TRICEVERSA
Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro
de Estudos Lingüísticos e Culturais
ISSN 1981 8432
www.assis.unesp.br/cilbelc
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
CILBELC
REPRESENTAÇÕES DO ESPAÇO AFRICANO NA MODERNA CANÇÃO POPULAR
PORTUGUESA: O CASO JOSÉ
AFONSO1
Alexandre Felipe Fiuza
UNIOESTE
RESUMO
Em princípios da década de 1960 uma
nova radicalização dos movimentos
estudantis e políticos contra a ditadura
portuguesa (1926-1974), o início da
Guerra Colonial (1961-1974), além das
experiências musicais levadas a cabo
pelos músicos portugueses José Afonso
(1929-1987), Luis Cília e Adriano Correia
de Oliveira (1942-1982), contribuiriam
decisivamente para os rumos de uma
nova canção urbana em Portugal.
Concernente à história deste movimento
cultural e político, este artigo tem como
objeto particular como o espaço africano
aparece na moderna canção portuguesa,
seja como crítica à tragédia trazida pela
Guerra Colonial, seja na imagem idílica
do espaço africano. Nesta perspectiva, a
África abarca uma multiplicidade de
sentidos em sua relação com a canção
portuguesa. Em particular, privilegiamos
neste trabalho a análise da produção
musical do português José Afonso que,
além de ter tematizado o continente
africano em suas canções, também viveu
em Moçambique e em Angola.
PALAVRAS-CHAVE
Canção portuguesa, espaço africano,
Zeca Afonso.
ABSTRACT
At the beginning of the 1960’s a new
radicalization of political and student
movements against the Portuguese
dictatorship (1926-1974), the beginning
of Colonial War (1961-1974), in
addition to the musical experiences
carried out by the Portuguese
musicians José Afonso (1929-1987), Luis
Cília and Adriano Correia de Oliveira
(1942-1982), contributed decisively to
the new routes for the urban music in
Portugal. Concerning the history of this
cultural and political movement, this
paper focuses on how the African space
appears in modern Portuguese music,
whether as a form of criticism to the
tragedy caused by the Portuguese
Colonial War or as an idyllic image of
the African space. In this perspective,
Africa presents multiple meanings
within Portuguese music. In particular,
we highlight the analysis of the musical
production by José Afonso, who has not
only used the African continent as a
theme in his songs, but has also lived in
Mozambique and in Angola.
KEYWORDS
Portuguese music, African space, Zeca
Afonso.
1
Essa pesquisa foi financiada pelo CNPq mediante bolsa-sanduíche em Portugal, no ano de
2004.
15
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Sou, no fundo, fruto de muitas gentes,
de muitos lugares,
de muitos
dissabores (Zeca Afonso).
Introdução
A proposta de produzir reflexões acerca das relações entre música e
espaço revelou um grande arco de possibilidades temáticas. Afinal, já na
primeira tentativa de esboçar contornos mais claros do termo “espaço”, por
meio de uma primária consulta ao dicionário, chega-se a uma profusão de
significados. É possível vincular o termo ao campo imagético e sua acepção
pode ser adensada por outras perspectivas quando se transfere o espaço para
o campo da história, da literatura ou da geografia. Nestas áreas do
conhecimento a palavra tende a abarcar uma particularidade de categoria e
não mais de uma mera referência a sua faceta espacial.
O espaço encontra na especificidade dos estudos no campo das
humanidades uma significativa polissemia. Esta assertiva pode ser corroborada
pela
força
que
adquiriu
a
representação
do
espaço
na
sociedade
contemporânea, como no apelo visual trazido pela televisão, cinema, revistas,
painéis, placas luminosas, livros ilustrados (observados desde a mais tenra
idade). Frente a este caleidoscópio, situa-se aqui neste estudo o espaço
enquanto imagem e representação desta mesma referência visual. Desta
maneira, o espaço também pode ser uma paisagem social. Logo, demarca-se
aqui como uma destas paisagens, no caso o espaço africano, é representado
num também diverso cancioneiro.
Abordar como a África aparece na canção popular parece uma tarefa
pretensiosa e extensa demais para esta breve reflexão. O olhar do músico
como o olhar de um paisagista vai revelar uma pintura que não é o reflexo do
que ele vê, mas pequenos ou grandes planos de um cenário que se transforma
ante as informações de quem observa ou de acordo com a direção deste olhar.
Ademais, estas representações também são produzidas ora num discurso
direto do compositor ora como resultado de um personagem ou de um eulírico num determinado contexto, por mais tênues que sejam estes limites
entre personagem e criador. Por sua vez, esta representação, ao se
transformar em matéria sonora, tem no ouvinte um novo processo imaginativo
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de reinterpretação da canção e de uma nova visualização dos espaços
tematizados. Além disso, o espaço africano pode ser sugerido também pelas
referências musicais, e não unicamente literárias no tocante à canção.
Em princípios da década de 1960, Portugal viveu uma nova radicalização
dos movimentos estudantis e políticos contra a ditadura salazarista, o início
da Guerra Colonial, além das experiências musicais levadas a cabo pelos
músicos portugueses José Afonso (1929-1987), Luis Cília e Adriano Correia de
Oliveira (1942-1982), que contribuiriam decisivamente para os rumos de uma
nova canção portuguesa. Enquanto no Brasil a produção musical do mesmo
período é elevada a uma das mais representativas fontes de análise histórica,
sociológica, literária e antropológica, em Portugal, a chamada canção popular
portuguesa não tem sido objeto privilegiado de análise por estas diferentes
áreas do conhecimento.
As letras das canções portuguesas raramente aparecem citadas em livros
didáticos e em outros de cunho acadêmico, indicando mesmo um desprezo (ou
desconhecimento) pela rica produção poética daí advinda. Um sinal claro da
ausência de pesquisas acadêmicas sobre a canção portuguesa está no fato de
haver até o momento uma única dissertação sobre o tema da canção de
intervenção em Portugal, no caso, a obra Canto de Intervenção (1960-1974),
de Eduardo Raposo, publicada no ano de 2000. Houve ainda dois outros
trabalhos acadêmicos, mas desta vez unicamente sobre José Afonso,
realizados na Alemanha2 e na Itália3 encontrados na Associação José Afonso
(AJA).
