efeitos, na tentativa de prever
seus benefícios ou malefícios e, também, avaliar
suas novas possibilidades à luz de considerações
de ordem ética, que impliquem responsabilidade
e conhecimento do significado do destino do homem sob controle ou não da manipulação tecnológica.
Muitos pensadores vêm fazendo, há algum
tempo, contundentes críticas às mudanças ocorridas nos caminhos tomados pela ciência e pela
técnica, embora o façam fundamentados na experiência negativa de ambas. Seus recados, contudo, têm contribuído para o aniquilamento do discurso tecnocrata sobre a suposta neutralidade
científica e sobre o emprego da técnica e dos saberes como se não exigissem reflexão ou estudo
mais aprofundados. Os críticos clássicos da modernidade e da técnica, como Heidegger, Foucaut, Nietzsche, Jonas, Arendt e Freud, entre outros, demonstram que a técnica moderna é uma
criação do homem e que o seu poder sobre a natureza, como nenhum outro, mudou irreversivelmente os pressupostos da condição humana de
maneira tal que se torna imprescindível à mais entusiasmada confiança posta na técnica, em nossa
época, não se deslumbrar e perder de vista seu
sentido ético e sua relação com a natureza. Não
se trata de negar a técnica, e sim de repensar a relação que com ela mantemos.
Como expressão do poder humano e da
potência ordenadora da natureza, a técnica é um
fenômeno essencial dos tempos modernos, capaz
de suplantar, como bem o fez, as técnicas de outras épocas. A tecnologia, em geral apoiada nos
conhecimentos da física e da química, e por suas
ligações com a biologia e a comunicação, contri8
9
KESSELRING, 1992, p. 34.
JONAS, 1995.
78
buiu para produzir grande desenvolvimento nessas áreas, suscitando um espaço de reflexão que
não tem sido suficientemente aprofundado: a separação entre as ciências da natureza e as do homem. Essa cisão precisa ser superada, se quisermos efetivamente progredir nas noções especializadas por meio de um conhecimento unitário integrado, não apenas estudando de longe o
impacto das tecnologias, a exemplo das mais
avançadas, como a biotecnologia e a nanotecnologia, cada uma em seu reduto. É preciso considerá-las conjuntamente, debruçando-se sobre o
funcionamento dessas novidades na sociedade
(como no caso dos transgênicos), analisando a
reação dos diferentes meios sociais à sua chegada
e penetração, às transformações por elas produzidas e as condições de aceitação e de recusa verificadas nesse processo.
RESPONSABILIDADE ÉTICA E
INTERDISCIPLINARIDADE
Tomando como referência as considerações
feitas até aqui, parece mais evidente que a ciência
moderna assume outro aspecto quando concebida como algo mais humano, o que permite pensar que ela é humana, pois é nossa obra, e mesmo
o moderno pode se quebrar.10 Nesse sentido, importa às ciências sociais rever sua posição quanto
à distância que mantêm da biologia, fortalecendo-se, do mesmo modo, uma convergência
epistemológica entre as ciências da natureza e as
sociais e humanas. Tal aproximação torna-se uma
necessidade ao incremento e aparecimento de
objetos de pesquisa de interesse comum, a exemplo das criações nanotecnológicas, influenciando
a obrigatória mudança das ciências para além de
suas fronteiras e preocupações com valores herdados, que restringem, muitas vezes, o seu horizonte a um sentido predeterminado.
Os séculos XVII, XVIII e XIX foram marcados, sobretudo, pelo desenvolvimento das ciências naturais e, a partir do século XX, consagraram-se as conquistas científicas e tecnologias ex10
De acordo com a expressão de LATOUR (1994), aliás, de muita
propriedade.
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traordinárias, especialmente no campo da biotecnologia e da nanotecnologia. Essa última representa
uma das grandes inovações tecnológicas dos últimos tempos, uma nova manifestação da potência
humana em sua capacidade criadora, tanto de objetos quanto de condições de vida. Operando
numa escala equivalente à manipulação da matéria no nível molecular, as aplicações nanotecnológicas visam à criação de novos materiais, substâncias e produtos, com uma precisão de átomo a
átomo, esperando que essa revolução na natureza
da própria estrutura da matéria traga profundas
transformações também às relações dos homens
entre si e com o mundo, como jamais houve. Estamos a caminho de nos tornar menos dependentes da tecnologia na macroescala (na qual operamos normalmente e que não nos espanta tanto)
com o advento da tecnologia na micro e na nanoescala.
Considerando as raízes lingüísticas da palavra nanotecnologia, ela deriva do prefixo nano e é
uma medida de grandeza usada na ciência para
designar um bilionésimo. Assim, um nanômetro
(símbolo nm) é relativo à escala nanométrica.
Um milímetro, como sabemos, é muito pequeno, mas podemos enxergá-lo até numa régua. Já
um micrômetro (1 µm = 1 x 10-6) corresponde a
um milionésimo do metro e a um milésimo do
milímetro e, por sua vez, um nanômetro (1 nm =
1 x 10-9 m) equivale à bilionésima parte de um
metro, ou seja, a um milionésimo de milímetro
ou, ainda, a um milésimo de mícron.
O mundo nano, portanto, não se trata de
algo naturalmente assimilado por todos nós. É
possível afirmar, com segurança, que sobre essas
tecnologias tão pequenas, ínfimas, praticamente
o mundo sabe muito pouco. Elas não são construídas na escala comum em que percebemos o
mundo e, segundo a qual, desenvolvemos a visão
das coisas que nos rodeiam, nos dizem respeito
ou nos acostumamos a pensar a relação entre natureza e cultura. Convém lembrar, porém, que
esse novo surgiu com a modernidade, tal o avanço da física quântica e da biologia molecular, marcando nossas vidas, por inaugurar dimensões de
ver o mundo além daquelas de épocas anteriores,
Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003
ou seja, a biotecnológica, a nanotecnológica e a
informática (tecnologias de informação), avanços
científicos de importância ímpar para o homem e
para a sociedade.
Mas quais são as novas possibilidades que
despontam com a aplicação da biotecnologia e da
nanotecnologia? Que desafios parecem se apresentar? Quais dilemas éticos podem ser apontados na esteira de seu desenvolvimento? Seriam os
mesmos sentimentos negativos sobre nanotecnologias, sem fundamento preciso, como aconteceu com a preocupação pública a respeito dos
transgênicos?
As aplicações dessas tecnologias do pequeno à dimensão humana estão, certamente, num
estágio muito inicial. No entanto, evidências de
seu desenvolvimento apontam-nas como dominantes nas próximas décadas. Além disso, se a
possibilidade de manipular os átomos já é para o
cientista algo extraordinário, imaginemos o que
isso significa para os leigos, pois uma coisa é poder ver os átomos e outra, bem diferente, até há
pouco inimaginável, é poder agora manipulá-los!
