UMA MEMÓRIA APESAR DE SI MESMO:
João Antônio, Luís Martins e Noel Rosa
Clara Ávila Ornellas (UFMS-CPTL)
João Antônio (1937-1996) sempre deixou claro, em entrevistas ou mesmo por
meio de sua produção literária e jornalística, que a sua escrita alinha-se
prioritariamente à literatura de cunho crítico-social. Particularmente, autores como
Manuel Antônio de Almeida, Graciliano Ramos e Lima Barreto são referências
frequentes em seus enunciados para atestar as principais vinculações de sua escrita.
Ressalta-se que se trata de escritores atentos à realidade brasileira por via da
exposição de questões pungentes como problemas sociais, políticos e culturais.
Ocorre que João Antônio não foi o primeiro nem o último escritor
preocupado com os entraves sociais e humanos do país. Respeitadas as diferenças
de tempo, contextos históricos e espaço entre as produções dos autores a quem João
Antônio explicitamente se filiava, evidencia-se seu pertencimento a uma linhagem
estética de longa data, muito anterior ao seu próprio nascimento. Como ele adquiriu
conhecimento das literaturas brasileira e estrangeira por meio da leitura, salienta-se a
construção de uma memória adquirida que se manifestará explicitamente em sua
produção artística.
Quando João Antônio afirma escrever somente sobre aquilo que vivencia ou
observa proximamente isto pode ser comprovado, por exemplo, através de
acontecimentos relacionados à sua vida pessoal. Morador de subúrbio, paixão pela
sinuca, frequentador de prostíbulos e amante das ruas são fatores presentes em sua
literatura. Todavia, ele não apenas transpõe a realidade que observa, mas a trabalha
segundo seu repertório estético, elegendo determinados aspectos e personagens
sobre os quais busca representar a partir do que observa em sua vivência. Mas não
apenas isso, sua memória literária ascende prioritariamente no processo criativo.
Segundo o autor paulistano, não há sentido em representar literariamente
personagens grandiosos ou heroicos num país onde a miséria oprime milhões de
pessoas. Logo, essa perspectiva de ação social que funda seu pensamento estético
encontra-se em dissonância com produções escritas que mirem preocupações
diferentes, como a angústia vivenciada pelas classes economicamente favorecidas ou
daquelas distantes da realidade ao ponto de representar uma metrópole sem a
essência humana marginalizada pela miséria. Essas vertentes existem e João Antônio
não as ignorou, porém, buscou distanciar-se delas por não comportarem elementos
ativamente relacionados aos seus anseios literários.
A sua filiação a determinadas correntes estéticas de teor crítico-social
esclarece sobre os discursos que o constituem enquanto homem, escritor e leitor.
Dentre as imensas e variáveis possibilidades que a literatura oferece, muitas das quais
ele teve contato através de suas leituras, sua visão de mundo sedimenta-se numa
escolha muito clara de preferências temáticas subsidiadas em enfoques à realidade
social e humana de seres em conflito ou dissonantes com a sociedade em que vivem
ou desta para com aqueles. Dessa maneira, tanto o discurso em entrevistas quanto a
geração de sua criação estética fundamentam-se em argumentos amplamente
relacionadas ao grupo com o qual interagiu.
Se para Mikhail Bakhtin (1992) todo discurso, a não ser o adâmico, é
caracterizado pela presença, explícita ou implícita, de palavras do outro, não há como
descolar as concepções literárias de João Antônio dos discursos com os quais
estabeleceu reto diálogo, portanto, dos constituintes fundamentais responsáveis pela
sua relação com determinada vertente literária, de onde provém a memória discursiva
que ele reinterpreta e expõe a partir de seu ponto de vista em determinado tempo,
espaço e contexto histórico.
Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras
literárias), estão repletos de palavras dos outros,
caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela
assimilação, caracterizadas, também em graus variáveis, por
um emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros
introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que
assimilamos, reestruturamos, modificamos. (BAKHTIN, 1992:
314) [destaque de Bakhtin]
Se o sujeito escritor João Antônio constitui-se de um gama de discursos,
sejam aqueles dos autores com os quais compartilha preocupações sociais e estéticas
sejam aqueles que ele observa na constituição da vida urbana, não é diferente quando
ele assume o papel de leitor. O contexto privado da leitura não impede que
resplandeçam, em suas anotações e observações, manifestações de seu pensamento
estético e pessoal a compor a recepção de uma determinada obra.
Um elemento que diferencia as considerações de João Antônio sobre seu
pensamento estético, localizado por meio de sua marginália, incide em determinada
peculiaridade de sua oposição a Noturno da Lapa (1964), de Luís Martins. Na
pesquisa de pós-doutorado intitulada “Da escrita do leitor à voz do escritor: estudo
sobre marginalia de João Antônio” (UNESP-Assis/FAPESP, 2011) foram estudadas
três obras pertencentes à biblioteca pessoal do escritor paulistano, localizada em seu
acervo depositado no CEDAP/UNESP-Assis, a saber: São Bernardo (edição de 1964),
de Graciliano Ramos, Noturno da Lapa (1964), de Luís Martins e “O simples coronel
Madureira” (1967), de Marques Rebelo. O objetivo principal foi o de depreender
diferentes aspectos da recepção de leitura de João Antônio relacionados à admiração
(Graciliano Ramos), oposição (Luís Martins) e intervenção (Marques Rebelo). Em
termos da obra Noturno da Lapa, verificou-se a presença de anotações que atestam
um rejeição à obra em escala crescente, inclusive com a desistência da leitura no meio
da obra. Dentre os principais aspectos que norteiam essa manifestação negativa de
João Antônio estão a vinculação da obra a uma ideologia de classe dominante que
exclui da focalização ao boêmio bairro carioca Lapa a realidade da margem social,
linguagem rebuscada, utilização da literatura como meio de autopromoção, entre
outros.
Entre 1960 e 1968, houve uma explosão editorial em comemoração aos 400
anos de fundação da cidade do Rio de Janeiro. Neste contexto, a convite de Ênio
Silveira, proprietário da editora carioca Civilização Brasileira, Luís Martins elaborou
Noturno da Lapa (1964), vencedora do Prêmio Jabuti, na categoria biografia e/ou
memórias, de 1965. Nesta publicação, o autor narra parte de suas memórias de
juventude vividas na Lapa, entre os anos de 20 e 30. Trata-se de uma produção
singular ao empreender o hibridismo de gêneros – memória e ficção – possuindo ainda
características do jornalismo como o levantamento e a descrição de uma ambiência
específica, com destaque a perfis detalhados.
Uma das principais características desta obra é a condução dada pelo
narrador ao enfoque de suas lembranças: observa-se que ele prioriza destacar suas
relações de amizade como personalidades da cultura e do jornalismo brasileiro como
Di Cavalcanti, Rubem Braga, Francisco de Assis Barbosa, Jorge Amado, Manuel
Bandeira, Odylo Costa, Magalhães Jr. entre vários outros. Se no momento em que se
passam suas memórias, primeiras décadas do século XX, nem todas essas pessoas
eram reconhecidas, isso viria acontecer posteriormente. Ou seja, quando o escritor
publica essas memórias, em meados dos anos 60, seus referidos amigos já ocupavam
lugar de destaque na história da cultura e do jornalismo.
Tomando por base todo o lastro memorialístico de João Antônio de arte
literária fundamentada na visão crítica da sociedade, explica-se, em parte, sua rejeição
à obra de Luís Martins em razão da visão limitada deste escritor carioca que elege
preferencialmente o ponto de vista ideológico da classe dominante. Diante disso, não
há espaço para a representação da margem social que compunha o cenário humano
da Lapa das primeiras décadas do século XX. Configura-se, assim, uma clara
concepção de escrita à qual o autor paulistano não se filia e caracteriza-se uma das
vertentes literárias contra as quais combateu por não se voltar para preocupações de
cunho crítico-social. Esses são, em si, os argumentos iniciais que justificariam sua
posição amplamente negativa sobre Noturno da Lapa.