Este texto, neste ano em que se completam vinte anos da morte do
músico José Afonso, tem como objeto como o espaço africano aparece na
moderna canção portuguesa, seja como crítica à tragédia trazida pela Guerra
Colonial, seja na imagem idílica do espaço africano.
2
Utopie und Vergangenheit: Das Liedwerk des portugiesischen Sangers José Afonso. Elfriede
Engelmeyer. Editora da Universidade de Viena, 1985, 267 páginas. Esta é a primeira tese
sobre os textos de José Afonso, feita em Hanôver (Alemanha Federal, na época) e
apresentada em 1983 na Universidade de Viena/Áustria.
3
La "Canção de Intervenção" e L'Opera Lirico-Musicale di José Afonso. Tesi di Laurea in Lingua
e Letteratura Portoghese. Relatore: Chiar.mo Prof. Roberto Vechi. Presentata da: Nicolleta
Nanni. Anno Accademico 1998/9.
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Nesta perspectiva, a África abarca uma multiplicidade de sentidos em
sua relação com a canção portuguesa. Terminada a guerra colonial (19611974) e a ditadura portuguesa (1926-1974), a África se manteve como
inspiradora não unicamente dos temas literários como também dos musicais
junto ao cancioneiro português. Em particular, privilegiaremos neste trabalho
a análise da produção musical do português José Afonso que, além de ter
tematizado o continente africano em suas canções, também viveu em
Moçambique e em Angola.
A Guerra Colonial e a canção portuguesa
Com a Revolução dos Cravos no dia 25 de abril de 1974 teve fim a
longínqua ditadura iniciada no golpe de 28 de maio de 1926. Foi a queda de
um regime que, se não foi uníssono em suas políticas, conseguiu se manter
por 48 anos. Um dos principais motivos da crescente insatisfação dos militares
que lideraram o movimento revolucionário vinha da Guerra Colonial contra os
movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Uma outra
causa para este descontentamento esteve relacionada à publicação do
Decreto-Lei n.º 353 de 13 de Julho de 1973, que possibilitava aos militares de
segunda linha obterem promoções mediante um curso intensivo na Academia
Militar, promoções estas só possíveis aos capitães do quadro permanente após
um longo processo. Um novo decreto foi feito, mas também não alterou a
situação dos capitães do quadro.
Iniciados em 1961, os combates na África traduziram-se numa
experiência traumática para os soldados e seus familiares, muito embora a
tragédia tenha sido incomparavelmente maior para os africanos, e não só no
período da guerra. Do lado português, calcula-se que 190 mil portugueses
combateram na África e o: “[...] número de mortos é de 3.258 em Angola,
2.692 em Moçambique e 2.070 na Guiné; podem acrescentar-se a estes
números o total de feridos nas três frentes, que é de 26.223” (ANDRADE,
2002, p. 183). Um outro levantamento destas baixas foi divulgado pela Revista
Visão, informando que havia, em 1973, 150 mil portugueses na guerra, e que o
número de mortos foi de 8.803 e de deficientes físicos gerados pelos
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combates (ou pelas minas terrestres) chegou a 15.507 soldados.4 Sem contar
ainda o clima de terror psicológico gerado nessas frentes e mesmo entre os
que estavam se preparando para integrarem as tropas na África. Some-se a
isso a insatisfação dos familiares dos soldados com a partida de seus filhos,
irmãos ou maridos para a Guerra ou para a deserção no exterior.
Em meio à violenta Guerra Colonial, muitos dos militares portugueses em
África encontravam nas canções de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e
Luís Cília, entre outros músicos, um exercício de lembrança de seu país e
familiares, bem como um meio de politização e de elaboração de uma
crescente crítica à guerra e à exploração dos africanos. É comum no relato
destes soldados a afirmação de que ouviam nos acampamentos este
cancioneiro e que era corriqueira a circulação destes pequenos discos, mesmo
entre a oficialidade. A relação entre este cancioneiro também é explicada
pela origem universitária de parte desta geração de militares, em particular
dos capitães, justamente o ambiente de onde se teria desenvolvido e surgido
a canção moderna de contestação política.
Logo, não foi surpresa a opção da utilização de duas destas canções
como senhas para a saída dos quartéis. Os capitães responsáveis pela
revolução necessitavam de dois sinais para que o movimento revolucionário se
iniciasse na madrugada do 25 de Abril de 1974. Segundo Otelo Saraiva de
Carvalho, um dos organizadores da operação, o locutor da Rádio Clube, João
Dinis, propôs E depois do Adeus, interpretada por Paulo de Carvalho,
vencedora do festival da RTP e apresentada no Festival de Brighton,
Inglaterra, naquele mesmo mês. Sugestão aceita, haveria de se pensar numa
outra canção mais incisiva.
O segundo sinal deveria vir, ainda segundo Carvalho, de uma canção de
José Afonso, e a escolhida foi Venham mais cinco: “[...] A bucha é dura / mais
dura é a razão / que a sustém / só nesta rusga / não há lugar / para os filhos
da mãe”.5 Porém, os militares lembraram que aquela canção estava proibida
4
Guerra Colonial: treze anos de solidão. Visão  Suplemento Especial 25 Abril 74. Lisboa, 15
abr. 2004, p. 52.
