Fernando Rosas Professor de História de Portugal (Séculos XIX e XX) da FCSH/UNL. Presidente do Instituto de História Contemporânea da FCSH/UNL Depois do fim do «Império» C om a Lei de 7/74, de 26 de Julho de 1974, e ao cabo de treze anos de guerra, o governo provisório da República portuguesa reconhecia o direito à autodeterminação e independência das colónias portuguesas. Nas condições políticas particulares abertas pelo movimento militar de «25 de Abril», isto é, com um exército colonial, no terreno, totalmente indisponível – desde logo a partir do corpo de oficiais intermédios – para continuar a guerra, sob a pressão quer de uma opinião pública fortemente contrária ao prosseguimento do esforço militar e ao envio de troPortugal, ao cabo pas para África de cinco séculos quer de uma code «império» centrados munidade interno Oriente, no Brasil nacional exigine em África, regressava às suas fronteiras do do a imediata Continente e das ilhas abertura de um adjacentes processo negocial e voltava-se para com vista à indea Europa como nova pendência dos e fundamental opção t e rritórios sob estratégica domínio colonial, os centros do novo poder revolucionário iriam apressar ou encetar as conversações com os movimentos de libertação nacional. E no curto espaço de dezasseis meses, até Novembro de 1975, todas as colónias se transformariam em países independentes: o chamado «ciclo africano do império» – e com ele o «império» e as veleidades «imperiais» – encerrava-se, com escassa glória, mais ou menos um século depois do seu início. Portugal, ao cabo de cinco séculos de «império» centrados no Oriente, no Brasil e em África, regressava às suas fronteiras do Continente e das ilhas adjacentes e voltava-se para a Europa como nova e fundamental opção estratégica. África, o «Terceiro Império» É geralmente aceite pelos estudiosos da questão colonial na época contemporânea que a viragem para África – aquilo a que se tem chamado o «ciclo africano do império» –, não obstante constituir uma prioridade política nacional desde o triunfo do liberalismo oitocentista 1, só conhece um processo de decisiva concretização no último quartel do século XIX. Isto é, sob o acicate da partilha de África entre as grandes potências europeias – regulamentadas pela Conferência de Berlim (1885-1886) – e da acção conjugada do Ultimatum britânico de 1890 e da crise económico-financeira de 1890-1893. O tratado luso-britânico de 11 de Junho de 1891 (que põe termo ao diferendo gerado pela reacção britânica ao sonho do «mapa cor-de-rosa») deixava a Portugal vastos territórios em Angola e Moçambique, todos eles só muito débil e perifericamente ocupados e explorados administrativa, militar ou economicamente. E a crise das exportações agrícolas metropolitanas, bem como a estreiteza do mercado interno para o crescimento das indústrias (que conhece algum vigor na conjuntura finissecular, sobretudo a têxtil algodoeira, mas não só), fazem voltar as 45 46 atenções das «forças vivas» e dos políticos para as virtualidades económicas dos mercados africanos. Deve referir-se que o «império» – viabilizada a sua subsistência no Sul de África pelo interesse britânico em acautelar as suas posições na região contra Constituído como factor o reforço dos estrutural de adiamento Boeres, ou da das grandes reformas Alemanha, resulde fundo da sociedade tante da eventual portuguesa, e, por essa partilha das colóvia, como factor nias portuguesas de durabilidade política – saía do Ultima do salazarismo, tum com uma o «Império», a «África», legitimidade seria também, ao longo externa renovados primeiros três quartos do século XX da: escorado na português, garantia protecuma realidade tora da aliança d e c i s ivamente luso-britânica e condicionadora reconhecido indo posicionamento ternacionalmenestratégico te. Até à Segunda e da política externa Guerra Mundial, dos regimes e governos essa protecção portugueses seria a trave-mestra da conservação das colónias africanas, e todas as ameaças à integridade do «império» passarão pelo risco de a Grã-Bretanha a não querer ou não poder exercer. No Portugal do fim do século, a questão colonial passa, assim, a «ponto-chave da vida política» 2, alarga-se e diversifica-se o lobby dos interesses coloniais, triunfa uma ideologia colonialista abertamente «pragmática» e funcional, de «linha dura de cariz racista» [é o tempo também, na cena portuguesa, do «darwinismo social» 3], em suma, arranca verdadeiramente a política da «ocupação efectiva», que terá substancial continuidade e desenvolvimento após a implantação da República, em 1910. Como recentemente salientou Valentim Alexandre 4, a crise do liberalismo português, designadamente a da I República, integrou uma importante componente social, nem sempre suficientemente