Publicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Ano XVI Número 29 jan./jun. 2011 - Natal/RN, 2011
COMISSÃO EDITORIAL
Presidente
Angelus Emilio Medeiros de Azevedo Maia
Membros
Ana Luiza de Morais Rodrigues
Izadora de Medeiros Souza
Mariana Nobre Medeiros e Silva
Thiago Augusto Lopes de Morais
Colaboradores
Albert Barcessat Gabbay
Herbet Miranda Pereira Filho
Laís Morais de Andrade
Nathália Maria Ariston Trindade
CONSELHO EDITORIAL
Artur Cortez Bonifácio
Anna Emanuella Nelson Dos Santos Cavalcanti Da Rocha
Camila Pinto Gadelha
Diogo Pignataro de Oliveira
Edilson Pereira Nobre Júnior
Elke Mendes Cunha
Fabiano André de Souza Mendonça
Fábio Wellington Ataíde Alves
Igor Alexandre Felipe de Macêdo
Ivan Lira de Carvalho
Jahyr Philippe Bichara
Jose Miqueias Antas de Gouveia
Luciano Athayde Chaves
Madson Ottoni de Almeida Rodrigues
Marcus Aurélio de Freitas Barros
Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro
Morton Luiz Faria De Medeiros
Noel de Oliveira Bastos
Otacílio dos Santos Neto
Patrícia Borba Vilar Guimarães
Paulo Renato Guedes Bezerra
Ricardo Procópio Bandeira de Melo
Ronaldo Pinheiro de Queiroz
Vladimir da Rocha França
Xisto Tiago de Medeiros Neto
REVISTA JURÍDICA IN VERBIS
Publicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Reitor
José Ivonildo do Rêgo
Vice-Reitora
Ângela Maria Paiva Cruz
Chefe do Departamento de Direito Privado
Jair Eloi de Souza
Coordenador da In Verbis
Xisto Tiago de Medeiros Neto
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
Diretora
Ana Lúcia Assunção Aragão
Vice-Diretora
Maria Lussieu da Silva
Coordenadora do Curso de Direito
Ana Beatriz Ferreira Rebello
Chefe do Departamento de Direito Público
Yanko Marcius De Alencar Xavier
DIAGRAMAÇÃO
Hélder Souza de Lima
REVISÃO
Comissão Editorial da Revista Jurídica In Verbis
TIRAGEM
450 Exemplares
Solicita-se permuta.
Pídese canje.
On demande l’échange.
Si richiede lo scambio.
We ask for exchange.
Wir bitten um austausch.
Revista Jurídica In Verbis / Publicação semestral dos Acadêmicos
do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. – Ano 16, n. 29 (jan./jun. 2011).
Semestral
ISSN 1413-2605
1. Direito – Periódicos. I. Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas - CCSA/UFRN
CDU - 34
Comissão Editorial da Revista Jurídica In Verbis
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Espaço Integrado CAAC - In Verbis
Av. Senador Salgado Filho, 3.000 - Setor I - Curso de Direito
Campus Universitário - Lagoa Nova - Natal/RN - CEP 59072-970
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E-mail: [email protected]
Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores. É permitida a
reprodução total ou parcial dos artigos desta Revista, desde que citada a fonte.
Sumário
EDITORIAL ............................................................................................................................ 07
A AÇÃO POPULAR E SUAS PECULIARIDADES NA DEFESA PATRIMÔNIO
PÚBLICO, MEIO AMBIENTE E MORALIDADE: UMA ANÁLISE CRÍTICA ..... 11
Diogo Caldas Leonardo Dantas
A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010: MUDANÇAS E APRIMORAMENTO NAS RELAÇÕES DE DIREITO PRIVADO .................................................. 29
Natália Luiza Lima Dantas Lira
Julliane Pinto de Aquino
A IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DA IDADE PENAL MÍNIMA: UMA ABORDAGEM CRÍTICA PELA SUSTENTAÇÃO DO CARÁTER PÉTREO DO ARTIGO
228 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ........................................................................... 45
Richardy Videnov Alves dos Santos
A LIMITAÇÃO TERRITORIAL DOS EFEITOS DA COISA JULGADA NA AÇÃO
CIVIL PÚBLICA: ART. 16 DA LEI 7.347/1995 ....................................................... 65
Josaniel Cabral de Oliveira
CONTROLE DOS INCENTIVOS FISCAIS PELO PODER JUDICIÁRIO PELO
PARÂMETRO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA ............................................................... 85
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
CONTROLE E FISCALIZAÇÃO DAS ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR .... 105
Ana Cristina Diógenes Rêgo
Davi Costa Feitosa Alves
ENTRE O MITO E A REALIDADE: A VISÃO DE KELSEN E MALINOWSKI SOBRE
O DIREITO NAS SOCIEDADES ÁGRAFAS .............................................................. 123
Roberto Fernando de Amorim Júnior
ÉTICA DO ACADÊMICO DE DIREITO: CRISE NA UFRN ................................... 139
Thaissa Lauar Leite
NULIDADE DAS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS ACERCA DA “FLEXIBILIZAÇÃO”
DAS NORMAS RELATIVAS ÀS HORAS IN ITINERE ............................................. 159
Louise Caroline Pinheiro de Souza
O TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOS ARTISTAS MIRINS SOB UMA PERSPECTIVA CRÍTICA DO DIREITO FUNDAMENTAL À PROFISSIONALIZAÇÃO
................................................................................................................................................. 179
Ana Paula Barros Amaral Oliveira
Nathalie Maia Chung
SUCESSÃO PRESIDENCIAL INTERINA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A
POSSIBILIDADE DE DEPUTADO FEDERAL COM IDADE INFERIOR A 35 ANOS,
NA CONDIÇÃO DE PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, ASSUMIR
A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA INTERINAMENTE ........................................ 197
Tiago Mantoan Farias Nunes
TUTELA COLETIVA DOS IDOSOS: UM ENFOQUE SOBRE O ESTATUTO DO
IDOSO E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ................................................ 217
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
UMA NOVA FEIÇÃO DO PARADIGMA DA NECESSIDADE NA ATUAÇÃO DA
DEFENSORIA PÚBLICA EM DEFESA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS:
ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS ...................................................................... 235
Bruno Montenegro Ribeiro Dantas
REFLEXÕES SOBRE NAÇÃO, ESTADO SOCIAL E SOBERANIA .................... 251
Paulo Bonavides
Editorial
O trabalho foi árduo e exaustivo, no caminho houve pedras e obstáculos, porém a despeito de tudo isso, chegamos ilesos e vitoriosos. Naturalmente que marcas se fazem presentes, como em toda difícil jornada. Mas
o que importa é que lançamos mais uma edição da Revista Jurídica In Verbis.
Completamos, enfim, 15 anos. Uma década e meia de competência,
prestígio e tradição. Nada obstante, a credibilidade alcançada ao longo desses
anos não foi simplesmente adquirida, mas sim conquistada. Somos adeptos
da idéia de que grandes feitos não se realizam com facilidade. A verdadeira
grandeza da conquista está no mérito em obtê-la. E essa é a realidade do
nosso projeto. NOSSO. A Revista In Verbis surgiu no seio do curso de Direito da
UFRN, e lá se desenvolveu até consolidar a sua imagem e romper as fronteiras
da Universidade, consubstanciando-se atualmente em um dos principais
periódicos acadêmicos do país.
Quem poderia imaginar que um projeto idealizado por oito estudantes e nascido de um improviso pudesse tomar as formas e proporções que
adquiriu ao perpassar desses quinze anos. Aliás, quem diria que essa iniciativa
simplesmente sobreviveria ao tempo, tão cruel e tão impiedoso com os planos
e sonhos juvenis.
Entretanto, existem ideais que são mais fortes que qualquer lapso
temporal. A In Verbis, pela nobreza de seu propósito, sobreviveria a milênios
que fossem, afinal o que é verdadeiramente bom não perece e jamais padece.
Todas as Comissões Editoriais que passaram por esta Revista, irrefragavelmente, conjugaram os verbos ”sonhar” e “crescer”, sempre com o
desígnio de proporcionar um trabalho cada vez mais relevante ao meio jurídico
potiguar. Contudo, no que diz respeito ao trabalho dessa Comissão, em especial, podemos afirmar categoricamente que aprendemos a conjugar um novo
verbo. “Realizar”. Aprendemos a ir além, a nos superar. E nesse sentido foram
empreendidos todos os nossos esforços. Como conseqüência, prosseguimos
com a política de valorização dos autores, responsáveis diretos pela perenidade
do nosso periódico através de suas produções de altíssimo nível; reformamos
o edital de publicação, tornando-o mais claro e inteligível; consolidamos a
submissão on-line, iniciada na Comissão anterior e tornada realidade nessa
edição, cujo processo de editoração foi integralmente virtualizado, além de
diversas outras mudanças visualmente perceptíveis. Essa postura vanguardista
que sempre pautou o trabalho de todas as Comissões Editoriais da In Verbis
demonstra que o casamento entre Tradição e Inovação compõe um dos motivos do nosso perene sucesso.
Nascemos com o desiderato de proporcionar aos acadêmicos do
curso de Direito da UFRN um meio de credibilidade para a veiculação dos seus
trabalhos. Um veículo pelo qual se tornaria possível a exposição de seus ideais
e dos resultados de suas pesquisas, não só frutos de um estudo acurado, mas,
sobretudo, uma forma de fazer jus ao investimento depositado pela sociedade
no financiamento de nossa educação.
A produção de conhecimento é um dos modos mais nobres de
contribuir com a comunidade, afinal, honra de forma fiel a nossa condição de
acadêmicos dedicados ao desenvolvimento do saber jurídico.
Aliás, a Revista Jurídica In Verbis age como instrumento de transformação social, enquanto projeto de extensão, afinal fomenta a pesquisa e
estimula a produção acadêmica. Através do desenvolvimento dessas ações
contribuímos para o avanço da ciência jurídica, e, como conseqüência disto
fortalecemos a justiça, que se configura como uma das principais fontes de
pacificação dos conflitos sociais.
Diante de todo o exposto, resta-se óbvio que não somos unicamente
o periódico mais antigo do país organizado por estudantes, fato que muito nos
orgulha. Não somos somente um meio de publicação de artigos científicos.
Somos, acima de qualquer coisa, a voz de toda uma comunidade acadêmica,
e, imprimimos em nossas páginas a história do curso de Direito.
Portanto, caros leitores, desejamos uma excelente e proveitosa leitura.
A Comissão Editorial.
Artigos
A AÇÃO POPULAR E SUAS
PECULIARIDADES NA
DEFESA PATRIMÔNIO
PÚBLICO, MEIO AMBIENTE
E MORALIDADE: UMA
ANÁLISE CRÍTICA
Diogo Caldas Leonardo Dantas
Acadêmico do 9º período do
Curso de Direito da UFRN.
RESUMO
A Actio Popularis se mostra como mecanismo salutar
para defesa do patrimônio público, meio ambiente
e moralidade, apresentando-se como meio hábil de
controle jurisdicional da Administração Pública. A lei
4.171/65 traz peculiaridades interessantes em seu
corpo, como a técnica legislativa e alguns instrumentos presente em seu interior. Contudo, a mesma
lei expõe condições e procedimento que resultam
muitas vezes na ineficácia da Ação Popular. Através
de uma análise crítica busca-se demonstrar que a
ação em estudo se mostra como meio democrático
da defesa dos interesses do cidadão, analisando
seus benefícios e defeitos para uma efetiva tutela
dos direitos protegidos por ela. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial,
além da interpretação de textos legais correlatos ao
tema. Diante do estudo realizado, conclui-se que,
apesar dos problemas apontados, a Actio Popularis possui um incrível potencial para o controle
democrático dos atos do Poder Público, bem como
para a defesa do patrimônio público, meio ambiente
e moralidade, buscando responsabilizar os agentes
que de alguma forma causarem dano aos mesmos,
através de uma atuação política do cidadão.
Palavras-chave: Ação Popular. Objeto. Patrimônio
público. Legitimidade. Controle jurisdicional. Administração Pública. Ato administrativo.
A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,
meio ambiente e moralidade: uma análise crítica
12
1 INTRODUÇÃO
A Ação Popular se mostra como antigo mecanismo jurídico
brasileiro, estando presente, ainda que de forma embrionária, até mesmo
no antigo regime das Ordenações, apresentando-se, mesmo naquela época,
como meio de defesa ou conservação da coisa pública, possuindo, contudo
formato um pouco distante do que é dada hoje. Somente com o passar do
tempo é que ela adquiriu a estrutura dada atualmente.
Contudo, mesmo se tratando de ação presente, ao menos embrionariamente, em diversos momentos históricos do ordenamento jurídico
brasileiro, somente com o advento da Lei 4.717/65 é que ela adquiriu o formato
conhecido no presente, se mostrando como meio de extrema relevância para
a defesa do patrimônio público.
A supracitada Lei se mostra muitas vezes arcaica1, se comparada
com diversos mecanismos atuais, fruto da técnica legislativa da época e da inexistência de pesquisas doutrinárias acerca de certos mecanismos. Além disso,
apresenta certas peculiaridades, incomuns na legislação vigente, e obstáculos
que acabam por muitas vezes tolher a sua aplicabilidade em determinados
casos concretos.
Diante do exposto, a discussão do tema se mostra relevante, para,
através de uma analise crítica, situar questões polêmicas da referida Lei, suas
peculiaridades e características interessantes, uma vez que, diante de sua
importância para a concretização do princípio democrático e da defesa do
patrimônio público, a Ação Popular se mostra como meio importante de se
buscar moralizar a Administração Pública.
2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO OBJETO DA AÇÃO POPULAR
Primeiramente, algumas ponderações se mostram necessárias
para melhor entendermos a Ação Popular e sua aplicação no ordenamento
jurídico brasileiro e na prática forense, precisando-se delinear seu objeto e a
aplicação da ação em estudo, para que, posteriormente, se possa adentrar na
problemática.
Por exemplo, a título de curiosidade, atenta-se para a técnica legislativa da época, mais especificamente o artigo 7º, onde o parágrafo aparece como subitem do inciso.
1
Diogo Caldas Leonardo Dantas
Inicialmente, destaque-se, que o termo “objeto” da ação é usado em
diversos sentidos, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, causando
confusão para os demais estudiosos do direito, sendo aplicado muitas vezes
no sentido de “objetivo” da ação. Somente para ilustrar o uso destoante de
tal termo e para se dar início a análise do objeto da presente ação, eis os entendimentos de dois eminentes doutrinadores: “O ato objeto da ação popular
é o ato ilegal e lesivo ao patrimônio público” (MEIRELLES, 2007, p. 136) [grifos
do autor] e “No conceito concreto de ação, o objeto desta pode ser ‘o efeito a
que se tende o poder de agir; aquilo que se pede (petitium)’” (SILVA, 2007, p.
104) [grifos do autor]. Seguimos o entendimento de Meirelles, considerando
o objeto da ação popular o ato ilegal e lesivo ao patrimônio público.
O inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição Federal dispõe acerca
da Actio Popularis, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:[...] LXXIII - qualquer
cidadão é parte legítima para propor ação popular que
vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de
entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico
e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé,
isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
[grifos nossos]
A Constituição Federal de 1988, ao dispor acerca da Ação Popular,
acabou expandindo o objeto da mesma, inserindo sobre sua égide o meio
ambiente e a moralidade administrativa, inovações trazidas pela Carta Magna,
não presentes no texto da Lei 4.717/65. Destarte, atos de entidade pública
lesivos ao meio ambiente e a moralidade administrativa poderão ser objeto
da Actio Popularis.
Além dessas possibilidades trazidas pela Carta Magna, existem as
hipóteses já presentes na no corpo da Lei 4.717/65, presentes em seu artigo
1º, 2º , que dispõem:
Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos
13
A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,
meio ambiente e moralidade: uma análise crítica
14
ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados,
dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades
de economia mista, de sociedades mútuas de seguro
nas quais a União represente os segurados ausentes, de
empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de
instituições ou fundações para cuja criação ou custeio
o tesouro público haja concorrido ou concorra com
mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da
União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios,
e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos. § 1º - Consideram-se
patrimônio público para os fins referidos neste artigo,
os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. [...] Art. 2º São nulos os atos
lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no
artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício
de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos
motivos; e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a
conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as
seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada
quando o ato não se incluir nas atribuições legais do
agente que o praticou; b) o vício de forma consiste na
omissão ou na observância incompleta ou irregular de
formalidades indispensáveis à existência ou seriedade
do ato; c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento
ou outro ato normativo; d) a inexistência dos motivos
se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em
que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente
ou juridicamente inadequada ao resultado obtido; e) o
desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica
o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita
ou implicitamente, na regra de competência. 2
Contudo, o legislador foi além, inserindo no artigo 4º uma extensa
Por oportuno, destaque-se uma peculiaridade interessante do artigo 2º, que, ao tentar determinar os atos que seriam considerados nulos, acaba por fazer uma conceituação legal dos elementos dos atos administrativos.
2
Diogo Caldas Leonardo Dantas
lista de atos ou contratos que seriam considerados nulos e que podem ser
objeto da presente ação:
Art. 4º São também nulos os seguintes atos ou contratos,
praticados ou celebrados por quaisquer das pessoas ou
entidades referidas no art. 1º. I - A admissão ao serviço
público remunerado, com desobediência, quanto às
condições de habilitação, das normas legais, regulamentares ou constantes de instruções gerais. II - A operação
bancária ou de crédito real, quando: a) for realizada com
desobediência a normas legais, regulamentares, estatutárias, regimentais ou internas; b) o valor real do bem
dado em hipoteca ou penhor for inferior ao constante
de escritura, contrato ou avaliação. III - A empreitada,
a tarefa e a concessão do serviço público, quando: a) o
respectivo contrato houver sido celebrado sem prévia
concorrência pública ou administrativa, sem que essa
condição seja estabelecida em lei, regulamento ou
norma geral; b) no edital de concorrência forem incluídas cláusulas ou condições, que comprometam o seu
caráter competitivo; c) a concorrência administrativa
for processada em condições que impliquem na limitação das possibilidades normais de competição. IV - As
modificações ou vantagens, inclusive prorrogações que
forem admitidas, em favor do adjudicatário, durante a
execução dos contratos de empreitada, tarefa e concessão de serviço público, sem que estejam previstas
em lei ou nos respectivos instrumentos., V - A compra
e venda de bens móveis ou imóveis, nos casos em que
não cabível concorrência pública ou administrativa,
quando: a) for realizada com desobediência a normas
legais, regulamentares, ou constantes de instruções
gerais; b) o preço de compra dos bens for superior ao
corrente no mercado, na época da operação; c) o preço
de venda dos bens for inferior ao corrente no mercado,
na época da operação. VI - A concessão de licença de
exportação ou importação, qualquer que seja a sua
modalidade, quando: a) houver sido praticada com
violação das normas legais e regulamentares ou de instruções e ordens de serviço; b) resultar em exceção ou
privilégio, em favor de exportador ou importador. VII - A
operação de redesconto quando sob qualquer aspecto,
15
16
A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,
meio ambiente e moralidade: uma análise crítica
inclusive o limite de valor, desobedecer a normas legais,
regulamentares ou constantes de instruções gerais.
VIII - O empréstimo concedido pelo Banco Central da
República, quando: a) concedido com desobediência de
quaisquer normas legais, regulamentares, regimentais
ou constantes de instruções gerias: b) o valor dos bens
dados em garantia, na época da operação, for inferior
ao da avaliação. IX - A emissão, quando efetuada sem
observância das normas constitucionais, legais e regulamentadoras que regem a espécie.
Ao se analisar ditos artigos se percebe que a Lei é notadamente
casuística, trazendo algumas questões de ordem prática que devem ser analisados pormenorizadamente.
Inicialmente, necessário se questionar se seriam as hipóteses listadas
pela lei taxativas ou exemplificativas. Existem posicionamentos a favor para
ambos os entendimentos.
Se considerados taxativos, então somente seria aplicável a Ação
Popular no combate dos atos listados nos artigos demonstrados. Embora
sensivelmente amplo, uma vez que o legislador se mostrou extremamente
minucioso, tal interpretação acabaria por reduzir consideravelmente o objeto
da ação em análise, tolhendo sua aplicação.
Assim, com a devida vênia, ousamos discordar desse entendimento.
Primeiramente, o problema da taxatividade das hipóteses trazidas
pela lei é somente aparente, uma vez que o legislador usou, em diversas passagens, termos genéricos, que poderão ser usados pelo aplicador do direito
para a ampliação do objeto.
Além disso, há a previsão constitucional, já citada, que abre a possibilidade do uso da Actio Popularis para o combate ao “ato lesivo ao patrimônio
público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa,
ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”, dando ensejo a uma
aplicação ampla da Ação Popular. Ora, mesmo se o ato considerado não estiver
listado de modo específico nos artigos da Lei 4.717/65, poderá ser facilmente
enquadrado, por exemplo, no artigo 1º da lei supracitada, uma vez que este
traça, de forma genérica, o objeto da Ação Popular, ao usar, por exemplo, a
expressão “atos lesivos ao patrimônio da União”, onde diversas atitudes podem
se enquadrar em tal hipótese, por ser demasiadamente ampla.
Destaque-se que, se vigorasse o entendimento que a listagem feita
pela Lei da Ação Popular é taxativa, ficariam excluídas até mesmo as hipóteses
Diogo Caldas Leonardo Dantas
trazidas pela Constituição Federal, fato que não compactua com o defendido
pelo nosso ordenamento jurídico, onde a Lei Maior se mostra suprema.
Por oportuno, deve-se considerar que achou adequado o constituinte de 1988 expandir o objeto da ação em análise em busca de um mecanismo mais eficiente de atuação política do cidadão, protegendo não só a
o patrimônio público, mas o meio ambiente e a moralidade administrativa.
Dessa forma, buscou suprir o que considerou ser uma omissão do legislador
de 1965, buscando por tornar a Actio Popularis um meio de concretização do
princípio democrático.
Destarte, como consequência do entendimento que também é por
nós defendido, a doutrina e a jurisprudência 3 tem aceitado até mesmo a possibilidade de ajuizamento da Ação Popular contra lei, desde que essa possua
efeitos concretos, não estando esta hipótese elencada tanto pela Lei 4.717/65,
nem pela Constituição, mas sendo aplicada uma vez que esta situação venha
a causar dano ao patrimônio público
No tocante a este tema, discute-se a possibilidade de uso da ação
em análise também contra a lei em tese ou contra ato jurisdicional. No primeiro
caso, o entendimento majoritário segue no sentido de sua impossibilidade,
uma vez que as ações de controle de constitucionalidade seriam meio hábil e
mais eficiente para tal. Já no caso de ato jurisdicional o entendimento também
majoritário é pela sua impossibilidade, defendendo-se o uso dos recursos
para tanto.