5
Esta canção foi gravada em 1973, mas parece tratar de Salazar, que havia morrido três anos
antes. Afinal, depois de cair da cadeira, em agosto de 1968, foi exonerado pelo Presidente da
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pela direção da Rádio e optaram por Grândola, Vila Morena, do mesmo
compositor, que três semanas antes tinha sido cantada por cerca de cinco mil
pessoas num espetáculo na grande sala do Coliseu, em Lisboa:
E às vinte e quatro horas, de norte a sul do País, dedos ágeis e nervosos
sintonizam, em centenas de aparelhos de rádio, o início do programa
Limite, radiodifundido através dos emissores da Rádio Renascença, em
locução de Paulo Coelho e Leite de Vasconcelos. E é a voz deste último
que ouvimos, cerca da meia-noite e vinte, recitando com calor a
primeira quadra do poema de Grândola, Vila Morena, logo seguida do
bater cadenciado dos passos na estrada e da voz inconfundível de Zeca
Afonso entoando a canção. (CARVALHO, 1998, p. 311)
Esta é apenas uma das inúmeras narrativas sobre o evento envolvendo a
canção de José Afonso. O diferencial parte do fato de ser fruto das memórias
escritas por este que participou da escolha das canções e, principalmente, da
organização da revolução em si. Nesse sentido, há uma recorrência em
inúmeras obras, portuguesas ou brasileiras, sobre o tema, por construírem
uma linha narrativa semelhante: o ato heróico da revolução e sua relação com
este compositor da chamada “canção de intervenção”, que para o próprio
José Afonso era a “canção de réplica”. Não é apenas o tema trazido pela
canção de José Afonso, a luta popular contra a opressão, que seria o leitmotiv
da escolha pelos tenentes. Zeca Afonso representava um setor importante da
cultura nacional de oposição política ao regime.
Este
cancioneiro
de cunho
mais engajado
não
se
desenvolveu
exclusivamente entre os músicos profissionais, afinal, os amadores também
compuseram e interpretaram as canções mais conhecidas. Um dos registros
desta vertente vem do chamado “Cancioneiro do Niassa”, surgido de uma
série de paródias feitas com canções populares portuguesas na frente de
batalha, em particular, no Norte de Moçambique, no distrito do Niassa. Foi
composto por militares que então lutavam na Guerra Colonial e teve uma
veiculação entre as tropas por meio de fitas cassetes e de apresentações de
República de seu cargo de Presidente do Conselho. Acredita-se que ele tenha vivido um
período senil e que no início sequer sabia que não era mais o Presidente do Conselho (como
ficou claro numa entrevista a um jornal francês, cerca de um ano depois de seu
afastamento). É a esta fase que parece se referir a irônica letra da canção: “[...] Se o velho
estica / eu fico por cá / se tem má pinta / dá-lhe um apito / e põe-no a andar / de espada à
cinta / já crê que é rei / d’aquém, e d’além-Mar [...]”. In: AFONSO. José. Venham mais
cinco. Orfeu, 1973, nº. STAT-017.
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militares que fizeram ou aprenderam as versões. Estas canções teriam sido
recuperadas “duma gravação realizada pelo pessoal da Marinha em 1969 e que
circulou em cassetes em 1970”.6 Seus temas tratavam da revolta contra a
guerra e seus superiores, do cotidiano, da chegada dos novos soldados, das
diversas inquietações dos militares. Elas foram feitas a partir de versões de
fados e de outras canções de fins da década de 1960, e segundo a gravação
que antecede o cancioneiro na fita cassete:
O cancioneiro do Niassa é uma colectânea de fados, que tem como
assunto central a vida dos militares em serviço nesse distrito do Norte de
Moçambique durante os últimos anos da década de sessenta. Os autores
das letras, que as adaptaram a melodias em voga nessa época, são
desconhecidos, apenas se sabendo que pertenceram aos diversos ramos
das Forças Armadas, nelas ocupando variadas funções e postos. Esta
diversidade de origens faz, contudo, realçar uma unidade temática,
facilmente detectada através de todas as letras. E é nessa unidade que
reside, precisamente, o maior interesse folclórico e documental do
Cancioneiro, como testemunha duma época e como tradução do sentir
daqueles que a viveram.7
Entre estes fados mais conhecidos, havia uma versão feita da canção Os
Vampiros,8 de José Afonso, gravada em 1963: “No céu cinzento / Sob o astro
mudo / Batendo as asas / Pela noite calada / Vem em bandos / Com pés
veludo / Chupar o sangue / Fresco da manada / [...] Eles comem tudo / E não
deixam nada [...] / São os mordomos / Do universo todo”. Num contraponto a
este Cancioneiro, outras iniciativas foram feitas em relação aos militares em
guerra. No natal de 1971,9 por exemplo, os soldados receberam a visita da
cantora de música ligeira Florbela Queiroz e ganharam discos com mensagens
e canções de seus familiares. Apesar deste projeto ter sido organizado por
“senhoras” da alta sociedade portuguesa, contou com o apoio do regime em
sua distribuição e produção e teve um caráter oficial.
6
Disponível em: <http://www.joraga.net/cancioneirodoniassa/pags/001checa.htm>. Acesso
em 13 maio 2005. Nesta página da Internet encontram-se fotos, letras e gravações do
Cancioneiro.
7
Disponível em: <http://www.joraga.net/cancioneirodoniassa/pags/001checa.htm>. Acesso
em 13 mai. 2005.
8
Em 1997, Rui Veloso lançou um interessante intertexto com Os Vampiros e seu refrão, numa
parceria com Carlos Tê, intitulada Eles compram tudo, em que o poder do mercado paira
sobre todos.
9
Este caso é lembrado no documentário: CARDOSO, Margarida (dir.). Natal 71. 52 min., COR,
RTP / Filmes do Tejo, 1999.
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Se a canção se constituiu num profícuo canal de crítica à Guerra e à
ditadura salazarista, esta forma musical também seria utilizada até fins da
ditadura como agente formadora de opinião pelo governo e por simpatizantes
deste ideário. A organização fascista Mocidade Portuguesa possuía inúmeros
corais e para disseminar seu “canto colectivo” publicava cadernos com letras
e partituras dos hinos e canções a serem executadas por todo o país. Por
exemplo, em 1969, publicou Cancioneiro para a Mocidade: canto colectivo,
com músicas já conhecidas desta “mocidade”, em que temas caros à ditadura
eram trabalhados: a guerra colonial, a nação unida, o passado heróico e o
folclore.
Na marcha Aqui é Portugal, letra de Mário Ribeiro e Manuel Tino, temos
a confluência de um dos dois temas mais recorrentes, ou seja, do heroísmo e
da unidade nacional: “A nossa história bela / Está cheia de tais feitos [...]