salientada. A falência do modelo de descentralização administrativa e financeira ensaiado pelos republicanos e a crise financeira que origina, as dificuldades das economias coloniais e do seu relacionamento com a metropolitana na primeira metade dos anos vinte, o adensar das ameaças internacionais – facilitadas por este circunstancialismo – sobre a soberania portuguesa nas coló- nias, tudo isso funcionará como argumento de peso a somar às razões «de ordem nacional» que desembocam no movimento militar de 28 de Maio de 1926. O Acto Colonial, feito publicar por Salazar em 1930, integrado na Constituição de 1933 e tornado emblema da filosofia e da política colonial do novo regime, opera transformações importantes, não tanto ao nível das realidades económicas e sociais, metropolitanas ou coloniais, da colonização em si mesma, mas, sobretudo, no tocante à sua administração e representação ideológica. Sob o impulso de Armindo Monteiro, ministro das Colónias entre 1931 e 1935 e então homem de confiança e colaborador próximo de Salazar, o regime lança uma verdadeira ofensiva ideológica em torno do «império». Tenta-se dar corpo a uma nova «mística imperial» como grande componente do discurso nacionalista, inculcando-a a todos os níveis da vida social, desde os programas de ensino aos «serões para trabalhadores» da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho. A «missão histórica de colonizar e civilizar», traduzida numa multissecular «diáspora evangélica e civilizadora», esse «fardo do homem português» que constituiria a «essência orgânica da Nação Portuguesa», fundamenta e legitima o direito da ocupação, de «possuir e colonizar domínios ultramarinos». Sendo que a defesa desse direito e da integridade do património colonial são reafirmados como condições indissolúveis da salvaguarda da independência nacional: como poderia a pequena faixa continental europeia resistir à eterna pressão anexionista da Espanha, sem a força atlântica e colonial do seu «império»? Ora o pré-requisito político essencial para salvar e engrandecer este «mundo português» sempre cobiçado e ameaçado, condição mesma da independência nacional, é o Estado Novo. E a forma de o concretizar, retomando o fio autêntico das tradições e glórias passadas, era a política de restauração do «império». Ligar o destino das colónias – e, através delas, da própria soberania – à existência e manutenção do Estado Novo e, consequentemente, da sua «política imperial» é uma das principais novidades da redefinição do discurso ideológico colonial pelo novo regime. O que terá como efeito inverso ligar o destino do Estado Novo ao das colónias. Colónias, nação e regime confundem-se nesta construção mítica, que passa, aliás, a ter consagração constitucional. De tudo isto sairá esse conceito ontológico e naturalista/organicista do «império» – um corpo com uma cabeça, uma família com um chefe –, que não deixa de ter, todavia, uma dupla e bem mais concreta dimensão prática: a centralização política, administrativa e financeira, por um lado, e a nacionalização da exploração económica das colónias, com a revitalização da política de «pacto colonial», por outro. Mas o papel económico das colónias – designadamente como muleta perpetuadora das distorções e impasses da sociedade metropolitana – não sofre alterações essenciais até à Segunda Guerra Mundial, verdadeiro momento de viragem não tanto da ideologia mas, agora sim, da política económica africana. O decisivo papel abastecedor – em mercadorias e divisas – desempenhado pelas economias coloniais relativamente à Metrópole 5 durante o conflito, a excepcional acumulação proporcionada pelos negócios de guerra ao Estado e aos interesses ligados à explosão colonial em Portugal e nas colónias, o boom económico internacional a partir do início da década de 50 e as ameaças e pressões descolonizadoras que então se começam a aproximar de África – tudo conduzirá a uma importante viragem política e económica para África, logo após os anos de crise do imediato pós-guerra. Reunia-se a oportunidade com a consciência da necessidade de a aproveitar e a possibilidade de o fazer. O período que decorre entre o início dos anos 50 e 1974 – potenciado e desenvolvido pelas condições de guerra colonial a partir de 1961 – ainda que num quadro de integrismo reforçado pela revisão constitucional de 1951, quando, semanticamente, as colónias passam a «províncias ultramarinas» e o Império a «Ultramar», é, talvez por isso mesmo, de importantes reformas político-administrativas. Vão elas no sentido de esbater ou eliminar, na lei, os aspectos mais chocantes da discriminação racial ou do trabalho compulsivo, do lançamento das primeiras medidas efectivas de colonização branca em Angola e Moçambique e – talvez como aspecto principal – da larga exportação de capital público, privado, oriundo das ajudas Marshall ou de investidores estrangeiros (sobretudo com a liberalização operada nos anos 60), aplicado em infra-estruturas, na exploração do subsolo, em explorações agrícolas e na indústria transformadora. A guerra de guerrilha, regionalmente localizada, não implicando grandes destruições de bens ou equipamentos, teria, a curto prazo, um multi- forme efeito dinamizador na economia metropolitana e nas economias coloniais, tanto mais que a necessidade de defender as colónias levaria o regime, como vimos, a adoptar medidas de atracção do investimento nacional e estrangeiro, de fomento económico e incentivo à fixação da população branca nos centros urbanos das colónias e em certas zonas rurais. Apesar de assentar numa clara marginalização das populações africanas, drasticamente excluídas do acesso aos níveis médios e superiores do ensino e da administração ou da vida económica e social em geral, apesar de o desenvolvimento económico das colónias privilegiar de uma forma iniludível o colonizador branco, é certo que nelas se regista um verdadeiro boom económico – sobretudo em Angola e Moçambique – só interrompido pelo processo de descolonização. Os anos 50 e 60 representarão a era dourada da explosão económica capitalista, «moderna», das colónias, após decénios de retórica «imperial» e de rendosos, mas ronceiros negócios dominados pela burguesia de comércio colonial tradicional. A crise nacional Dir-se-ia, todaindiscutivelmente via, que era uma induzida pelo processo p ro s p e r i d a d e de integração politicamente europeias (crise cega, com fim à de soberania, vista, pois teimade identidade, va em descode economia, de rotura social) assume uma nhecer, por detrás particularidade nova: dos benefícios é a mais internacional i me dia to s d a das crises portuguesas guerra, os facdeste século, uma vez tores da sua anuque não se estende, lação a prazo: a nem terá resolução, inevitabilidade fora do quadro global de uma descoloem que se insere nização próxima; o prolongamento indefinido de uma guerra sem outra solução que não fosse a de preparar politicamente aquela; o inevitável cansaço psicológico da população, da juventude e de certos meios militares em particular, tornados permeáveis à agitação anticolonial; o bloqueio político-económico que o «lastro africano» representava quer relativamente à reforma política do regime quer à sua participação no processo de unidade económica europeia; finalmente, o peso estrategicamente bloqueador das despesas de guerra e da dívida dela resultante quanto ao papel do Estado na regulação da vida económica e, sobretudo, na melhoria das condições de vida da população. 47 Ainda que de forma distinta, a versão nacional da prosperidade do pós-guerra, em Portugal e nas colónias, continuava a assentar na discriminação, no agravamento da polarização social, na acumulação e concentração privilegiando uma oligarquia financeira que dominava a economia e o Estado, no impedimento político-policial por parte do regime, através da repressão e da anulação das liberdades fundamentais, da «espontânea» correcção das cavadas diferenças na distribuição do rendimento e do bem-estar. Crise e fim do «Ciclo Africano do Império» 48 Assim sendo, a crise final do «império», ao contrário de todos os outros momentos históricos de crise/redefinição da questão colonial no século XX, não incorporou uma componente económica ou financeira determinante, pelo menos a curto prazo. É uma crise de paradigma ideológico, de modelo político, de disponibilidade social para levar por diante uma política que se traduzia numa guerra sem saída por parte de quem mais imediatamente a travava e a sofria na metrópole. O primeiro e talvez mais essencial factor de crise é a longa e praticamente inquestionada vigência, como irredutível legitimação ideológica para fazer e continuar a guerra colonial, do paradigma estratégico salazarista acerca de Portugal, da Europa e de África. Desde logo, o chefe do Governo definia a defesa das colónias portuguesas, sobretudo das colónias africanas, num quadro estratégico mais vasto de defesa da própria retaguarda da Europa. A África era não só o complemento indispensável à resistência da Europa face ao expansionismo russo, como o elemento viabilizador da sua afirmação própria e autónoma a nível mundial perante as duas superpotências. Daí que a «política envergonhada», de abandono, que, «por desorientação moral e intelectual», começavam a demonstrar as potências coloniais europeias, ou as conivências americanas com os movimentos independentistas, fossem incompatíveis e contraditórias com os propósitos de defesa do Ocidente. Mas, no caso português, a factores estratégicos de peso especial – a defesa