3 A LEGITIMIDADE E SUAS PECULIARIDADES
3.1 A possibilidade de se atuar tanto no pólo passivo quanto no pólo
ativo da ação
A Actio Popularis traz a possibilidade do réu se juntar ao autor no pólo
ativo, desde que seja consequência do interesse público. Esta característica
se mostra como reflexo da natureza dúplice da ação, característica presente
em algumas ações de procedimentos especiais (como a ação de prestação de
contas) e nas ações coletivas (como a ação direta de inconstitucionalidade).
A natureza dúplice de uma ação é a característica onde há uma
3
Superior Tribunal de Justiça. Resp 776.848. T1. Min, Luiz Fux. J. 16/12/2008. DJe 06/08/2009
17
18
A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,
meio ambiente e moralidade: uma análise crítica
“confusão” entre o pólo ativo e o passivo, existindo a possibilidade de, em uma
ação, a improcedência da pretensão do autor poder resultar na procedência
de uma pretensão implícita do réu.
Contudo, apesar da presente característica existir em outras ações,
em nenhuma destas este efeito se mostra tão presente e de forma tão incomum.
Primeiramente, a ação popular é uma das poucas que traz tal possibilidade
positivada (art. 6º, §3º, Lei 4.717/65). Em segundo lugar, devido a esta positivação, efetivamente poderá ocorrer a confusão do pólo passivo com o ativo,
uma vez que existe a possibilidade de o réu se juntar de fato ao autor da ação
no pólo ativo, fato incomum nas demais ações com esta característica, onde
normalmente não existe essa “fusão” de fato, mas somente a possibilidade de
procedência de uma pretensão implícita do réu.
Realizadas essas considerações inicias, analisemos o instituto supracitado. Dispõe o art. 6º, §3º da Lei 4.717/65 que:
Art. 6º A ação será proposta contra as pessoas públicas
ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra
as autoridades, funcionários ou administradores que
houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado
o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado
oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos
do mesmo. [...] § 3º As pessoas jurídica de direito público
ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá
atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao
interesse público, a juízo do respectivo representante legal
ou dirigente. [grifos nossos]
O caráter dúplice da ação popular está presente na parte final do
§3º. De acordo com esse instituto, está facultado ao réu (que precisa ser a
pessoa jurídica de direito público ou direito privado cujo ato seja objeto da
ação) participar da ação também no pólo ativo ao lado do autor, desde que
em prol do interesse público.
Assim, ao fazer tal opção pela participação no pólo ativo, a pessoa
jurídica (sempre relembrando que pode ser tanto de direito público quanto
privado) ré acaba por confessar expressamente, atuando no pólo ativo junto
com o autor em benefício do interesse público, em prol do pedido realizado
na inicial.
Tal possibilidade é extremamente comum quando há uma mudança
Diogo Caldas Leonardo Dantas
de Administração e o ato a ser impugnado é da Administração anterior, agindo
a subsequente também no intuito de ver o ato lesivo impugnado.
Imagine a situação onde um opositor de um prefeito de um dado
município (ou qualquer outra autoridade de cargo político eletivo) ajuíza,
com intuito eleitoreiro, a Actio Popularis contra determinado ato do município.
Nesta situação, a ação, como determina o artigo 6º da Lei 4.717, é proposta
contra a prefeitura (pessoa jurídica autora do ato), contra o secretário que
porventura tenha autorizado o ato e contra os beneficiários diretos deste. Na
próxima eleição, o autor da ação acaba sendo eleito para ocupar o lugar de
seu opositor na prefeitura, passando a figurar tanto no pólo ativo e passivo da
ação, uma vez que esta ainda estava em curso. Destarte, o novo ocupante do
cargo (autor da ação) opta por fazer a prefeitura atuar também no pólo ativo
para ajudar na devida averiguação do caso.
Os Tribunais brasileiros têm aceitado tal possibilidade.
Além disso, ressalte-se que como consequência dessas singularidades quanto a legitimação para agir, pode ocorrer a decomposição dos pedidos formulados, podendo o poder público assumir a postura supracitada em
relação a um dos pedidos cumulados e manter-se no pólo passivo em relação
aos demais. Como consequência, pode, por exemplo, a União figurar no pólo
ativo buscando o ressarcimento erário devido ao prejuízo causado pelo ato
lesivo, mas atuar também no pólo passivo em decorrência de outro pedido 4.
3.2 A legitimidade passiva como obstáculo para a efetividade da Ação
Popular
As condições da ação são consideradas requisitos sem as qual
resultariam na extinção do processo sem análise do mérito. Resultado principalmente dos estudos realizados pelo doutrinador italiano Liebman, ditas
condições, as quais o ordenamento jurídico pátrio adota, são consideradas
indispensáveis, necessitando serem preenchidas para o exercício do direito
de ação. Dentre elas, destaca-se a legitimidade.
A legitimidade é a situação jurídica que autoriza os sujeitos da
demanda a conduzir o processo em que se discuta a relação jurídica material
que foi levada a juízo. De acordo com o Didier Jr. (2010, p. 204) a legitimidade
Superior Tribunal de Justiça. Resp 791.042. T1. Min, Luiz Fux. J. 19/10/2006. DJ 09/11/2006 p.
261
4
19
A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,
meio ambiente e moralidade: uma análise crítica
20
“é bilateral, pois o autor está legitimado para propor ação em face daquele
réu e não em face de outro”. Assim, chama-se legitimidade ativa quando se
refere ao autor da ação e passiva quanto ao réu.
A Ação Popular tem como legitimado para propor a ação (ou seja,
legitimidade ativa) qualquer cidadão, ou seja, o indivíduo com gozo dos seus
direito políticos. Dessa forma, basta o indivíduo não estar impedido de usufruir
os seus direitos políticos para que possa ajuizar a presente ação, bastando,
assim, estar ativo na comunidade política, ser eleitor.
Já no tocante a legitimidade passiva, a Actio Popularis, quando
ajuizada, deve ser proposta nos moldes do art. 6º da Lei. 4.717/65, que dispõe
a cerca da legitimidade passiva o seguinte:
Art. 6º A ação será proposta contra as pessoas públicas
ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra
as autoridades, funcionários ou administradores que
houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado
o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado
oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos
do mesmo. [grifos nossos]
Portanto, ao se impetrar a presente ação, a mesma deverá ser proposta contra todas as pessoas listadas por este dispositivo, ou seja: a pessoa
pública ou privada e as entidades referidas no art. 1º; ao indivíduo (autoridade,
funcionário ou administrador) que tiver autorizado, aprovado, ratificado ou
praticado o ato impugnado, bem como aqueles que tiverem sido omissos,
acarretando na lesão combatida; e contra os beneficiários diretos do ato ou
omissão. Tal imposição faz com que surja um problema de ordem prática,
que pode resultar em prejuízo para o seguimento regular da ação em estudo.
No tocante ao ajuizamento contra o indivíduo que praticou a ação
ou omissão ou contra a entidade pública ou pessoa jurídica não existirão
maiores problemas, uma vez que em face do caso concreto elas normalmente
se mostram perfeitamente identificadas ou identificáveis.
A problemática surge no tocante aos beneficiários diretos do ato ou
omissão objeto da ação popular 5.
Destaque-se que, na hipótese de ser desconhecido o beneficiário, o §1º do artigo 6º da lei em
análise impõe que a ação deverá ser proposta somente contra as demais pessoas listadas pelo
artigo 6º.
5
Diogo Caldas Leonardo Dantas
Primeiramente, importante questionar quem seria considerado
beneficiário direto.
A doutrina tem entendimento que beneficiário direto seria aquele
que “intencionalmente, auferiram vantagem do ato impugnado” (FAGUNDES,
2010, p.451) bem como “aquela pessoa ou entidade destinatária do ato lesivo
ou da omissão lesiva” (SILVA, 2007, p. 189).
A Administração Pública, ao realizar seus atos, trata de situações que
envolvem normalmente uma enorme quantidade de indivíduos, sejam seus
próprios agentes, sejam administrados. Destarte, o ato lesivo ao patrimônio
público poderá ter uma extensa lista de beneficiários diretos uma vez que, ao
se tratar de relações coletivas, muitos indivíduos poderão auferir vantagem
direta do ato a ser impugnado.
Por oportuno, destaque-se que, como se pode aduzir do instituto
em análise, os beneficiários indiretos não deverão figurar no pólo passivo da
ação em estudo. Contudo, mesmo fazendo-se essa exclusão, ainda existe a
possibilidade de uma extensa lista de pessoas serem consideradas beneficiárias
diretas do ato impugnado.
Não obstante, mesmo com estes esclarecimentos, ainda se mostra
obscura a diferenciação dos beneficiários diretos e indiretos. Neste contexto, se
mostram esclarecedores os ensinamentos de SILVA (2007, p. 189) que assevera:
Trata-se de beneficiários circunstanciais, como é o caso
de um funcionário, promovido a um cargo mais elevado
e que se vagou devido à admissão de seu titular a outra
função pública remunerada com violação do inciso I, do
art. 4º, da Lei n. 4.717. Evidentemente que aquele funcionário promovido foi beneficiário do ato impugnado
(admissão de outro em forma suscetível de impugnação
por ação popular). Mas a ação não pode ser proposta
contra ele, que é mero beneficiário indireto da admissão
impugnável [grifos nossos]
O empecilho surge quando se passa a considerar tais indivíduos
como litisconsortes necessários.
A determinação de litisconsorte necessário está presente no artigo
47 do Código de Processo Civil, que determina:
Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz
21
A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,
meio ambiente e moralidade: uma análise crítica
22
tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as
partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da
citação de todos os litisconsortes no processo. Parágrafo
único. O juiz ordenará ao autor que promova a citação
de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo
que assinar, sob pena de declarar extinto o processo.
[grifos nossos]
Assim, se considera litisconsorte necessário as situações que por
determinação legal ou devido à natureza da relação jurídica objeto da ação
o juiz tenha que julgar a causa de forma unitária para todas as partes. Assim,
em decorrência da segurança jurídica, nos casos em que o juiz tiver que decidir de forma uniforme para todas as partes integrantes de um mesmo pólo
se estará diante de litisconsórcio necessário, devendo o autor promover a
citação de todos os litisconsortes que assim o são considerados, sob pena de
nulidade processual.
Portanto, ao se considerar todos os beneficiários do ato lesivo
juntamente com as demais partes listadas pelo artigo 6º como litisconsorte
necessários, está-se determinando que todos devem ser citados devidamente
sob pena de nulidade da Actio Popularis.
Por conseguinte, em situações onde se está diante de um grande
número de beneficiários, o que é extremamente possível diante da amplitude
do objeto da presente ação, todos deverão ser devidamente citados para
participarem do processo. Destarte, a omissão de citação de somente um dos
beneficiários pode prejudicar todo o andamento da Ação Popular. Mancuso
(2007, p. 157) com propriedade defende que: “Já quanto aos beneficiários
diretos, nenhuma dúvida de que, sendo eles terceiros juridicamente interessados (se já antes não figurarem como partes originais), é claro que têm de vir
a integrar a lide, até como condição de eficácia do julgado” [grifos do autor].
Na verdade, este tem sido o entendimento de parte majoritária da
jurisprudência, havendo julgados do STJ 6 e de diversos Tribunais de Justiça 7 e
Superior Tribunal de Justiça. Resp 762.070. T1. Min, Luiz Fux. J. 17/12/2009. DJ 10/02/2010 Superior Tribunal de Justiça. Resp 931.528. T2. Min, Eliana Calmon. J. 17/11/2009. DJ 02/12/2010
- Superior Tribunal de Justiça. Resp 556.510. T1. Min, Luiz Fux. J. 22/03/2005. DJ 25/04/2005.
7
Tribunal de Justiça de São Paulo. ApC 994050668577. 8ª Câmara de Direito Público. Des,Osni de
Souza. J 24/02/2010. DJ 10/03/2010. - Tribunal de Justiça de Santa Catarina. ApC 2004.016155-7.
Primeira Câmara de Direito Público. Des,Volnei Carlin. J 17/03/2005.
6
Diogo Caldas Leonardo Dantas
Tribunais Regionais Federais 8 que corroboram com esse entendimento, além
de parte relevante da doutrina. Nesse sentido, novamente Mancuso (1996 p.
158) se mostra esclarecedor ao asseverar que: “De outro lado, a jurisprudência
tem se revelado incisiva ao decretar a nulidade dos processos de ação popular
onde não tenham sido citados os beneficiários diretos, ou que sua citação
tenha sido irregular”
Dessa forma, a citação de beneficiários diretos da Ação Popular se
mostra como um problema na prática forense brasileira, tendo vista que diante
do caso concreto uma extensa lista de beneficiários pode estar presente e a
ausência da citação de um destes (situação que se mostra frequente diante
riqueza da jurisprudência) resulta na nulidade da ação, obstando o prosseguimento da ação, que deverá ser novamente realizada desde a citação.
Tal nulidade resulta em morosidade na tutela jurisdicional e custos
demasiados para as partes, prejudicando a efetividade da presente ação, fato
que não coaduna com o pregado pela moderna processualística, que defende
uma prestação jurisdicional célere e eficaz.
4 CONCLUSÃO
A Ação Popular se mostra como um belo meio de controle jurisdicional dos atos administração pública. Através dela qualquer cidadão brasileiro
pode buscar invalidar um ato administrativo que seja nocivo a moralidade
administrativa, patrimônio público e ao meio ambiente, fatos que infelizmente
são corriqueiros no ambiente político de nosso país.
O constituinte de 1988 buscou expandir seu objeto, ampliando as
possibilidades de se ajuizar a presente ação, resultando, dessa forma, em um
relevante meio judicial onde o cidadão pode lutar contra as injustiças realizadas
pelos administradores brasileiros, que comumente usam seus cargos como
forma de enriquecimento ilícito, prática de atos ilegítimos e beneficiamento
de outrem, tudo isso em detrimento do patrimônio público.
Todavia, diante de todos os fatos demonstrados no presente trabalho, necessita-se cuidado no manejo da ação em estudo, já que se trata de
Tribunal Regional Federal da 4ª Região. ApC 89.04.15195-3. T1. Des, Ari Pargendler. J. 24/08/1989.
DJU 18/10/1989 – Tribunal Regional Federal da 2ª Região. ApC 317125. T8. Des, Guilherme Calmon. J. 30/05/2006. DJU 05/06/2006
8
23
24
A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,
meio ambiente e moralidade: uma análise crítica
uma lei com cerca de 45 anos, dotada muitas vezes de uma redação antiquada.
Além disso, necessita-se de cuidado ao se ajuizar a presente
ação tendo em vista a problemática exposta acerca da legitimidade. Como
demonstrado, os Tribunais pátrios têm tratado os legitimados passivos como
litisconsortes necessários, resultando a ausência de um dos beneficiados do
ato impugnado em nulidade absoluta, resultando em morosidade e custos
para as partes.
Portanto, uma apuração devida acerca do ato lesivo, seus autores
e beneficiários se mostra essencial para uma Ação Popular eficaz, já que,
como bem demonstrados, esta é um meio espetacular de atuação política e
democrática. Apesar do que pode ser considerado como empecilho e da suas
peculiaridades, o cidadão brasileiro tem à mão um mecanismo salutar para
buscar moralizar a Administração Pública.
REFERÊNCIAS
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Disponível em: http://www.jfrn.gov.br/htm/doutrina.htm.Acesso em: 2 de
abril 2010.
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______; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 5 ed. Salvador:
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judiciário. Atualizada por Gustavo Binenbojm 8 ed. Rio de Janeiro: Forense,
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MAZILLI, Hugo Nigro. Tutela dos interesses difusos e coletivos. 5 ed. São
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MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança: Ação Popular - Ação Civil
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Inconstitucionalidade por Omissão - Arguição de Preceito Fundamental - Controle Incidental ou Concreto de Normas no Direito Brasileiro - Representação
Interventiva - Reclamação Constitucional no STF - Controle Abstrato de Constitucionalidade do Direito Estadual e Municipal. Atualizada por Arnold Wald
e Gilmar Ferreira Mendes. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25 ed.
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de operacionalização. Revista Eletrônica Direito do Estado, Salvador, n. 2,
abril/maio/junho, 2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.
br>. Acesso em: 20 de setembro. 2010.
25
26
A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,
meio ambiente e moralidade: uma análise crítica
PACHECO, José da Silva. O mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas: Mandado de segurança - Mandado de segurança coletivo
- “Habeas data” - Mandado de injunção – Ação de inconstitucionalidade – Ações
constitucionais de responsabilidade civil – Ação de desapropriação – Ação
popular. 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional: Doutrina e Processo. 2
ed.São Paulo: Malheiros, 2007.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: Tutela de Direito Coletivos e Tutela
Coletiva de Direitos. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
THE POPULAR ACTION AND PECULIARITIES IN
PROTECTION OF PUBLIC PROPERTY, ENVIRONMENT AND MORALITY: A CRITICAL ANALYSIS
ABSTRACT
The Actio Popularis shown as a beneficial mechanism to protect the public patrimony, environment, and morals, presenting as expedient means
of judicial control of public administration. Law
4.171/65 brings interesting peculiarities in his
body, as the legislative technique and some tools
present in its interior. However, the law sets out
conditions and procedures which often result in
inefficiency of Popular Action. Through a critical
analysis aims to show that the action under consideration is shown as a democratic means of
protecting the interests of citizens, analyzing its
benefits and defects for effective protection of
the rights protected by it. The methodology used
was literature and jurisprudence, beyond the interpretation of legal texts related to topic. Before
this study, we conclude that despite the problems,
Diogo Caldas Leonardo Dantas
the Actio Popularis has an incredible potential for
democratic control of the acts of government,
as well as to defend the public patrimony, the
environment and morality, seeking to blame
the agents that somehow cause harm to them,
through a political action of citizens.
Keywords: Popular Action. Object. Public property. Legitimacy. Jurisdictional control. Public
Administration. Administrative act.
27
A EMENDA CONSTITUCIONAL
Nº 66/2010: MUDANÇAS E
APRIMORAMENTO NAS
RELAÇÕES DE DIREITO
PRIVADO
Natália Luiza Lima Dantas Lira
Acadêmica do 7º período do
Curso de Direito da UFRN.
Julliane Pinto de Aquino
Acadêmica do 7º período do
Curso de Direito da UFRN.
RESUMO
Através da emenda constitucional nº 66/2010 o
instituto da separação judicial sofreu modificações
perante o ordenamento jurídico brasileiro. Desde
então surgiram controvérsias acerca da interpretação da lei ordinária, fazendo com que a doutrina
pátria apresente diferentes pontos de vista com
relação à norma supracitada. Sendo assim, faz-se
necessário a análise dos efeitos decorrentes das
mudanças trazidas pela norma, dos aspectos conceituais, bem como da vontade do constituinte,
mostrando que ao longo da história do direito
civil, dentro da sociedade brasileira, o Estado passa
a intervir cada vez menos nas relações privadas,
possibilitando maior liberdade neste âmbito da
vida dos cidadãos. Destarte, o artigo pauta-se em
fundamentos legais, consuetudinários, mas principalmente constitucionais para abordar o tema da
nova separação judicial e as conseqüências que
acarreta para o direito civil.
Palavras-chave: Separação judicial. Divórcio.
Emenda Constitucional n. 66/2010.
30
A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças e
aprimoramento nas relações de direito privado
1 INTRODUÇÃO
A Constituição é a lei suprema do Estado e, por ser o alicerce de
validade de todo o ordenamento jurídico, faz necessário analisar as normas
infraconstitucionais em conformidade com o texto constitucional, para obter
a harmonia do sistema jurídico.
Neste prisma, a Constituição Federal de 1988 consagra no seu artigo 226, a família como base da sociedade, demonstrando a necessidade de
intervenção estatal com o escopo de fortalecer os vínculos. Entretanto, com o
passar dos tempos, houve uma mudança de valores na sociedade, incluindo
novas características ao tradicional conceito de família, como arranjos familiares recombinados.
Em conformidade com os novos valores, e com o princípio da intervenção mínima, o ordenamento jurídico brasileiro modificou um importante
instituto das relações de direito privado, qual seja, o da separação judicial, o
que resultou em maior celeridade no processo de divórcio.
Através da Emenda Constitucional 66/2010, o § 6º do art. 226 da
Constituição Federal, foi alvo de mudanças em sua redação originária, com
o intuito extinguir a separação judicial como pré-requisito para o divórcio,
demonstrando assim a evolução legislativa, a qual se adequa aos novos parâmetros da sociedade brasileira.
Destarte, é de suma importância para a ciência jurídica a análise dos
benefícios e inovações provenientes da mudança supracitada nas relações
particulares, como se demonstrará a seguir.
2 EVOLUÇÃO DO INSTITUTO DENTRO DO ORDENAMENTO JURIDICO
BRASILEIRO
A sociedade brasileira viveu por anos seguidos erigida em dogmas
religiosos que determinavam a moral social, interferindo no sistema jurídico
inclusive. Hodiernamente, o ordenamento jurídico está conseguindo se desvincular dessa arcaica estrutura, baseada numa moral já sem sentido.
Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino
Partindo da concepção histórica de divórcio, temos primeiramente
que o fundamento da estrutura familiar estava sempre atrelado à manutenção do casamento. A igreja católica, sempre presente na sociedade brasileira,
não reconhece a dissolução do deste último, o que de fato influenciou no
comportamento dos cidadãos, definindo, por conseguinte, o corpo legislativo que regia a sociedade. No código civil de 1916, por exemplo, temos a
impossibilidade de dissolução do contrato de casamento, havendo apenas o
desquite como forma de reconhecer a separação do casal, porém não dissolvia
completamente a união do ponto de vista formal, ou seja, o vínculo conjugal
permanecia inalterado. Os cônjuges continuavam com obrigações mútuas
como se casados fossem.