Que Portugal, uno e valente / Viverá eternamente!” (CANCIONEIRO, 1969,
p.19). Em Angola é Portugal, também de Mário Ribeiro, a guerra colonial é
justificada: “Com as carnes retalhadas / Pela acção do banditismo / Angola dá
grandes mostras / Do mais são portuguesismo!”. Portanto, os militares
portugueses eram heróis, ao passo que os rebeldes eram “bandidos”. Tal
imagem é reiterada e de forma mais explícita ainda: “O inimigo é perverso /
Persistente e desleal / E acima de tudo quer / Dar cabo de Portugal...”.
Além destas máximas, o autor enfatiza na partitura o ritmo exigido:
“Marcial, sempre deciso [sic!] e bem ritmado” (CANCIONEIRO, 1969, p. 23).
Como diria José Cardoso Pires em seu livro Dinossauro Excelentíssimo: “A
Rádio e a Televisão transmitiam-na entre marchas invencíveis e compassos de
procissão, um-dois, esquerda-direita, Laus Deo; o altifalante do gabinete
despejava-a continuamente” (PIRES, 1974, p.65).
Concomitante ao trabalho institucional de defesa dos princípios da
ditadura, também havia seu escopo não-oficial. Além das canções da
Mocidade Portuguesa, é possível encontrar no arquivo da Censura em Portugal
uma série de canções que enalteciam a campanha bélica no Ultramar. Por
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exemplo, num parecer da Censura de 197310 é aprovada a letra da canção
Adeus Angola, Adeus Palmeira, sem a indicação de autoria: “Dois anos por ti
lutei/ Cumpri bem o meu dever [...]/ Mas não me sai cá da tola/ que a guerra
sempre venci/ Mas se um dia precisares/ cá voltarei outra vez/ para mostrar à
nação/ que sou herói português.” Outra canção aprovada em outro parecer11
intitula-se Soldado valente, também sem indicação de autoria: “Valente
soldado/ tu vais destinado/ a honra e glória/ a ti devemos/ a fama que
temos/ toda a nossa história [...]/ Soldado deste país/ podes julgar-te feliz/
por seres bravo e português!!!”. Como se vê estas canções trazem impressões
recorrentes de “um ser português”, como caudatários do passado heróico e
repletos da portuguesidade tão ideologizada pelo regime ditatorial.
Contudo, a quantidade de letras de canções de críticas à guerra
encontradas nos arquivos é bem mais significativa. Quando do início da Guerra
Colonial em 1961, o governo agiu rapidamente no sentido de censurar
qualquer notícia que desabonasse as operações em África. Esta preocupação
com a Imprensa também foi freqüente em relação à Literatura, às canções e
ao teatro. No caso da canção, a partir dos arquivos da Censura, é possível
reconstruir a história do que não foi da música popular portuguesa, afinal,
muitas das canções vetadas não foram gravadas. Em alguns pareceres são
justificados os vetos unicamente a partir da expressão “não é de divulgar”.
Outros documentos compõem uma justificativa um pouco mais elaborada,
como na resposta ao pedido12 de liberação da canção Mão no corpo, pé na
lama: “Mais uma alusão à guerra. Sempre a mesma atmosfera de revolução e
pessimismo”.
No mesmo processo, outra letra é vetada pelos mesmos motivos, trata-se
de Dentes cerrados à chegada: “O mesmo derrotismo e inconformismo com
alusões veladas à ordem estabelecida. Não me parece de divulgar”.13 O chefe
da Repartição da Informação Áudio-visual revela a natureza e as justificativas
para a sua atuação: “[...] julgamos cumprir o objectivo que se tem em vista,
10
Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo (IAN/TT), Secretariado Nacional de
Informação (SNI) / Censura, documento nº. 61 / SCR / RIAV / DGI, de 20 jun. 1973.
11
Idem, nº. 27 / SCR / RIAV / DGI, de 09 abr. 1973.
12
IAN/TT, SNI / Censura, documento nº. 50 / SCR / RIAV / DGI, de 04 jun. 1973.
13
Idem, nº. 50 / SCR / RIAV / DGI, de 04 jun. 1973.
23
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qual seja o de impedir que se invada o mercado de discos com poemas de
autores que estão permanentemente numa posição de crítica destrutiva de
valores que constituem os fundamentos da nossa maneira de estar no
mundo”.14 Para além da mera referencialidade, entendemos que esta
premissa anterior destaca a influência da canção e sua forte difusão nos meios
de comunicação de então. Logo, este controle censório era amplificado na
medida em que o interdito dava lugar ao autorizado e à disseminação de
valores caros ao regime e aos seus ideólogos.
Apesar deste controle, a violência na África foi retratada de forma
visceral pelos músicos portugueses de oposição ao regime. Muito embora, a
Censura tenha conseguido vetar quase a totalidade destas canções. Isso só
pôde ser comprovado mediante a análise dos pareceres dos censores,
liberados recentemente para consulta pública. Em 2006, o arquivo do IGAC 
Inspecção-Geral da Actividades Culturais foi liberado para consulta pública na
Torre do Tombo, em Lisboa. Neste acervo estão os processos de liberação de
espetáculos musicais e de poesias. As obras podiam ser vetadas integralmente
ou parcialmente, ou ainda divididas em grupos de acordo com a faixa etária
do público que podia variar entre 6, 10, 14, 12, 17 e 18 anos de idade. Por
exemplo, a audição do poema infantil O Capricho da Galinha, de Laura Chaves
só foi autorizada para crianças maiores de 6 anos de idade.15
A crítica à Guerra Colonial foi também objeto de artistas vindos da
própria África. De Angola viria um músico fundamental na construção de uma
moderna música popular portuguesa: Luís Cília. Mudou-se para Lisboa aos 16
anos de idade para fins de estudo. Na capital portuguesa morou na Casa dos
Estudantes do Império (CEI), reduto de oposicionistas à ditadura,  entre
eles, muitos estudantes que haviam participado do então extinto Centro de
Estudos Africanos, como os futuros líderes das lutas de libertação colonial:
“Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Agostinho Neto (Angola), Francisco Tenreiro
(um poeta natural de São Tomé e Príncipe e falecido em Portugal em 1963) e
Mário Pinto de Andrade (Angola)” (SERRANO, 1995, p. 101).
14
15
Idem.