das margens africanas no Atlântico Sul e das suas rotas – acrescia a visão ontológica e organicista do império, agora rebaptizado de Ultramar. Um «mundo português» encarado simultaneamente como con- cretização original, miscigenadora, da «missão histórica» portuguesa de evangelizar e civilizar e como factor atlântico vital para a salvaguarda de Portugal como nação independente face à Espanha. É essencialmente em nome desta concepção estratégica, desta ideologia imperial-ultramarina e da sua consagração constitucional que o governo de Lisboa, dobrando-se sobre si mesmo face aos vendavais de mudança libertadora que começam a varrer a África, irá estabelecer os grandes dogmas da sua atitude: defesa extreme da inalienabilidade dos territórios coloniais, com a recusa sequer de aceitar a sua discussão ou negociação. Pode considerar-se que, a partir dos anos 50, e praticamente até ao fim do regime, o essencial da sua política externa, e boa parte da sua política interna, vai resumir-se a um longo e desesperado combate político, e depois militar, sem saída à vista, pela defesa deste paradigma colonial (parcialmente alterado, ainda que sem consequências práticas, durante o marcelismo), num ambiente de crescente isolamento, tanto internacional como nacional. Mas é claro que a irredutibilidade ideológica salazarista, para poder ser força, ser política e manter-se como poder, tinha de ter significativos apoios na sociedade portuguesa e nas suas elites. Em primeiro lugar, nos comandos militares, reorganizados após a «limpeza» que se sucedeu à «abrilada» do ministro da Defesa Júlio Botelho Moniz, em 1961. A gorada conspiração da hierarquia da altura, em larga medida centrada na necessidade de encontrar uma resposta política para a eclosão da guerra em Angola (em Março de 1961), abrira o caminho à instalação de uma facção militar que conseguirá, durante vários anos, unir a oficialidade e as Forças Armadas em torno da política colonial salazarista. A eclosão da guerra, que estivera à beira de derrubar Salazar em 1961, acaba, a médio prazo, por constituir-se como factor unificante da hierarquia militar e de prolongamento do regime. Em segundo lugar, apoios em largos sectores da oligarquia financeira e mesmo dos sectores intermédios da burguesia industrial e comercial, ligados por múltiplos laços visíveis e invisíveis aos negócios coloniais e vendo na defesa da integridade do «Ultramar» a única forma de os garantir. A sensibilidade mais pró-europeísta de certos meios ligados a alguns grupos económicos cujas estratégias de crescimento apontavam preferencialmente para os mercados europeus – onde começa a ter eco a necessidade de buscar uma solução política para a guerra colonial – é não só tardia, como nunca se traduzirá, directamente, de forma visível e eficaz, isto é, política, na propositura expressa de soluções alternativas. Saliente-se que uma tal atitude era, em larga medida, o espelho da abstenção política – em termos conspirativos – a que, após 1961, se tinham remetido os sectores reformistas do regime, tementes de ser acusados de minar a «retaguarda» ou de, sobretudo, desencadear um processo que, nas condições de guerra, podia vir a tornar-se de consequências imprevisíveis. De tal maneira será assim que, mesmo após o acesso ao poder, com o advento do marcelismo, em 1968, o curso pretendidamente reformista do regime não logrará abrir caminho, pelo menos em tempo política e historicamente útil, a uma solução para a guerra colonial. Ainda que para muitos dos que estavam ligados à economia e às finanças começasse a ser visível o impasse estratégico a que conduzia o prolongamento de um conflito cujos efeitos estranguladores a médio prazo se começavam a fazer sentir. Mesmo daquela parte da elite do regime que entendia a necessidade das reformas, parecia que o medo do risco sobrepujava a consciência de que não fazer nada é que teria «consequências imprevisíveis»... Finalmente haverá de referir-se, pelo menos nos primeiros anos, a conformidade da grande massa do país, ainda maioritariamente rural, não tanto com a política de guerra em si mesma, mas com a sua existência, entendida como coisa fatal cujas causas e destinos via como algo distante e inelutável. Convém não esquecer que, até finais dos anos sessenta, mesmo nos meios da oposição, e até na oposição afecta ao PCP, a denúncia da guerra colonial oscilará entre a ambiguidade e a retórica, não sendo nunca assumida como questão central da respectiva luta política. Será preciso esperar pelos movimentos de contestação de base estudantil, sobretudo de 1968 em diante, para que tal aconteça, isto é, para que surja um verdadeiro movimento de resistência e oposição à guerra colonial. É claro que a intransigência, a imutabilidade da polícia colonial e o