Ocorre que se observa um fator particular a justapor a negação do leitor em
relação à obra. Verifica-se no seu veemente ataque ao conteúdo do livro
posicionamentos de alguém que conheceu a Lapa na época da qual trata Luís Martins.
Como este pressuposto é inverossímil em razão do fato de que João Antônio nem era
nascido na época representada por Martins, torna-se interessante depreender como
se constitui essa acepção de memória não vivida pelo leitor que ascende em suas
anotações de leitura.
A contraposição entre o pensamento estético de João Antônio, suas
manifestações de leitor da obra de Luís Martins e suas produções direcionadas à Lapa
e a Noel Rosa revela que muito do seu apreço e admiração pelo músico fundamenta a
sua negação de Noturno da Lapa. Porém, semelhante constatação invalida, ao menos
em parte, a reiterada proposição do escritor paulistano de tratar esteticamente
somente sobre aquilo que vivenciou ou observou proximamente, como afirma
reiteradamente em suas entrevistas.
De teor contrário ao fazer literário restrito a quatro paredes, sem vínculo com
a vida e a realidade das ruas, João Antônio delimita-se como escritor dependente da
vivência próxima com os temas para compor suas produções. Ele chega ao ponto de
afirmar, por exemplo, não ser capaz de inventar nem mesmo o nome de um
personagem, ficando sempre na dependência daquilo que realmente observou: “A
literatura pode vir de uma vivência ou de uma observação das coisas. Eu só trabalho
com situações vivenciadas por mim, eu não tenho nenhuma facilidade de imaginação,
sequer para nomear personagens. Quando um personagem meu se chama Vitorino, é
Vitorino mesmo, porque era esse o nome dele” [...] (“João Antônio, corpo-a-corpo
numa casa de loucos”: 19 set 1976). Entretanto, semelhantes afirmações contradizem
a sua relação com a obra e a vida de Noel Rosa e até a intimidade do seu ato de
leitura de Noturno da Lapa.
No estudo realizado, verificou-se que as abordagens de Noel Rosa efetuadas
por João Antônio contêm claras interações com os personagens de sua ficção. E não
é diferente quando se trata de focalizar a Lapa no início do século XX. Se a
convivência com a música popular desde a sua infância assume papel representativo
em sua apreensão de mundo, esta também se mostra provocadora da construção de
uma memória pessoal, também eleita conforme sua preferência pessoal, segundo o
contexto onde nasceu e foi criado. Essa memória musical, entretanto, possui claras
correlações com a sua memória literária. Afinal, João Antônio afirma sua predileção
especial pelo músico carioca que representou em suas composições poéticas o lado
marginal dos subúrbios e de suas gentes com alto teor de crítica social. Registra-se,
assim, uma evidente afinação entre uma das suas predileções musicais com o seu
pensamento literário.
A paixão por Noel surge no início da adolescência; a paixão pela literatura
ocorre na mesma época. Junção de escolhas muito bem delimitadas pela arte voltada
para a realidade das classes subalternas, sua formação futura sedimenta-se num
padrão de memória explícita e delimitado já na juventude. Ainda que fosse posto em
condições
extremamente
diferentes,
sua
vinculação
artística
dificilmente
se
modificaria, pois já estava consolidada durante a adolescência e perpetuar-se-ia até a
morte. As suas referências estéticas não se modificaram; jamais abandonou a
formação discursiva que o fez ser social e humano a partir do seu lugar na sociedade
de seu tempo. E, nesse contexto, destaca-se claramente a importância de Noel Rosa
como eixo fundador do seu olhar para o mundo, dirigido prioritariamente a ambiências
semelhantes àquelas presentes nas composições do músico carioca.