IAN/TT, SNI/IGAC, cx. 255, proc. nº. 42, de 16 nov. 1962.
24
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
Esta lista de ativistas políticos e poetas pode ser adensada com outro
antigo morador da CEI, o guineense Vasco Cabral (1926-2005) que se tornaria
um dos dirigentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e
Cabo Verde) e participante do governo da Guiné-Bissau entre 1974 e 2004. Em
meio a esta intensa atividade política na CEI, espaço privilegiado de formação
política para os estudantes das colônias, também se desenvolveu ali uma
significativa atividade política clandestina na luta contra o colonialismo e
contra a própria ditadura em Portugal. Da mesma CEI surgiria outro cantor
angolano que teve certo êxito musical entre círculos oposicionistas em
Portugal: Rui Mingas. Além de ter sido atleta do Benfica e músico, teve maior
relevância ao integrar o governo angolano após a libertação colonial. Por fim,
também foi o autor da melodia de Angola, avante!, Hino Nacional de Angola a
partir de 1975, com letra de Manuel Rui Monteiro.
A situação política portuguesa levou o português Luís Cília a optar pelo
exílio em Paris, tornando-se, no início da década de 1960, uma das maiores
referências da canção de protesto portuguesa no estrangeiro, realizando
inúmeros espetáculos pela Europa. Foi um dos primeiros a compor canções
contra a guerra colonial, sendo também o autor do hino do Partido Comunista
Português. Suas primeiras canções foram gravadas em Paris, onde vivia
exilado. Seu primeiro disco intitula-se Portugal-Angola: Chants de Lutte,
gravado em 1964 pela Le Chant du Monde.
Este disco contou com canções compostas a partir de poesias do próprio
Cília (Resiste, Duas melodias, Canto do desertor), além de trabalhos de
poetas como Daniel Filipe (O meu país, Canta, Basta, O que menos importa),
Jonas Negalha (A bola, Regresso, Bairro de lata), Manuel Alegre (Exílio,
Canção final - canção de sempre), entre outros. Como o músico não esteve
sob o crivo da censura portuguesa, estas canções foram viscerais na crítica à
fratricida guerra, como na letra de Bairro de Lata: “[...] Bocas sem pão / E
cérebros sem escola, / Só existe dinheiro / Para a guerra de Angola / E para o
jornalista / Que ao povo brasileiro / Diz que Salazar / É um grande estadista”.
Em A bola, a violência surge como um conto de horror: “Rola sangrenta / Uma
bola / No chão / De Angola [...] / Soldados / Jogam / Futebol / Com a bola /
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Que pula / Sangrando[...] / Que gira / No solo / A cabeça / De um negro /
Sangrando / Que rola / No chão / De Angola.”
Estas canções só puderam ser gravadas no exterior. Porém, mesmo no
exílio, estes músicos foram vigiados pela ditadura portuguesa, afinal, havia
uma estrutura de circulação de informações sobre os exilados a partir de
informantes infiltrados em movimentos políticos e culturais de oposição à
ditadura e também a partir de boletins emitidos pelas embaixadas e
consulados portugueses. Por exemplo, durante um evento em Bruxelas,
organizado pelo Cercle du Libren Examen e pela Comissão Nacional de Socorro
aos Presos Políticos, os músicos Sérgio Godinho e Luís Cília foram alvo de
preocupação da polícia política, como fica claro na Informação de 23 de
março de 1972,16 por atuarem neste recital em que, além da denúncia contra
a prisão política em Portugal, foram realizadas palestras e debates contra a
colonização na África.
O cancioneiro produzido em Portugal atravessou uma significativa
mudança quando da renovação do Fado de Coimbra por José Afonso e por
Adriano Correia de Oliveira no início da década de 1960. Todavia, o salto
qualitativo no campo estético e mesmo técnico tem nos anos de 1971 e 1972
seu ponto de partida. Há uma recorrência na bibliografia portuguesa,  digase de passagem muito plausível,  em apontar cinco discos como
determinantes nesta nova canção portuguesa: Cantigas de Maio, de José
Afonso; Mudam-se os tempos, Mudam-se as vontades, de José Mário Branco;
Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho; Gente de aqui e agora, de Adriano
Correia de Oliveira; e Movimento Perpétuo, de Carlos Paredes, de 1972. Esta
produção rompe, ainda que não definitivamente, com a canção acompanhada
unicamente pela guitarra portuguesa. Até então este acompanhamento
caracterizava a chamada “balada”, e a partir de uma crescente produção
musical tornou-se um aspecto delimitador das possibilidades timbrísticas e
16
IAN/TT, Polícia Internacional de Defesa do Estado / Direcção-Geral de Segurança
(PIDE/DGS), proc. 11640 CI92, NT-7633. Apesar de informar sobre o evento na Bélgica, consta
ainda neste documento duas folhas com o programa do espetáculo anunciado para o dia 03 de
novembro de 1971, em Paris, contando com a presença dos mesmos Cília e Godinho, além do
músico português José Mário Branco e do grupo Los Chilenos, liderado por Juan Capra.
26
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
percussivas do que se fazia na canção portuguesa. Mesmo no disco
instrumental de Carlos Paredes, esta fase experimental se faz presente e
lúcida.
Com estes discos não temos um rompimento com uma tradição, mas a
ampliação das potencialidades desta canção mediante novos arranjos musicais
e vocais, além de uma decisiva mudança também nas letras das canções, em
que se manteve o uso da metáfora, mas com um exercício mais freqüente da
ironia e de uma crescente modernidade inerente ao texto. Por fim, a fase do
violão à tiracolo dentro e fora dos estúdios de gravação, daria lugar a uma
modernização e a uma maior inserção na indústria fonográfica.
O caso José Afonso
O músico José Afonso, entre as décadas de 1960 e 1970, constituiu-se
num símbolo da oposição política à ditadura no meio artístico. Ele começou
sua carreira em Coimbra, por meio do chamado Fado de Coimbra. Foi
estudante de Histórico-Filosóficas, na Universidade de Coimbra. Nasceu em 2
de agosto de 1929, em Aveiro, viveu ainda em Moçambique, Angola, Belmonte
e Coimbra, cumprindo o serviço militar em Mafra entre 1953 e 1955. Ao
retornar, iniciou suas atividades de professor em diferentes cidades,
lecionando ainda em Moçambique. Ao voltar a lecionar em Portugal, acabou
sendo expulso do ensino oficial por razões políticas. A partir daí, dividiu suas
atividades entre o ensino particular e o canto em apoio a inúmeras
associações populares.