É natural, portanto, que essa inovação venha envolta em visões especulativas, magias e críticas de
todo tipo, por exemplo, a manifestada por grupos de pressão ambientalistas em relação à biotecnologia e, com eco muito mais forte, à nanotecnologia. Outros argumentos ainda discutíveis,
tratando-se desse assunto, colocados pela mídia,
são de que as nanotecnologias poderão nos brindar com a imortalidade, possibilitando congelar o
corpo humano após a morte e utilizar robôs moleculares capazes de reverter os danos celulares
que a ocasionaram. Mas, por certo, a mais atônita
de todas essas notícias, suponho, é a de que essas
máquinas nanotecnológicas serão capazes de se
auto-reproduzirem incontrolavelmente, com a
perspectiva de destruir a atmosfera, aniquilar o
planeta e outras ameaças afins.11 Tal fenômeno é
conhecido como o fantasma da gray goo (popularmente denominada gosma, meleca ou praga
11
Cf. considerações feitas por REGIS (1997), que, com muita habilidade, apresenta as idéias de Eric Drexler a respeito desse fenômeno.
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cinzenta), que teria assombrado Bill Joy12 num de
seus famosos artigos para a revista Wired,13 em
2000.
Sobre as considerações de caráter alarmante
ou pessimista similares a essas, faço algumas ponderações. A nanotecnologia não é algo fictício ou
criado pela fértil imaginação humana. Todos os
organismos vivos possuem nanomáquinas extremamente complexas e especializadas; basta lembrarmos das células que se reproduzem, das enzimas que catalisam reações químicas e dos anticorpos que combatem doenças, entre outras estruturas. Greg Bear,14 em algumas de suas obras,
analisa o futuro das nanomáquinas, fazendo uma
analogia com um DNA motorizado, como se elas
fossem verdadeiros robôs em escala molecular, a
exemplo da estrutura do ácido desoxirribonucléico. A estrutura molecular do DNA, descoberta
por James Watson e Francis Cricky, é um modelo
vivo e precursor do caminho para a melhor compreensão do mecanismo de uma nanomáquina
(ou nanocriação), entendida numa dimensão ínfima, mas tão complexa quanto as nossas células
e o nosso organismo em sua dinâmica, com suas
reações moleculares num nível atômico, cuja precisão ainda não temos o domínio total.
Todo processo celular característico da vida
está associado a dois tipos de macromoléculas –
DNA e RNA – e com a maioria dos demais processos envolvendo proteínas. Se deixadas num
meio apropriado, essas macromoléculas têm a espantosa propriedade de construir e depois produzir cópias exatas – ou quase – de si mesmas. Dennett explica que as capacidades de auto-replicação,
mutação incessante, crescimento e reparo das estruturas dessas moléculas são atividades caracterizadas como nanotecnologia, pois tais operações
obedecem a um propósito e são sistemáticas,
com complexidade suficiente para realizar ações,
em vez de permanecer submetidas a efeitos. “Seus
12
Co-fundador da Sun Microsystems e um dos pioneiros da internet;
também tem responsabilidade direta na criação da linguagem Java.
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u8518.shtml>.
Acesso em: 15/out./03.
14 Greg Bear é autor dos livros Rainha dos Anjos (1990) e Marte se
Move (1993).
sistemas de controle não são apenas eficientes no
que fazem; eles são apropriadamente sensíveis às
variações, oportunistas, engenhosos e dissimulados. Podem ser enganados, mas apenas por novidades não encontradas regularmente por seus ancestrais.”15
Ora, é nessa engrenagem biológica (que
nada tem de mecanicista, de linear, como num
encadeamento determinista) que se baseou a engenharia genética, em suas manipulações dos genes. Modificar um gene ou substituí-lo por outro
significava modificar o DNA, base molecular da
vida, programação que controla as células do corpo.16 Tratava-se de uma intervenção humana na
ordem natural das coisas, tentando-se simplesmente “realizar feitos similares com intenção e
planejamento”.17
Por mais estranho e antinatural que pareça,
tal empreendimento é um fenômeno que acontece o tempo todo na natureza, por exemplo, quando um vírus reproduz a si mesmo e quando pensamos a diversidade de funções encontradas nas
enzimas, máquinas biocatalizadoras que são, em
sua grande totalidade, moléculas de natureza protéica. As enzimas podem quebrar determinadas
moléculas, formando moléculas menores, e modificar proteínas de modo a desenhar novas estruturas moleculares, processos de manufaturas
naturais no nível micro, bio e nanotecnológicos.
Além disso, as enzimas incrementam velocidade
a certas atividades biológicas dos seres vivos, que
seriam irrealizáveis sem a interferência delas, e
muitos dos processos vivos tornar-se-iam extremamente lentos. Essas poderosas estruturas vivas
vêm, há milhares de anos, evoluindo e atingindo
uma fabricação cada vez mais perfeita de seus
produtos químicos, alcançando, na maioria dos
casos, os limites da perfeição. E, desse modo, a
vida tem se mantido.
Imitando tais modelos, do DNA e das enzimas (entre outros, como os hormônios, o RNA e
os anticorpos), as nanotecnologias, inteligentemente construídas pelo homem, permitem me-
13
80
15
16
17
DENNETT, 1997, p. 26-27.
REGIS, 1997.
Ibid., p. 48.
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lhor compreender que, comparada à escala da
ação humana, a ação da natureza é de uma lentidão infinita.18 As enzimas e o DNA, espécie de
máquinas biológicas denominadas nanotecnologias
úmidas (por estarem vinculadas ao mundo líquido do ser vivo), assim como as nanotecnologias
chamadas secas (criadas pelo homem) e a possível
combinação entre ambas, representariam a capacidade de construir e recombinar produtos cada
vez menores, controlando, ainda, o ritmo de
reconstrução. São nanomáquinas. No caso das
duas últimas, além da miniaturização de dispositivos, seria expressivo o êxito econômico, por
exemplo, com a eliminação de grande parte dos
custos gerados nas fundições e soldaduras industriais.
É importante recordar que as propriedades
dos diferentes produtos manufaturados das sociedades industriais, resultantes até hoje, dependem
da forma com que os átomos são dispostos na
constituição dos materiais. Nos reportemos, então, ao que pode surgir com a fronteira do conhecimento, que se move muito rapidamente,
fundindo-se com áreas de futuro, como a nanotecnologia, a biotecnologia e os novos materiais.
Basta pensar que o rearranjo nanotecnológico
dos átomos de carbono na grafite de um lápis resulta na produção de um diamante; com os átomos de silício de grãos de areia pode-se fabricar
microchips de computador e, indo mais além, poder-se-ia pensar na recombinação dos átomos da
sujeira, da água e do ar poluídos, produzindo, por
exemplo, outras coisas menos problemáticas e
mais salutares. As possibilidades são virtualmente
infinitas para a realização das pesquisas na direção
da miniaturização, sobretudo em torno da fabricação das menores máquinas possíveis, do tamanho de moléculas, de sistemas eletrônicos nanoparticulados, nanopartículas, materiais nanoporosos, novas formas de arranjos de carbono, supramoléculas, sensores biológicos e outros
eventuais produtos com forte conteúdo nanotecnológico.
18 LÉVY (1998) oferece interessante e entusiasmada abordagem sobre
as técnicas de domínio da matéria (mecânicas, quentes e frias).
Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003
A definição da nanotecnologia reveste-se
de uma infinita multiplicidade, que possibilita a
sua aplicação a todos os setores. Falar em nanocomputadores, por exemplo, abre caminhos para
pensar concretamente em andróides, inteligência
e vida verdadeiramente artificiais, mais precisamente em controle planejado e reflexivo da natureza pelo conhecimento da íntima estrutura molecular. Constitui-se rapidamente uma rede inédita já concentrada no desenvolvimento de novos
materiais e de alternativas inovadoras, direcionadas ao conhecimento de ponta. Admite-se que a
nanotecnologia, reconhecido o limitado acesso a
essa informação, tem apresentado forte impacto
na área da saúde e uma verdadeira revolução na
forma de fabricação de uma infinidade de produtos.