Isto se comprova, por exemplo, ao se observar o excerto de uma de suas
entrevistas onde comenta sobre o livro que está escrevendo a respeito de Noel Rosa:
“[...] E vou lançar um livro que é um estudo sobre o Noel Rosa, o poeta da minha
predileção. Só que isso não é uma frase feita porque vai um pouco do meu sangue,
um pouco da minha pele, vai um pouco da minha alma, do meu corpo, porque eu amo
o Noel Rosa desde 1955” (ACUIO et al: 26 fev 1978).
Muito provavelmente esse amor desvelado pelo compositor desde a tenra
juventude o coloca num patamar dialógico de tamanha identificação que ele cria uma
memória adquirida que assume contornos de memória vivida. João Antônio não
apenas alinha-se aos pressupostos criativos de Noel Rosa como chega a sentir-se em
direta convivência com o compositor na boêmia da Lapa dos anos de 20 e 30. A
mesma Lapa da qual trata Luís Martins. Porém, apreensão diretamente inversa a que
ele observa em Noturno da Lapa.
Na obra memorialística do autor carioca ele não consegue depreender a
essência humana tão bem trabalhada nas músicas de Noel. Não há a prostituta sofrida
e muito menos o malandro se virando para sobreviver. Há, entretanto, um autor que
relembra o grupo de amigos que frequentou a ambiência lapeana com fins
estritamente pessoais, sem preocupação com a realidade humana adversa que tão
caracteristicamente compunha o bairro boêmio. Então, diante de um discurso
vinculado a visões discrepantes ao seu ponto de vista, instaura-se seu diálogo de
eminente negação à abordagem de Luís Martins. Para João Antônio leitor, a Lapa de
Martins não existe; somente há a Lapa representada por Noel Rosa porque, esta sim,
compõe-se por meio da apreensão da realidade do bairro de forma humana e poética.
João Antônio, ao realizar seu estudo crítico (Noel Rosa, 1982), registra a
importância da Lapa para Noel Rosa de forma dinâmica, construindo seu personagem
não apenas envolvido com a ambiência lapeana, mas integrado ao universo da
malandragem. Dessa maneira, observa-se em seus escritos a respeito do compositor
uma malha discursiva cujos fios se unem à sua visão de arte comprometida com a
realidade da margem social de maneira semelhante à que concebe o compositor
carioca.
Distantes historicamente, porém unidos temática e socialmente, consolidamse numa visão única ao se ter em foco Noturno da Lapa. João Antônio leitor revela
muito do escritor e o escritor revela-se em muito noelino. Não há como negar sua
formação discursiva atuando na indagação frequente de “Cadê a Lapa?” dirigida a
Martins, conforme registrado em sua marginália. Para Bakhtin, não há como entender
manifestações verbais de maneira hábil sem se considerar os discursos que
constituem o fundo ou até mesmo a superfície de um enunciado. E, no presente caso,
as anotações de João Antônio postas em correlação com o seu ponto de vista acerca
de Noel Rosa configuram e legitimam sua oposição à obra de Martins.
O discurso citado e o contexto narrativo unem-se por relações
dinâmicas complexas e tensas. É impossível compreender
qualquer forma de discurso citado sem levá-las em conta [...] O
discurso citado e o contexto de transmissão são somente os
termos de uma inter-relação dinâmica. Essa dinâmica, por sua
vez, reflete a dinâmica da inter-relação social dos indivíduos na
comunicação verbal. (BAKHTIN, 1992:148)
As pretensas interações entre o discurso citado (aqueles que compõem o
sujeito leitor João Antônio) e o discurso citante (explícita ou implicitamente) são
manifestadas de maneira diferenciada ao se focalizar o objeto marginália. Contudo, o
dinamismo apontado por Bakhtin ascende de maneira importante na constituição do
ato de leitura de João Antônio. A partir da imensidade de fios dialógicos donde se
origina sua recepção de leitura entremostram-se contextos diferentes (Noel/João
Antônio) manifestando e consolidando a oposição vertical do leitor/escritor para com
Noturno da Lapa. Tanto a obra de Martins não contempla a realidade marginal e
humana quanto contradiz a própria essência do espaço lapeano.