Em 1964, o músico voltou a viver com sua esposa em Lourenço
Marques,17 onde reencontrou seus dois filhos que estavam sob os cuidados de
sua irmã Mariazinha. No ano seguinte, ainda em Moçambique, nasceria sua
outra filha. Segundo o próprio Zeca: “Na viagem de regresso de Moçambique
para Portugal comecei a curtir saudades [...]. E durante a viagem de barco,
fiz Lá no Xipangara canção meramente rememorativa  evocativa de
personagens e lugares que inseri no meu álbum Coro dos Tribunais”.18 Esta
17
Hoje, Maputo, capital de Moçambique.
No verso do verso. Disponível em: <http://www.aja.pt>. Acesso: 13 abr. 2007. Quanto ao
disco: AFONSO, José. Coro dos Tribunais. Lisboa: Movieplay (Orfeu), n º. JA8007, 1996 (o
18
27
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
canção traz toda uma percussão que a insere no espaço africano, para além
do ritmo, os vocais também remetem ao coro característico das matrizes de
muitos ritmos daquele continente. Apesar do ritmo mais alegre, a letra
contradiz a aparência: “Lá no Xepangara / Vai nascer menino / Dentro da
palhota / Tem a seu destino / Lá no Xepangara / Fica muito bem / Deitado na
esteira / Ao lado da mãe / Há-de ter um nome / Lá pro fim do ano / Se
morrer de fome / Tapa-se com um pano [...]”.
Outra canção com uma percussão semelhante e presente no mesmo disco
O Coro dos Tribunais é a conhecida O que faz falta. Curiosamente, a
percussão de sabor africano esteve a cargo do músico francês Michel
Delaporte. Novamente um coro remete à sonoridade africana com as vozes
dos músicos Vitorino, Fausto, Adriano Correia de Oliveira, José Niza, Carlos
Alberto Moniz e o próprio Zeca. Este é o primeiro disco do Zeca gravado após
a queda da ditadura, portanto, sem o crivo da Censura. Apesar da liberdade,
por razões de ordem técnica, foi gravado em Londres. A canção O que faz
falta é um marco do cancioneiro português. Foi (e é) freqüentemente
executada em espetáculos nas últimas três décadas. É uma canção de poesia
ácida, mas seu ritmo é celebrativo, impele à coletividade: “Quando a corja
topa da janela / O que faz falta / Quando o pão que comes sabe a merda / O
que faz falta / O que faz falta é avisar a malta [...] / O que faz falta é dar
poder a malta / O que faz falta.” Por fim, neste mesmo trabalho, o ritmo e os
corais africanos também aparecem em Ailé! Ailé!
O disco Enquanto há força, de 1978, coloca novamente a vertente
africana na obra de Zeca. Desta vez ele homenageia o Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA)19 em Um Homem Novo Veio da Mata:
“Colonialismo / Não passará / Imperialismo / Não passará / Veio da mata /
Um homem novo / Do M. P. L. A. / A cor da pele / Não é motivo / Pra
distinguir / Angola nova / Só há que unir [...]”. Em Eu, o povo, com letra de
Barnabé João e música de José Afonso e Fausto, os compositores manifestam
original é de 1974). A canção que dá título ao disco é uma versão de Luís Rabello de um
poema de Bertolt Brecht e foi musicado por Zeca.
19
Chico Buarque faz uma referência ao movimento em sua canção Morena de Angola, de 1980
e sucesso na voz de Clara Nunes: “[...] Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na
canela / Morena, bichinha danada, minha camarada do MPLA”.
28
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
seu apoio à luta do povo moçambicano em meio às disputas pelo poder ao
cabo do colonialismo: “[...] A táctica colonialista é deixar o Povo ao natural /
Fazendo do Povo um inimigo da Natureza / Eu, o Povo Moçambicano / Vou
conhecer as minhas grandes forças todas”.
Um dos primeiros registros de Zeca Afonso em relação à Guerra Colonial
foi feito em 1969 quando da gravação de Menina dos olhos tristes, a partir do
poema homônimo de Reinaldo Ferreira:
Menina dos olhos tristes
O que tanto a faz chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Vamos senhor pensativo
olhe o cachimbo a apagar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Senhora de olhos cansados
porque a fatiga o tear
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Anda bem triste um amigo
uma carta o fez chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
A lua que é viajante
é que nos pode informar
o soldadinho já volta
está mesmo quase a chegar
Vem numa caixa de pinho
do outro lado do mar
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar.
O autor do poema, Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira, nasceu
em Barcelona em 20 de Março de 1922. Morreu em Lourenço Marques (onde
vivia desde 1941), Moçambique, em 30 de Junho de 1959. É autor da famosa
letra da canção Uma casa portuguesa, gravada por Amália Rodrigues. Autor de
inúmeros poemas, sua Menina é vista como uma crítica às ações no Ultramar,
porém, é possível: “[...] que tivesse por horizonte a Segunda Guerra Mundial
29
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
(1939-1945), mas nunca a Guerra Colonial que não chegou a conhecer”.20
Esta canção foi anteriormente gravada por Adriano Correia de Oliveira
em 1964. O mesmo tema da guerra apareceria numa outra gravação de
Adriano, Barcas Novas, com poema de Fiama Hasse Pais Brandão e música de
sua autoria: “De Lisboa sobre o mar / Barcas novas são mandadas / Barcas
novas levam guerra / Sobre o mar com suas armas”. Porém, foi a canção
Pedro Soldado, a partir de um poema de Manuel Alegre, que se tornaria muito
conhecida em fins da década de 1960: “Soldado número tal / só a morte é que
foi dele / Jaz morto. Ponto final. / O nome morreu com ele / Deixou um saco
bordado / e era Pedro Soldado.” O pescador partiria num barco não mais para
pescar, mas para guerrear em África. O mesmo Pedro voltaria morto num
saco, destino comum de milhares de africanos e portugueses.