O divórcio somente foi reconhecido devido a sérios problemas com
as relações taxadas de “concubinato”, sendo paulatinamente aceito pelas decisões jurisprudenciais, fazendo com que através da EC 9/1977 fosse possível
a dissolução do vínculo matrimonial na forma da lei. Porém, o que de fato
ocorreu foi uma mudança de nomenclatura, conforme aponta Maria Berenice
Dias (2009), sendo o divórcio direto admitido apenas em caráter emergencial,
como também após serem demonstrados todos os pré requisitos que a lei
dispunha para conceder. Conforme consta na Lei 6.515/1977, para ser concedido o divórcio, seria necessário que houvesse a separação de fato há cinco
anos, sendo esse prazo contado antes da emenda constitucional nº 9, bem
como havia necessidade de que se comprovassem os motivos da separação.
O divórcio direto foi reconhecido pela CF/88, não havendo mais
nos dias atuais necessidade de manter uma relação meramente contratual se
não é da vontade das partes, ao passo que já ficou mais do que comprovado
que a estrutura familiar da sociedade brasileira não declinou em virtude dessa
abertura.
3 A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010
A Emenda Constitucional n. 66, promulgada no dia 13 de julho
de 2010, proporcionou uma nova redação do artigo 226, parágrafo sexto, da
Constituição Federal, o qual dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil
pelo divórcio. De forma singela, a redução do texto constitucional alterou e
31
32
A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças e
aprimoramento nas relações de direito privado
ocasionou uma mudança de paradigma.
Desta feita, iremos abordar neste tópico as mudanças trazidas pela
referida Emenda Constitucional, bem como os seus efeitos para o ordenamento
jurídico brasileiro.
3.1 Da mudança do texto constitucional
O texto constitucional original do parágrafo 6º, do artigo 226 da
Constituição Federal, possuía a seguinte redação: “o casamento civil pode ser
dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano
nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois
anos”. Em razão da Emenda Constitucional n. 66/2010 foi dado nova redação
ao referido dispositivo, passando a constar que: “O casamento civil pode ser
dissolvido pelo divorcio”.
Observa-se, desta nova redação, uma supressão dos requisitos para a
propositura do divórcio, quais sejam: a prévia separação judicial por mais de 1
(um) ano e o prazo mínimo de 2 (dois) para a dissolução do vinculo matrimonial.
Diante desta nova realidade, surgem várias dúvidas sobre a aplicação
da aludida Emenda Constitucional, posto que mesmo com o advento deste
novo texto constitucional não há uma expressa incompatibilidade com Código
Civil e o Código de Processo Civil.
Assim, para analisar os efeitos da Emenda Constitucional n. 66/2010,
temos que responder a seguinte indagação: a legislação infraconstitucional foi
revogada tacitamente ou o instituto da separação judicial continuaria sendo
regulado até uma posterior inovação jurídica nesses diplomas?
3.2 Pretensão do Poder Constituinte Derivado
Para alcançar a resposta desta indagação e compreender os efeitos
da Emenda Constitucional n. 66/2010 sobre as normas infraconstitucionais, se
faz necessário analisar a vontade do Poder Constituinte Derivado no projeto
de lei que originou mencionada Emenda Constitucional.
Neste diapasão, ressalta-se que a Emenda Constitucional em estudo
teve origem nas PECs 22/1999, 413/2005, 33/2007 e 28/2009, a primeira propôs
Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino
a redução do lapso temporal da separação de fato de dois anos, para um ano,
ao passo que as demais foram mais adiante, propondo a definitiva exclusão
da separação judicial.
Além disso, a ementa da Emenda Constitucional n. 66/2010 dispõe
da seguinte maneira:
Dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição
Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de
prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de
comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.
Apesar da ementa não possuir carga normativa, verifica-se que o seu
escopo é expressar uma síntese do texto legal, permitindo o conhecimento
imediato do ato consultado. Demonstra-se, portanto, que a real intenção do
Poder Constituinte Derivado é suprimir os requisitos acima mencionados,
revogando o instituto da separação judicial.
Assim, a sua promulgação atendeu uma reivindicação da social e
da moderna perspectiva do Direito de Família, com a mínima intervenção do
Estado, haja vista que ao se constatar o fim do afeto que o unia o casal, não
faz sentir forçar aos seus participes uma relação insustentável.
O instituto da separação refere-se a um ícone do conservadorismo
da nossa sociedade, que não se justifica nos dias atuais, tornando-se totalmente
inútil, desgastante e oneroso para o casal e para o próprio Poder Judiciário, no
momento em que é imposta uma duplicidade de procedimentos para conservar, por um breve lapso temporal, uma união que não mais existe.
Observa-se que para resolver a controvérsia discutida no presente
artigo, existe projeto de lei em tramitação, prevendo a revogação expressa
dos dispositivos do Código Civil que fazem referência a separação judicial e ao
divórcio, com esteio na não recepção, na inconstitucionalidade, aqui transcrito:
Projeto de Lei nº 7.661/2010 (PL 7661/10):
Revoga dispositivos do Código Civil, que dispõem sobre a
separação judicial.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Esta Lei revoga dispositivos do Código Civil que
tratam sobre a separação judicial.
Art. 2º Consideram-se revogadas as expressões “separação judicial” contidas nas demais normas do Código
33
34
A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças e
aprimoramento nas relações de direito privado
Civil, notadamente quando associadas ao divórcio.
Art. 3º Revogam-se os arts. 1.571, 1.572, 1.573, 1.574,
1.575, 1576, 1.578, 1.580, 1.702 e 1.704 da Lei 10.406,
de 10 de janeiro de 2002.
Art. 4º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICATIVA
O presente Projeto de Lei visa adequar o ordenamento
jurídico na área do Direito de Família a uma nova Ordem
Constitucional vigente em todo território nacional.
Entendemos que com a promulgação e vigência da
Emenda Constitucional 66/10, dando nova redação ao
§ 6º do art. 226 da CF, suprimindo do texto constitucional a expressão “separação judicial”, esse instituto foi
extinto no País.
A Emenda Constitucional 66/10, por se tratar de norma
constitucional de eficácia plena, ensina a ilustre autora
Maria Helena Diniz:
“…são plenamente eficazes…,desde sua entrada em
vigor, para disciplinarem as relações jurídicas ou o
processo de sua efetivação, por conterem todos os elementos imprescindíveis para que haja a possibilidade
de produção imediata dos efeitos previstos, já que, apesar de suscetíveis de emenda, não requerem normação
subconstitucional subseqüente. Podem ser imediatamente aplicáveis”. Portanto, qualquer dispositivo legal
não alinhado sob essa nova égide, automaticamente
passa a ser não recepcionado pela Constituição Federal,
tornando-se inconstitucional. Por esse motivo, se faz
necessário a revogação desses dispositivos legais, com
efeito ex tunc, do Código Civil Pátrio, colocando-o em
perfeito alinhamento com nossa Carta Política. Diante
do exposto, solicitamos apoio dos nobres Pares para
aprovação do presente projeto de lei.
Sala de Sessões, 14 de julho de 2010. Deputado Sérgio
Barradas Carneiro. PT/BA
Diante do exposto, é possível concluir que ao realizar a singela modificação do texto constitucional, o Poder Constituinte Derivado teve como real
intenção a exclusão da separação judicial do ordenamento jurídico brasileiro.
Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino
4 SEPARAÇÃO JUDICIAL: INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE OU
REVOGAÇÃO DA NORMA INFRACONSTITUCIONAL?
O controle de constitucionalidade no sistema jurídico pátrio é o
mesmo desde a constituição de 1891 e baseado no direito anglo-saxão, qual
seja, o controle jurisdicional, onde os efeitos da declaração de inconstitucionalidade dependem de que se descubra a natureza do ato normativo considerado
inconstitucional. Tal controle, permite a garantia dos direitos individuais, mantendo a racionalidade e equilíbrio da legislação ordinária com a Carta Magna.
Considerando uma incompatibilidade entre a norma constitucional
superveniente e o direito ordinário pré-constitucional, questiona-se se trata
de hipótese de inconstitucionalidade superveniente ou de mera revogação.
Abordando a relevância prática do tema apresentado, citaremos o doutrinador
e Ministro do STF, Gilmar Mendes1, segundo o qual:
Se eventual conflito entre direito pré-constitucional e
o direito constitucional superveniente resolve-se no
plano do direito intertemporal, há de se reconhecer
a competência de todos os órgãos jurisdicionais para
apreciá-lo. Ao revés, se se cuida de questão de inconstitucionalidade, a atribuição deverá ser exercida pelos
órgãos jurisdicionais especiais competentes para dirimir
controvérsias dessa índole, segundo a forma adequada.
Primeiramente, é válido ressaltar que a ordem constitucional
brasileira e o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal,
aceitam a revogação nos casos referentes a direito intertemporal. Vejamos
posicionamento do Supremo Tribunal Federal com relação à matéria:
EMENTA: CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVE-
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de
Direito Constitucional. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, pg. 1016.
1
35
A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças e
aprimoramento nas relações de direito privado
36
NIENTE. IMPOSSIBILIDADE. A lei ou é constitucional ou
não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A
lei é constitucional quando fiel a Constituição; inconstitucional, na medida em que desrespeita, dispondo sobre
o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é
congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior
não pode ser inconstitucional em relação à Constituição
superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna
inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes:
revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não
deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que
a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao
ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos
que a lei ordinária. Reafirmação da antiga jurisprudência
do STF, mais que cinquentenária. Ação direta de que se
não conhece por impossibilidade jurídica do pedido,
nos termos do voto proferido na ADIn n. 2-1/600. (ADI
52 - MT. Rel. Min. Paulo Brossard. Tribunal Pleno. Jul.
07/02/92. DJ 24/02/92)
Isto posto, temos que se é promulgada uma nova Constituição, a
lei que não apresentar compatibilidade com esta deverá ser revogada por se
tratar de direito intertemporal. Neste sentido, subentende-se que uma emenda
à Constituição acarreta todos os efeitos mencionados, não se tratando portanto de inconstitucionalidade superveniente da lei ordinária anterior, mas
sim de mera revogação da legislação que não condiz com os novos ditames
da Lei Maior.
Francisco Sannini Neto2 também compartilha do mesmo entendimento, ao afirmar que:
Nesse caso, a lei que era compatível com a Constituição
de sua época, passa a ser incompatível com a Constituição superveniente, configurando-se, portanto, um
SANNINI NETO, Francisco. Inconstitucionalidade Superveniente. Disponível em: <http://jus.
uol.com.br/revista/texto/17668/inconstitucionalidade-superveniente>. Acesso em 27 de outubro de 2010.
2
Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino
caso de não recepção constitucional, matéria de direito
intertemporal e que pode ser aplicado por qualquer juiz
de direito, dispensando-se, assim, as cautelas inerentes
ao processo de declaração de inconstitucionalidade.
Em outras palavras, não caberia declarar a inconstitucionalidade
de uma norma se esta encontra-se revogada a partir do momento em que
lei constitucional posterior, contrária àquela, entra no ordenamento jurídico.
Jorge Miranda (2005) preleciona que “constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece
entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – uma norma ou um ato – que
lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível”. Logo vemos
que um ato normativo pode estar conforme a constituição da época em que
foi lançado, entretanto poderá tornar-se incompatível à medida que novos
ditames surjam no sistema.
É nesse seguimento que surge a EC 66/2010, como também o
questionamento acerca da inconstitucionalidade superveniente ou revogação da norma infraconstitucional. É válido ressaltar que antes de adentrar ao
mérito da questão, fazer uma análise constitucional crítica é imprescindível.
Para alguns doutrinadores ainda há a possibilidade de tribunal analisar a
inconstitucionalidade de norma pré-constitucional com relação a constitucionalidade superveniente, mas, é importante reiterar o entendimento contrário
do STF . Se a Constituição é a Lei Maior do nosso ordenamento, parece lógico
e coerente que tudo que dispuser contrariamente a esta deverá ser considerado inconstitucional e sumariamente revogado da legislação pátria, como
demonstra-se a seguir.
5 EFEITOS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010
5.1 Revogação da norma infraconstitucional
Para alguns doutrinadores3, dos quais nos filiamos, considera ser a
Adotam este entendimento: PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O Novo Divórcio.1. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, DIAS, Maria Berenice. A EC 66/2010 – E agora?. Disponível em: <http://www.maria3
37
38
A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças e
aprimoramento nas relações de direito privado
Emenda Constitucional n. 66/2010 posterior ao Código Civil e ao Código de
Processo Civil, ocorrendo, assim, revogação de todos os dispositivos legais
incompatíveis com a Constituição.
Em síntese, não haveria que se falar em separação judicial ou prazo
para o divórcio, tendo sido também excluído o requisito de lapso mínimo de
casado para a dissolução do casamento.
5.2 Extinção da separação judicial
Separação e divórcio são dois institutos que não são passíveis de
igualdade, apresentando características particulares cada qual. A separação
termina o casamento, entretanto não dissolve a sociedade e o vínculo conjugal.
Por sua vez, o divórcio põe fim e dissolve o vínculo e sociedade mencionados.
Consoante dispõe o art. 1576 do Código Civil: “A separação judicial põe termo
aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens”.
Assim, com a separação judicial apenas a sociedade conjugal é
desfeita, admite a reconciliação do casal; enquanto que, no divórcio não é
permitido esta reconciliação, posto que é dissolvido o próprio vínculo matrimonial, não sendo este fato suficiente para a manutenção do instituto da
separação judicial.
Mostra-se injustificável a permanência da separação judicial perante
o ordenamento jurídico contemporâneo, fazendo com que o requisito do “tempo” fosse essencial para fundamentar o divórcio. É um direito constitucional,
inerente à dignidade humana, que as partes que almejam o divórcio tenham a
concretização desse direito de maneira célere e eficaz, evitando desgaste físico,
mental, financeiro, moral, abarrotando o judiciário de ações que apresentam
caráter tão particular, qual seja, a vida íntima de duas pessoas que não mais
querem manter o laço conjugal. A interposição de procedimentos judiciais ou
administrativos fincados na morosidade, no requisito temporal para conseguir
tal feito, mostrava-se uma verdadeira invasão à privacidade.
Compreendemos, portanto, que com a promulgação da Emenda
Constitucional n. 66/2010 extingue do nosso ordenamento jurídico o instituto
berenice.com.br/uploads/ec_66_-_e_agora(1).pdf>. Acesso em 23 out. 2010 e LÔBO, Paulo Luiz
Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: <http://www.
ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629>. Acesso em 04.10.2010.
Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino
da separação judicial e toda a legislação infraconstitucional que o regulamentava, em face da sua revogação. Entretanto, entendemos que as pessoas que
já se encontravam separadas ao tempo da promulgação da Emenda Constitucional n. 66/2010 não se tornam imediatamente divorciadas, continuando
a necessidade do pedido de decretação de divórcio, não obstante inexistir a
necessidade de cômputo do lapso temporal anteriormente exigido.
Diante do exposto, a concessão do divórcio sem os requisitos anteriormente impostos, podendo o casal partir direta e imediatamente para a
dissolução do vinculo matrimonial, torna o procedimento mais célere, menos
oneroso e desgastante para o casal e para o Estado.
5.3 Extinção do prazo da separação de fato para o divórcio
Diante da nova redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal,
outro efeito observado é o fim do prazo da separação de fato como um dos
requisitos para o divórcio, permitindo a dissolução do vínculo matrimonial
de forma imediata.
Desta feita, não há mais a discussão sobre o lapso temporal da
separação de fato do casal ou de qualquer outra causa especifica para a dissolução do matrimonio, sendo necessário para a instrução da ação de divórcio
a certidão de casamento do casal. Neste prisma, surge com maior intensidade
na realidade brasileira a aplicação do princípio da ruptura do afeto, como
fundamento para o pedido de divórcio.
Em comparação ao direito português, no tocante ao prazo do divórcio, leciona o doutrinador Jorge Pinheiro: “o divórcio fundado em ruptura
da vida em comum pode ter como causa a separação de facto por três anos
consecutivos (art. 1781, al. a) ou a separação de facto por um ano se o divórcio
for requerido por um dos cônjuges sem a oposição do outro (art. 1781, al. b)”4.
Portanto, é possível observar o avanço da nossa legislação em
comparação ao direito português, ressaltando que agora não cabe mais ao
Estado brasileiro oferecer ao casal um prazo para a reflexão sobre a ruptura
do vinculo matrimonial, posto que esta decisão encontra-se inserida na esfera
íntima do casal e, por isto, pertence apenas a eles à escolha de dissolução ou
não do casamento, em concordância com o princípio da intervenção mínima.
4
PINHEIRO, Jorge. O Direito da Família Contemporâneo. Lisboa: AAFDL, Lisboa, 2008, pág. 620.
39
40
A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças e
aprimoramento nas relações de direito privado
6 APLICAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010
No mesmo sentido ao entendimento exposto no decorrer do
presente artigo, qual seja, que o instituto da separação judicial encontra-se
revogado em face da Emenda Constitucional 66/2010, estão sendo formulados
todos os julgados proferidos pelas varas de família da Comarca de Natal, senão
vejamos decisão interlocutória proferida pela Primeira e pela Segunda Vara
de Família do Distrito Judiciário da Zona Norte:
Despacho: Tendo em vista o advento da emenda
constitucional de número 66 (sessenta e seis), e a sua
consequente vigência, a qual passou a dar nova redação
ao parágrafo 6º (sexto) do artigo 226 (duzentos e vinte e
seis) da Constituição da República Federativa do Brasil,
a partir da data da sua respectiva publicação, ocorrida
o Diário Oficial da União no dia 14 de julho do corrente
ano; promovendo, portanto, a inconstitucionalidade
superveniente - não recepção - dos artigos concernentes ao instituto da separação judicial e da separação
de fato contidos no diploma normativo do Código Civil
Brasileiro, faculto aos Requerentes a emenda da exordial,
no prazo de cinco dias, com o intuito de adequar o seu
respectivo pleito em conformidade à nova ordem jurídica constitucional vigente. P. I. Providências Cabíveis.
Processo nº 002.10.002035-8 – Separação Consensual /
Especial de Jurisdição Voluntária. 1ª. Vara de Família do
Distrito Judiciário da Zona Norte, Comarca de Natal/RN.
Data da publicação: 27.07.2010. (grifo nosso);
Decisão: Vistos, etc. Com amparo no artigo 319 do Código de Processo Civil, decreto a revelia de A.C.S face à
ausência de contestação diante de citação válida. Em
razão da promulgação da EC 66, em 14.07.2010, com
vigência imediata, em que afasta o instituto da separação judicial, intimo a parte autora, por seu advogado,
para dizer, em 10(dez) dias, se pretende a conversão
da presente ação em divórcio direito litigioso. Desde
já designo audiência de instrução e julgamento para a
data de 11 de Outubro de 2010, pelas 10:00 horas, neste
Fórum, devendo as partes trazerem as suas testemunhas
independentemente de intimação ou, em caso de im-
Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino
possibilidade, depositarem o respectivo rol no prazo
de 10 (dez) dias. Fixo como ponto controvertido ao
caso apenas a parte do pedido que trata dos alimentos
pretendidos pela autora. Publique-se. Intimem-se as
partes, seus advogados e testemunhas eventualmente
arroladas. Natal, 29 de julho de 2010. Rogério Januário
de Siqueira Juiz de Direito. Processo nº 002.09.000205-0
- Separação Litigiosa/ Lei Especial. 2º Vara de Família do
Distrito Judiciário da Zona Norte, Comarca de Natal/RN.
Data da publicação: 14.08.2010. (grifo nosso);
Verifica-se, enfim, que a Emenda Constitucional analisada vem sendo
aplicada de maneira a possibilitar que a dissolução do matrimonial ocorra de
imediato, sem os requisitos anteriormente impostos pela Constituição Federal.
Assim, é permitido aos ex-cônjuges que a reconstrução da nova etapa da vida,
na perspectiva de felicidade de cada um, seja realizada de forma mais célere
e menos burocrática.
7 CONCLUSÃO
Pelo exposto anteriormente, demonstra-se que a Emenda Constitucional n. 66/2010, a qual alterou o parágrafo 6º. do artigo 226 da Constituição
Federal gerou efeitos sobre a norma infraconstitucional, especialmente o
Código Civil e o Código de Processo Civil.
Em síntese, restou suprimido o instituto da separação judicial no
nosso ordenamento jurídico, bem como o prazo de separação de fato para a
concessão do divórcio. Sendo o divórcio medida para a dissolução do vínculo
matrimonial e da sociedade conjugal, sem a anterior exigência de dualidade de
procedimentos. Permitindo, aludida Emenda Constitucional, aos participantes
de uma relação matrimonial frustrada formular novos projetos de vida, sem
existir o desgaste da necessidade de esperar o lapso temporal para a dissolução
do antigo matrimonio.
Deste modo, conclui-se que houve revogação dos dispositivos constantes no Código Civil e no Código de Processo Civil efetivadas pela Emenda
Constitucional n. 66/2010. Não obstante, temos que fica facultado às partes a
dissolução do casamento de maneira célere e com menos custos, condizente
41
42
A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças e
aprimoramento nas relações de direito privado
com o padrão social hodierno, a fim de que a estrutura familiar possa ser
mantida por laços de afeto e respeito.
REFERÊNCIAS
DIAS, Maria Berenice. A EC 66/2010 – E agora?. Disponível em: < http://www.
mariaberenice.com.br/uploads/ec_66_-_e_agora(1).pdf>. Acesso em 23 out.
2010.
______. Manual de direito das famílias. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais. 2009.
GAGLIANO, Pablo Stolze. A nova emenda do divórcio: primeiras reflexões.
Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=635>. Acesso
em 22 out. 2010.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O Novo Divórcio. São
Paulo: Saraiva, 2010.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo VI, Parte VI: Inconstitucionalidade e garantia geral. Cap. I. 2ª ed. Coimbra. Ed. Coimbra, 2005.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A EC nº 66/2010: semelhanças, diferenças e
inutilidades entre separação e divórcio e o direito intertemporal. Editora Magister - Porto Alegre - RS. Publicado em: 03 ago. 2010. Disponível em: <http://
www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=791>. Acesso em 23 out. 2010.
PINHEIRO, Jorge. O direito da família contemporâneo. Lisboa: AAFDL, 2008.
Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino
SANNINI NETO, Francisco. Inconstitucionalidade superveniente. Disponível
em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/17668/inconstitucionalidade-superveniente>. Acesso em 27 de outubro de 2010.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 30ª Ed. São
Paulo: Malheiros, 2008.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Emenda constitucional no 66/2010: extinção da
separação judicial. Disponível em: < http://www.silviovenosa.com.br/artigo/
extincao-da-separacao-judicial>. Acesso em 23 out. 2010.