Além do surgimento de novos computadores (menores e mais rápidos, baratos e poderosos), projeta-se o desenvolvimento de automóveis, componentes metálicos e não-metálicos,
equipamentos para uso aéreo e espacial, instrumentos de proteção do meio ambiente, aplicações no campo da energia, da óptica e da ciência
dos materiais. Também não esqueçamos que, na
medicina e na farmácia, o seu emprego já é amplamente favorável a avanços de todo tipo, além,
é claro, da produção de medicamentos potentes,
de creme anti-rugas, entre tantos outros produtos comerciais beneficiados. Nesse aspecto, importa destacar, particularmente, a proposição que
consta no documento de trabalho da Comissão
da Indústria, do Comércio Externo, da Investigação e da Energia do Parlamento Europeu,19 de
que seja introduzido o conceito de materiais estruturais e inteligentes em lugar de materiais inteligentes.
19 Trata-se de documento sobre a decisão do Parlamento Europeu e do
Conselho relativa ao Programa-Quadro Plurianual 2002-2006, da
Comunidade Européia, de ações em matéria de investigação, desenvolvimento tecnológico e demonstração, destinadas a contribuir para a
realização do Espaço Europeu da Investigação.<http://www.europarl.eu.int/meetdocs/committees/itre/20010827/434204pt.pdf>.
Acesso em: 24/dez./04.
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Manipulando átomo por átomo
Vale ainda mencionar que a eletrônica já
trazia em seu arsenal as idéias de tratar o muito
pequeno. A nanotecnologia é, portanto, perfeitamente compatível com as leis da física. Embora,
na década de 1930, Arthur Von Hippel tenha exposto idéias semelhantes, o termo nanotecnologia
foi proposto pela primeira vez em 1959, por Richard Feynman, destacado físico americano e
prêmio Nobel de Física, em 1965. Em seu artigo
“There’s Plenty of Room at the Bottom”,20 ele
deixa claro que nada, nas leis da física e da mecânica quântica, impede a existência de máquinas
do tamanho de moléculas. Basta manipular as
coisas, átomo por átomo! Em 1959, Feynman
chamava a atenção para o fato de que, na dimensão atômica, se está trabalhando com leis diferentes e, assim, devem ser esperadas coisas diversas:
novos tipos de efeitos e novas possibilidades. Os
estudos sobre a nanotecnologia, porém, reapareceram com mais vigor em junho de 1992, com o
físico K. Eric Drexler, do Instituto de Tecnologia
de Massachusetts (MIT, EUA), e esse assunto encontra-se especialmente abordado em sua obra
Engenharia da Criação, editada em 1987. Outro
nome notável, que não pode ser esquecido aqui,
é o do físico Richard W. Siegel, um dos pioneiros
mundiais na investigação, fabricação e promoção
dos materiais nanoestruturados.
De lá para cá, o processo de miniaturização
avançou muito, tornando-se indispensável considerar as escalas que fogem dos nossos padrões
sensoriais, ao sermos tomados de surpresa pelos
rumos que a nanotecnologia pode adotar. Teria
sido, quem sabe, bem menos problemático o advento do mundo microscópico, da biotecnologia,
dos transgênicos, se medidas de grandezas adequadas à sua compreensão tivessem sido mais popularizadas. Ainda é quase impossível ao leigo
orientar-se por uma dimensão equivalente à bilionésima parte do metro. Qualquer tecnologia situada fora das magnitudes com que estamos
acostumados em nossa vida diária, e com as quais
20
A tradução desse título, em inglês no original, é “Há muito espaço
no fundo”.
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nossos órgãos sensoriais são capazes de lidar, ainda assombra e apavora! Por que o pequeno demais ou o grande demais nos assustam tanto? O
que na verdade nos aterroriza?
Certamente, tais temores estão relacionados ao que desconhecemos. Por isso, é bastante
apropriada a consideração de Arthur C. Clarke,
numa de suas leis, de que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da mágica.21 Também merece destaque a recomendação
de Cylon Gonçalves da Silva, de que as pessoas,
desde a educação infantil, deveriam entrar em
contato com medidas de grandezas fundamentais
(peso, comprimento, tempo, volume, área, temperatura), inclusive as relativas a propriedades
atômicas.22 Tal iniciativa os americanos já vêm
tendo, segundo esse professor, para facilitar a
compreensão de fenômenos somente situados
mediante o conhecimento de grandezas muito
pequenas. Ainda de acordo com ele, a nanotecnologia é interessante para o Brasil porque está
ainda em desenvolvimento inicial e, sendo uma
atividade de ponta, exigirá das empresas brasileiras grande investimento em tais processos, de
modo a que não corram o risco de ficar defasadas
das demais.
As repercussões da nanotecnologia – questão ainda complicada e difícil de avaliar – avançam
em diversas frentes. Certamente se farão notar
em todas as áreas, sobretudo na indústria, na medicina,23 na farmacológica e no setor da informática, refletindo-se na vida cotidiana. Contudo,
ainda que a introdução dos materiais nanomanufaturados revolucione essas esferas, as maiores
implicações quanto ao desenvolvimento dessa
21 Cf. CLARKE (1977), em que o célebre autor de ficção científica
inglês estabelece leis e formula alguns julgamentos de valor sobre o
mundo tecnológico do futuro.
22 Essa consideração foi apresentada na palestra “A revolução nanotecnológica”, no auditório do Centro de Convenções da Federação das
Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), em Florianópolis (25/
out./03). Doutor em física pela Universidade da Califórnia, Berkeley,
Cylon Gonçalves da Silva é professor da Unicamp.
23 Por exemplo, na construção de dispositivos diminutos que, em
quantidade suficiente, poderiam percorrer o corpo humano, detectando precocemente doenças que ainda vitimam muitas pessoas, entre
elas, o câncer, ou na introdução de máquinas-enzimas específicas, que
depositariam no lugar apropriado a quantidade mínima e adequada de
medicamentos, potencializando os benefícios terapêuticos, sem afetar
o resto do organismo.
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tecnologia são esperadas no setor produtivo e,
conseqüentemente, na economia, partindo-se do
princípio de que será possível fabricar qualquer
tipo de coisa com precisão e qualidade insuperável a um custo acessível. Isso faz lembrar Ferry,24 que, muito provocativamente alerta para a
impossibilidade de ignorar os desafios lançados
pelas ciências duras, aqui já mencionadas. Tal debate instigado por esse filósofo ilustra o que se
pretende alcançar com este ensaio. Entretanto, se
a discussão não foi tão contundente com relação
à micro e à biotecnologia, não há de arrefecer
agora. Trata-se de colocar bem o dedo numa ferida criada pela pretensão humanista em defesa dos
interesses humanos e com sentido apenas no
contexto da vida humana, além de que é preciso
cicatrizá-la, para fazer voltar o interesse por outras coisas do mundo que requerem responsabilidade, afora o próprio homem. Exemplifico a responsabilidade pelas coisas da natureza, denominadas inanimadas – há que se ter com elas, também,
extremo zelo!