Segundo João Afonso dos Santos, irmão do Zeca, as vivências de seu
irmão na África apareceriam mais tarde e: “[...] mergulham nessas
convivências os sincretismos musicais afro-europeus que depois apareceram
dispersos por vários discos editados a partir de 1970”.
Sobre suas
composições de matrizes africanas assevera: “[...] sempre estranhei que
canções como Carta a Miguel Djéjé ou Lá no Xipangara, por exemplo, não
desfrutem dum favor pelos menos igual ao de outras mais notórias, pela
frescura da inovação, o arranjo musical e a construção melódica.” Estas
memórias, por sua vez, reverberaram em canções como: “Avenida de Angola,
que ele trouxe de Lourenço Marques com a bagagem, inspirada é certo por
quadros dos subúrbios negros da capital, é ainda uma canção exclusivamente
portuguesa, na estrutura melódica e rítmica”.21
O próprio Zeca, numa gravação de um espetáculo ao vivo de 1983,22
explicaria o arranjo feito para a canção Milho Verde, de domínio público.
Nesta fala ele aponta um outro dado, no caso, as similitudes entre os ritmos
encontrados na África e em Portugal: “Vamos misturar aqui um ritmo mais ou
20
Disponível em: <http://vejambem.blogspot.com/2005/09/menina-dos-olhos-tristes.html>.
Acesso em: 22 abr. 2007.
21
Disponível em: <http://vejambem.blogspot.com/2006/12/l-no-xipangara-joo-afonso-dossantos.html>. Acesso em: 22 abr. 2007.
22
Ao Vivo no Coliseu. Sasseti, 1983. 33 rpm, DIAP 16050/1 (LP). Gravado ao vivo no Coliseu de
Lisboa em 29 de Janeiro de 1983.
30
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
menos da Beira Baixa com umas tumbadoras que darão um toque africano.
Aliás, eu creio que existem muitas semelhanças entre as canções da Beira e
muitos ritmos africanos, sobretudo de Angola.”
Esta profícua produção musical de Zeca Afonso não passou despercebida
pelos órgãos de repressão. Afinal, ele aliava a sua atuação musical a uma
sistemática participação política junto aos movimentos oposicionistas. Tal
trajetória levou o músico a ser fichado e vigiado pela polícia política. A pasta
de José Afonso no arquivo da PIDE/DGS abarca uma documentação numerosa
e diversificada. Repetem-se dezenas de relatórios de espetáculos (como o de
Grândola, em 19 de janeiro de 1970) que contaram com a participação de
Zeca e de algum agente ou informante que produziu a informação. Em vários
destes eventos também é citada a participação do músico Rui de Melo Pato
que lhe acompanhou em inúmeros shows e gravações. A ficha de Rui Pato na
PIDE traz um histórico de sua participação no movimento estudantil a partir
de 1963 e uma abundante coletânea de informes sobre sua participação em
espetáculos.23
Apesar de não citar o nome de Zeca, também há um dossiê sobre o grupo
revolucionário LUAR (Liga de União e Acção Revolucionária) em sua pasta, o
que leva a crer que ele já era observado por suas ligações com o grupo.
Também consta um Auto de Declarações de 23 de maio de 1968, com o
registro do depoimento do músico sobre a publicação de sua coletânea de
poesias intitulada Cantares, proibida em todo país. Entre estes documentos,
um Auto de Prisão de 04 de outubro de 1971, motivado por “[...] averiguações
sobre o exercício de actividades atentatórias da Segurança de Estado”.24
Junto à bagagem do “acusado” foram encontrados: “[...] um livro com o
título Terrorisme et Comunisme; duas folhas de papel contendo a letra de
uma canção, com o título Na Rua António Maria; uma folha contendo
apontamentos manuscritos que começam por Vejam Bem”.25 Zeca, depois de
prestar depoimento, foi solto no mesmo dia. Nestes autos estão anexas cópias
de suas letras musicais Morte Clériga (na verdade, a mesma letra, com a
23
IAN/TT, PIDE/DGS, Pasta Rui de Melo Pato, proc. 11014 CI (2), NT-7612.
Idem, Pasta José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, proc. 448/71, NT-6255, p. 400-02.
25
Idem, proc. 448/71, NT-6255.
24
31
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
ausência de três frases, de O Avô Cavernoso) com sua anotação à mão:
“Lourenço Marques 1965 e Setúbal 1970”; Na Rua António Maria (logradouro
em que se localizava a sede da PIDE/DGS), que levou os agentes a perguntar
se era uma crítica à polícia e Zeca responder que “[...] sim, mas não de forma
ofensiva”.
O músico é novamente preso em 30 de abril de 1973 pelo mesmo motivo
anterior, mas desta vez, segundo os autos, “[...] foi encontrada e apreendida
grande quantidade de documentos de carácter político”.26 No Auto de
Perguntas informa-se que foi negado o pedido de advogado feito por Zeca.
Perguntado sobre sua posição política afirmou ser “progressista e democrata”.
No Auto de Arrolamento são elencados materiais “subversivos” encontrados
em sua casa, manifestos, jornais, relatórios, conclusões do II Congresso da
Oposição Democrática, panfletos e programas de movimentos sociais e
políticos da Galícia e do Partido Comunista Espanhol, entre outros. Sobre esta
documentação reconheceu que estavam em sua casa, mas que desconhecia a
origem de boa parte dela e que em sua casa passava muita gente e as pessoas
deixavam lá os documentos sem a sua autorização.
Consta ainda neste processo pedidos de Zeca para poder ter um
advogado e para receber a visita de sua esposa e de seus filhos, para ter
acesso a livros e a um gravador para registrar as canções que viesse a compor
na prisão de Caxias. Também está adensada a seus autos uma informação de
um agente da DGS sobre o músico: “[...] bastante conhecido pela natureza de
suas canções que compõe e interpreta, vem desenvolvendo larga actividade
contrária à ordem social estabelecida no País, nomeadamente nos meios
‘juvenil’, ‘estudantil’, ‘cultural’ e ‘democrático’ [...]”.27 Por fim, é solto em
19 de maio de 1973 mediante o pagamento de uma caução.