THE CONSTITUTIONAL AMENDMENT N.
66/2010: CHANGES AND IMPROVIMENT IN
THE RELATIONS OF CIVIL LAW
ABSTRACT
Through of the constitutional amendment n.
66/2010 institute of judicial separation has
changed to the Brazilian legal system. Since then,
controversies have arisen regarding the interpretation of ordinary law, making the nacional doctrine
to present different points of view concerning to
the abovementioned law. Therefore, it is necessary to analyze the effects arising from changes
brought by the standard, the conceptual aspects,
as well as the will of the constituent, showing
that throughout the history of civil law, within
Brazilian society, the state will intervene each less
time in private relationships, allowing greater
freedom in private life of citizens. Thus, the article
is guided on legal grounds, costumary, but mainly
constitutional to adress the issue about new legal
separation and the consequences that entails for
43
44
A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças e
aprimoramento nas relações de direito privado
the civil law.
Keywords: Judicial Separation. Divorce. Constitutional Amendment n. 66/2010.
A IMPOSSIBILIDADE DE
REDUÇÃO DA IDADE PENAL
MÍNIMA: UMA ABORDAGEM
CRÍTICA PELA SUSTENTAÇÃO
DO CARÁTER PÉTREO DO
ARTIGO 228 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Richardy Videnov Alves dos Santos
Acadêmico do 4º período do
Curso de Direito da UFRN.
Monitor de Introdução ao
Estudo do Direito
Mariana de Siqueira
Professora Orientadora
RESUMO
O crescimento desenfreado dos índices de criminalidade, bem como a divulgação constante pela mídia
de crimes brutais praticados por adolescentes, têm
acentuado o clamor público pela redução da maioridade penal. Tal anseio revela como a população,
malgrado seu interesse por segurança seja legítimo,
desconhece as prerrogativas que nossa Constituição põe a salvo no tocante à proteção à criança e
ao adolescente, assim como a delicada conjuntura
social envolvida na problemática da criminalidade
juvenil. Nossa Lei Maior estabelece, em seu artigo
228, que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitando-se às normas da
legislação especial”. Todavia, inúmeros projetos (de
Decreto Legislativo, de Lei Ordinária e de Emenda à
Constituição) já tramitaram no Congresso Nacional,
objetivando a redução da idade penal mínima estabelecida pelo Constituinte de 1987/1988. Nesse
A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
46
sentido, emerge acirrada discussão acerca da possibilidade de reforma ou não do citado dispositivo.
O presente trabalho almeja demonstrar, à luz
da moderna teoria dos direitos fundamentais, o
caráter pétreo da maioridade penal aos dezoito
anos e, subsidiariamente, a inoportunidade de
sua redução, tendo por lastro uma análise crítica
da problemática social envolvida.
Palavras-chave: Redução da Maioridade Penal.
Impossibilidade. Caráter Pétreo. Inoportunidade.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira vive aterrorizada com os índices crescentes
de violência. Desse modo, avulta-se a cada dia a crença que a acentuação no
rigor das punições, como medida isolada, é capaz de coibir a criminalidade.
Esse sentimento torna-se ainda mais perceptível quando crimes bárbaros
são praticados por adolescentes. Tais casos não são raros em nosso país, de
modo que o clamor latente pelo aumento da severidade das sanções eclode
facilmente. Nesse sentido, é recorrente a celeuma pela diminuição da idade
penal mínima.
Aqueles que propugnam pela redução da maioridade penal defendem que tal instituto, previsto em nossa Constituição em seu art. 2281, constitui
fator de impunidade para os adolescentes, na medida em que não se sujeitam
às regras estabelecidas no Código Penal, senão às medidas socioeducativas e
de proteção previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (doravante
ECA). Aduzem, indignados, que a vedação à internação superior a três anos,
fixada pelo ECA2, induz o adolescente infrator, independentemente da infração
cometida, a pensar que o crime compensa, posto que esta reprimenda não
impinge o devido temor que (pretensamente) traria segurança à sociedade.
Art. 228: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da
legislação especial”.
2
É o que estabelece seu artigo 121, o qual trata da medida privativa de liberdade, no § 3o: “Em
nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos”.
1
Richardy Videnov Alves dos Santos
Diante dessa sensação de impunidade e insegurança que se avulta
para além dos grandes centros urbanos, a redução da maioridade penal é
divulgada e defendida como panaceia para os casos de delinquência juvenil.
Entretanto, tal posicionamento passa ao largo da especial proteção
que a Constituição de 1988 reserva à criança e ao adolescente, a qual estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar-lhes, com
absoluta prioridade, sua proteção integral (direito à vida, à saúde, à educação,
à dignidade, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, dentre outros).
Tal proteção, lastreada na concepção de particular condição de desenvolvimento, possivelmente, conforme ponderaremos, influenciou o Constituinte
a estabelecer a maioridade penal aos 18 anos.
É cediço que o art. 228 da Constituição Federal não pode ser alterado
por meio de lei ordinária. Entretanto, é recorrente a discussão acerca da possibilidade de reforma através de emenda à Constituição.
A partir da análise do conceito materialmente aberto de direito
fundamental, perfilhado por nossa Constituição em seu artigo 5o, § 2o, tentaremos demonstrar o caráter pétreo do art. 228 da Carta de 1988 e, consequentemente, a impossibilidade de qualquer emenda tendente à redução da
maioridade penal. O objetivo do presente trabalho não se restringe a abordar
os aspectos normativos da temática, procura também tecer, à luz da principiologia do Estado Democrático de Direito, reflexões indispensáveis quanto à
inoportunidade de tal medida. Para tanto, parte da constatação do fracasso do
sistema penitenciário brasileiro, bem como a necessidade de implementação
de políticas públicas que busquem sanar o problema da delinquência juvenil
em sua origem.
2 O PAPEL DOS PRINCÍPIOS E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Direito, como ordenação do convívio em sociedade, não existe de
per se. A pessoa ocupa papel central no ordenamento jurídico, representando
o valor-fonte do qual emanam os demais valores. Assim, a existência de um
Estado só se legitima na medida em que este garante e promove uma existência
digna, livre e justa a seus cidadãos.
Dessa forma, a escorreita compreensão acerca da possibilidade de
reforma da Constituição, tendo em mira a discussão aqui proposta, é lavor que
requer o conhecimento do papel que os princípios e os direitos fundamentais
47
A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
48
exercem no Estado Democrático.
2.1 Dos princípios
Inicialmente, convém consignar que esse modelo de Estado fundase em duas linhas estruturantes: o Estado limitado pelo direito e o poder
político legitimado pelo povo. Tem por fito afastar a inclinação humana ao
autoritarismo, de modo que, além de assegurar a participação popular nos
destinos do país, estabelece limites ao exercício do poder, impondo às autoridades públicas o respeito aos direitos e garantias fundamentais.
É nele onde todas as exigências sociais, políticas e econômicas do
homem concreto devem ser efetivamente atendidas, não devendo limitar-se
a vãs promessas.
Nossa Lei Fundamental estabelece logo em seu primeiro artigo
que o Brasil constitui Estado Democrático de Direito, tendo a cidadania e a
dignidade da pessoa humana como uns de seus fundamentos. Continua elencando, a título de objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das
desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, dentre outros (art. 3o).
É notório o fato de os princípios fundamentais norteadores da Constituição de 1988 (artigos 1º ao 4º) terem sido fixados logo após o preâmbulo
e antes dos direitos fundamentais. Ingo Wolfgang Sarlet (2010) aduz que, ao
erigir tal disposição, o Constituinte demonstrou, de modo inequívoco, sua
intenção de conceder a tais princípios a qualidade de normas embasadoras e
informativas de toda a ordem constitucional3.
De fato, os princípios, desde sua etimologia, consistem no fundamento de algo. Para Luís-Diez Picazo (apud BONAVIDES, 2005, p. 255-256), a
ideia de princípio designa “as verdades primeiras”, “as premissas de todo um
sistema que se desenvolve more geométrico” (isto é, de modo geométrico, que
busca as proporções ideais).
Com o advento do Pós-Positivismo, as novas constituições promulgadas, superando a doutrina que considerava os princípios meras diretrizes
É importante destacar que nossa Lei Maior, no afã de constitucionalizar todo o conjunto da vida
social, traçou várias diretrizes, bem como estabeleceu, ao longo de todo o texto constitucional,
inúmeros princípios, explícitos e implícitos, os quais se revestem de igual importância na condução dos rumos do Estado brasileiro.
3
Richardy Videnov Alves dos Santos
programáticas e interpretativas, acentuam, nos dizeres de Paulo Bonavides (op.
cit., p. 264): “a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal
normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas
constitucionais”. Os princípios passaram a desempenhar, indistintamente, tanto
a função integrativa, como a normativa.
Conforme destaca Celso Antônio Bandeira de Mello (2009), violar
um princípio é muito mais grave que transgredir uma regra qualquer, pois
representa uma insurgência contra todo o sistema, a subversão de seus valores
fundamentais.
Ressalte-se que princípios e regras completam-se. Um sistema constitucional fundado somente em princípios padeceria de indeterminabilidade,
ao passo que um sistema erigido apenas sobre regras careceria de uma unidade
interpretativa, tendo em vista que lhe faltaria o fio condutor entre as diversas
regras (TERRA, 2001). A interpretação, portanto, confere a unidade sistêmica
reclamada à Constituição, haja vista que a intelecção mais apropriada de suas
normas desponta de uma integração de seus sentidos.
Os princípios, portanto, além de conferir unidade, ordenam o texto
constitucional no que tange aos fins a serem alcançados pelo Estado. Ordenação exercida tanto por princípios explícitos, a exemplo daqueles estabelecidos
nos artigos 1o ao 4o da CF, como implícitos.
Podemos citar ainda o princípio da prioridade absoluta, localizado
no art. 2274 da CF, o qual confere à criança e ao adolescente tratamento
prioritário, de modo a assegurar-lhes condições de desenvolvimento sadio
e pleno. Consoante expõe Marília Montenegro Pessoa de Mello (2004), essa
doutrina da proteção integral e prioritária busca promover todos os direitos
das crianças e dos adolescentes, abrangendo seu desenvolvimento pessoal e
social, sua integridade física, psicológica e moral, além de colocá-los a salvo
qualquer forma de risco.
É exatamente essa unidade axiológica, aferida na Constituição mediante um acurado processo de interpretação dos valores e princípios albergados,
que nos permite localizar no texto constitucional disposições que, inicialmente,
Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
4
49
A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
50
não são tão evidentes. O artigo exposto supra, por exemplo, malgrado estar
localizado fora do rol do art. 5o da CF, constitui verdadeiro direito fundamental
implícito5, posto que confere à criança e ao adolescente direitos atinentes a
sua esfera subjetiva de proteção, além de estabelecer o dever do Estado de
prestar-lhes determinadas medidas protetivas.
É o que tentaremos demonstrar em relação ao artigo 228 da CF. Tal
constatação carece, ainda que provisoriamente, de uma abordagem sobre a
noção de direito fundamental.
2.2 Dos direitos fundamentais
p. 54):
Conforme prelecionam Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2008,
Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos
de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter
normativo supremo dentro do Estado, tendo como
finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da
liberdade individual. [grifos nossos]
A princípio, consistem em proteção contra incursões ilegítimas do
Estado na esfera subjetiva do indivíduo. Não obstante, abrangem desde a
pretensão de resistência à intervenção estatal (direitos de status negativus) ao
direito a prestações (status positivus) e à participação política (status activus),
sem prejuízo dos direitos coletivos e das garantias institucionais.
Para Robert Alexy (apud SARLET, op. cit., p. 77), os direitos fundamentais são
aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que,
sob o prisma do direito constitucional positivo, são tão
relevantes que seu reconhecimento ou não reconhecimento não podem ser relegados ao livre talante do
De modo semelhante, também podem ser considerados direitos fundamentais implícitos o
direito à saúde (art. 196), à previdência social e à aposentadoria (arts. 201 e 202), ao ensino público fundamental obrigatório e gratuito (art. 208, inciso I), ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado (art. 225), dentre outros. Nesse sentido, cf. SARLET (op. cit., p. 118).
5
Richardy Videnov Alves dos Santos
legislador ordinário
Ao Estado incumbe, não apenas respeitar os direitos e liberdades
fundamentais, mas também garanti-los. Esse entendimento resulta no “afastamento de uma concepção puramente formal dos direitos fundamentais,
que os restringisse às liberdades pessoais, civis e políticas [...]” (CANOTILHO;
MOREIRA apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 74).
Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais estão, portanto, intimamente imbricados. O Estado deve:
[...] escapando ao conceito meramente formal, ir além
‘do governo das leis’, da organização do poder e das
competências, para reconhecer metas, parâmetros e
limites da atividade estatal, certos valores, direitos e
liberdades fundamentais, os quais exercem não apenas
função limitativa do poder, como também legitimadora
do poder estatal e da própria a ordem constitucional
(SARLET, op. cit., p. 59).
Essa exigência parte da constatação que os direitos fundamentais
integram um sistema axiológico que atua como fundamento de todo o ordenamento, sendo imprescindível compreender suas funções num Estado de
Direito que busque consagrar e ser merecedor deste título, haja vista que o
poder se justifica por e pela realização dos direitos do homem e que a ideia
de justiça é hoje indissociável de tais direitos (PINTO apud SARLET, loc. cit.).
Isso posto, cabe aqui perquirirmos das notas que caracterizam
determinados direitos como fundamentais. Tal afã não é dos mais fáceis, pois
tal classe de direitos não tende à homogeneidade, o que obstaculiza uma
conceituação material que abarque a todos. Nada obstante, mostra-se indispensável para a constatação de direitos fundamentais implícitos.
É importante observar que tais direitos podem ter sua fundamentalidade dissecada a partir de dois aspectos: um material e outro formal. A
fundamentalidade material está intimamente relacionada à importância e
ao conteúdo do direito, ao passo que a formal encontra respaldo na previsão
realizada pelo texto constitucional.
A fundamentalidade formal emerge do fato de o direito constar no
rol dos direitos fundamentais assegurados expressamente pela constituição.
Essa previsão os afasta da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos,
51
A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
52
característica, que consoante o entendimento de Alexy aduzido supra, constitui
marca distintiva dos direitos fundamentais.
Para Vieira de Andrade (apud MENDES; BRANCO; COELHO, op. cit.,
p. 270), o elemento caracterizador é a intenção de explicitar o princípio da
dignidade da pessoa humana, na qual residiria a fundamentalidade material
dos direitos humanos6.
Apesar da existência de direitos fundamentais destituídos de
qualquer valor subjetivo, ou cujos titulares sejam pessoas jurídicas7, é patente a
íntima vinculação de considerável monta de direitos e garantias fundamentais
à dignidade da pessoa humana. Aqui, importa destacar que o referido princípio
vem, de fato, sendo considerado fundamento do sistema de direitos fundamentais, na medida em que estes constituem desdobramentos e exigências
daquela, a qual deve servir-lhes de base para sua interpretação (SARLET, op. cit.).
Nesse cenário, convém repisar que a dignidade da pessoa humana
constitui princípio fundamental de nosso Estado Democrático de Direito (art.
1o, inciso III da CF), o que atesta a decisão fundamental do Constituinte de
1987-1988 a respeito da finalidade, do sentido e da justificação do exercício
do poder estatal e do próprio Estado (ibid.). O Estado, portanto, existe em
função da pessoa, e não o contrário, pois o homem não figura como meio da
atividade estatal, senão sua finalidade precípua.
Embora seja um conceito fluido, pode-se afirmar que a dignidade
representa qualidade intrínseca à pessoa humana, algo que simplesmente
existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento
que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado. Engloba o
respeito e a proteção da integridade física e moral do indivíduo, a necessidade
de propiciar condições justas e adequadas de vida, a garantia de isonomia e
de identidade, dentre inúmeros outros aspectos (ibid.).
Dessa feita, é imperioso ressaltar que impõe ao Estado tanto um
dever de respeito (abstenção), como a necessidade de serem adotadas con-
Aqui o autor faz menção a direitos humanos e não direitos fundamentais. Assim, é importante
destacar a diferença entre tais direitos, de modo a evitar confusões. Os direitos do homem emergem da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; enquanto
os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. Sobre essa distinção ver Canotilho (1998, p. 517).
7
Nesse sentido, observar, por exemplo, o rol do art. 5o da CF/88 em seus incisos XXI, XXVIII e
XXIX, nos quais é forçoso encontrar direitos com fundamento na dignidade inerente à pessoa
humana.
6
Richardy Videnov Alves dos Santos
dutas positivas (prestações) tendentes a efetivar e proteger a dignidade do
indivíduo. Afinal, os direitos fundamentais podem ser também direitos de
caráter econômico, social e cultural.
Os direitos e garantias fundamentais são, portanto, sob o aspecto
material, “pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir
da perspectiva do valor da dignidade da pessoa humana” (MENDES; COELHO;
BRANCO, op. cit., p. 271).
É essa noção de fundamentalidade material que permite a abertura
da Constituição a outros direitos fundamentais não constantes de seu texto,
assim como a direitos situados fora do catálogo expresso, porém integrantes
da Constituição formal.
Trata-se do conceito materialmente aberto de direitos fundamentais, acolhido pela CF/88 em seu art. 5º, §2º, o qual estabelece: “Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte”. Tal construção aponta para o
fato de na Constituição também estar incluído o que não foi expressamente
previsto, mas que implícita e diretamente pode ser deduzido, tendo em vista
o conteúdo aberto e fluídico do princípio da dignidade humana, centro difusor de direitos.
Todavia, convém advertir que nem tudo constante no texto constitucional deve ser reconduzido, através de manobras argumentativas, ao valor da
dignidade da pessoa humana. Se assim fosse, toda e qualquer posição jurídica
estranha ao catálogo poderia ser revestida do caráter de fundamentalidade.
Arrematando a discussão tecida ao longo das últimas páginas, é
basilar a lição de Ingo Wolfgang Sarlet (op. cit., p. 62) acerca da importância dos
direitos fundamentais, a qual resume as linhas fundantes do entendimento que
defenderemos no tocante à impossibilidade de redução da maioridade penal:
Além da íntima vinculação entre as noções de Estado
de Direito, Constituição e direitos fundamentais, estes,
sob o aspecto de concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da
igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de
existência e medida de legitimidade de um autêntico
Estado Democrático e Social de Direito [...].
53
54
A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
3 O CARÁTER PÉTREO DA MAIORIDADE PENAL
Os direitos e garantias fundamentais, a partir do prodigioso reforço
conferido pela CF/88 através do art. 5o, §1o, possuem aplicabilidade imediata,
restando excluído, em princípio, seu cunho programático (SARLET, op. cit.).
Outrossim, soma-se a essa maior proteção, sua inserção no rol das cláusulas
pétreas, previsto no art. 60, § 4o da Carta, o qual assevera a intangibilidade de
direitos e garantias individuais frente a ação do poder constituinte derivado.
De modo inconteste, tal status jurídico diferenciado constitui demonstração
cabal do valor destacado usufruído por tais direitos em nosso ordenamento.
No entanto, a existência de disposições insuscetíveis de alteração
não é recebida sem críticas. Aduz-se que tal limitação acarretaria o imobilismo
da Constituição, ocasionando um descompasso da norma com a sociedade e,
em decorrência, um desprestígio de seu texto.
Com efeito, defende-se que eventuais alterações têm por fito revitalizar o texto constitucional, o qual, apesar de ser concebido para durar
no tempo, deve adequar-se, frente a normas que não mais se justificam, à
realidade vivenciada, de modo a cumprir mais apropriadamente sua função
de conformação da sociedade. Busca-se ainda evitar seu engessamento e, com
o evoluir da sociedade, uma disparidade insustentável com os fatos sociais
(MENDES; COELHO; BRANCO, op. cit.).
De fato, em decorrência dessa necessidade de atualização, emanou do poder constituinte originário o poder de reforma, exercido, no caso
brasileiro, através do poder de revisão, por uma única vez (art. 3º, do ADCT),
e, primordialmente, do poder de emenda.
Não obstante ser inegável a necessidade de revitalização do texto
da Constituição, o poder de reforma, diferentemente do poder constituinte,
não é soberano, ilimitado, tampouco incondicionado. Sujeita-se à limitações
explícitas: formais (referentes ao processo legislativo, art. 60, I, II e III, §§ 2º, 3º
e 5º da CF), circunstanciais (art. 60, § 1º da CF) e materiais (art. 60, § 4º da CF);
bem como à limitações implícitas.
Nesse cenário, exsurgem as cláusulas pétreas, as quais constituem
limites materiais à reforma. Tais “garantias da eternidade” perfazem um núcleo
essencial do projeto do poder constituinte originário, devendo este cerne ser
preservado, de modo a assegurar as opções primordiais e a imutabilidade de
certos valores. Demonstram, portanto, constituir o propósito do poder de
revisão, não criar uma nova Constituição, mas ajustá-la, mantendo sua iden-
Richardy Videnov Alves dos Santos
tidade, às novas conjunturas, evitando, assim, sua erosão (ibid.).
Dessa feita, o processo de mutação constitucional nada tem a ver
com as conveniências dos políticos para se soltar dos freios da lei suprema, visto
que “a Constituição, enquanto produto de um jogo de forças estabelecido no
seio da Assembleia Constituinte, tem uma sistematicidade e uma materialidade
que não podem ser ignoradas” (STRECK apud TERRA, op. cit.).
Conforme preleciona Paulo Bonavides (op. cit., p. 201-202):
É óbvio, pois, que a reforma da Constituição nessa
última hipótese [poder constituinte derivado] só se
fará segundo os moldes estabelecidos pelo próprio
figurino constitucional; o constituinte que transpuser
os limites expressos e tácitos de seu poder de reforma
estaria usurpando competência ou praticando ato de
subversão e infidelidade aos mandamentos constitucionais, desferindo, em suma, verdadeiro golpe de Estado
contra a ordem constitucional.
Ainda sobre as cláusulas pétreas, tem-se que o rol constante no
art. 60, §4º da CF não enumera as limitações ao poder de reforma de modo
exaustivo, pois a lógica sistemática da ordem constitucional torna inevitável
o reconhecimento de limites implícitos. Mendes, Coelho e Branco (op. cit., p.
