O INIMIGO SEM ROSTO A par&r de meados do séc. XIX, o recurso a “campos minados” cons&tuiu um meio de combate comum em quase todos os conflitos entre os povos. Mais de 400 milhões de minas foram implantadas desde o início da II Guerra Mundial, afectando várias regiões. A cada 20 minutos, em algum lugar do mundo, explode uma mina terrestre e fere pelo menos uma pessoa. As minas têm um efeito devastador no moral dos combatentes, caracterizam-‐se por serem o “inimigo invisível ou o inimigo sem rosto”, não dis&nguem entre opositores armados e civis inocentes. Quando não matam, provocam a agonia dos a&ngidos... são concebidas essencialmente para limitar a acção e o avanço do inimigo. Foram as minas que fizeram abortar a “missão” de que trata o presente texto. Segundo alguns estudiosos, em Maio de 1973, em Guidaje1 (Guiné), as Forças Armadas Portuguesas foram subme&das à prova mais dura dos três teatros de operações da guerra colonial. Guidaje chegou a estar isolada durante alguns dias devido ao uso intenso, prolongado e sem restrições, por parte do PAIGC2, de armamento pesado de longo alcance e elevado poder de fogo, designadamente foguetões de 122 mm e morteiros. Esta ac&vidade do PAIGC alcançou valores que são considerados os mais altos de sempre desde o início da guerra – 220 acções durante o mês, o mesmo sucedendo em relação a baixas causadas às tropas portuguesas – 63 mortos e 269 feridos3 . O Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4 (DFE 4), que &ve a honra de comandar, em missão de serviço na Guiné (1973/74), foi protagonista conjuntamente com elementos do DFE 1, em Maio de 1973, de uma acção (sem apoio aéreo e sem possibilidade de evacuação) de protecção próxima a uma coluna de reabastecimento do Exército a Guidaje e cujo desfecho pretendo par&lhar com os meus camaradas de curso. Para o efeito, passo a transcrever o texto, em tempos, solicitado por um nosso camarada, que também viveu a guerra naquele teatro de operações, des&nado a divulgação num “blog”: Caro amigo Respondendo ao teu e-‐mail… A minha passagem pela Guiné (73/74), comandando o DFE 4, foi uma etapa da minha carreira militar bastante marcante e indelével. As diversas situações de perigo por que passámos jamais serão esquecidas, muito embora compreenda que quem as protagonizou, as tenha vivido de modos muito diferentes, uma vez que são emoções que variam conforme a sensibilidade de cada um. 1 Pequena povoação no norte da Guiné junto à fronteira com o Senegal 2 PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde 3 Guerra Colonial – Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes Segundo a opinião de conceituados especialistas militares, a guerra levada a cabo na Guiné, pelas suas caracterís&cas, foi a mais diecil e perigosa que Portugal enfrentou em África. Nós, os que escolhemos por vocação a carreira das armas, não nos podemos queixar face aos milhares de cidadãos que par&ram compulsivamente para combater nas ex-‐colónias. Reflec&ndo sobre a minha vida militar e pelos diversos cargos que ao longo da mesma fui chamado a desempenhar, confesso que o Comando do DFE 4 foi, de longe, o que mais me marcou. Sen&, de modo inequívoco, o peso da responsabilidade nas decisões a tomar, e a noção das consequências que estas poderiam ter sobre a vida dos comandados. Sen& a aproximação, que presumo única, entre comandante e subordinado, alicerçada na camaradagem e na solidariedade; todos sofrem as mesmas carências e estão sujeitos a idên&co esforço esico perante o perigo comum. Ao chefe acresce a decisão. A acção responsável de comando, neste contexto, resulta naturalmente mais eficaz, melhor compreendida e respeitada pelos subordinados. Sobre o que me solicitas, vou limitar-‐me a transcrever a parte do livro “Guiné 1968 e 1973” (pág. 82/84) do Cor. Nuno Mira Vaz com a qual me iden&fico, já que &ve intervenção directa na tenta&va do rompimento do cerco a Guidaje: “ … Na manhã de 22 de Maio par&u de Binta para Guidaje nova coluna logís&ca, com a missão de, na volta, evacuar os militares e os civis feridos que ali &nham vindo a acumular-‐se por impossibilidade de evacuação. O deslocamento dos feridos parecia finalmente possível, face aos resultados alcançados no decurso da operação Ame&sta Real, a qual, de acordo com prognós&cos generalizados, teria provocado uma grande desorientação nas fileiras do inimigo. Conforme planeado, a CCP 121 4 encarregava-‐se da protecção próxima, a oeste da estrada Binta – Guidaje, cabendo a um Destacamento Misto de Fuzileiros (quarenta e dois elementos dos DFE´s nº 1 e nº 4), sob o comando do 1º Tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus5, a protecção imediata, a leste. A responsabilidade pela picagem do troço de i&nerário entre Binta e Genicó foi atribuída a um grupo de combate da Companhia de Caçadores nº 14, da guarnição de Farim; daí para a frente, a missão ficaria a cargo de um pelotão reduzido (treze elementos) da Companhia de Caçadores nº 3. O deslocamento iniciou-‐se pelas sete horas e trinta minutos, tendo-‐se desenrolado sem incidentes até Genicó, embora em marcha lenta, jus&ficada pela necessidade de se proceder a uma picagem cuidadosa do i&nerário. Além disso, foi também necessário u&lizar um desvio com cerca de mil metros de extensão, para contornar o local onde se encontravam completamente destruídas e calcinadas várias viaturas, testemunhas silenciosas da violência registada em anteriores tenta&vas de reabastecimento a Guidaje. Transposto o desvio e percorridos menos de cem metros sobre o i&nerário normal, um elemento da Companhia de Caçadores nº 3 accionou uma mina an&-‐pessoal, reforçada com uma mina an&-‐carro, que lhe causou morte imediata. A relutância com que os picadores vinham procedendo à picagem do i&nerário, e que tem de se compreender face à 4 Companhia de Caçadores Páraquedistas nº 121 5 Comandante do DFE 4 sucessão de acontecimentos dramá&cos ocorridos nas úl&mas semanas, tornou-‐se mais viva, forçando o 1º Tenente Alves de Jesus e o Alferes Gomes Rebelo, da Companhia nº 3, a deslocarem-‐se para a testa da coluna, onde podiam acompanhar de perto a picagem – um dos trabalhos mais perigosos e desgastantes em qualquer acção terrestre. Dez metros adiante, foi accionada outra mina. A explosão provocou a morte do picador, tendo além disso ferido com gravidade dois elementos e projectado pelo ar, embora sem consequências pessoais, ambos os oficiais e o radiotele-‐ grafista da coluna. Informado, em Guidaje, da ocorrência, o Tenente-‐coronel Correia de Campos6 deu instruções para que se retomasse a progressão logo que es&vesse concluída a assistência aos feridos, se possível com maior celeridade e de preferência u&lizando um desvio, uma vez que o i&nerário normal aparentava estar abundantemente minado. Porém, no decurso do tratamento dos feridos, deflagrou nova mina, desta feita colocada fora do i&nerário, que provocou mais um ferido muito grave. Durante o atendimento a este ferido, foi detectada mais uma mina na orla do i&nerário, a qual não foi levantada por não exis&r na coluna pessoal habilitado para o efeito. Atendendo ao desgaste sofrido pela coluna, foi decidido reforçá-‐la com um grupo de combate que saíu de Genicó e se lhe juntou cerca das 12H00. A disposição geral era de grande desalento, sendo especialmente preocupante a situação de um dos feridos, o qual perdia muito sangue por ter a perna esquerda decepada um pouco abaixo do joelho, além de ferimentos nos braços e no olho direito. Tendo reavaliado a situação, o comandante do COP 37 deu ordem para abortar o reabastecimento, pelo que a coluna regressou ao ponto de par&da, que a&ngiu cerca das 17H45…” O ferido muito grave atrás referido, com a perna decepada, após ter sido assis&do em Bissau, foi evacuado para Lisboa para tratamento especializado e colocação de prótese. Voltei a encontrá-‐lo alguns anos mais tarde no Rossio (Lisboa). Já ia na 3ª prótese de adaptação e desempenhava ac&vidade profissional num armazém. No que respeita a “minas terrestres”, eu e o Henrique Lopes de Mendonça fomos os únicos elementos do “Nuno Tristão” que sofreram a dura experiência do contacto directo com tal meio dissuasor; infelizmente para o Henrique com consequências devastadoras. Há situações na nossa vida que jamais se esquecem. Escrevo este texto como testemunho de uma época, ou melhor de um dia-‐a-‐dia sem espaço para a felicidade, que passei -‐ que passámos -‐ nessa comissão na Guiné. Ingrato seria não recordar quem me ajudou em momentos dieceis, nomeadamente os camaradas de curso Mar&ns Soares (infelizmente já falecido), Vasco Lupi e Cortes Simões (Comandantes de LFG’s), os quais, excedendo o âmbito das missões que lhes estavam atribuídas, me prestaram um apoio sempre solidário e amigo. A eles presto sen&da homenagem e manifesto agradecimentos sinceros. Albano Alves de Jesus 6 Comandante do COP 3 7 Comando Operacional nº 3 com sede de Comando em Bigene