A nanotecnologia é uma realidade da qual
não se pode fugir e seus rebatimentos serão consideráveis. Imaginemos o significado, para a humanidade, de mexer na intimidade da matéria, de
manipular átomo por átomo, atividade essa sem
precedentes, num trabalho de nanoengenharia
que compreende a poderosa “habilidade de se
trabalhar no nível molecular, ou mesmo átomo
por átomo, para criar estruturas complexas com
controle de sua organização em dimensões de
bilionésimos do metro”.25 Imaginemos a concretização das potenciais realizações: síntese de materiais
e manufaturamento, produção de nanoeletrônica e
de nanotecnologia computacional, medicina e saúde, aeronáutica e exploração espacial, ambiente e
energia, biotecnologia e agricultura, segurança
nacional, ciência e educação, competitividade
econômica e outras tantas aplicações.
24
COMTE-SPONVILLE & FERRY, 1999, p. 67.
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), Edital 01/01. “Chamada de Convocação para Apresentação de
Propostas de Projetos Inter e Multidisciplinares Visando a Formação de
Redes Cooperativas de Pesquisa Básica e Aplicada em Nanociências e
Nanotecnologia”.
25
Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003
Se essas pretensões se realizarem, toda a visão da humanidade mudará. Essa nova materialidade representa verdadeiro desafio à idéia que temos de comportamento humano, comportamento moral, ética do trabalho26 e educação, abalando a estrutura fragmentária que tornou
irreconciliáveis a esfera natural, a artificialidade, o
biológico, o social, o histórico e o ambiental. Logo, o problema implícito nas predições feitas até
agora, e nas apostas já consolidadas por cientistas
pesquisadores das nanotecnologias e governos
interessados, não é somente traçar os avanços da
tecnologia. É também marcar outras conquistas e
transformações na sociedade por algum tempo,
assim como outras inovações anteriores representaram avanços sociais e assinalaram o tempo
de determinada sociedade. Daí a importância das
ciências sociais (e humanas) de estudar as conseqüências sociais, éticas e legais das nanotecnologias, oferecendo novas possibilidades para projetar pesquisas e conclusões. Afinal, haverá uma
notável diferença para a humanidade, ao passar a
conviver entre dois mundos, o macro e o nanoscópico. Surgirão, com as criações nanotecnológicas, fenômenos na dimensão da nanoescala, inexistentes no macromundo, a exemplo da peculiaridade atômica, da precisão humana necessária
com modos de ações finos, direcionados, precisos, rápidos, econômicos, qualitativos, discretos,
calculados e aplicados com mais exatidão, apontados por Lévy,27 materializando-se um viver sem
equivalente no mundo do grande.
Desde o início de suas pesquisas, e longe de
ser profético, Drexler falava do surgimento da
nanotecnologia.28 Foi, inclusive, avesso ao uso
26
Não é essa a ética que nos rege, uma ética fundamentada no determinismo do trabalho físico, como se estivesse o homem programado
para executá-lo? Sobre essa questão, cf. COMTE-SPONVILLE &
FERRY, 1999, p. 127-156. Cf. também ETGES (1996) e sua análise das
contradições resultantes das transformações da revolução tecnológica,
desemprego e o valor do trabalho reproduzido no período pós-industrial. São textos essenciais para imaginar uma era em que o trabalho
físico não mais será necessário.
27 LÉVY, 1998.
28 Bacharel em ciências interdisciplinares, mestre em aeronáutica e
astronáutica, e doutor em filosofia, no campo da nanotecnologia molecular, pelo Massachusetts Institute of Technology, teve o primeiro grau
de doutoramento no assunto concedido em todo o mundo. Cf.
REGIS, 1997.
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desse termo no sentido de “glamourizar a produção de besteiras em nanoescala”.29 Optou por outro novo termo, na tentativa de manter o significado distinto desse entendimento: nanotecnologia molecular. Diferentemente das reações ao
projeto genoma (e depois aos transgênicos), de
acordo com esse cientista, os propósitos de tais
iniciativas não eram “mudar a natureza humana,
mas alterar os resultados finais corrigindo os desvios da norma naturalmente induzidos, pensando
na possibilidade de o homem passar pelas próximas centenas de anos em perfeita saúde e juventude perene, o tempo todo imerso em condições
inauditas de abundância material”.30
O que aqui nos interessa é sobretudo a análise das questões econômicas e sociais feitas por
Drexler, em sua obra, considerada incomum, Engines of Cration,31 e expressivamente trabalhadas
por Regis e por Lampton,32 embora com direcionamentos diferenciados – o primeiro apresenta a
nanotecnologia de forma mais sedutora, ao passo
que o segundo parece brincar, falando sério, de
uma inevitável aventura nanotecnológica que teremos de viver, expondo conquistas que virão
com ela. A respeito do fenômeno da gosma cinzenta e seus efeitos de destruição do planeta,
Drexler é otimista ao considerar a possibilidade
de se construir sistemas confiáveis, como têm
acontecido ao longo da existência viva com as nanomá-quinas naturais – as enzimas e o DNA –,
preocupando-se, contudo, não somente com as
coisas vivas, incluindo animais e plantas, o planeta
e toda a biosfera. Entre os benefícios sociais por
elas gerados, aponta o que alguns clássicos pensadores já haviam vislumbrado acerca da libertação do trabalho físico escravizante,33 que seria
transferido às máquinas nanotecnológicas.
29
Ibid., p. 262.
Ibid., p. 144.
31 O livro Engines of Creation: the coming era of nanotechnology, de Eric
Drexler, encontra-se disponível para download no site do Foresight Institute: <http://www.foresight.org/EOC>, com permissão para cópia.
32 Cf. REGIS, 1997. A mesma idéia se encontra em LAMPTON, 1994.
33 Cf. ETGES, 1996. O autor lembra que o notável clássico Hegel indica,
em suas obras, a trajetória e os meios pelos quais a lógica do trabalho levará
os homens, reportando-a a um juízo de passagem, em termos hegelianos.
Lembra também que Marx analisa as modificações no trabalho humano
que constituem ruptura com o que se apresentaria como formas determinantes, situando-as lógica e historicamente em movimento.
30
84
De certa maneira, esse contexto não nos é
novo. Já temos a experiência com a introdução da
micro e da biotecnologia, em que a revolução no
mundo do trabalho gera desemprego, trabalhadores excedentes e crises, liquida e faz nascer novas profissões, novos trabalhadores e novas exigências de conhecimento e habilidade, com suas
conseqüentes necessidades. Como será com as
nanomáquinas ainda não é possível afirmar nada.
James Albus, pesquisador em robótica, afirma
que “Não há uma quantidade fixa de trabalho.
Mais trabalho pode ser criado”.34 Ele nos ajuda a
pensar que a própria inteligência artificial pode
criar novos empregos – o que já está acontecendo. Na sua visão de economista, Friedman,35
numa palestra sobre nanoconferência,36 considerou que enquanto a tecnologia aumentou a produtividade e criou mais riqueza, concedendo às
pessoas mais tempo livre, a nanotecnologia levaria isso ao extremo. Porém, ele não foi bem-sucedido ao discorrer acerca das conseqüências
econômicas e comerciais da nanotecnologia, tampouco sobre o que com ela mudaria para as pessoas, exatamente por não ter dominado o grau de
extensão da matéria, o que o impediu de romper
com o passado da tecnologia ao falar de uma
inovação sem precedentes.