262) citam constituir restrições implícitas: a própria cláusula de imutabilidade,
os princípios denominados pelo constituinte de fundamentais, assim como
as normas concernentes aos titulares dos poderes constituinte e reformador.
Com fundamento na redação do dispositivo aludido acima, em seu
inciso IV, o qual estabelece serem cláusulas pétreas os direitos e garantias
individuais, é possível constatar a existência de cláusulas implícitas atinentes
aos direitos fundamentais aferidos através do conceito materialmente aberto,
consagrado no art. 5º, §2º da CF.
Desse modo, podemos aferir que o dispositivo constitucional consagrador da imputabilidade penal aos dezoito anos e da sujeição das crianças
e dos adolescentes às normas do ECA, apesar de localizado no art. 228 da
CF, ou seja, fora do catálogo expresso de direitos fundamentais; consiste em
verdadeira cláusula pétrea implícita, uma vez que se investe naquele conceito
material aberto de direito fundamental. É o que tentaremos demonstrar.
Com efeito, a ordem constitucional vigente, ao fixar a idade penal
mínima aos 18 anos, conferiu à criança e ao adolescente um tratamento jurídico mais adequado a sua peculiar condição de seres em desenvolvimento.
55
A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
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Tal previsão emana diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana
e lastreia-se no princípio da proteção integral, na medida em que garante a
esses indivíduos evidente proteção frente ao poder punitivo estatal.
Nesse diapasão, convém ressaltar que a CF/88 promoveu efetiva
revolução conceitual e normativa no tratamento dos interesses das crianças
e adolescentes. Buscou extirpar de forma definitiva as práticas repressivas,
autoritárias e incriminadoras da pobreza, consubstanciadas no Código de
menores de 1979. Uma de suas grandes conquistas foi o reconhecimento da
prioridade absoluta que crianças e adolescentes, face sua condição especial
de desenvolvimento, devem ter para a promoção e defesa de seus direitos,
superando a visão fatalista, excludente e reducionista das medidas antes
vigorantes8.
Tal transformação possui fulcro nos direitos humanos9. E, sendo o
Estado Democrático de Direito presidido, entre outros, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a fixação da inimputabilidade penal até os dezoito
anos representa, nos dizeres de Eugênio Terra (op. cit.), “o seu compromisso com
a valorização da adolescência, por reconhecer tratar-se de uma fase especial
de desenvolvimento do ser humano”.
Corroborando esse entendimento, Marília de Mello (op. cit., p.
64) aduz ser possível afirmar que “o art. 228 garante ao menor de 18 anos a
inimputabilidade penal, da mesma forma que o art. 5°, no seu inciso XLVIII,
garante aos cidadãos que não serão aplicadas as penas de morte, as de caráter
perpétuo, de banimento ou cruéis”. Tendo em vista tratar-se de escolha feita
pelo constituinte, tecida à luz dos valores perfilhados pela Lei Maior.
Apesar dos esforços dispendidos, o entendimento sustentado
na presente abordagem ainda não é pacífico. Mesmo após a nova ordem
democrática instaurada em 1988, uma cifra considerável de projetos intencionando a redução da maioridade penal já foi intentada10.
Sobre essa mudança de paradigmas, cf. Emílio Mendez, “Adolescentes e responsabilidade penal: um debate latino americano”. Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/
id114.htm>. Acesso em: 13 ago. 2010.
9
No cenário internacional, a doutrina da proteção integral foi consagrada pela Convenção dos
Direitos da Criança, aprovada com unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em
1989. Essa Convenção, que considera criança todos os indivíduos até os dezoito anos, ressalta
em seu preâmbulo a importância da proteção à criança, reafirmando a principiologia atinente
à proteção da dignidade da pessoa humana, à promoção da liberdade, justiça e paz no mundo.
10
É o que demonstra rápida consulta ao site da Câmara dos Deputados: <http://www2.camara.
8
Richardy Videnov Alves dos Santos
Podemos citar o projeto de decreto legislativo n. 735/200311, o
qual intencionava a realização de um plebiscito para a manifestação popular
sobre a pena de morte, prisão perpétua, desarmamento e maioridade penal.
Em sua justificação, aduziu-se depender o pleno estabelecimento do Estado
Democrático de Direito da realização dessa consulta, remetendo ao adágio
popular “a voz do povo é a voz de Deus”.
Tal dependência não nos parece verossímil. Incontestavelmente, a
soberania popular é pressuposto da democracia. Todavia, tratando-se de direito
humanos, esses não devem ceder a uma pressão social qualquer, mesmo que
advenha de uma pretensa maioria. Tais direitos, no escólio de Marília de Mello
(op. cit.), devem ser resguardados de forma a conter impulsos e se evitar que,
sob um falso argumento, se cometam atrocidades.
Afinal, democracia não deve significar meramente a “ditadura da
maioria”, senão um ambiente de abertura ao diálogo racional e, sobretudo,
de respeito aos valores traçados pela Carta, especialmente nas hipóteses em
que esta concede a determinadas classes ou grupos sociais um tratamento
mais benéfico, ainda que esses constituam uma minoria.
Não convence, portanto, o argumento de que a maioria da população é a favor do rebaixamento da maioridade penal.
4 A INOPORTUNIDADE DA REDUÇÃO
A redução da maioridade penal, como mencionado anteriormente, é
defendida como meio eficaz para coibir a prática de crimes por adolescentes, e
diminuir, por conseguinte, a violência e a impunidade12. No entanto, analisando
a questão de modo racional, livre de quaisquer ímpetos, seja de vingança, seja
protecionista, surge a dúvida se o rebaixamento da maioridade penal de 18
para 16 anos efetivamente lograria os fins a que se pretende.
Para responder tal indagação, é mister conhecer a delicada conjuntura social que envolve a delinquência juvenil, bem como a situação atual
gov.br/>. Acesso: 30 ago. 2010.
11
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=134100>. Acesso: 30
ago. 2010.
12
Nessa direção, da qual destoamos, cf. o trabalho de Kleber M. Araújo “Pela redução da maioridade penal para os 16 anos”. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4578>.
Acesso em: 13 ago. 2010.
57
58
A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
do sistema penitenciário brasileiro, ou seja, abordar a realidade em que se
encontra submetida parte de nossa adolescência e perquirir se nosso sistema
carcerário é eficaz no combate à violência, em suas funções preventiva e ressocializadora.
Tal abordagem perpassa a questão da inoportunidade de tal medida. Serve de subsídio para clarificar e corroborar com a impossibilidade de
redução conforme a ótica constitucional demonstrada supra. Afinal, fato, valor
e norma são indissociáveis.
Nesse afã, buscamos desviar-nos daquelas concepções que redundam numa discussão irracional: das que veem “pobres meninos carentes” e das
que defendem, a qualquer custo, o fim da impunidade dos “marginais que se
escondem atrás da idade para cometer crimes”.
Somos indeclinavelmente contra a errônea concepção que criminalidade é sinônimo de pobreza. Porém, é imperioso perceber que a violência
guarda relação com as condições econômicas dos menos favorecidos. Infelizmente, algumas pessoas, o que é não regra, acabam recorrendo ao crime,
porque nunca tiveram a oportunidade de usufruir das mínimas condições
existenciais, seja em razão de um sistema que mantém a exploração laboral
e a marginalização social, seja porque sua assistência não atinge de modo
eficiente todas as camadas sociais. É sobre essas pessoas que recai, quase por
unanimidade, a fúria do estatuto repressor.
Assim constatou a moderna Sociologia criminal, a qual revelou
como o “processo de criminalização de condutas opera não só de forma seletiva, senão também discriminatória em prejuízo de pessoas pertencentes aos
setores sociais mais baixos, os quais resultam mais facilmente criminalizados”
(ZUGALDÍA ESPINAR apud GOMES; MOLINA; BIANCHINI, 2007, v. I, p. 341).
De modo que o rebaixamento da maioridade teria por corolário o
aumento de pobres no sistema carcerário brasileiro, reforçando ainda mais a
constatação que o Direito Penal exerce, embora não declaradamente, uma
função seletiva.
Não é essa, porém, a função que desempenha o Direito Penal no
Estado Democrático de Direito. Nas lições de Ferrajoli (apud Mello, M., op. cit.,
p. 72), o Direito Penal “deve constituir a ultima ratio do Estado, tendo em vista
que exerce a técnica de controle mais lesiva da liberdade e da dignidade dos
cidadãos”.
Agravando esse cenário, a pena privativa de liberdade no Brasil, tal
como é executada atualmente, mostra-se pior que a pena capital.
Bondezan (2007) nos dá uma noção de como se encontra nosso
Richardy Videnov Alves dos Santos
sistema penitenciário. Alude que a falta de vagas é um problema comum nos
presídios. Onde cabem, por exemplo, no máximo seis pessoas, são colocadas
mais de vinte, as quais têm de fazer suas necessidades fisiológicas sem qualquer
privacidade, além de revezar-se para dormir.
Dropa (apud BONDEZAN, op. cit.) expõe que “a promiscuidade
e a desinformação dos presos, sem acompanhamento psicossocial, levam
à transmissão da AIDS entre os presos, muitos deles sem ao menos terem
conhecimento de que estão contaminados”. Além dessa, outras doenças
são comumente negligenciadas e os apenados, muitas vezes, por não serem
consultados, sequer recebem remédios básicos.
É magistral a constatação feita por José Azevedo (apud BONDEZAN,
op. cit.) de que a política penitenciária vigente contribui com a reprodução da
violência, ao passo que:
[...] encarcera seres humanos, às vezes nem tão perigosos, mas que no convívio com a massa prisional, iniciam
um curto e eficiente aprendizado de violência, corrupção, promiscuidade e marginalidade. [...] Ao ingressar
no sistema, o preso deve adaptar-se às regras da prisão.
Seu aprendizado nesse universo é estimulado pela
necessidade de se manter vivo. Portanto, longe de ser
ressocializado para a vida livre, é na verdade socializado
para viver na prisão.
Esse ambiente prisional, imerso num clima de terror e desumanização, está longe de prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em
sociedade. Inúmeros outros fatores poderiam demonstrar a falência da função
preventiva e ressocializadora da pena, porém, nos bastam os expostos até aqui.
Assim, tendo ainda em vista o fenômeno da estigmatização dos
ex-apenados, indagamos: será esse o tratamento que devemos dispender
aos adolescentes em conflito com a lei? Ele se adequa ao ideal de Estado
Democrático de Direito que defendemos? Afinal, que almejamos para nossos
adolescentes: que sejam maculados perpetuamente pelo estigma da prisão,
percam sua essência humana e aprendam a reproduzir a violência, ou que
aprendam e tenham condições para assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade?
A nosso ver, a redução da maioridade penal, além de inconstitucional, é medida inadequada e irrazoável, patente, portanto, sua inoportunidade.
Ainda que fosse realizada, não lograria os fins a que se propõe. Pelo contrário,
59
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A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
somente contribuiria para a perpetuação da marginalização e para o crescimento e agravação das formas de violência. Seus efeitos seriam ainda mais
gravosos, na medida em que atingiria um ser humano que se encontra apenas
no começo de sua vida. É ainda simbolicamente nefasta, pois demonstraria a
descrença na possibilidade de recuperação. As consequências sociais, portanto,
seriam as mais desastrosas.
Constitui, então, medida incompatível com o princípio da proteção
integral, o qual enseja medidas benéficas e adequadas ao sadio desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, dotado de força normativa e, portanto,
com caráter vinculante.
Nada obstante, devemos ter em mente que inimputabilidade não
significa irresponsabilidade. O próprio art. 228 da Constituição Federal estabeleceu que os inimputáveis se sujeitam às normas da legislação especial, no caso,
o ECA. Com efeito, este diploma é mais condizente com a peculiar condição do
adolescente, pois, consoante GOIAS et al. (apud MELLO, M., op. cit., p. 61) visa
“ir além de uma simples censura e castigo da sociedade e dar a oportunidade
de, através das medidas pedagógicas, mudar seu comportamento”. Afinal,
sua sanção não deve estar imbuída de viés meramente punitivo, senão de um
caráter pedagógico, tanto que a denominação da medida é socioeducativa.
Sobre o afastamento do adolescente da esfera de persecução penal,
Danielle Barbosa (2009) esclarece que:
O adolescente que comprovadamente pratica um ato
infracional seguramente responderá por ele. O jovem só
não cumprirá pena porque a vulnerabilidade inerente à
sua condição de pessoa ainda em desenvolvimento lhe
assegura uma responsabilização mitigada, [...] revestida
de aspectos pedagógicos mais evidentes.
Outrossim, a dilatação da intervenção punitiva constituiria verdadeiro engodo para mascarar os reais problemas existentes. A busca por uma
solução simplista e imediata à problemática da criminalidade juvenil aponta
para a incapacidade e, talvez, o desinteresse do Estado na solução das falhas
de uma política social ineficaz, bem como o descaso da própria sociedade na
cobrança pela proteção ao adolescente, em especial, o marginalizado.
Nesse sentido, preleciona Enrico Ferri (apud GOMES; MOLINA; BIANCHINI, op. cit., p. 340):
Richardy Videnov Alves dos Santos
O legislador deve convencer-se de que, para conter
o aumento da criminalidade, as reformas sociais são
muito mais adequadas e poderosas que o Código Penal
[...] Para a defesa social contra à criminalidade e para a
elevação moral da população, um pequeno progresso
nas reformas de prevenção social valem cem vezes mais
e melhor que a publicação de um Código Penal.
Ao lado da carência de políticas públicas eficazes, a sobrevivência
de desigualdades sociais gritantes, a expansão do crime organizado e a situação de extrema pobreza em que se encontram milhares de adolescentes são
fatores que podem levar à prática de crimes. Assim, tais determinantes não
devem ser olvidadas quando da perquirição dos motivos do crescimento da
violência juvenil. Origem que deve ser sopesada para que a proteção do instituto da maioridade não seja tratada acriticamente, pois consiste em garantia
erigida à luz dos direitos humanos e dos valores fundamentais perfilhados
pela Constituição.
Como alternativa ao problema da aludida desproporcionalidade da
punição, fator que para o senso comum legitimaria a redução, propomos o
caminho do meio: aumentar o período de internação, bem como evidenciar,
na vivência dos estabelecimentos, o caráter efetivamente educativo da sanção,
de modo que esta se torne mais eficaz na prevenção do crime.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa Constituição, ao reconhecer o conceito materialmente aberto
de direito fundamental, recepciona direitos e garantias decorrentes do regime
e dos princípios adotados.
Nesse sentido, é possível afirmar que o art. 228 da CF consiste em
verdadeiro direito fundamental elencado fora do rol expresso, ao passo que,
diretamente vinculado à dignidade da pessoa humana, aponta para a necessidade de uma intervenção estatal mais adequada à peculiar condição de
desenvolvimento do adolescente infrator, que não seja o Direito Penal.
O art. 60, § 4º da CF estabeleceu os dispositivos constitucionais que
não podem ser objetos de deliberação tendente a aboli-los, dentre eles os
direitos e garantias individuais, os quais, devido ao conceito materialmente
aberto, podem fugir ao rol do art. 5º, de modo que também haverá de se falar
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A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
em cláusulas pétreas implícitas. Desse modo, é possível sustentar que a idade
penal mínima fixada em 18 anos é, através da lente constitucional, irreformável,
não podendo ser rebaixada para dar ensejo a uma persecução mais gravosa.
Corroborando com tal imutabilidade, as determinantes sociais e o
estado em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro são fatores que
desaconselham a redução. A diminuição do termo inicial da imputabilidade
não reduziria a violência tal como se tem sustentado, senão a acentuaria, face
aos perigos da famigerada “escola do crime”.
O combate à delinquência juvenil requer, indubitavelmente, alterações profundas. Tais mudanças, porém, se referem à implantação de políticas
públicas aptas a combater a miséria e a criminalidade em sua origem, bem
como a propiciar uma vida minimamente digna, e não um remendo simplista
às falhas de uma política social inoperante.
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THE IMPOSSIBILITY OF REDUCING THE MINIMUM CRIMINAL AGE: A CRITICAL APPROACH
TO SUPPORT THE IMMUTABLE CHARACTER
OF THE ARTICLE 228 OF BRAZILIAN FEDERAL
CONSTITUTION.
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A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem crítica
pela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal
ABSTRACT
The outrageous rise of crime rates, as well the
constant media publicizing of brutal crimes practiced by teenagers, have accentuated the popular
claim to lower the age of imputability. This willing
reveals how the population ignores the prerogatives which our Constitution reserves toward the
child and teenager protection, besides the delicate
social context involved in the problem of juvenile
criminality, although the desire for safety is legitimate. Our Magna Cartha established under 18 are
criminally unimputative, who are subjected to the
rules of special legislation. However, numerous
proposals (of Legislative Decree, Ordinary Law,
Amendment to the Constitution) have already
been tried, which aimed reducing the age foreseen
by the Constituent of 1987/1988. In this sense,
heated discussion emerges about the possibility of
reform or not of that device. This paper purposes to
demonstrate, under the modern theory of fundamental rights, the immutable character of criminal
imputability at 18 and subsidiarily the inopportunity of its reduction, especially when the failure of
current Brazil’s prison system is considered.
Keywords: Lowering of imputability age. Impossibility. Immutable character. Inopportunity.
A LIMITAÇÃO TERRITORIAL
DOS EFEITOS DA COISA
JULGADA NA AÇÃO CIVIL
PÚBLICA: ART. 16 DA
LEI 7.347/1995
Josaniel Cabral de Oliveira
Acadêmico do 11º período do
Curso de Direito da UFRN.
Ronaldo Pinheiro de Queiroz
Professor Orientador
RESUMO
O presente artigo objetiva a análise crítica
doutrinária da limitação territorial da coisa julgada
na Ação Civil Pública, introduzida originalmente por
meio da Medida Provisória 1.570/1997, posteriormente convertida na Lei 9.494/1997. Inicialmente,
busca contextualizar o tema a partir de uma breve
exposição sobre a coisa julgada no processo coletivo em geral, cuja compreensão tem relevância na
percepção da crítica doutrinária acerca da limitação
imposta, mais especificamente no que trata da
ineficácia da medida. Posteriormente propõe-se
demonstrar os principais pontos de divergência
doutrinária, com a análise das razões pelas quais a
limitação territorial introduzida pela Lei 9.494/1997
é duramente criticada pela doutrina majoritária,
concluindo-se pela existência de inconstitucionalidade, atecnia e ineficácia.
Palavras-chave: Ação Civil Pública. Limitação territorial. Sentença. Crítica.
A limitação territorial dos efeitos da coisa julgada na
ação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995
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1 INTRODUÇÃO
De forma notável, a relevância do tema proposto se justifica pelo
cada vez maior destaque que as ações coletivas conquistam no Brasil. Tal
dimensão não corresponde a uma exigência meramente acadêmico-jurídica,
mas se consubstancia no anseio social pela efetividade do Poder Judiciário
na resolução dos conflitos, bem como na crescente demanda dos interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos. Situados a meio caminho entre
os interesses públicos e privados, os direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos são frutos da percepção, pela própria sociedade de massa, da
satisfação das necessidades coletivas como ponto vital para realização do bem
comum, intrinsecamente ligado a qualidade de vida.
Nesse diapasão, surgiu a Lei da Ação Civil Pública (7.347/85) – LACP,
instituindo a Ação Civil Pública como contraponto histórico e revolucionário
ao espírito individualista do processo civil, explicitado no art. 6º do Código de
Processo Civil, segundo o qual, salvo autorização legal, ninguém pode postular,
em nome próprio, direito alheio.
Fruto de um período de intensas mudanças político-sociais no Brasil,
a LACP1 é símbolo de uma legislação altamente avançada para a época. Com o
fim do regime militar, que sufocou o país durante vinte anos, o Brasil recomeçava seu árduo caminho de volta ao curso normal do processo democrático e da
revalorização das instituições. A LACP surgiu em meio ao renascer do país, em
todas as áreas, em que claramente se respirava uma nova atmosfera econômica
e cultural que traziam consigo o redescobrimento da idéia de Nação, dessa
vez sem a pasteurização institucional aplicada pelos militares.
O Direito, mais especificamente o Direito Processual, não poderia
ficar à margem de todo esse processo. A noção de direitos difusos, coletivos
e individuais homogêneos engatinhava, muito embora já fosse perceptível
a explosão das necessidades coletivas características de uma sociedade de
massa, que durante tanto tempo foi cortinada pelo regime. Tal percepção pro-
O projeto de lei original da LACP (PL 6.034/84) teve como autores nomes consagrados do Direito Processual, tais como Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe
e Waldemar Mariz de Oliveira Junior, sendo apresentado ao Congresso Nacional pelo do Deputado federal Flavio Bierrenbach. Posteriormente, foi apresentado pelo Ministério Público um
substitutivo ao projeto original, praticamente igual, especificamente no que se refere à coisa
julgada. Desse substitutivo, surgiu a LACP.
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Josaniel Cabral de Oliveira
porcionava a necessidade do surgimento de uma legislação processualmente
protetiva dos bens jurídicos redescobertos.
Já havia no país a Lei 4.717, de 29.6.1965, lei da Ação Popular e em
1990 surgiu o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 11 de setembro,
consolidando o regime de tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos, e estabelecendo de forma consistente um novo regime para a
coisa julgada coletiva, com influência direta na LACP, conforme será analisado
mais adiante.
2 COISA JULGADA NO ÂMBITO DOS LITÍGIOS COLETIVOS
O instituto da coisa julgada tem ab initio o propósito de alcançar
dois objetivos precípuos: dar fim definitivamente aos litígios, de forma que o
objeto da causa não venha a ser discutido posteriormente, e atribuir o caráter
de imutabilidade às decisões judiciais (MAZZEI, 2005, p. 334).
Trata-se de vertente essencial para a segurança jurídica, preservando
a certeza de que o dispositivo sentencial será observado e perdurará doravante,
estabilizando, adrede, as relações jurídicas resguardadas pela decisão judicial.
Como bem leciona Hugo Nigro Mazzilli (2010, p. 579) “a coisa julgada
não é efeito da sentença; não decorre do conteúdo da decisão; não significa
eficácia objetiva ou subjetiva da sentença: é apenas a imutabilidade dos efeitos
da sentença, adquirida com o trânsito em julgado”.