Numa abordagem geral, salienta-se a posição singular do leitor/escritor João
Antônio em relação à obra de Luís Martins. Apesar de proferir em suas entrevistas
sobre a sua incapacidade de criar fora do contexto do que observa ou vivencia, sua
reação amplamente negativa dirigida a Noturno da Lapa revela elementos que
colocam em xeque seus posicionamentos. Por outro lado, o escritor nunca se eximiu
de citar explicitamente a sua linhagem literária, as fontes que o sustentou no
erguimento de sua própria literatura. Ele até mesmo recomendava para quem
quisesse ser escritor ler muito, principalmente os clássicos brasileiros e da literatura
universal. Logo, tinha consciência da necessidade de se formar e de se informar sobre
os predecessores e também de se ater a determinada vertente literária. Recorrer à
construção de uma memória literária para elaborar sua própria memória (suas obras e
o papel social que assumiu) consolida-se como evidente em sua concepção artística.
Porém, quando afirma reiterada e insistentemente que só escreve a partir da
vivência e da observação próxima, o escritor releva apenas a importância da memória
vivida. Tanto que critica a criação literária entre quatro paredes, a denominada
literatura de gabinete.
Da maneira como ele se posiciona, tem-se a impressão de que somente fora
de quatro paredes há possibilidade de criação. Chega a relacionar o trabalho em
contexto privado como beletrístico e doutoral, com alta carga pejorativa. Contudo, ao
se desvencilhar algumas de suas anotações de leitura e até mesmo sua produção
estética, percebe-se que sua fala para a imprensa não pode ser considerada ao pé da
letra. A razão do porque ele prefere omitir seu trabalho “no gabinete” é bastante
estranha e parece tratar-se mais de uma maneira de vincular sua produção como
oriunda estritamente do “corpo-a-corpo com a vida” – expressão cara para ele como
pode ser verificado em entrevistas e textos de sua lavra. Faz lembrar, por exemplo,
sua afirmação de que Noel Rosa compunha em qualquer lugar, como em mesas de
bar, portanto, não foi um compositor “livresco”, para utilizar o exato termo que
empregou a esse respeito. É interessante verificar que sua afirmação se desdiz por via
de seu próprio discurso quando, ao tratar do trabalho que teve para compor o estudo
crítico sobre o compositor ele afirma da importância de bibliotecas e museus para
estudos históricos, ou seja, de instâncias consideradas “livrescas”.
Percorrendo os elementos dialógicos que interagem entre sua escrita,
textos sobre Noel Rosa e anotações em Noturno da Lapa, verifica-se que, graças ao
seu trabalho com referências históricas e literárias, ele compôs uma memória
adquirida que lhe permite contestar a escrita de Luís Martins em grau de paridade. O
que, ao mesmo tempo, registra seu posicionamento claro quanto à preferência pela
escrita vinculada à crítica social. Não fosse sua identificação com o Poeta da Vila,
dificilmente localizaria as falhas composicionais e temáticas de Martins. Portanto, não
fosse seu propósito de imergir nas características históricas de um tempo que não
viveu pessoalmente (uma tarefa em muito “livresca”) não se criaria a “nostalgia de uma
Lapa que nem conheci”, conforme pode ser verificado em seu texto “Última memória
da Lapa” (Pasquim, out. 1974). Ao assim dizer, atesta-se como o parâmetro de uma
memória anterior confere argumentos para discutir sua atualidade. E aqui talvez se
acuse certa relatividade em seu conceito de realidade, uma vez que, para refletir sobre
o mundo de seu tempo, ele elege como referências elementos já não existentes em
sua sociedade.
Ao mesmo tempo em que a escrita do autor paulistano demonstra, é inegável,
problemas sociais prementes de solução para a constituição de uma sociedade mais
humana, ele deixa entrever que essa condição de melhorar o homem deve considerar
um tempo passado como parâmetro de referência. Já diz Bakhtin que, para se
entender as relações que permeiam uma sociedade, é necessário considerar os
contextos histórico e social, os discursos que a fundamentam. E isso fez com justeza
João Antônio leitor/escritor, embora no contexto da imprensa prefira se prender
somente à importância da realidade próxima. Exime-se de atestar a relevância da
memória adquirida na construção da memória vivida. Ele não seria leitor e escritor sem
as condicionantes discursivas que precederam à sua concepção de mundo e de
estética.