Dois anos depois dessas colocações polêmicas de Friedman, Mac Gellivray,37 a convite do
mesmo patrocinador – NSG/MIT –, fez uma intervenção que ressoou como um raio irrompendo
entre os pessimismos tradicionais direcionados
ao novo, buscando indicar novos caminhos.
Concebeu mudanças profundas nos valores humanos e no próprio materialismo, que seria bastante afetado, uma vez que os bens materiais se
tornariam mais acessíveis em troca de quase nada.
Postulou que o dinheiro perderia sua reverência
como símbolo de status social e que o desempre34
REGIS, 1997, p. 169.
Ibid., p. 170. David M. Friedman, economista da universidade de
Chicago, é filho de Milton Friedman, prêmio Nobel de ciência econômica. Uma de suas obras mais conhecidas é The Machinery of Freedom:guide to a radical capitalism.
36 Essa palestra foi patrocinada pelo Nanotechnology Study Group
(NSG), do MIT, e proferida em jan./87.
37 Sobre essa questão, cf. REGIS, 1997, p. 176-178. Jeff MacGillivray é
doutor em física no MIT.
35
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go seria extremo, porém, não representaria um
problema, por não se ter de trabalhar para viver,
pois o trabalho mundial seria realizado pelas
nanomáquinas. Disse que haveria uma sociedade
do entretenimento, e não da informação, em que
as pessoas se dedicariam ao conhecimento, ao lazer e às atividades artísticas.
Quanto a Drexler, tido por muito tempo
como louco e alvo das mais variadas críticas, ele
conservou aparente calma, frieza e prudência
com relação ao assunto nanotecnologia,38 mesmo
diante dos seus bons prenúncios – final do envelhecimento, adiamento radical da morte, amplas
condições de abundância e riqueza, ausência de
fome e de outras necessidades – possíveis com a
construção dos primeiros montadores operacionais, que trabalhariam em nanoescala pela manipulação molecular sem fronteiras. Simultaneamente, porém, o cientista manifestava suas preocupações com essa mudança paradigmática, tendendo a pensar os riscos que poderiam surgir da
nova forma de lidar com a economia mundial,
quanto à produção de bens materiais sem limites
e com custo praticamente zero. Ele inquietava-se
também com o destino das grandes corporações,
o desemprego em massa diante da plena automatização, o sentido que as pessoas dariam às suas
vidas na falta do que fazer, uma vez liberadas do
trabalho físico, a possibilidade da saúde e da juventude eterna, e assim por diante. Não ignorava,
da mesma forma, a possível ameaça proveniente
do mau uso das criações nanotecnológicas por
pessoas de intenção duvidosa e sem propósitos
satisfatórios previstos para os indivíduos e a sociedade.
Drexler é convicto ao dizer que os perigos
físicos já são enfrentados pela sociedade há muito
tempo e considera muito mais sérios os riscos sociais e psicológicos, merecedores de maior atenção. Afinal, perigos físicos sempre existiram para
as pessoas, como o simples fato de viver, de submeter-se à velhice, às doenças e à morte, e, sobretudo, às guerras, ao crime, à carnificina e a todo
tipo de ações violentas e malévolas. Nesse caso,
os riscos sociais e psicológicos seriam mais fortes,
pelo fato de os indivíduos passarem a dominar
por completo a matéria, o que jamais fizeram.
Considero esse o patamar, em que se colocam as questões mais complexas, não só filosóficas, mas também sociológicas, antropológicas,
psicológicas e psicanalíticas, entre outras, de
modo a refletir sobre o quanto vale à pena concretizar a nanotecnologia, manipular o ínfimo da
matéria e dispor de uma natureza mais condescendente e maleável, na qual o próprio ser inanimado não mais ofereça resistência à ação humana, tornando-se uma continuidade dela. Também
acredito que seria um problema, para Clifford
Geertz,39 um dos mais originais e instigantes antropólogos de sua geração, a questão do tempo livre e o que fazer com ele, uma vez que muito trabalhou o impacto do conceito de cultura sobre a
concepção de homem, como também o crescimento da cultura e a evolução da mente. No cenário antropológico, como ficaria a redefinição
da cultura? Com que noções lidariam os antropólogos? Até mesmo os psicanalistas poderiam
apresentar indicativos de impasses, ao ter de cogitar a idéia de substituição total do homem pela
máquina, além de analisar as conseqüências da
ociosidade gerada e as possibilidades de aumentar
a recorrência à bebida alcoólica, às drogas e aos
quadros de loucura ou depressão, passando, talvez, a questionar a natureza da loucura, a ética ou
a liberdade, por força de novos comportamentos,
de novas opções morais e estéticas.
Como se pode notar, são inúmeras e complexas as implicações da nanotecnologia e da nanociência, sem nenhuma resposta precisa, nem a
certeza do que parece ser suficientemente razoável. Convém, enfim, fazer as mesmas perguntas
que as de Regis, ao final de seu livro: “Mesmo
com todos os seus aspectos desconhecidos, mesmo com todos os seus perigos e riscos, quem diria não à nano?”.40 E arrisco acrescentar, nessa
mesma direção: que poderá acontecer, se disser-
38
A contribuição de REGIS (1997) foi essencial, por demonstrar claramente o posicionamento de Drexler, ao relevar a nanotecnologia em
meio a um contexto de zombarias e acusações que teve de enfrentar.
Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003
39
40
GEERTZ, 1989.
REGIS, 1997, p. 288.
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mos não à era nano?, sobre qual parte recairia o
ônus dessa indiferença? Certamente restam ainda
outras perguntas. Duas delas mais se pode deixar
como subsídios para manter acesa a necessidade
de continuar tal discussão: o que faz determinadas tecnologias serem consideradas mais avançadas do que outras? O que faz uma moderna tecnologia parecer tão surpreendente ou fantástica?
A evolução na nanotecnologia ilustra que
passamos de uma visão molar41 do mundo para
uma visão molecular.42 Isso está acontecendo
com a biotecnologia (precisão gene por gene,
molécula por molécula) e com a nanotecnologia
(precisão átomo por átomo), campos ainda explorados por alguns poucos eleitos com maior
domínio das grandezas escalares ínfimas e fora do
nosso conhecimento comum. É preciso, então,
ingressar no mundo desse pequeno, no mínimo
sabendo um pouco mais de grandezas escalares,
de física e de matemática, pois trata-se agora de
algo ainda muito novo, para além da escala humana: o mundo da tecnologia molecular, da nanotecnologia.
Explorar os domínios no nanomundo assinala a possibilidade de manipular individualmente
os átomos e as moléculas de qualquer ser vivo, de
qualquer ser humano, de qualquer coisa. Fazer a
relação entre o macro e o nanomundo suscita
pensar uma nova concepção de universo, de matéria, de mundo, de sociedade, de homem, de natureza. Enfim, refletir sobre uma relação tecnológica de grande abrangência e repercussão sem
precedentes na história, não apenas formas e
comportamentos imprevisíveis e incontroláveis,
mas também de modo a interpretar quais deles
são naturais ou de origem técnica, se continuam
sempre naturais ou se são ambas as coisas, sem
nenhuma fronteira rígida.