Com o avanço das relações jurídicas e o surgimento cada vez mais
numeroso das demandas coletivas, o instituto da coisa julgada também evoluiu
e ganhou contornos específicos no âmbito dos direitos metaindividuais. Nas
palavras precisas de Antônio Gidi:
Da mesma maneira que não se podem introduzir no
nosso ordenamento (ou mesma na ciência que o estuda)
institutos de ordenamentos jurídicos alienígenas sem
uma adaptação ao nosso sistema, não é possível valer-se
da concepção ortodoxa dos institutos processuais para a
compreensão das ações coletivas. (GIDI, 1995, p. 57/58).
Essa referida necessidade de adaptação decorre e se faz necessária
de acordo com as características próprias dos direitos tutelados pelas ações
coletivas, os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
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A limitação territorial dos efeitos da coisa julgada na
ação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995
A coisa julgada, nos moldes do processo tradicional, consubstanciou-se na principal dificuldade para a implantação da tutela coletiva dos direitos. Isso porque na teoria do processo individual, a imutabilidade da sentença
se dava apenas entre as partes. Ora, aplicar tal premissa também no processo
coletivo significaria dizer que qualquer colegitimado que não participara da
ação original poderia ajuizar a mesma ação, para buscar a tutela dos direitos
de outrem que não constara na primeira, com a discussão dos mesmos fatos,
sob motivação da mesma causa de pedir. Como resultado, estaria prejudicada
a própria razão de ser das ações coletivas (MAZZILLI, 2010, p. 580).
Ao considerar a referida dificuldade, o legislador buscou na Lei da
Ação Popular (art. 18) modelo para regulamentar a coisa julgada na LACP.
Como decorrência, a redação original do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública
apresentava:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes,
exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado
poderá intentar outra ação com idêntico fundamento,
valendo-se de nova prova.
Houve, dessa forma, a mitigação da coisa julgada nas ações civis
públicas secundum eventus litis, ou seja de acordo com o resultado do processo. Estava estabelecida a coisa julgada erga omnes, isto é, a coisa julgada
alcançando todos os colegitimados ativos, ainda que não tivessem participado
como parte da demanda, bem como para qualquer pessoa. Também haveria
coisa julgada no caso de improcedência, excetuando-se a hipótese de improcedência por falta de provas. Nesse caso, o autor da ação de conhecimento
original ou qualquer colegitimado poderiam ajuizar nova ação.
Como se trata de regra excepcional, porque põe formalmente em desequilíbrio as partes litigantes, na medida
em que apenas contra uma delas poderá ser oposta, a
objeção da res iudicata, a coisa julgada secundum eventus
litis é regra excepcional do nosso sistema, e como tal
deve ser expressamente prevista. (ABELHA, 2004, p. 254).
Discorrendo de forma precisa sobre a coisa julgada secundum eventus litis, assim consigna Rodolfo de Camargo Mancuso, in verbis:
Josaniel Cabral de Oliveira
O sistema adotado no art. 18 da lei da ação popular e
agora no art. 16 da lei da ação civil pública apresenta
uma dualidade um tanto desconcertante: de um lado,
do ponto de vista prático, compreende-se sua noção
pelo evidente propósito de evitar a colusão entre as
partes (que a ação seja, de indústria, mal proposta e
pior instruída, com o fito escuso de conduzir ao decreto
de improcedência jogando-se destarte uma pá de cal
sobre a controvérsia); de outro lado, o pronunciamento
de um non liquet acerca da controvérsia, distancia-se de
um dos princípios basilares da própria jurisdição, qual
seja o da sua indeclinabilidade: nem mesmo nos casos
de lacuna ou obscuridade do direito positivo, pode o
juiz eximir-se da prestação jurisdicional[...]. (MANCUSO,
2004, p. 392/393).
Conforme lição de Pedro da Silva Dinamarco:
Essa sistemática está em plena sintonia com a preocupação do processualista moderno em busca do
aprimoramento do sistema processual e a efetividade
do processo, tendo na máxima chiovendiana um verdadeiro slogan: “Na medida do que for praticamente
possível o processo deve proporcionar a quem tem um
direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o
direito de obter”. (DINAMARCO, 2001, p. 303).
O art. 16 da LACP posteriormente recebeu nova redação dada pelo
art. 2º da Lei 9.494/97. Essa polêmica modificação irrompeu uma só intenção,
de iniciativa do Governo Federal: limitar territorialmente a eficácia da sentença
dos processos coletivos. Eivada de controvérsias, tal limitação será objeto de
análise do presente trabalho mais adiante. Por ora, cumpre destacar a nova
redação do art. 16 da LACP:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes,
nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer
legitimado poderá intentar outra ação com idêntico
fundamento, valendo-se de nova prova.
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A limitação territorial dos efeitos da coisa julgada na
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Com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor (Lei
8.078/1990), o alcance da coisa julgada obteve regulamentação definitiva no
âmbito da tutela coletiva. Por força do art. 21 da LACP e do art. 90 do CDC,
ambos os códigos se completam, formando um todo harmônico, com conseqüências relevantes para a interpretação aplicada ao alcance das decisões
advindas de sua aplicação (MAZZILLI, 2010, p. 582).
Em relação aos interesses difusos, a sentença faz coisa julgada erga
omnes (contra todos), com exceção da improcedência por falta de provas,
hipótese na qual outra ação poderá ser proposta, desde que com novas provas.
A coisa julgada alcança, dessarte, toda a coletividade (Art. 103, I, CDC).
Tratando-se de interesses coletivos, dispõe o CDC que a sentença
faz coisa julgada ultra partes, isto é, além das partes do processo, restrito,
entretanto, ao grupo de lesados. Da mesma forma que os interesses difusos,
caso haja improcedência por falta de provas, igual ação pode ser proposta
com base em nova prova (Art. 103, II, CDC).
No tocante aos interesses individuais homogêneos, a imutabilidade
da sentença será erga omnes, beneficiando as vítimas e seus sucessores, somente em caso de procedência (Art. 103, III, CDC).
As expressões erga omnes e ultra partes resultam na mesma idéia de
extensão da coisa julgada para além das partes do processo coletivo.
Sem embargo, quis o legislador diferenciar o alcance do instituto da
coisa julgada, definindo que erga omnes significa que a sentença é imutável
para todos, tendo em vista a indeterminabilidade dos interessados (interesses
difusos).
Em relação aos interesses cujos beneficiários são determinados ou
determináveis, a utilização do termo ultra partes significa que o alcance da coisa
julgada estende-se para além das partes, mas limita-se ao grupo beneficiado
pela decisão (interesse coletivo).
Nesse sentido, cabe destacar, por oportuno, valorosa observação
de Hugo Nigro Mazzilli:
Mas então, se foi esse o intento, melhor teria sido que o
legislador se tivesse valido do conceito de eficácia ultra
partes também para referir-se aos interesses individuais
homogêneos (ao contrário, aqui falou, contraditoriamente, em eficácia erga omnes). Quanto a estes, a lei
também deveria ter mencionado afeito ultra partes, e
não erga omnes, porque a defesa de interesses indivi-
Josaniel Cabral de Oliveira
duais homogêneos abrange apenas os integrantes do
grupo, classe ou categoria de pessoas lesadas (as vítimas
ou seus sucessores), do mesmo modo que ocorreria
na defesa de interesses coletivos, em sentido estrito.
(MAZZILLI, 2010, p. 587).
Muito embora o microssistema formado pela LACP e pelo CDC –
aquela com a redação original do art. 16, harmonicamente interpretada com
esta – pudesse realizar plenamente os propósitos essenciais da tutela coletiva
dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, uma modificação
realizada no art. 16 da LACP, caracterizada por uma tentativa de limitação à
eficácia da coisa julgada, adentraria ex abrupto no sistema jurídico coletivo,
eivada de polêmica e contradições.
3 LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA COISA JULGADA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA:
LEI 9.494/97
Resguardadas pela jurisprudência dominante à época, as ações
coletivas, caracterizadas por terem suas decisões consideradas imutáveis erga
omnes, desagradavam por demais o Governo Federal, especialmente na década
de 1990. A interpretação da eficácia da coisa julgada nas ações civis públicas,
juntamente com os dispositivos do CDC, proporcionaram atuação marcante
e histórica a partir da participação de vários segmentos sociais, notadamente
na defesa do patrimônio público.
Durante o processo das privatizações das empresas públicas que
marcou a referida década, com destaque para a venda da empresa Vale do
Rio Doce em 1997, travou-se verdadeira contenda judicial de dimensões
nacionais, na qual centenas de liminares foram exaradas no intuito de evitar
as privatizações. O Governo mobilizou um verdadeiro exército de advogados
para garantir a realização do leilão, obtendo sucesso in fine com a conclusão
do processo de venda da empresa.
As decisões judiciais concedentes de liminares durante o processo
das privatizações incomodaram tanto o Governo que este se empenhou em
efetuar uma engajada tentativa de limitação da eficácia da sentença coletiva.
Esse único aspecto demonstra de per si a bem sucedida caminhada inicial da
tutela coletiva.
Ao se referir às benesses proporcionadas pela instrumentalidade
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A limitação territorial dos efeitos da coisa julgada na
ação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995
das ações coletivas, a professora Ada Pellegrini Grinover salienta:
Apesar de tudo isso, as investidas do Poder Executivo –
acompanhado por um Legislativo complacente ou no
mínimo desatento – têm atacado a Ação Civil Pública,
tentando diminuir sua eficácia por intermédio da limitação do acesso à justiça, da compressão do momento
associativo, da redução do papel do Poder Judiciário.
(GRINOVER, 1999).
Como resultado do incômodo governamental, causado pelas diversas decisões judiciais de âmbito nacional, o Governo editou a Medida Provisória
n. 1.570/1997, mais tarde convertida na Lei n. 9.494/1997, a qual modificou
o art. 16 da LACP, numa tentativa explícita de limitar a eficácia da sentença
no âmbito da ACP. O aludido art. 16 passou a apresentar a seguinte redação:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes,
nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer
legitimado poderá intentar outra ação com idêntico
fundamento, valendo-se de nova prova [grifo nosso].
A modificação levada a termo, como não poderia deixar de ser,
enfrenta dura oposição da maioria esmagadora da doutrina que reconhece,
além de flagrante inconstitucionalidade, grave impropriedade técnica. Ainda
que esses aspectos fossem desprezados, restaria clara a ineficácia do acréscimo
legislativo.
Nesse espírito de condenação à modificação do art. 16 da LACP,
arremata Ada Pellegrini Grinover:
Em primeiro lugar pecou pela intenção. Limitar a
abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas
significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados
justamente a resolver molecularmente os conflitos de
interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e, de
outro lado, contribui para a multiplicação de processos,
a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas
respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser
Josaniel Cabral de Oliveira
suficiente. No momento em que o sistema brasileiro
busca saída até nos precedentes vinculantes, o menos
que se pode dizer do esforço redutivo do Executivo é
que vai na contramão da história. (GRINOVER, 1999).
Doravante, analisaremos os principais argumentos da doutrina
opositora à atual redação do dispositivo em comento.
4 CRÍTICA DA DOUTRINA À LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA COISA JULGADA
4.1 Da inconstitucionalidade
As medidas provisórias têm sido utilizadas como instrumentos de
uma prática pouco louvável juridicamente, responsável por grave distorção
no princípio da separação dos poderes: a cada vez mais freqüente elaboração
de leis por parte do Poder Executivo.
Criada pela Constituição de 1988, no intuito de substituir os famigerados decretos-lei, os quais se consagraram como fonte de arbítrio desenfreado durante o período do regime militar brasileiro, a medida provisória
procurava limitar a necessária “função legislativa” do executivo, relegando
tal prerrogativa ao seu devido lugar claramente residual e excepcional, com
observância estrita e necessária dos critérios de extrema relevância e urgência,
de tal monta que demandariam a mitigação do devido processo legislativo,
sob a justificativa precipuamente emergencial.
Todavia, percebe-se que os limites constitucionais à edição das MP
estão sendo cada vez mais negligenciados, resultando em abusos constantes,
numa verdadeira apropriação da função legislativa pelo Poder Executivo.2 As
MPs freqüentemente são utilizadas pelo Executivo na expedição de leis nas
quais não se observa qualquer necessidade de urgência e relevância, ao ponto
de fazer preponderarem as leis oriundas do Poder Executivo, em prejuízo às leis
de iniciativa do legislador ordinário. A situação se reveste de maior gravidade
em virtude da forma com que o Poder Legislativo, os tribunais e a sociedade
vêm assistindo passivamente a essa usurpação da função de legislar (MAZZILLI,
Muito embora a Emenda Constitucional n. 32 tenha buscado corrigir tais distorções, os abusos
persistem.
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ação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995
2010, p. 284).
Sobre o assunto, leciona José Anselmo Oliveira, in verbis:
Analisando as centenas de Medidas já editadas não
encontramos os requisitos exigidos na maioria delas,
pois a gama de temas que foram alcançados por esse
meio de legislar, surpreendentemente não passavam
de situações normais onde o processo legislativo
atenderia satisfatoriamente, merecendo a discussão de
interesse do povo ser debatida e votada de acordo com
os princípios da democracia representativa que vige
entre nós, porém o que menos importava era o respeito
ao direito, e sim os resultados, trazendo insegurança
jurídica e provocando danos irreparáveis para a sociedade brasileira. De tudo se tratou. Medidas econômicas,
impostos, direito processual, direito material, trem da
alegria, direito administrativo, enfim, uma verdadeira
panacéia para atender os fins do governo nem sempre
claros e de interesse do povo brasileiro. (OLIVEIRA, 1999).
A nova redação do art. 16 da LACP é fruto dessa distorção, tendo sido
originada ex abrupto da MP n. 1.570/1997, posteriormente convertida na Lei n.
9.494/1997, sem qualquer indício de urgência requerida pelo art. 62 da Constituição da República de 1988, em flagrante inconstitucionalidade (formal).
Claramente, a modificação promovida pelo Governo Federal não foi
demandada por necessidade urgente, muito embora não se negue a relevância
do tema. A contrario sensu, por ser de tal monta relevante, o assunto mereceria
percorrer a via de maturação própria com a qual é caracterizado o trâmite
legislativo, proporcionando, dessarte, a mais ampla discussão que, como se
perceberia posteriormente, pouparia o Poder Executivo das mais ferrenhas
críticas, não só em relação à inconstitucionalidade, como também no tocante
a falta de tecnicidade com que a matéria foi modificada.
Some-se a esses argumentos, o fato de que a anterior redação do
art. 16 tinha como base inspiradora a ação popular (Lei n. 4.717/1965), cujo
regime da coisa julgada secundum eventum litis, repetido na norma da ACP,
demonstrou no espaço de trinta anos (período este decorrido entre a AP e o
surgimento da lei 9.494) sua eficiência na aplicação da tutela dos direitos metaindividuais, pondo em terra qualquer argumento que defenda a existência
de urgência quando da modificação efetuada (MANCUSO, 2004, p. 395).
Vale citar o posicionamento a contrario sensu de Juliano Taveira
Josaniel Cabral de Oliveira
Bernardes, discordando daqueles que defendem a inconstitucionalidade
formal do ato, por não existir urgência. Argumenta o ilustre magistrado e
professor que a aferição de tais institutos é exclusividade de atribuição do
Poder Executivo com o devido controle do Poder Legislativo, não podendo o
Judiciário adentrar a essas questões sem o mínimo de parâmetros objetivos
para tal. Posicionando-se sobre o longo tempo decorrido para a mudança no
art. 16, afirma:
Dessarte, se é que se pode afastar o caráter subjetivo
acerca do que se reputa “longo” período de vigência
da legislação modificada, essa idéia não serve para invalidar a modificação normativa. Na verdade, a situação
de urgência e relevância pode advir, exatamente, da
inércia do Legislativo em revisar a legislação “antiga” ou
mesmo da superveniência de circunstâncias novas, não
consideradas anteriormente. Assim, noves fora juízos
subjetivos de valor, o Presidente da República Fernando
Henrique Cardoso tinha lá suas razões, confessáveis ou
não, para querer modificar o art. 16 da LACP, especialmente para tentar frear a chamada “guerra de liminares”
ao tempo dos leilões de privatização, bem como para
restringir os prejuízos do governo com as ações coletivas
movidas em favor de servidores públicos federais. Aliás,
a vingar o raciocínio fundado no decurso do prazo de
vigência da lei alterada, de quase nada valeria a medida
provisória: se uma lei “velha” não pudesse ser alterada
por medida provisória, uma lei “nova”, tampouco, pois
não haveria urgência para mudar o que legislador
acabasse de produzir. (BERNARDES, 2004).
Além da ausência dos requisitos constitucionais essenciais para a
edição de MPs, outros aspectos são tratados pela doutrina para estampar a
inconstitucionalidade (material) do dispositivo.
Nelson Nery Júnior invoca os princípios do direito à ação, da proporcionalidade e da razoabilidade:
A Lei n. 9.494, de 10/09/97, tem duas inconstitucionalidades: material e formal. Formal porque proveio de
uma medida provisória (n. 1.570-5/97) sem urgência e
sem relevância, e isso o Supremo Tribunal Federal não
analisa, infelizmente, pois não interessa ao Poder central.
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Material porque viola o direito constitucional de ação,
o princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade das leis. Viola o princípio do direito de ação
porque aniquila uma conseqüência básica do direito de
ação coletiva: a eficácia erga omnes de uma sentença
coletiva. Diz o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública que
uma sentença coletiva terá eficácia erga omnes limitada
ao território do juiz que proferiu a decisão. Então é uma
ação individual: confundimos tudo. Isso é um absurdo.
Não se entendeu nada do que é processo coletivo. Isso é
tornar ineficaz um direito de cidadania. O Estado, em vez
de agir em favor da população, em favor da cidadania,
age em detrimento da cidadania. É isso que temos de
analisar e meditar para verificarmos em que medida
podemos proteger o meio ambiente, a biodiversidade
e outros direitos metaindividuais. (NERY JR, 1999).
Os princípios da isonomia e da inafastabilidade da jurisdição também estariam contrariados pela Lei n. 9.494/97. Tendo em vista a indivisibilidade do objeto e levando-se em conta que o dano causado é um dano social,
a limitação do alcance da eficácia da sentença proporcionaria tratamento
diferenciado a pessoas submetidas à mesma circunstância jurídica, e, portanto,
sofrendo os mesmos efeitos do dano causado. Tais pessoas, no entanto, não
seriam resguardadas pela proteção advinda da decisão judicial exarada, por
não se situarem na mesma circunscrição do órgão judicial prolator da sentença
(MAZZEI, 2005, p. 340).
Julgando a ADin n. 1.576-1-DF3, ajuizada em face da aludida medida
provisória, o STF suspendeu outro artigo, mantendo in fine o artigo modificador
da eficácia territorial da sentença. Com a conversão da medida provisória em
lei, restou prejudicada a matéria, não sendo julgado o mérito da demanda
constitucional.
4.2 Da atecnia
A doutrina é quase unânime ao afirmar que o legislador confundiu
limites da coisa julgada com competência. O alcance da coisa julgada, quali-
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1.576-1-UF. Pleno. Min. Marco Aurélio. j. 16.04.1997. DJU.
24.04.1997. p. 14.914.
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dade da sentença em relação a qual não cabe mais recurso, não se relaciona
com a parcela da jurisdição territorial do órgão prolator da sentença. Os limites
subjetivos da coisa julgada devem ser observados secundum eventum litis.
Nelson Nery (2006, p. 515) esclarece o assunto com um exemplo cuja
obviedade chega a ser constrangedora, porém espanca qualquer dúvida sobre
a questão. Quando uma sentença de juiz da comarca de São Paulo proclama o
divórcio de um casal, tal sentença tem eficácia em todo o país. Do contrário, o
casal estaria divorciado em São Paulo mas continuaria casado no Rio de Janeiro
ou em outra Unidade da Federação, o que seria completamente absurdo. Não
se considera aqui a competência do juízo, pois essa se trata de questão diversa
que nada tem a ver com o alcance territorial da sentença.
Mazzilli (2010, p. 285), por sua vez, adverte que uma sentença que
proíbe, v. g., a venda de produtos nocivos em todo o país, ou que proíba a poluição de um rio que banhe vários Estados, terá eficácia no país todo ou pelo
menos em mais de um Estado. Nada disso se relaciona com a competência
do juiz prolator, uma vez que esse critério define tão somente que é ele, e não
os demais milhares de juízes do Brasil, o juiz competente para julgar a causa.
A contrario sensu, haveria milhares de sentenças, muitas delas contraditórias.
Ainda nas palavras de Mazzilli:
O legislador federal não soube distinguir competência
de coisa julgada. A imutabilidade erga omnes dos efeitos
de uma sentença transitada em julgado não tem nada
a ver com a competência do juiz que profere a sentença: se, em nome do Estado, o juiz tem uma parcela
da jurisdição (isto é, ele é o órgão estatal competente
para decidir aquela lide), então sua sentença, depois de
transitada em julgado, representará a vontade estatal
e passará a ser imutável entre as partes ou, em certos
casos, imutável para toda a coletividade (como nas ações
populares, nas ações civis públicas ou nas ações coletivas julgadas procedentes). A imutabilidade não será
maior ou menor em decorrência da regra de competência que permitiu ao juiz decidisse a lide; a imutabilidade
será mais ampla ou mais restrita de acordo, sim, com
a natureza do direito controvertido e de acordo com
o grupo social cujas relações se destina regular (interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos). A
competência só é critério para determinar qual órgão do
Estado decidirá a lide. (MAZZILLI, 2010, p. 286).
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ação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995
Questão interessante é levantada por Abelha (2004, p. 264) que
alerta para a possível situação sui generis na qual o jurisdicionado vencido
em primeiro grau não teria interesse em interpor recurso, uma vez que ele
preferiria, naturalmente, ter sentença que lhe fosse desfavorável limitadamente
no âmbito de sua comarca ou de seu Estado, a ver sua pretensão negada em
todo o território nacional, caso fosse sucumbente também em segundo grau,
com a confirmação da sentença exarada pelo juízo a quo.
Conclui-se, pelo exposto, que a modificação promovida no art. 16
da LACP é tecnicamente inadequada por confundir competência com limite
da coisa julgada.
4.3 Da ineficácia
Como foi afirmado anteriormente, a lei da Ação Civil Pública forma
com o Código de Defesa do Consumidor um micro sistema que rege a tutela
dos direitos metaindividuais. O art. 21 da LACP, juntamente com o art. 90 do
CDC, garante essa integração.