Com a Revolução dos Cravos, Zeca Afonso mantém sua imagem associada
aos movimentos populares e reivindicatórios, muito embora sua crescente
sofisticação literária e musical pudesse afastá-lo das classes populares.
Contudo, é sempre difícil mensurar a inserção destas canções em diferentes
26
Idem, proc. 251/73, NT-6380.
IAN/TT, PIDE/DGS, Pasta José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, proc. 448/71, NT-6255,
p. 191, Informação de 29 abr. 1973.
27
32
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
camadas da sociedade. Como apontamos anteriormente, seus discos pósditadura vão incorporando os lugares por onde viveu. Nesse sentido, a África
foi inúmeras vezes o cenário de suas composições. Seu último disco, Galinhas
do Mato,28 de 1985, atesta esta assertiva. Ele já se encontrava numa situação
muito delicada com sua rara doença e cantou unicamente dois temas neste
disco. Este trabalho, apesar de pouco referido, é um marco no cancioneiro
português.
As soluções melódicas e timbrísticas encontradas revelam a maturidade
de Zeca e dos outros dois arranjadores Júlio Pereira e José Mário Branco. A
incorporação de sintetizadores e computadores de ritmo, paradoxalmente,
possibilitou a construção de referenciais típicos da música africana. O
trabalho vocal também foi um outro diferencial. Por força da doença, Zeca
teve que escolher outros cantores e isso não desvirtuou sua proposta, mas
possibilitou novas experiências interpretativas nas vozes de Luis Represas,
Janita Salomé, Né Ladeiras, José Mário Branco, Helena Vieira, Catarina,
Toinás e Marta Salomé. A canção que dá título ao disco não possui letra,
sendo interpretada por vocalises de um coro que imita uma sonoridade
africana. A entrada de Portugal na modernidade européia é ironizada em
Década de Salomé: “Estamos na Europa / Civilizados / já cá faltava / uma
maison / pour la patrie / plo Volkswagen / acabou-se a forragem [...] / Aos
grandes Super-Mercados / chega a cultura num bi-camion / Camões e Eça
vendem-se enlatados / lavados com “champon” [...]”.
Conclusões
O cancioneiro de José Afonso tem uma breve fase (após a queda da
ditadura) de canções mais engajadas e algumas delas datadas, mas sua
produção não se resumiu aos protestos contra a ditadura e à condição
humana. Há inúmeras canções que remetem às festas portuguesas, suas
danças, coletadas do domínio popular, algumas remontando a séculos atrás.
29
Há também muitas narrativas surreais em seu cancioneiro, o que lhe
28
Galinhas do Mato. Transmédia, 1985. 33 rpm, SLP 007.
Como a canção Bailia: trovas de Airas Nunes, século XIII, adaptadas por José Afonso em
1969. In: AFONSO, José. Contos velhos rumos novos. Porto: Orfeu, 1969. 33 rpm, stereo, n.
STAT-004.
29
33
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diferenciava dos outros compositores. Por outro lado, o engajamento que lhe
fez fama não era sinônimo de falta de qualidade. Afinal, a sensibilidade e a
qualidade estética foram recorrentes em sua produção. Uma outra marca
presente nos discos de José Afonso, reiteramos, são as experiências com
ritmos africanos que ele realizou a partir da década de 1960 e que só foram
retomadas na canção ocidental ou na dita world music nos últimos anos, como
“invenções”.
Apesar de não dominar a teoria musical, José Afonso produziu cerca de
trinta discos. Considerava a “canção de réplica” um dos melhores meios de
convencimento e politização das massas: “Parto da música para o texto [...]
Semeio palavras na música. Não tenho pretensões de dar a estas minhas
deambulações pela música qualquer outro rótulo. Faço apenas canções. A
canção insere-se sempre dentro de um processo”.30
Este músico ainda há de ser atual.31 Talvez, quando se colocar o homem
no centro das preocupações humanas não seja mais visto como antiquado.
Como diria o próprio Zeca em sua Utopia:
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria [...]
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta gaivota
Que outro fumo32 deverei seguir
na minha rota?
30
Discografia José Afonso  Centro de Documentação AJA, 2002. Disponível em:
<http://www.aja.pt/centrodedocumentacao/discografia.htm>. Acesso em: 25 jun. 2002.
31
A contemporaneidade inerente ao cancioneiro do Zeca é freqüentemente redescoberta
pelas gerações mais jovens em Portugal. Uma experiência recente com inúmeras das canções
aqui abordadas está presente no último disco da jovem cantora portuguesa Cristina Branco,
em seu CD Abril, lançado em 2007 pela Universal Music. Este belo trabalho conta unicamente
com canções de Zeca e com uma apresentação do crítico musical Viriato Teles que corrobora
nossas observações: “Se é verdade que a melhor maneira de avaliar o talento de um autor é
pela capacidade que a sua obra tem de suportar a erosão do tempo, então não pode haver
quaisquer dúvidas acerca da genialidade de José Afonso”.
32
Fumaça.
34
TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out.2008
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, John. Dicionário do 25 de Abril: Verde Fauna, Rubra Flora. Lisboa:
Nova Arrancada, 2002.
CANCIONEIRO para mocidade: canto colectivo. Lisboa: Serviço de Publicações
da Mocidade Portuguesa, 1969.
CARVALHO, Otelo Saraiva de. Alvorada em Abril. 4.ed. Lisboa: Editorial
Notícias, 1998.
FIUZA, Alexandre Felipe. Entre um samba e um fado: a censura e a repressão
aos músicos no Brasil e em Portugal nas décadas de 1960 e 1970. Assis, SP:
UNESP, 2006. (Tese de Doutorado).
PIRES, José Cardoso. Dinossauro Excelentíssimo. 6.ed. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1974.
SERRANO, Carlos. A luta de libertação nacional na África de língua portuguesa
e a crise do fascismo português. In: Espanha e Portugal: o fim das ditaduras.
São Paulo: Xamã, 1995.
35
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Representações do espaço africano na moderna canção