As nanotecnologias, portanto, exigem, por
natureza, uma operação interdisciplinar, pois têm
o potencial de revolucionar amplamente vários
campos e trazem consigo maiores chances de êxito para dar um salto por cima das aparentes fronteiras que dividem as ciências e fazê-las consilientes,43 reuni-las num todo complexo segundo
princípios e terminologias idênticos, desde a física, a química, a matemática e as ciências naturais
até as mais reticentes ciências sociais e humanas,
procurando conjugar enfoques e tradições distantes
sobre a realidade contemporânea. Já em 1975, no
Colóquio da Unesco, acentuava-se que um dos
problemas mais importantes em todo o mundo residia no fato de as ciências sociais e humanas não
progredirem no mesmo ritmo das ciências naturais
e biológicas. Com efeito, durante muito tempo
aquelas ciências ignoraram, de modo geral, a necessidade de reajustar seus próprios sistemas de
valores em razão das estruturas da sociedade moderna, assistindo muito mais atônitas, do que as
ciências duras, os acontecimentos mais revolucionários da vida humana, por exemplo, o uso dos
transgênicos e das novas tecnologias reprodutivas
conceptivas. Isso limitou a capacidade delas de
influir mais incisivamente nos sistemas éticos, legais, políticos e sociais, e, conseqüentemente, na
direção e aplicação do desenvolvimento tecnológico.
Por sua vez, o potencial inovador das nanotecnologias demanda um esforço colaborativo de
estudiosos de diferentes disciplinas das ciências
formais, naturais, sociais e humanas, com coragem e determinação para pesquisar conjuntamente o que pode representar, para o destino do
homem, do universo, da cultura, da vida, enfim, o
controle absoluto da estrutura da matéria. E, somado a isso, uma maior consciência da dimensão
desse domínio incomparável em todos os tem-
41
43 Tal expressão, um pouco estranha, é do entomólogo americano
Edward O. WILSON (1999), que a utiliza originalmente para referirse à necessária unidade das ciências. A consiliência desempenha um
papel epistemológico importante, no sentido de ser um elemento dinâmico de referência a uma maior proximidade entre diferentes classes
de fenômenos explicados de maneira distinta, como uma tentativa de
dispor de um princípio integrador de todos os nossos conhecimentos.
Tecnologias com base na transformação da matéria em grande quantidade, manejando os objetos em massa; são maciças e quentes, usadas
nos últimos cem anos, em geral com alto custo energético, poluindo,
desperdiçando e esgotando energias.
42 Tecnologias ultrafinas que se afastam da massificação; são ultra-rápidas, bastante precisas e agem na escala ínfima, sobretudo, da micro, da
bio e da nanoestrutura, com dispêndio mínimo de energia, reduzindo
ao mínimo os desperdícios e as rejeições.
86
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pos, mostrando em que medida as nanotecnologias colocam um novo desafio ético, legal, político, social e econômico para o Brasil, analisando se
o País está ou não preparado para essas tecnologias emergentes. É importante não esquecer que,
embora não seja uma temática muito freqüente
no cotidiano, essa tecnologia está aí com todas as
suas implicações e complicações, e, por se tratar
de uma área em pleno avanço, a nanotecnologia
traz perguntas até há pouco impensáveis, cujas
respostas estão vindo paulatinamente ou ainda
inexistem.
Os problemas complexos não têm soluções
simples e, para essa inovação, poucas são as respostas satisfatórias que se pode dar à sociedade, a
fim de que as pessoas optem conscientemente
entre as várias possibilidades apresentadas pelas
nanotecnologias e opinem sobre os riscos e potencialidades a elas vinculados.
DISCUSSÕES E REFLEXÕES
METODOLÓGICAS E EPISTEMOLÓGICAS
A expectativa é de que a nanotecnologia terá, no cotidiano das pessoas, efeitos muito maiores do que os microeletrônicos, que possibilitaram o surgimento dos microcomputadores e revolucionaram as telecomunicações, e do que a
própria biotecnologia, processo tecnológico que
permite a utilização de material biológico e a manipulação genética, produzindo organismos geneticamente modificados e revolucionando o caráter genético da própria vida. Difícil é pensar
nessa temática sem lembrar, também, da relação
atual entre ciência, tecnologia e inovação, entre
nanotecnologia e biotecnologia, avaliando o significado de uma pesquisa que avança no setor tecnológico industrial e traz uma série de aplicações
anteriores e de produtos e melhoramentos resultantes de soluções tecnológicas no que diz respeito à inovação de materiais ou processos técnicos em geral e ao desenvolvimento de novos materiais44 com propriedades impossíveis de se obter de outra maneira. Não sabemos, no entanto,
com segurança até que ponto existe uma preocupação com a compatibilidade entre o uso dos no-
Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003
vos meios de controle técnico do homem e da sociedade e o devido respeito à pessoa humana.
Interessa aqui notar que, para tratar essa
problemática emergente, surgem de imediato
duas questões bastante imbricadas e que não dizem respeito apenas ao círculo dos cientistas e
eticistas: o advento das nanotecnologias repercutindo nas mais distintas áreas e a disposição de
abordá-las mediante trabalhos de pesquisa, vinculando todas as questões envolvidas no seu desenvolvimento. Discorrer sobre isso é, inegavelmente, procurar ao mesmo tempo possíveis interlocuções entre as ciências naturais e as humanas, de
forma a contornar as esquinas e sair do labirinto.
No contexto das incertezas éticas, vale ressaltar
que não é preciso um conhecimento rigoroso da
técnica, mas a compreensão da nova trajetória
humana, incluindo ao lado do bem-estar dos seres humanos o dos outros seres vivos e a mesma
preocupação com o meio ambiente e o cosmo.
De certa maneira, isso representa um rito de
passagem, ao transitar de uma condição a outra,
sem lugar e posição determinados. Ou, no dizer
de Abelés,45 entender que pesquisa das nanotecnologias está em mil lugares na compreensão de
um universo novo, destinada a alcançar uma nova
visão do homem e da sociedade no movimento
que nos leva para fora de nosso próprio mundo e
acaba por nos trazer para mais dentro dele, onde
contam nossas origens culturais e intelectuais.
Além disso, coloca-se uma condição de estranhamento, não porque necessariamente a antropologia sustente ser preciso estranhar o que já nos é
familiar, mas para ter clareza de que o objeto de
estudo não é simplesmente dado, nem necessariamente conhecido.46
Esse objeto é construído mediante relações
interativas sobre alguma coisa investigada, dela
constituindo-se o contexto total de conhecimen44 Trata-se dos denominados metamateriais, com propriedades e comportamentos específicos, fisicamente impossíveis a materiais naturais e
convencionais e que podem nem existir na natureza, projetados com
propriedades próprias para quebrar leis de natureza inconveniente.
Uma aplicação desses metamateriais é a construção de antenas para
telecomunicações e sinais de satélites altamente sensíveis, dadas as formas de ajuste, e também o aperfeiçoamento de lentes óticas.
45 ABÉLÈS, 2002.
46 DAMATTA, 1981, p. 159.
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tos, o princípio que governa a interdisciplinaridade. O estranhamento é também necessário para
permitir a revelação de algo que não é mais apenas nem da ordem do eu, nem da ordem exclusiva
do outro. É algo da ordem do sujeito do conhecimento, possibilitando também não perder a
confiança na objetividade, como propõe Cupani,
ao referir-se à necessária adequação do sujeito ao
objeto pesquisado.47 Essa adequação não representa, no entanto, a imposição total dos fatores
pessoais, da paixão pelo assunto e de interesses
individuais que possam gerar um caminho tendencioso aos resultados de uma pesquisa. Tampouco se deve recair num subjetivismo exacerbado ou negar a intervenção do sujeito.