prolongamento tendencialmente infindável da guerra em África haveriam de originar um segundo e decisivo factor de crise: o cansaço. Em finais dos anos sessenta estava feita a demonstração, em termos das principais potências coloniais da Europa, da impossibilidade de vencer uma «guerra subversiva», uma guerra de guerrilhas, como era o conflito nas colónias, em condições de vigência e manutenção das liberdades fundamentais, isto é, em democracia. A opinião pública, passado, quando houve, algum inicial, assomo «patriótico», não aceitava o peso económico e social de uma guerra sem fim e sem vitória possível. O caso extremo da rendição da França gaulista face à independência da Argélia, aí estava, em 1963, para o demonstrar. O caso português iria servir para evidenciar que, mesmo em condições de ditadura, de privação das liberdades de associação e de expressão, de repressão policial e de censura, o cansaço da guerra era mais forte: ou o regime arranjava maneira de acabar com a guerra, ou a guerra acabava com o regime. A incapacidade ou a impossibilidade – deixemos esta questão, para este efeito, de lado – de o marcelismo acabar com a guerra, transformará o canMas o certo é que nenhum dos valores saço de 13 anos fundamentais da em crescente opo«civilização europeia» sição pública ao deixará de estar em conflito e ao recausa nesta voragem, gime que o proda mercantilização tagonizava. universal, enquanto Desde logo, nos a imensa legião sectores que a dos povos asiáticos conduziam e ennão tiver conquistado, quadravam no com as suas liberdades terreno e, consepolíticas e sindicais fundamentais, quentemente, o direito à dignidade do mais a sofriam: os trabalho nas suas várias jovens sargentos e formas, não tiver oficiais milicianos derrotado oriundos dos lia semi-escravatura ceus e das univerque constitui sidades, transforo principal factor mados em verda competitividade dadeiros centros e da agressividade de agitação polítidos novos e novíssimos ca anticolonialista «trigos asiáticos» ou do império americano e antigovern amental. Essa radicalização da luta política arrastará a de praticamente toda a oposição e de outros movimentos sociais (luta sindical, cooperativas culturais, etc.), rapidamente alinhados, a partir de 1968/1969, em posições de aberta condenação da guerra colonial. Passar-se daqui para a «contaminação» dos jovens oficiais intermédios do quadro, para os capitães, os fulcrais comandantes das companhias que policiavam as «quadrículas» das zonas 49 50 de guerra, multiplicando comissões sem termo à vista, seria coisa rápida, se as condições se proporcionassem. E proporcionaram: o decreto que permitia a ultrapassagem dos oficiais do quadro pelos milicianos foi o pretexto corporativo para se organizarem; a pública dissidência do CEMGFA e do vice CEMGFA, generais Costa Gomes e Spínola, com a política colonial marcelista, seria a cobertura hierárquica para poderem passar à conspiração política, e a paralisia suicidária de Marcelo Caetano convencê-los-ia à acção militar e golpista. Este particular golpe militar de 25 de Abril de 1974, inteiramente concebido e operacionalizado pela oficialidade intermédia, completamente à margem dos altos comandos das Forças Armadas, mesmo daquela pequena facção que os cobria política e hierarquicamente, teria um efeito da maior importância nos acontecimentos subsequentes: • Criava uma situação de corte do geral das Forças Armadas com as suas cadeias de comando hierárquicas, colocando-as em «autogestão» sob as ordens de um ou mais órgãos revolucionários chefiados por oficiais intermédios. A maioria dos generais, dos coronéis e dos ministros militares, fiéis ao regime, só iria descobrir isso no próprio dia 25 de Abril. Spínola e a minoria dos oficiais-generais que protegera ou, pelo menos, se abstivera face ao movimento, e fora guindada à Junta de Salvação Nacional, só viriam a perceber que eram comandantes sem forças, isto é, que os oficiais intermédios se tinham transformado nos verdadeiros chefes militares, nas semanas seguintes ao golpe militar. Era o princípio do fraccionamento político das Forças Armadas e, consequentemente, do próprio Estado, factor decisivo no curso dos acontecimentos subsequentes. • Paralisava, como se referiu, o exército colonial nos vários teatros de guerra. Senhora do Estado ou de parte do que dele restava, controlando as Forças Armadas, a oficialidade intermédia tratará de dar execução imediata ao fim que a trouxera: acabar com a guerra colonial, negociar as independências. O exército colonial no terreno, indispensável para agir como força militar de pressão negocial, irá actuar, ao contrário, e em consonância com largos sectores da opinião pública nacional e com o «espírito» dominante na comunidade internacional, como força