Para Bakhtin, todo discurso, incluem-se aqui as anotações de um leitor,
reverbera constituintes discursivos do pertencimento de um sujeito a uma dada esfera
discursiva-social. Ainda que nada se saiba sobre a sua pessoalidade, a seu ato de
enunciar deixa entrever as matrizes que o constituem enquanto ser no mundo.
[...] todo enunciado tem uma espécie de autor, que no próprio
enunciado escutamos como o seu criador. Podemos não saber
absolutamente nada sobre o autor real, como ele existe fora do
enunciado. As formas dessa autoria real podem ser muito
diversas. Uma obra qualquer pode ser produto de um trabalho
de equipe, pode ser interpretado como trabalho hereditário de
várias gerações, etc..., e apesar de tudo, sentimos nela uma
vontade criativa única, uma posição determinada diante da qual
se pode reagir dialogicamente. A reação dialógica personifica
toda enunciação à qual ela reage. (BAKHTIN, 1981:159)
Porém, avançando a perspectiva do pensador russo, quando se conhece
características que compõem um sujeito, evidenciam-se de forma mais proeminente
os laços que o prendem a determinada vertente discursiva. As reações contrárias de
um leitor sempre terão em vista suas memórias pessoais e sociais em embate contra
qualquer discurso que contradiz suas diretrizes essenciais e do grupo ao qual
pertence. O sentido oposto se localiza quando o discurso observado coaduna-se com
o ponto de vista do leitor. Neste caso, então, se verificam coincidências de identidades
que podem confirmar ou avançar o seu universo de reflexão, seja explicitamente, a
partir do uso da palavra para confirmar posicionamentos inter-relacionados ou
implicitamente, quando o silêncio, configurado na ausência de posicionamentos
verbais, registra aquiescência por parte do sujeito – como no caso de marginália
sedimentada apenas em sublinhas ou traços verticais, aspectos verificados na
recepção de leitura de João Antônio presentes nas outras obras que compuseram a
pesquisa.
Os fios dialógicos que sustentam os posicionamentos de João Antônio acerca
de Noturno da Lapa demonstram-se afeitos e determinados ao seu ponto de vista de
leitor e de escritor, segmentados, em grande medida, pelo entrecruzamento de suas
memórias vivida e adquirida. Perpassa-se, assim, o visível e representativo lugar que
Noel Rosa ocupa em sua visão da Lapa. A partir disso, é possível, finalmente,
encontrar a resposta à sua indagação de leitor “Cadê a Lapa?” feita a Luís Martins.
Para ele, leitor, a Lapa está em Noel Rosa e Noel Rosa está na Lapa. A memória
adquirida, no caso da leitura de Noturno da Lapa, assume patamar imprescindível para
se compreender a memória vívida de sua marginália.
REFERÊNCIAS
ACUIO, et al. Apresentamos João Antônio, escritor, jornalista, e, acima de tudo, um
pingente urbano. Diário Popular, São Paulo, p.2, 26 fev. 1978.
ANTÔNIO, João. Última Memória da Lapa. Pasquim, nº 271, Rio de Janeiro, out. 1974.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. do francês de Maria Ermantina
G.Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro,
Forense- Universitária, 1981.
“JOÃO Antônio, corpo-a-corpo numa casa de loucos”. LIG, Niterói, 19 set. 1976.
MARTINS, Luís. Noturno da Lapa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. (Acervo
João Antônio)
ROSA, Noel. Noel Rosa / Seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e
crítico e exercícios por João Antônio Ferreira Filho. São Paulo: Abril Educação, 1982.
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UMA MEMÓRIA APESAR DE SI MESMO: João Antônio, Luís Martins