O estudo de qualquer problemática vinculada à nanotecnologia insere-se, desde o início,
numa polêmica reconhecidamente forte, tanto
por suas conseqüências quanto pelo que afeta a
relação entre natureza e cultura. As implicações
sobretudo no campo do debate ético, legal e social são de tal relevância, que o estudo da intervenção das nanotecnologias representa, por si só,
um desafio que não apavora, mas atrai, por seu
ineditismo. O questionamento ético da nanotecnologia consiste numa problematização, que é o
seu fundamento, e conduz diretamente a discussões filosóficas e políticas contemporâneas, por
não ter surgido repentinamente, mas, ao contrário, se constituído em relação a uma série de desenvolvimentos tecnológicos precedentes.
O mesmo ocorreu com a aplicação da energia nuclear, a constatação da contaminação do
ambiente, as inovações e manipulações biotecnológicas e as modernas tecnologias de informação
e comunicação, que deram e ainda dão lugar à reflexão e a análises em distintas áreas de interesse
ético. Muitas delas pressupõem algum conhecimento das discussões em história, filosofia, antropologia, sociologia (já temos a filosofia da
ciência, a antropotecnologia e a sociobiologia em
ação), assim como dos processos legais. Sobre esses últimos, vale ressaltar alguns aspectos ligados
à questão nanotecnológica, fornecendo funda-
mentos para a avaliação da legislação vigente, dinamizada sobretudo com o uso dos transgênicos,
e para o futuro desenvolvimento de instrumentos
legais adequados e suas possíveis relações. Considerando tal iniciativa, cabe refletir que, na velocidade com que sopram os ventos tecnológicos, as
restrições a esse desenvolvimento são antes éticas, morais, legais e políticas do que técnicocientíficas e econômicas, no que se refere ao uso
da tecnologia moderna, podendo denominar-se,
com mais propriedade, de ética da tecnologia.48
Considerando as dimensões escalares das
nanotecnologias, os objetos nanométricos parecem compartilhar características próprias dos objetos grandes ou clássicos e dos moleculares, mas,
sobretudo, de novos atributos muito próprios.
Nesse mundo de construções híbridas, as investigações que não fogem dos nossos padrões sensoriais podem deparar-se com limites, pois muitos dados e resultados serão da ordem do pequeno e tratados formalmente como simples perturbações no macromundo. Entretanto, fora dele,
deve-se ter clareza de que essas perturbações poderão ser tão importantes quanto o fenômeno
principal.
Resta aqui definir as grandes questões envolvidas na avaliação das perspectivas científicas e
nas conseqüências políticas, legais, éticas e sociais
aportadas pelas nanotecnologias à sociedade brasileira. Existe a hipótese de que as nanotecnologias, em seu alto poder tecnológico e de transformação, não dispõem ainda de uma base mais firme para consolidar-se no País quanto a legislação
adequada, princípios éticos condizentes e avanços
sociais convenientes com sua receptividade. Comparando-se com a direção da inovação biotecnológica, torna-se importante conhecer o que o Brasil
deseja e como reage, para que possa se desenvolver
economicamente, com tecnologia de ponta, a
exemplo das nanotecnologias. E também pensar
se a nanotecnologia produz uma forma de conhecimento compatível com outras ciências, em qual
escala possibilita uma interdisciplinaridade e
quais as possibilidades das universidades, ou seja,
47
48
CUPANI, 1990.
88
GARCIA et al., 1996, p. 218.
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se elas estão ou não preparadas para uma cultura
interdisciplinar sobre essa inovação.
Nesse contexto, a abordagem das implicações das tecnologias mais avançadas deve, atualmente, apoiar-se numa reflexão metodológica e
epistemológica, na medida em que indique olhar
o mundo de forma antes não cogitada pelas ciências biológicas, nem sequer compartilhadas com a
física, a química e a matemática ou pelas ciências
sociais e humanas em geral. É possível buscar sistemas conceptuais e recorrer à diversidade metodológica, propondo novas formas de conceber o
mundo até então ignoradas, pois, ainda que as
teorias de distintas ciências não apresentem uma
estrutura comum, elas tampouco duram para
sempre, podendo ser descartadas por razões teóricas. Da mesma forma, segundo Feyerabend, “El
descubrimiento científico no está sujeito a método fijo”.49
Ainda no rumo do pensamento desse filósofo, é possível que, no estudo de seus objetos,
em virtude dos problemas enfrentados, as ciências
possam recorrer a um método ou a outro, não
querendo dizer, porém, que se esteja afirmando
que tudo vale na investigação científica. O estudo
de um problema de pesquisa não só depende de
algumas teorias determinadas, mas há problemas
que só podem ser resolvidos quando se produzem num contexto formado por um conjunto de
teorias, incomensuráveis ou compatíveis. Isso
permite dispor de uma coleção de métodos e de
um novo marco teórico, mediante o qual se possa
assumir a divergência metodológica entre teorias
rivais e transitar por distintas questões que não
dizem respeito somente a campos específicos.
O papel dos envolvidos nesse trabalho interdisciplinar suscita autores, como Tornquist e
Abelés,50 entre outros, a esclarecer questões éticas resultantes da transposição do pesquisador
para outra cultura, ressaltando a alteridade no
processo de pesquisa e ilustrando o espaço do
campo, construído pela interferência do referencial teórico do pesquisador e das circunstâncias
49
50
Cf. ECHEVERRÍA, 1999, p. 230.
TORNQUIST, 2001; e ABÉLÈS, 2002.
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advindas dos seus pares e colaboradores. Nesse
processo, não se pode ignorar que os atos de comunicação são marcados pela tensão de valores e
comportamentos representando contextos socioculturais diferenciados e que nem tudo pode ser
negociado. Tais categorias reportam à ética na
pesquisa, especialmente às negociações estabelecidas, por exemplo, entre pesquisadores e entre
pesquisador e pesquisado, podendo resultar num
tranqüilo ou tenso processo.
A tarefa exigirá exercitar uma visão interdisciplinar efetiva e desenvolver um olhar pluridimensional. No primeiro caso, já é bastante evidente que a complexidade crescente da realidade
social caminha no sentido contrário à compartimentalização do conhecimento. No segundo, o
trabalho em distintas áreas, por diversos profissionais, vem demonstrando há anos que a compreensão e as explicações unidimensionais da realidade são muito pouco fidedignas. Do mesmo
modo, não é mais possível desintegrar subjetividade e objetividade, na abordagem dos objetos de
estudo das ciências naturais, formais, sociais ou
humanas. Objetividade, subjetividade e intersubjetividade são condições para se compreender o
homem.
Recentemente, a filosofia passou a estudar
os problemas emergentes da mudança na forma
de pensar a ciência, a técnica, a ética e a política,
produzindo transformações também nos seus referenciais de pesquisas. A descrença no progresso
e a desconfiança dos rumos tomados pela ciência
motivaram igualmente nos antropólogos a percepção do indivíduo e a consideração desse como
sujeito da história. Coube-lhes os desafios da
convivência metodológica interdisciplinar na
investigação de novos temas que se oferecem ao
olhar antropológico, com ênfase à intersubjetividade, com o diálogo entre pesquisador e pesquisado, assumindo o lugar da mera descrição mecânica do homem, da sociedade e da cultura. Tal desafio exige não apenas para a antropologia, mas
também para a sociologia, desvendar os significados novos imbricados nas relações sociais e a certeza de que não é preciso manter uma distância
cultural e geográfica como forma de garantir o
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encontro com o outro, realidade materializada pelos avanços tecnológicos.