de pressão para uma rápida e expedita liqui- dação de contencioso colonial. O que, como é sabido, condicionaria decisivamente todo o processo de descolonização. Incapaz de recuar a tempo e organizadamente, acompanhado o «vento de mudança», o regime ruía arrastado pela irresolução da guerra colonial e, de uma forma mais geral, pela sua própria incapacidade histórica de se auto-reformar, de se adaptar ao seu tempo. Com ele, como resultado inevitável, desabava, quase em debandada, o «Império». Para Portugal iniciava-se o «ciclo da Europa», formalizado em 1985 com a adesão à Comunidade Económica Europeia. Os desafios de uma nova época Constituído como factor estrutural de adiamento das grandes reformas de fundo da sociedade portuguesa, e, por essa via, como factor de durabilidade política do salazarismo, o «Império», a «África», seria também, ao longo dos primeiros três quartos do século XX português, uma realidade decisivamente condicionadora do posicionamento estratégico e da política externa dos regimes e governos portugueses. Se exceptuarmos os parênteses da política intervencionista no teatro europeu da Grande Guerra durante a I República, ou os tardios e contraditórios esforços de aproximação europeia por parte do marcelismo, Portugal, ao longo do século XX e até 1974, sempre se posicionou estrategicamente como país atlantista, vocacionado para o «Império» e razoavelmente marginalizado dos assuntos europeus. De «costas para a Europa» e «de rosto voltado para o Atlântico», o Estado Novo salazarista aprofundaria e consolidaria tal opção em termos de teorização estratégica de política externa e colonial, com todas as consequências a que temos aludido no plano interno. Quando, após as hesitações do período revolucionário (1974/1975), os governos constitucionais se decidem finalmente pela Europa, Portugal surge duplamente como um late comer do processo de unificação europeia. Por um lado, como país que se atrasou irremediavelmente no processo de modernização económica e social, e se aprestava a entrar no mercado aberto europeu com todas as debilidades e riscos daí decorrentes, por outro, porque chegava tarde a uma comunidade económica onde há muito estavam estabelecidas as hegemonias, os processos de decisão política e de divisão internacional do trabalho e onde, consequentemente, mesmo que com condições estruturais mais vantajosas, estaríamos, de algum modo, sempre remetidos, com margem negocial muito estreita, ao lugar que nos quisessem atribuir os que já lá estavam. A consciência do verdadeiro desafio que a opção europeia – em larga medida incontornável – representava, não chegaria logo, isto é, demoraria dez anos a tornar-se evidente para o geral da sociedade portuguesa. A década do cavaquismo (1985-1995) seria, até quase ao seu final, a da facilidade, a dos «fumos da Europa», da euforia dos diversos «fundos europeus», teoricamente destinados a preparar económica e socialmente o país para a «hora da verdade», dos critérios de convergência nominal, da união político-institucional, em suma, de Maastricht. Sem entrar agoO que significa que ra na discussão os valores em nome do alcance correcdos quais a Europa tivo que uma dido trabalho e da cultura ferente aplicação resiste, só podem de tais fundos posubsistir se se tornarem, deria, ou não, ter eles próprios, armas tido no esbatide um combate geral mento das desimais vasto. É neste novo gualdades estruuniversalismo que há-de turais da ecoassentar a viabilidade e a reinvenção nomia portuguedo mundo começado sa, o facto é que, a arrancar às trevas de uma forma do «antigo» no século ou de outra, XVIII e que às várias Portugal entrou tentativas do seu numa nova époregresso — «antigas» ca, num novo ou «modernas» — tem ciclo da sua Hisconseguido resistir tória: o «ciclo eudesde então ropeu», ele próprio, aliás, incompreensível fora do contexto da mundialização geral dos mercados, das economias e das comunicações em curso. Período, deve realçar-se, ao invés de certo cretinismo europeísta corrente, carregado de sombras, de onde emergem quatro desafios principais, melhor dizendo, quatro ameaças ineludíveis: • A tendencial destruição de grande parte do aparelho industrial e agrícola português sob o turbilhão da concorrência europeia e mundial, arrastando tanto realidades económica e socialmente obsoletas e insustentáveis como outras de função estratégica essencial, a carecer de apoio e protecção para se afirmarem. É inegável que a manter-se o processo de abertura exclusivamente orientado pela lógica de mercado, a economia portuguesa tenderá a resumir-se a um entreposto de serviços turísticos, financeiros e outros, complementados por um pequeno número de actividades industriais e agrícolas vocacionadas para certos «nichos de