No seu exercício hermenêutico, o intérprete, na análise dos dispositivos da LACP, precisa levar em conta os ditames do CDC, sob pena de inaplicabilidade da própria LACP. Vale dizer que uma interpretação restrita da nova
redação do art. 16 da LACP seria a causa de graves paradoxos que inviabilizaria
a aplicação de seus próprios dispositivos na proteção dos direitos transindividuais. Por essa razão, diz-se que a alteração na redação do art. 16 é ineficaz.
Conforme encontramos em substanciosa análise de Grinover (1999),
a partir de uma interpretação sistemática do art. 16 da LACP, em conjunto com o
art. 103 do CDC, infere-se que o primeiro somente se aplica aos direitos difusos,
pelo uso da expressão erga omnes comum entre os dois dispositivos legais.
Sem embargo, estende-se a mesma interpretação para os direitos coletivos,
tendo em vista as semelhanças que há no alcance das sentenças dos dois tipos
citados (difusos e coletivos). Perceba-se que em ambos consubstancia-se a
regra permissiva do non liquet, por insuficiência de provas.
No tocante aos interesses individuais homogêneos, a coisa julgada
segue regime distinto, pois só há coisa julgada erga omnes com a procedência do pedido. Ademais, o legislador não atribuiu aos interesses individuais
homogêneos a inexistência de coisa julgada para sentença de improcedência
por insuficiência de provas.
Em suma, o art. 16 é aplicável aos interesses difusos e coletivos (este
último por analogia).
Josaniel Cabral de Oliveira
Isso posto, como se verifica a ineficácia da modificação do art. 16
na aplicação a essas categorias de interesses?
Mazzilli (2010, p. 287) discorre acerca da impossibilidade de aplicação da limitação territorial encontrada no art. 16. Afirma o consagrado
doutrinador que as ações coletivas que tenham por objeto direitos difusos em
comarcas ou Estados diferentes estariam prejudicadas, caso lhes fosse dada a
interpretação da limitação territorial, pois nenhum juiz seria competente para
julgar a ação, uma vez que os danos abrangeriam áreas distintas. Nenhum juiz
das diversas comarcas envolvidas possuiria competência territorial em toda
a área alcançada pela demanda. A solução para o caso seria o ajuizamento
de diversas ações, em cada foro do local do dano. Tal solução resultaria na
possibilidade de obtenção de sentenças contraditórias, tornando as decisões
inexeqüíveis.
Ora, além de ir de encontro ao espírito das ações coletivas, qual seja
a homenagem ao princípio da eficácia/economia processual, consubstanciada
na reunião no trâmite de apenas uma ação o que seriam milhares de ações
pulverizadas e todas tratando acerca do mesmo objeto e mesma causa de
pedir, a limitação territorial impede, ainda, a possibilidade de satisfação eficaz
e real das demandas colocadas diante dos juízos que têm o mister de analisar
as ações coletivas. Afinal, como se pode dividir territorialmente questões de
per si indivisíveis?
Atente-se às palavras de Mancuso:
Por exemplo, se o pedido numa ação civil pública
em curso perante juiz competente (Lei 7.347/85, art.
2º, c/c CDC, art. 93) é que se interdite a fabricação de
medicamento tido como nocivo à saúde humana, a
resposta judiciária (inclusive como liminar) não pode,
a nosso ver, sofrer condicionamento geográfico, seja
porque não caberia falar numa ‘saúde paulista’, distinta
de uma ‘saúde gaúcha, seja porque, de outro modo,
se teria que admitir a virtualidade de ação coletiva
concomitante, em outra sede, ao risco da prolação
de julgados porventura contraditórios, gerando caos
e perplexidade. Ou, ainda, suponha-se uma ação civil
pública ambiental onde se pede a interdição do uso de
mercúrio no garimpo de ouro, atividade realizada ao
longo de um rio que atravessa vários Estados: como a
decisão judicial que acolhe a ação poderia ser realmente
79
80
A limitação territorial dos efeitos da coisa julgada na
ação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995
eficaz, se os seus efeitos práticos ficassem circunscritos
em termos dos limites territoriais do Juízo prolator da
decisão? (MANCUSO, 2004, p. 401).
Como solucionar o problema trazido pela modificação da LACP?
Grinover (1999) afirma que “a competência territorial nas ações
coletivas é regulada expressamente pelo art. 93 do CDC”, definindo a competência da capital do Estado e do Distrito Federal nos casos de danos no
âmbito regional e nacional, respectivamente e que a afirmação legal de que a
coisa julgada se restringe aos limites da competência do órgão prolator “nada
mais indica do que a necessidade de buscar a especificação dos limites legais
da competência, ou seja, os parâmetros do art. 93 do CDC”.
A opção única e coerente com a mens legis original é a interpretação sistemática dada ao alcance das sentenças coletivas, de acordo com a
observância do microssistema da tutela coletiva.
5 CONCLUSÕES
Sob todos os aspectos, a tentativa de modificação da eficácia das
decisões exaradas na ação civil pública, consubstanciada na limitação territorial
do alcance das sentenças, não logrou êxito. Seja pela inconstitucionalidade
formal e material ínsita a tal tentativa, ao ponto de alterar por meio de medida
provisória, sob o auspício de inexistente urgência, sistemática já praticada há
muito no ordenamento jurídico pátrio, seja pela falta de técnica e abundância
de incoerência jurídica com outros institutos já consolidados no Direito.
Ainda que essas incongruências fossem desprezadas, restaria a
própria inaplicabilidade da restrição promovida adrede, posto que se encontra
de per si em descompasso com o microssistema que rege as ações coletivas,
bem como pela própria natureza e abrangência das demandas coletivas, cuja
atividade danosa, via de regra, extrapola as áreas territoriais limitadoras da
competência do juízo prolator.
Por essas razões, a correta interpretação do dispositivo contido no
art. 16 da LACP deve ser a que afasta a limitação territorial, sob pena da total
inaplicabilidade das sentenças e da contrariedade dos propósitos ínsitos e
iniciais da ACP.
Não se pode olvidar o árduo caminho trilhado pelo Direito neste país
até a conquista de algo tão fundamental para a concretização das demandas
Josaniel Cabral de Oliveira
populares que são as ações coletivas, especialmente a ação civil pública. Diante
de tão grande relevância, cabe à sociedade, aos tribunais, ao Ministério Público
e aos legisladores preservarem o espírito inicial dos institutos formadores da
tutela coletiva, de modo que as constantes tentativas de enfraquecimentos
de tais ferramentas sejam rejeitadas de plano.
Acolher modificações que venham a dificultar a aplicação da ação
civil pública significa rumar a passos largos para a impunidade, favorecendo
aqueles que têm interesse no não funcionamento a contento dos dispositivos
inibidores da corrupção, dos atos de improbidade e atentatórios contra a
preservação do patrimônio público, do meio ambiente e dos bens históricos
do país.
REFERÊNCIAS
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Universitária, 2004.
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Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
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Seminário Internacional sobre Direito da Biodiversidade, Revista CEJ 08/170,
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81
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A limitação territorial dos efeitos da coisa julgada na
ação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio
ambiente, patrimônio cultural e consumidores. 9. Ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004.
MAZZEI, Rodrigo Reis; NOLASCO, Rita Dias. Processo civil coletivo. São Paulo:
Quartier Latin, 2005.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 23. Ed.,
São Paulo: Saraiva, 2010.
OLIVEIRA, José Anselmo. Conceito de relevância e urgência na MP. O Neófito.
São Paulo, 1999.
THE TERRITORIAL LIMITATION RES JUDICATA
EFFECT IN CIVIL PUBLIC ACTION: ART. 16 OF
THE LEI 7.347/1995
ABSTRACT
This article aims to analise critically the doctrine of
res judicata territorial limitation of the Civil Public
Action in Brazil, originally introduced by the Medida Provisória 1.570/1997, later converted into Lei
9.494/1997. Initially, the purpose is to contextualize the subject with a brief presentation on the res
judicata in the collective process in general, whose
understanding has relevance in the perception of
doctrinal criticism about its limitation, specifically
in dealing with the ineffectiveness of the limitation. Thereafter it is proposed to demonstrate the
main points of doctrinal disagreement with the
analysis of the reasons why the territorial limitation
Josaniel Cabral de Oliveira
introduced by Lei 9.494/1997 is harshly criticized
by the majority of the doctrine, concluding that
res judicata territorial limitation is unconstitutional,
not tecnical and ineffective.
Keywords: Civil Public Action. Territorial limitation.
Decision. Criticism.
83
CONTROLE DOS
INCENTIVOS FISCAIS PELO
PODER JUDICIÁRIO PELO
PARÂMETRO DA ISONOMIA
TRIBUTÁRIA
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
Acadêmico do 8º período do
Curso de Direito da UFRN.
Pesquisador do grupo “Tributação,
isonomia e livre concorrência”
André de Souza Dantas Elali
Professor Orientador
RESUMO
Analisa os efeitos da aplicação do princípio da isonomia tributária sobre as normas utilizadas com
efeito extrafiscal pelo legislador (normas tributárias
indutoras). Define, outrossim, um método de análise
da isonomia sobre os incentivos fiscais com o objetivo de identificar privilégios e discriminações
odiosas. Definido o método, analisam-se os limites
da atuação do Poder Judiciário na realização da
isonomia tributária ao corrigir as desequiparações
não justificadas constitucionalmente. Discute-se
a possibilidade de, identificado privilégio ou discriminação odiosa, o juiz estender os benefícios
fiscais a contribuintes originalmente não atingidos
pelo escopo da lei. Realiza-se uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria
de realização da igualdade e possibilidade de o
Judiciário atuar como legislador positivo.
Palavras-chave: Isonomia tributária. Normas
tributárias indutoras. Proporcionalidade. Privilégios
odiosos. Discriminações odiosas.
86
Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
1 INTRODUÇÃO
Os incentivos fiscais são formas de intervenção indireta do Estado
no domínio econômico por meio de benefícios ao contribuinte operantes
na receita pública, com o fim de estimular determinados comportamentos.
A utilização de incentivos fiscais, manifestação clara da função extrafiscal das normas tributárias, tem ganhado espaço na política econômica do
Estado em virtude da quebra do paradigma do Estado como agente econômico
em prol do Estado Regulador.
Nesse passo, o tributo tem dividido sua função tipicamente arrecadatória com a função indutora. Paradigmas clássicos do Direito Tributário
devem ser revistos em prol de uma nova teoria dos tributos que contemple o
regime constitucional da atividade fiscal do Estado como forma de intervenção
na economia. Esse novo regime deve considerar, em primeiro lugar, o impacto da atividade fiscal do Estado na atividade econômica dos contribuintes,
contrabalançando-o com os princípios constitucionais da Ordem Econômica.
Com efeito, um dos paradigmas a ser analisado por essa nova vertente do Direito Tributário e Econômico é o da igualdade ou isonomia tributária.
Em geral, o parâmetro de aferição da igualdade das relações tributárias tem se
resumido à capacidade contributiva do cidadão, ou, pelo menos, os atributos
da essencialidade/seletividade de determinados tributos.
Contudo, quando se avança de uma perspectiva meramente fiscal
para uma extrafiscal, uma miríade de novos princípios atua sobre o tributo,
de modo que os parâmetros de aferição da igualdade devem fazer jus a essa
situação.
O presente trabalho tem o escopo, portanto, de analisar a aplicação
da igualdade à função extrafiscal do tributo através de um método preestabelecido que contemple as finalidades indutoras do tributo.
Em seguida, será analisada a aplicação da igualdade pelo Poder
Judiciário através do método descrito, culminando com a discussão sobre a
constatação de privilégios ou discriminações fiscais odiosas.
2 INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ECONÔMICO POR MEIO DE INCENTIVOS
FISCAIS
O Estado, no modelo constitucional brasileiro, intervém de forma
direta ou indireta no domínio econômico. O faz de forma direta quando atua
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
como empresário, comprometendo-se com atividade produtiva através de
órgãos próprios, tais quais as empresas públicas e sociedades de economia
mista, para atender a necessidades de segurança nacional ou de relevante
interesse coletivo, a teor do disposto no art. 173 da Lei Maior.
Com a crise do Estado Social e Patrimonial, o papel do Estado como
empresário sofreu severa mitigação em relação ao modelo excessivamente
intervencionista adotado da década de 30 à década de 80. A Constituição
de 1988 impõe ao Estado um papel primordial de planejador da economia,
através da chamada intervenção indireta no domínio econômico. Trata-se do
paradigma do Estado Regulador.
A intervenção indireta consiste na assunção pelo Estado do papel
de agente planejador da atividade econômica nacional, atendendo a peculiaridades conjunturais de cada país e do cenário econômico globalizado. Nesse
sentido, dispõe o art. 174 da Constituição Federal que “como agente normativo
e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as
funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante
para o setor público e indicativo para o setor privado.”
Em sede doutrinária, Eros Roberto Grau (2008, p. 105) diferencia
a intervenção do Estado no domínio econômico daquela exercida sobre o
domínio econômico. A primeira se identifica com a intervenção direta: o
Estado passa a competir diretamente com os agentes econômicos privados,
submetido a um regime próprio destes. Por outro lado, a intervenção sobre o
domínio econômico, da mesma forma que a intervenção indireta, pressupõe a
atuação do Estado como agente soberano regulador da atividade econômica.
A intervenção sobre o domínio econômico, na obra de Grau (2008,
p. 147-149), assume, contudo, modelo bipartite. Intervém por direção quando
exerce pressão sobre a economia, estabelecendo mecanismos e normas de
controle compulsório para os agentes econômicos. Doutra banda, exerce
intervenção por indução quando manipula instrumentos de intervenção
em consonância e na conformidade dos princípios que regem o mercado,
estimulando comportamentos desejáveis, sem, contudo, utilizar-se de normas
impositivas.
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a constitucionalidade de
uma lei capixaba que conferia o direito ao pagamento de meia entrada em
eventos culturais a doadores de sangue, decidiu ser legítima a intervenção
no domínio econômico pelo Estado, definindo, com precisão, o conceito de
intervenção no domínio econômico por indução. Naquela oportunidade,
acentuou o Min. Eros Grau em seu voto que:
87
Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
88
No caso das normas de intervenção por indução, defrontamo-nos com preceitos que, embora prescritivos (deônticos), não são dotados da mesma carga de cogência que
afeta as normas de intervenção por direção. Trata-se de
normas dispositivas. Não, contudo, no sentido de suprir
a vontade dos seus destinatários, porém, na dicção
de Modesto Carvalhosa (Considerações sobre Direito
Econômico, tese, São Paulo, 1.971, pág. 304) no de “leválo a uma opção econômica de interesse coletivo e social
que transcende o os limites do querer individual”. 1
Nas normas de intervenção por indução, portanto, a sanção (comando) é substituída pelo estímulo (convite), deixando ao destinatário a opção
de aderir ou não ao seu conteúdo.
É nessa hipótese de intervenção por indução que se identificam os
incentivos fiscais.
Segundo Catão (apud PIRES, 2007, p. 19), os incentivos fiscais são
formas de desoneração tributária, aprovadas pelo próprio ente político autorizado à instituição do tributo2, através de veículo legislativo específico, com o
propósito de estimular o surgimento de relações jurídicas de cunho econômico.
Diniz e Fortes (2007, p. 273-274), por sua vez, concluem que o incentivo (gênero) é um meio pelo qual o Estado busca concretizar os princípios
da ordem econômica em prol do bem comum, sendo os incentivos fiscais
(espécie) aqueles que alcançam as obrigações tributárias visando o fomento
geral, regional ou setorial.
Tais concepções de incentivos fiscais permitem contrapô-los aos
incentivos meramente financeiros. Estes, que operam no plano da despesa
pública, compreendem o financiamento indireto do Estado a determinada
atividade econômica por meio de aportes financeiros, como sói acontecer
nos casos de subvenções ou subsídios. Os incentivos fiscais, por outro lado,
operam no plano da receita pública tributária.3
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIn 3512. TP. Rel. Min. Eros Grau. j. em 15.02.2006, DJ 23.06.2006
p. 3 (Grifos no original).
2
Ressalte-se que, em determinadas situações, a Constituição Federal permite a intervenção de
um ente político em matéria de competência tributária de outro, como no caso das isenções
heterônomas decorrentes de tratados internacionais (MAZZUOLI, 2007, p. 15).
3
Ressalte-se, contudo, a tendência de aproximação dos incentivos operantes na receita e na des1
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
portância.
A distinção entre incentivos fiscais e financeiros é de suma im-
Veja-se que, apesar de realmente haver uma correlação necessária
entre receita e despesa pública, quando se trata da receita pública advinda de
tributos, o Estado está submetido a diversas restrições de ordem constitucional,
consubstanciadas nas limitações constitucionais ao poder de tributar. Trata-se,
assim, de verdadeira distinção do regime jurídico aplicável às duas situações.
Por outro lado, os incentivos que operam na vertente da despesa pública são
regidos pelos princípios do Direito Financeiro.
Todavia, dada a influência dos incentivos fiscais e financeiros no
mercado, ambas as categorias se encontram subordinados à disciplina constitucional da Ordem Econômica.
A propósito, assevera José Souto Maior BORGES (1978, p. 50) que até
o pagamento do tributo a matéria estará formalmente regida pelos princípios
e normas de direito tributário. Após o pagamento, a matéria estará disciplinada
pelo Direito Financeiro; será, por consequência, estranha ao campo de atuação
das normas tributárias.
Assim, sói acontecer que a concessão de incentivos fiscais está
submetida às limitações constitucionais ao poder de tributar. O presente trabalho, nesse sentido, estudará o impacto do princípio da isonomia tributária
na concessão de incentivos fiscais.
No que diz respeito aos incentivos fiscais, diversas categorias jurídicas são apontadas, tais quais as isenções, o diferimento, a remissão e a
anistia, bem como as reduções setoriais de alíquotas e base de cálculo. Para
os fins do presente trabalho, contudo, não há maiores razões para a definição
específica de tipos de incentivos, visto que todos se submetem ao regime de
Direito Tributário.
Ademais, é deveras difícil (e até temeroso) identificar em determinados tributos ou em formas de incentivos fiscais a característica isolada
da extrafiscalidade. Por mais que determinado tributo seja concebido no
sentido de estimular determinados comportamentos, sempre terá, por força
da arrecadação ocorrida no plano fático, cunho fiscal. Do mesmo modo, um
determinado tributo concebido apenas no intuito fiscal pode gerar compor-
pesa do ponto de vista orçamentário. O art. 165, § 6º, da Constituição, prevê que o orçamento
deverá prever os efeitos e impactos dos incentivos fiscais na despesa e na receita pública. Tratase da adoção do conceito de gasto tributário (tax expediture) adotado nos EUA por Surrey (apud
USA, 2008).
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Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
tamentos indesejados por parte dos agentes econômicos, como sói acontecer
nas hipótese de elisão fiscal e planejamento tributário.
A concepção de que a interpretação deve obedecer à “vontade do
legislador” ou à “vontade da lei” é arcaica e não encontra eco na prática jurídica
moderna. Isso porque o processo de aplicação das normas muitas vezes gera
efeitos inesperados e imprevisíveis, de forma que não há como o intérprete
agir sem levar em conta esses dados.
Por essa razão, é de se emprestar a concepção de Luís Eduardo
Schoueri (2002, p. 24) de que não se deve falar de tributos “indutores” ou
“extrafiscais”, mas sim de uma função indutora dos tributos, extraída de um
corte abstrato da realidade, o que se consubstancia no estudo das chamadas
normas tributárias indutoras. A esse respeito, assevera o autor que:
Ao se destacar uma função da norma tributária, in casu,
a função indutora, o que se faz é um novo desdobramento da norma primária. Ter-se-á, uma primeira norma
primária, na qual se fará presente a própria indução, pelo
legislador, que, do ponto de vista jurídico, nada mais é
que uma ordem para que o sujeito passivo adote certo
comportamento. Não se perfazendo o comportamento,
nasce uma obrigação tributária, que colocará o sujeito
passivo em situação mais onerosa que aquela em que
se situaria se adotado o comportamento prescrito pelo
legislador. Finalmente, não se altera a norma secundária,
já que do descumprimento da obrigação tributária, surgirá a providência sancionatória, aplicada pelo Estado.
Destarte, cinge-se o presente trabalho à delimitação da aplicação
da isonomia perante as normas tributárias indutoras, as quais quedam por
consubstanciar os incentivos fiscais como forma de intervenção estatal na
economia.
3 IGUALDADE E NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS
A igualdade no âmbito tributário é albergada pela Constituição da
República em seu art. 150, § 2º, ao vedar que os entes tributantes instituam
tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação
equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica
dos rendimentos, títulos ou direitos.
Além disso, o princípio da igualdade se desdobra na capacidade
contributiva, na imposição do § 1º do art. 145, instituindo que sempre que
possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária,
especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos
e as atividades econômicas do contribuinte.
Segundo Humberto Ávila (2007, p. 134-136), a igualdade pode ser
encarada como postulado, princípio ou regra.
Como postulado, a igualdade configura uma metanorma, ou seja,
uma norma que condiciona a aplicação de outras, prescrevendo que estas
devem ser aplicadas de forma isonômica. Trata-se, na verdade, de uma interpretação substancial da igualdade perante a lei e o Direito, ou igualdade formal.
Como princípio, por sua vez, a igualdade é uma norma estruturante
de caráter acentuadamente abstrato que visa dar coerência ao sistema jurídico.
Como princípio, a igualdade pode ser definida pela sua polaridade (TORRES,
2005, p. 341): a igualdade e seu oposto, a desigualdade, não são negativos
necessários. Pelo contrário, muitas vezes a realização de um passa pelo outro.
Trata-se da velha máxima de Aristóteles: tratar os iguais igualmente e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Na verdade, a igualdade
pressupõe a negação ao arbítrio, pois impõe que o tratamento desigual esteja
fundado em distinções devidamente fundamentadas.
A aplicação da igualdade pelo legislador e pelo aplicador da lei,
portanto, implicam necessariamente seu oposto. A igualdade pressupõe a
definição de critérios claros de diferenciação entre pessoas e situações.
A igualdade como regra se trata do comando constitucional direto
impondo tratamento isonômico de situações pré-determinadas, vendando,
portanto, discriminações em razão de sexo (art. 5º, I), origem, raça, cor e idade
(art. 4º, IV), dentre outras. Nesse aspecto, a igualdade é uma norma que pode
ser realizada ou não, de forma binária. É uma regra, não comportando ponderação, mas sim exclusão.