Da mesma forma, num olhar historiográfico, a negação das estruturas estáveis do ser, característica do pensamento moderno, orientando a
perspectiva dita pós-moderna, aponta para uma
multiplicidade de histórias, situando o homem
no contexto histórico-cultural do qual fazem
parte os indivíduos. Não se pode pensar no ato
comunicativo, implícito numa pesquisa de qualquer natureza, sem levar em conta a saga da busca
pelo outro (a exemplo do outro do nanomundo),
entendendo a presença da intersubjetividade
como co-construção, co-autoria, compartilhamento e como representação das grandezas e dos
limites de nossa espécie.
Eis um desafio com o qual, desde o século
passado, os estudiosos (psicólogos, sociólogos,
antropólogos, historiadores, psicanalistas, cientistas políticos, filósofos, engenheiros, biólogos,
físicos ou químicos) vêm lidando: a compreensão
da intersubjetividade, do diálogo possível, da
construção da identidade e dos laços sociais em
face de uma nova realidade, que se instaura quando a técnica passa a tornar-se uma questão de ética, de valores e de responsabilidade. Isso porque,
mais do que nunca, é necessário avaliar as ações
da perspectiva das conseqüências que possam vir
e integrar a sua dimensão na construção do saber
e das práticas sociais, em especial aquelas apoiadas em técnicas que potenciam de tal modo o agir
humano a conferir efeitos incalculáveis aos próprios agentes, pondo em risco a vida da espécie
humana ou as condições de vida na Terra, por
conta de ações irrefletidas e irresponsáveis, no
contexto da moderna tecnicização.
A história tem sido um lugar fundamental
para conhecer o ponto de vista de uma época,
para tomar dela significados, como disse Bertaux,
em Les Récits de Vie,51 pertinentes ao objeto de
investigação e assumindo o status de indicadores,
de modo a compreender os aspectos culturais e
os contextos políticos imbricados. Isso, sem esquecer que também entra em jogo, ao falar no de-
senvolvimento do homem tecnizado, o que esse
historiador assinala como as duas escalas temporais, referindo-se ao tempo histórico coletivo e ao
tempo biográfico, seguindo juntos, e as conexões
entre esses dois níveis da dimensão socioespacial
apontando a interação entre pólos que se interinfluenciam constante e mutuamente. Como lembra Braudel, criam-se fluxos de comunicação gerados nos intercâmbios levados a cabo entre os
países que intervêm na reconstrução da história
no mundo inteiro,52 sobretudo numa sociedade
de forte impregnação ocidental, que buscou por
séculos o seu próprio desenvolvimento e avançou
rumo a grandes descobertas na ciência e na tecnologia, em que a cientifização marcou época,
transformando as realidades sociais e chegando à
nanotecnologia. É fundamental destacar que história e sociologia são ciências humanas, sem razão de ser se não estudam e acompanham as sociedades em seu processo de desenvolvimento.
Apresentar os principais conflitos éticos,
legais, políticos e sociais advindos das nanotecnologias exige muitas reflexões e discussões, nas
mais diversas áreas do conhecimento, sobre essa
intervenção do ser humano no mundo (ou no
cosmo) do qual é parte integrante, recorrendo-se
a perspectivas de diferentes posições e à disponibilidade de documentos de tipos distintos, buscando decifrar o alcance da técnica moderna.
Nesse aspecto, a nanotecnologia e a (bio)ética,
em sua mais estreita relação, podem unir diferentes visões de ciência.
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CONSIDERAÇÕES ÚLTIMAS
Apesar dos vários aspectos positivos da nanotecnologia, cresce o debate sobre o que essa
inovação representa para o futuro das pessoas, da
sociedade e da natureza. A técnica e a ciência têm
proporcionado uma potência ao ser humano, até
um tempo atrás considerada pouco importante,
cujos fenômenos dela derivados, posso dizer, não
são mais peculiares apenas à maneira de estar no
mundo ocidental. Essa é uma questão epistemológica importante a ser considerada, uma vez que
BRAUDEL, 1989.
Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003
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é preciso pensar a simultaneidade do local e do
global propiciada pelas tecnologias mais recentes.
Criaram-se modernos e eficientes sistemas nacionais de ciência e tecnologia que incentivam a
pesquisa básica, mas, simultaneamente, facilitam
as soluções tecnológicas emergentes para assegurar, conseqüentemente, o desenvolvimento
socioeconômico de determinados países e sua relevância competitiva, atingindo muitos outros,
num circuito decorrente da expansão desse desenvolvimento.
A história recente da nanotecnologia e de
uma nanociência ainda pouco definida demonstra, nos países em desenvolvimento, o incentivo e
o financiamento das pesquisas científicas ou tecnológicas nesses campos, mediante planos e programas que estão sendo impulsionados. Por sua
vez, a sociedade tem se relacionado com a ciência
e com os seus avanços de forma muito mais rápida e integrada que em outros tempos, provocando discussões sobre as implicações éticas em
vários campos científicos. Mas não basta o consenso de que uma política técnico-científica deva
ser orientada para a inovação apenas como modo
de garantir competitividade nos mercados nacional e internacional. É necessário pensar os critérios que devem nortear tal política.
A universidade, nesse cenário, pode contribuir fundamentalmente às novas gerações na formação intelectual, científica e tecnológica e nas
discussões sobre as conseqüências éticas na mais
ampla dimensão. Outra ação de extrema importância consiste em fortalecer um imediato, inten-
so e empenhado diálogo entre as ciências da natureza, as engenharias e as ciências sociais e humanas.
Para não fugir dos entrelaçamentos que
busco fazer, ao abordar a necessidade de um trabalho interdisciplinar, concluo que as nanotecnologias colocam o homem diante de decisões, da
mesma forma como ele se via, nos primórdios de
sua existência, no que se refere a um fundamento
objetivo: a vida! A avaliação das significações éticas, das implicações tecnológicas, políticas e sociais subjacentes à introdução das nanotecnologias
no Brasil e de seus desafios na legislação, na política e na ética, bem como a análise de suas oportunidades e possibilidades requerem a superação
de obstáculos amparados no dogma da diferença
epistemológica e metodológica entre as ciências
humanas e as naturais.
Assim, manifestam-se promissoras oportunidades de realizar uma abordagem da técnica
moderna verdadeiramente interdisciplinar. De
início, é possível contar com áreas que já tenham
alguma contribuição a dar nesse sentido, uma vez
que oferecem análises sobre os efeitos das tecnologias na vida do homem, no que diz respeito aos
seus métodos e enfoques, e com base nos princípios de formação dos conceitos apropriados, que
permitam capturar o significado desejado, sem a
preocupação do que seja a natureza da teoria
científico-social e da teoria das ciências naturais,
em sua aparente irreconciliação.
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Dados da autora
Doutoranda do Programa de Doutorado
Interdisciplinar em Ciências Humanas (DICH) da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
e professora de curso de Graduação e
Pós-Graduação a Distância da
Universidade do Estado de Santa Catarina.
Recebimento artigo: 10/jul./03
Consultoria: 28/ago./03 a 12/set./03
Aprovado: 23/set./03
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Nanotecnologia: considerações interdisciplinares sobre