mercado». Submersa, obviamente, por um mar de desempregados que, nas circunstâncias actuais, só muito dificilmente poderão arranjar ocupação através da emigração. • Os efeitos sociais desta «mundialização» comandada pelos critérios do lucro e da acumulação podem já hoje ser sentidos – e, saliente-se, estão longe de ser um problema especificamente nacional: sob a pressão da concorrência asiática (assente na negação dos mais elementares direitos políticos e sociais) e americana, e apoiada no desemprego crescente, está em curso, por toda a Europa, a mais importante, generalizada e concertada ofensiva deste século contra os direitos e conquistas históricos do mundo do trabalho. Procurar reduzir tendencialmente as condições de trabalho na Europa ao nível das da concorrência asiática (e até americana) para lhes fazer face e manter as suas taxas de lucro, parece ser a opção do patronato europeu e dos seus ideólogos, evidenciada, designadamente, no encarniçado ataque contra os direitos e regalias assegurados pelo chamado «Estado providência». • Os riscos, aliás, não espreitam só os direitos sociais, mas o próprio sistema democrático-parlamentar, uma vez que o ataque àqueles haverá de passar necessariamente pelo progressivo esvaziamento deste. Os sintomas de crise do segundo liberalismo europeu, nascido no pós-guerra, estão à vista. Tendo como pano de fundo, potencialmente explosivo, uma crise social que tende a agravar-se, assiste-se a uma crise de representatividade das instituições, dominadas rotativamente pelas mesmas oligarquias político-partidárias, com as mesmas «soluções» e os mesmos resultados, ante o descrédito crescente dos eleitores; a uma crise de credibilidade das mesmas, minadas por sucessivos escândalos de corrupção em vários países; ao inquietante sucesso da extrema-direita na utilização da demagogia racista e antidemocrática. Situação esta que só poderá agravar-se com o acicate chauvinista da hostilização das políticas 51 52 e polícias europeias face à inevitável «invasão silenciosa» dos imigrantes oriundos do leste europeu e sobretudo de África, fugidos ao desespero da guerra, da doença, da fome e da miséria inominável dos seus países de origem. Estagnação económica, descontentamento social, crise de legitimidade larvar das instituições, popularidade dos discursos xenófobos, nacionalistas, «sociais» e autoritários – quem se esqueceu dos ingredientes da primeira crise histórica do liberalismo europeu entre as duas guerras? E o que há-de poder esperar-se da «democraticidade» de instituições políticas europeias que sejam o coroamento de tal lógica unificadora e destinadas a impô-la? • E é claro que nenhum destes propósitos ameaçadores será exequível sem o ataque contra a memória, ou, se quisermos, contra os valores da civilização europeia herdados das «Luzes» e da Revolução Francesa e enriquecidos pelos movimentos socialistas posteriores: o racionalismo, o humanismo, a solidariedade, a perseguição da utopia, o «progressismo». Escusado será dizer que para os novos «teólogos do mercado» a «desideologização» está na ordem do dia, no sentido de, em nome da «morte das ideias», se implantar um mundo política e ideologicamente selvático e sombrio, sem passado, e com um presente cego, construído sob o império da lógica da sobrevivência a todo o transe, do individualismo infrene e da força bruta. Quer isto dizer que a crise nacional indiscutivelmente induzida pelo processo de integração europeia (crise de soberania, de identidade, de economia, de rotura social) assume uma particularidade nova: é a mais internacional das crises portuguesas deste século, uma vez que não se estende, nem terá resolução, fora do quadro global em que se insere. A saber: o da crise da civilização europeia tal como a representamos no final do século XX. Isto é, a civilização da democracia política e dos direitos humanos, de mais de cem anos de lutas duríssimas do mundo do trabalho e de conquistas sociais ímpares por elas impostas, de desenvolvimento basicamente pacífico, dos valores da cultura, do nacionalismo e do humanismo. A encruzilhada portuguesa participa, assim, desse desafio mais geral e decisivo que hoje defrontam a civilização europeia e os seus valores. Em busca de um novo universalismo Se é verdade que a União Europeia e, de uma forma mais geral, a mundialização das relações económicas e sociais que vem fazendo segundo o critério do mercado e das necessidades da acumulação do capital, menos certo, como prega algum «realismo» cúmplice ou vencido, é que esse processo seja tragicamente inelutável. Porque ao concentrar-se, ao mundializar mercados e realidades de toda a ordem, o capital concentrou, ou tende a concentrar e a mundializar os diversos tipos de vítimas desse processo. Na Europa, sendo ele em si mesmo inelutável, torna igualmente inelutável a tendência para a união do vasto mundo assalariado que, mesmo conseguindo manter os seus postos de trabalho, a sua integração no sistema social de produção, vê os seus direitos e regalias, as suas conquistas históricas, gravemente ameaçadas, tanto no plano social como político. E se o egoísmo cego e a xenofobia não vencerem – e mesmo que vençam não o farão senão transitória e localizadamente – tudo empurra para que entre o mundo do trabalho «integrado» e a legião crescente dos excluídos e marginalizados do sistema (os desempregados, as mulheres, vítimas de eleição do processo, as minorias étnicas sobreexploradas, os jovens sem entrada no mercado do trabalho, os defensores da natureza, etc.) se estabeleçam laços de solidariedade e de resistência em torno de alternativas comuns. Mas o certo é que nenhum dos valores fundamentais da «civilização europeia» deixará de estar em causa nesta voragem, da mercantilização universal, enquanto a imensa legião dos povos asiáticos não tiver conquistado, com as suas liberdades políticas e sindicais fundamentais, o direito à dignidade do trabalho nas suas várias formas, não tiver derrotado a semiescravatura que constitui o principal factor da competitividade e da agressividade dos novos e novíssimos «tigres asiáticos» ou do império americano. Ou enquanto a África, hoje excluída do mundo económico reinante, não tiver oportunidade de trilhar os caminhos da modernização económica e social, constituindo-se em pólo alternativo das relações internacionais. O que significa que os valores em nome dos quais a Europa do trabalho e da cultura resiste, só podem subsistir se se tornarem, eles próprios, armas de um combate geral mais vasto. É neste novo universalismo que há-de assentar a viabili- dade e a reinvenção do mundo começado a arrancar às trevas do «antigo» no século XVIII e que às várias tentativas do seu regresso – «antigas» ou «modernas» – tem conseguido resistir desde então. Não significa isto que na resistência à lógica uniformizante e destruidora da reificação do mercado, na defesa contra a castração adaptativa à unidade económica e monetária que os políticos do novo rotativismo querem impor, não haja políticas e medidas de âmbito nacional a propugnar. Certamente que sim, designadamente no tocante à defesa de direitos políticos e sociais, da individualidade cultural do país, à protecção de actividades várias (designadamente contra o dumping social), à renegociação de mecanismos e políticas de integração, etc. O que digo é que havendo tarefas não há soluções nacionais, sobretudo, elas não estão no regresso a políticas autárcicas mais ou menos conjugadas com míticos retornos paternalistas e de nostalgia «imperial» à «África portuguesa». Numa Europa e num mundo inapelavelmente unificados pelo capital financeiro e pelo mercado, o contraprojecto do outro lado do mundo há-de buscar definição e viabilidade nessa nova solidariedade democrática e social que se alimenta das pontes, das ajudas, da cooperação, das lutas a uma escala internacional. É neste quadro que, penso, se pode encarar o reencontro do Portugal europeu com as suas antigas colónias, hoje Estados independentes de expressão oficial portuguesa. No âmbito de uma cooperação entre iguais e assente em vantagens mútuas, concebida para ajudar, simultaneamente, os povos de África a recomeçarem, a erguerem-se por si próprios da pesada herança do colonialismo e da «guerra-fria», de décadas de guerra, de destruição, de tribalismo, de corrupção, de autocracia, mas que os constitua, também, como ponto de apoio, como alternativa cultural e económica à defesa da soberania, da individualidade e da democracia portuguesa face à dominação desnacionalizadora da lógica mercantil. Concebida, em suma, como um espaço cultural, político e económico solidário, onde as nossas democracias – a defender, a construir, a aprofundar – mutuamente se apoiem e resistam como frente comum no combate geral pelo desenvolvimento pelo progresso e pela restauração dos direitos do homem. Depois do fim do «Império», talvez o reencontro português com África só seja realmente possível e frutuoso se se realizar no quadro desse novo universalismo imposto pela urgência de fazer face aos novos impérios. Notas Cf. Valentim Alexandre, «Portugal em África (1825-1974): uma visão geral», in Portugal, España y Africa en los ulti mos cien años, coord. Hipolito de la Torres, ed. UNED, Mérida, 1992, pp. 30-32. 2 Ibidem, p. 35. 3 Ibidem, p. 36. 4 Valentim Alexandre, «Ideologia, economia e política: a questão colonial na implantação do Estado Novo», in Análise Social, vol. XXVIII (123-124), 1993, pp. 118 e segs. 5 Cf. Fernando Rosas, Portugal entre a Paz e a Guerra, ed. Estampa, Lisboa, 1990, pp. 233 e segs. 1 53