Em todos esses matizes, a igualdade é perscrutável no âmbito
tributário.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a instituição de incentivos
91
Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
92
fiscais de proteção ao trabalho não viola a isonomia4. Contudo, a aplicação
da igualdade em âmbito tributário exige que haja um método para tanto,
permitindo ao aplicador da norma jurídica identificar privilégios e distinções
odiosas.
Com efeito, a aplicação da igualdade está firmemente ligada aos
critérios de desequiparação utilizados para realizar-se distinções. A propósito,
assevera Schoueri (2002, p. 190) que:
Tem-se, pois, que a aplicação do princípio da igualdade
pressupõe a eleição de medidas (princípios). Algumas
delas são eleitas pelo próprio constituinte; outras vão
sendo definidas pelo legislador. Umas e outras obrigam
o legislador: as primeiras, porque não podem deixar de
ser observadas; as últimas, porque o legislador somente
poderá deixar de as observar se as retirar da legislação
como um todo. Fere a igualdade o arbítrio: para algumas situações, observa-se determinado princípio, para
outras não, sem que se encontre motivo jurídico para a
discriminação. Por motivo jurídico entender-se-á, por
sua vez, outro princípio, a motivar nova distinção.
Leonardo Martins (2005, p. 320) assevera, com esteio na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, que a igualdade, dado seu
conteúdo de postulado, difere na análise de sua violação em relação a outros
direitos fundamentais. Tanto as garantias constitucionais de igualdade, quanto
as garantias de liberdade servirão para impor ao legislador certos limites que
ele não poderá ultrapassar: em suma, a restrição ou diminuição da liberdade,
de um lado, e o tratamento desigual, do outro, não poderão ocorrer sem um
motivo racional.
A diferença, assevera o autor, consiste na técnica jurídico-constitucional adotada para se avaliar a presença ou não de suas violações: possíveis
violações de garantias de liberdade, incluindo a propriedade, são examinadas
com a análise da área de proteção do respectivo direito, da intervenção do
Estado e com o questionamento da justificação da intervenção. Possíveis
violações de garantias de igualdade podem ser verificadas por meio de um
processo constituído por duas etapas: a verificação do tratamento desigual;
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIn 1.276/SP. TP. Rel. Min. Ellen Gracie. D.J. 29.11.2002.
4
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
questionamento da possível justificação.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2009), em trabalho monográfico
acerca do tema, apontou como requisitos da distinção fundada na igualdade:
a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto um só indivíduo;
b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam
efetivamente distintas entre si, ou seja, possuam características próprias diferenciadas; c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores
diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles; d) que,
em concreto, o vínculo de correlação em questão seja pertinente em função
dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação
de tratamento jurídico fundada em razão de interesse público.
Os pontos “a” e “b” dizem respeito à verificação do tratamento
desigual. Os seguintes dizem respeito à justificação (ou não) do tratamento
desigual.
A instituição de determinado incentivo fiscal, portanto, deve, em
primeiro lugar, estabelecer requisitos preenchíveis pelo contribuinte interessado. Se a norma se dirige, de forma clara ou dissimulada, a um contribuinte
individual, sem oportunizar seu aproveitamento, mesmo que futuro, por
outros, trata-se de um privilégio odioso. Tal norma seria, em tese, individual e
concreta, violando fatalmente o princípio da igualdade em âmbito tributário.
A norma indutora, ainda segundo o método em referência, deve
destacar um fator de diferenciação diretamente imputável ao sujeito da desequiparação ou a ele atribuível. Observe-se que o objetivo da norma tributária indutora é incentivar determinado comportamento a ser adotado pelos
agentes econômicos. Se é assim, são inidôneos os critérios adotados alheios
ao comportamento desse mesmo agente.
A distinção deve se basear em critério (princípio) constitucionalmente válido. Nesse aspecto, a utilização da capacidade contributiva é apenas
uma opção, calcada, em geral, na manutenção da função arrecadatória do
tributo. Parâmetros possíveis seriam, por exemplo, a essencialidade (artigos
153, § 3º, I e 155, § 2º, III); o destino ao exterior (artigo 153, § 3º, III, artigo 155, §
2º, X, “a” e artigo 156, §3º, II); o uso da propriedade segundo sua função social
(artigo 153, § 4º e 182, § 4º, II); localização e uso do imóvel (artigo 156, § 1º,
II); o ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas (artigo 146, III,
“c”); tratamento diferenciado às microempresas e às empresas de pequeno
porte (artigo 179).
O objetivo da distinção, assim como o parâmetro estabelecido,
deve ter correlação com aquela própria. Do mesmo modo, o objetivo traçado
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94
Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
tem que encontrar eco nos princípios constitucionais da Ordem Econômica,
como a correção de distúrbios na concorrência (art. 146-A); a valorização do
trabalho humano (art. 170); a defesa do consumidor (art. 170, V), dentre outros.
Dizer, por outro lado, que deve haver correlação entre a distinção
de contribuintes e o regime jurídico diverso impõe dizer que deve haver uma
relação de adequação e necessidade entre ambos. Em outros termos: uma
relação de proporcionalidade.
A esse respeito, decompondo o princípio da proporcionalidade,
assevera Humberto Ávila (2007, p. 163) que:
(…) é preciso comprovar que a medida produz efeitos
que contribuem para a realização gradual da finalidade
extrafiscal (exame de adequação), que medida é a menos
restritiva aos direitos envolvidos, dentre aquelas que
poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade
extrafiscal (exame de necessidade), e que os efeitos
positivos, decorrentes da adoção da medida, aferidos
pelo grau de importância e de promoção da finalidade
extrafiscal, não são desproporcionais aos seus efeitos
negativos, estimulados pelo grau de importância e de
promoção da finalidade igualitária (exame de proporcionalidade em sentido estrito).
O recurso à proporcionalidade, inclusive, é um imperativo de justiça
fiscal. Isso porque a desoneração de determinado setor produtivo via incentivos
fiscais acaba por onerar os demais, de modo que, mesmo que justificada pelos
parâmetros anteriores, a desequiparação não se propõe a onerar de forma
exagerada os sujeitos não atingidos.
É preciso, contudo, atentar para um detalhe sobre a aplicação da
proporcionalidade.
A função de planejamento da economia, bem como a implementação de políticas públicas no setor, foi conferida pela Constituição Federal
aos Poderes Legislativo e Executivo, não ao Judiciário. Desse modo, é preciso
salientar que a análise da norma indutora pelo judiciário deve se ater aos
aspectos estritos da aplicação da igualdade, furtando-se de analisar a conveniência da medida.
Em virtude disso, entende-se ser impertinente a análise da chamada
proporcionalidade em sentido estrito pelo Poder Judiciário. Isso porque a aquilatação e o sopesamento de vantagens e desvantagens da norma indutora
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
para o mercado deve ser feita pelos demais poderes, os quais têm estrutura e
competência para tanto. A atuação do Judiciário no sentido de substituir-se
ao Legislativo e ao Executivo causa à economia severos prejuízos, visto que
a política econômica deve ser mantida harmônica com o plano de governo
escolhido soberanamente pelo povo no momento da eleição de seus representantes.
Ora, o exame de adequação diz respeito a uma análise objetiva
entre a situação de coisas atual e o prognóstico desejado pelo legislador, de
forma que há pouco espaço para o arbítrio. Basta uma subsunção do fato
ao prognóstico: ou a norma é apta a alcançar os objetivos traçados ou não.
Observe-se que o que se questiona não é se a norma vai alcançar de fato ou
não seu objetivo. Isso seria um exercício de futurologia. O que se precisa é que
seja apta a alcançar o objetivo determinado.
Da mesma forma, o exame de necessidade impõe que, dentre as
medidas aptas, apenas a menos gravosa aos direitos fundamentais deve ser
adotada. No que tange aos incentivos fiscais, deve ser considerada necessária
a medida que menos agrave o interesse público e a justiça fiscal na forma da
oneração dos demais contribuintes.
A análise da proporcionalidade em sentido estrito, contudo, impõe
uma análise subjetiva fundada, no mais das vezes, na força da argumentação, não em uma constatação empírica. Tal análise deve ser feita no campo
democrático adequado, qual seja, no Parlamento, mesmo porque uma discussão abrangente demanda tempo e recursos técnicos que muitas vezes não
estão disponíveis ao Poder Judiciário.
Posição semelhante à aqui adotada já foi defendida pelo Tribunal
Constitucional Federal alemão por meio de seu Segundo Senado5 (apud MARTINS, 2005, p. 323), verbis:
O legislador está vinculado ao princípio da justiça tributária que decorre do Art. 3 I GG (BVerfGE 13, 181 [202]). A
aplicação desta norma de direito fundamental é baseada
sempre numa comparação de relações sociais que não
são iguais em todos os seus elementos, mas em apenas
alguns deles. Em princípio, decide o legislador (BverfGE
op.cit.) quais elementos das relações sociais, que serão
5
Decisão (Beschluss) do Segundo Senado de 9 de julho de 1969 – 2 BvL 20/65.
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96
Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
reguladas, são decisivos para seu tratamento jurídico
igual ou tratamento desigual. Para a escolha, em especial, das fontes de receita fiscal, o legislador tem ampla
liberdade de conformação [discricionariedade]. Esta
termina somente quando o tratamento igual ou desigual
da matéria regulada não for mais compatível com um
modo de enxergar o problema que seja orientado
pela ideia de justiça, onde, portanto, falta uma razão
convincente para o tratamento igual ou tratamento
desigual. Somente a observância destes limites extremos
da liberdade legislativa (proibição de arbitrariedade) é
passível de controle pelo Tribunal Constitucional Federal
e não a constatação de que o legislador tenha ou não
encontrado, no caso particular, respectivamente a mais
adequada, a mais razoável e a mais justa das soluções
[possíveis] (BVerfGE 1, 14 [52]; 4, 7 [18]; 17, 309 [330]; 18,
121 [124]; 19, 354 [367]).
Busca-se, portanto, o resguardo contra a inexatidão de recursos
inadequados ao argumento da proporcionalidade e da razoabilidade, que,
muitas das vezes, acabam por descambar no arbítrio e no subjetivismo.
Estabelecidos os parâmetros de realização da igualdade nas normas
tributárias indutoras, impende tratar no item que segue a implementação de
tal princípio pelo Poder Judiciário.
4 NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS, IGUALDADE E APLICAÇÃO PELO
PODER JUDICIÁRIO
O método de aplicação do princípio da igualdade descrito no
item anterior pode levar à constatação de que determinada norma indutora
promove uma desigualdade ilegítima. Em concreto, podem ser identificados
privilégios odiosos ou discriminações odiosas.
Ricardo Lobo Torres (2005, p. 367) define privilégio odioso como a
autolimitação do poder fiscal, por meio da Constituição ou da lei formal, consistente na permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de
pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes
ou receba, com alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais.
A odiosidade do privilégio, na verdade, na esteira do método esta-
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
belecido no item anterior não decorre da simples irrazoabilidade da distinção.
Entenda-se, na hipótese, a irrazoabilidade pela constatação, através da verificação da desigualdade e do questionamento da possível justificação, de que
a norma desatende aos pressupostos do princípio da igualdade.
Com efeito, na situação de privilégio odioso, a desequiparação em
si é inconstitucional porquanto viola o princípio da igualdade, pelo desatendimento a qualquer dos requisitos traçados no item anterior. Nessa situação
o próprio incentivo fiscal é inválido, não sendo possível sua aplicação.
Deparando-se, pois, o Poder Judiciário com a constatação de um
privilégio fiscal odioso, sua única alternativa é declarar a lei instituidora inconstitucional e restabelecer a situação de igualdade. Não seria possível, nesse
caso, a extensão do benefício da norma indutora a outros contribuintes por
duas razões.
A primeira é que, como já dito, o privilégio fiscal odioso viola frontalmente a igualdade. Sua invalidade decorre da adoção de critérios inidôneos
ou desproporcionais à desequiparação efetivamente realizada. O privilégio
é, portanto, inconstitucional e, por conseguinte, inválido e inapto a produzir
efeitos no ordenamento jurídico. Se o privilégio odioso é nulo, descabe falar
em sua extensão a situações de outros contribuintes.
Em segundo lugar, a pretensão de extensão encontra um óbice
de natureza financeira. Se a norma de privilégio fiscal odioso visa abranger
um grupo determinado de contribuintes, sua extensão a outros implica a
concessão de incentivo fiscal não previsto na forma do art. 165, § 6o, da Constituição da República. Como já afirmado anteriormente, os chamados gastos
tributários (tax expediture) são tratados pelo Direito Financeiro de forma equiparada à efetiva despesa pública, permitindo o seu controle pelos órgãos de
fiscalização da execução orçamentária. Isso sem falar no impacto da extensão
desenfreada de um privilégio odioso teria nos outros contribuintes que teriam
que abarcar a receita que deixou de ser arrecadada.
As discriminações odiosas, por sua vez, são desigualdades infundadas que prejudicam a liberdade do contribuinte (TORRES, 2005, p. 415). Trata-se
de exclusão de um contribuinte da incidência de uma norma tributária geral
ou de uma norma indutora não odiosa que constitui violação a seu direito
fundamental de igualdade.
Nessa situação, no que tange aos incentivos fiscais, o discrímen
realizado afigura-se perfeitamente constitucional, fundado em parâmetros e
objetivos idôneos. Noutros termos, verificou-se uma justificação constitucional
para a desequiparação realizada. Contudo, um certo contribuinte foi excluído
97
Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
98
da abrangência da norma indutora sem justificação, de forma arbitrária.
No caso, seria possível, diferente do que ocorre com o privilégio
odioso, que o Poder Judiciário estendesse ao contribuinte injustamente discriminado as benesses da norma indutora.
É que a discriminação odiosa não pressupõe uma norma violadora
da igualdade, mas sim a exclusão injusta de um contribuinte do âmbito de
incidência de uma norma plenamente isonômica e, por conseguinte, constitucional. Se a norma é de fato constitucional e válida, deve ser aplicada ao
contribuinte injustamente discriminado.
Quando a discriminação odiosa decorre de uma exclusão explícita
de um contribuinte a uma regra geral, a solução é simples: basta a anulação
da norma de discrímen por sua inconstitucionalidade, integrando o discriminado à regra geral.
Arvorado nesse pressuposto, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
ICM. Isenção. Bacalhau importado. GATT. Convênio
interestadual. Art. 98 do CTN. Súmula 575.
Desde que o bacalhau importado da Noruega, o que
é incontroverso, não tem similar nacional, a sua correspondência é com espécie de peixe seco e salgado, de
origem interna, que goza de isenção do ICM.
Segundo o art. III do GATT, o país importado de outro
país signatário do Acordo goza de isenção concedida
a produtos similares de origem nacional (súmula 575).
O convênio interestadual que exclua da isenção do
ICM, anteriormente estipulada, dentre outras espécies,
o bacalhau, não infirma a que é concedida ao bacalhau
importado que não tem similar nacional senão na
categoria de peixe seco e salgado, que continua isenta.
A cláusula do convênio interestadual não afasta a incidência da norma internacional.
Recurso extraordinário conhecido e negado provimento.6
Na hipótese, contudo, de a discriminação se encontrar na exclusão
do contribuinte do bojo de incidência de uma norma indutora que não con-
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 105606. T1. Relator Min. Rafael Mayer. j. 26.11.1985 DJ
13.12.1985.
6
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
figura privilégio odioso, é mais complexa a aplicação da igualdade.
Pode-se questionar se o Poder Judiciário, nesse caso, ao estender
uma norma tributária indutora a hipóteses por ela não contempladas, estaria
atuando como legislador positivo. Isso porque o Judiciário estaria inserindo
no sistema normativo texto novo a permitir a inclusão de certo contribuinte
num regime mais benéfico.
O STF, em mandado de injunção no qual se discutia a extensão do
plano de carreira de servidores autárquicos àqueles da administração direta
que exerciam as mesmas funções7, decidiu que o princípio da igualdade, que
se reveste de autoaplicabilidade, não e - enquanto postulado fundamental da
ordem político-jurídica - suscetivel de regulamentação ou de complementação
normativa.
Naqueles autos, o Tribunal, não obstante o não conhecimento do
mandado de injunção, sustentou em obiter dictum as três possíveis soluções
para a situação: a) extensão dos benefícios ou vantagens as categorias ou
grupos inconstitucionalmente deles excluidos; b) supressão dos benefícios
ou vantagens que foram indevidamente concedidos a terceiros; c) reconhecimento da existência de uma situação ainda constitucional (situação constitucional imperfeita), ensejando-se ao Poder Público a edição, em tempo
razoável, de lei restabelecedora do dever de integral obediencia ao princípio
da igualdade, sob pena de progressiva inconstitucionalização do ato estatal
existente, porém insuficiente e incompleto.
A solução apontada no item “b” se coaduna perfeitamente àquela
indicada neste trabalho para a correção de privilégios odiosos. Veja-se que o
pressuposto da anulação dos benefícios conferidos a terceiros funda-se na
falta de justificação constitucional para a desequiparação, como já exposto.
Assim, é perfeitamente cabível nesse caso a anulação da norma.
Entretanto, no caso de privilégios odiosos, sói acontecer de o discrímen ser justificado constitucionalmente. Não é, portanto, inconstitucional,
descabendo falar em nulidade.
Dessarte, surgem duas opções: a extensão do benefício ao contribuinte discriminado ou o reconhecimento de inconstitucionalidade sem
pronunciação de nulidade (item “c”).
Para os fins deste trabalho, a opção que mais se coaduna à realização
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MI 58. TP. Relator Min. Carlos Velloso, Relator p/ o acórdão: Min.
Celso de Mello,. j. 14.12.1990, DJ 19.04.1991.
7
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Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
100
da igualdade no plano material é a de extensão do benefício. A jurisprudência
mais recente do Pretório Excelso confirma essa tendência.
No Mandado de Injunção n.º 708/DF8, a Corte Constitucional revisou
seu entendimento consolidado, decidindo que o Poder Judiciário, frente à
omissão do legislador, ainda que parcial, pode e deve preenchê-la, ainda que
temporariamente, em homenagem à realização dos direitos fundamentais
do cidadão.
Determinados pressupostos elencados naquele julgamento dão
suporte ao entendimento aqui exposto, a saber: a decisão judicial que declara
a existência de uma omissão inconstitucional constata, igualmente, a mora
do órgão ou poder legiferante, insta-o a editar a norma requerida; a omissão
inconstitucional tanto pode referir-se a uma omissão total do legislador quanto
a uma omissão parcial; o Tribunal passou a admitir soluções “normativas” para a
decisão judicial como alternativa legítima de tornar a proteção judicial efetiva
(CF, art. 5o, XXXV).
Evidentemente, só o STF, por força da competência dispendida constitucionalmente, pode estabelecer, ainda que temporariamente, normatização
que supra omissões do legislador. Todavia, para a extensão de normas indutoras
a contribuintes discriminados não é necessária nova regulamentação, mas
apenas a extensão da normatização já existente.
Assim, parece claro e possível que o Poder Judiciário, com esteio
nos pressupostos elencados, possa estender a incidência de normas indutoras
na situação de discriminações odiosas aos contribuintes que preencheriam
os requisitos para tanto.
5 CONCLUSÃO
Do exposto, pode-se chegar às seguintes conclusões: i) o princípio
da igualdade é perfeitamente aplicável às normas tributárias indutoras; ii) a
aferição do malferimento da igualdade na instituição de normas tributárias
indutoras deve se submeter a um exame de verificação da situação de desigualdade e possível justificação decorrente de parâmetros e objetivos idôneos; iii) a
norma indutora deve instituir regime proporcional à desequiparação efetivada;
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MI 708/DF. TP. Relator Min. Gilmar Mendes. j. 25.10.2007, Dje-206
de 31.10.2008.
8
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
iv) observada a violação da igualdade, pode o Poder Judiciário anular a norma
que institui privilégio odioso e estender a que institui discriminação odiosa
aos contribuintes que a ela fazem jus em virtude da igualdade e semelhança
de situações.
REFERÊNCIAS
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BORGES, José Souto Maior. Subvenção financeira, isenção e dedução tributárias. Revista de Direito Público, n. 41-42, São Paulo, 1978.
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In: ELALI, André; MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEIXOTO, Marcelo Magalhães
(org.) Incentivos fiscais: questões pontuais nas esferas federal, estadual e
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GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13ª ed. São Paulo:
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MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Mondevidéu: Konrad Adenauer, 2005.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Eficácia e Aplicabilidade dos tratados internacionais em matéria tributária no direito brasileiro. Revista de informação
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
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Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciário
pelo parâmetro da isonomia tributária
PIRES, Adilson Rodrigues. Ligeiras reflexões sobre a questão dos incentivos
fiscais no Brasil. In: ELALI, André; MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEIXOTO,
Marcelo Magalhães (org.) Incentivos fiscais: questões pontuais nas esferas
federal, estadual e municipal. São Paulo: MP editora, 2007.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Contribuição ao estudo do regime jurídico das
normas tributárias indutoras como instrumento de intervenção sobre
o domínio econômico. Tese apresentada como parte dos requisitos para
a inscrição em concurso de Professor Titular do Departamento de Direito
Econômico e Financeiro, área de Legislação Tributária, da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo. USP, 2002.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário – os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. v. 3. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005.
USA. Rethinking tax expeditures. Joint Comitee on Taxation, 2008. Disponível
em www. jct.org
CONTROL OF THE TAX BREAKS BY THE JUDICIARY WITH THE PARAMETER OF TAX EQUALITY
ABSTRACT
Examines the effects of applying the principle of
equality on the tax rules used by the legislature
in the non-collecting effect (inducing tax rules).
Defines, furthermore, a method of analysis of
equality on tax breaks in order to identify odious privileges and discriminations. Defined the
method, the paper analyzes the limits of judicial
power in the realization of equality to correct the
tax distinctions not justified by the Constitution.
It discusses the possibility, identified odious privi-
Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
lege or discrimination, of the court extend the tax
benefits to taxpayers not originally affected by
the scope of the law. Performs an analysis of the
jurisprudence of the Brazilian Federal Supreme
Court on achieving equality of opportunity and
the judiciary to act as positive legislator.
Keywords: Tax equality. Inducing tax rules. Proportionality. Odious privileges. Odious discrimination.
103
CONTROLE E FISCALIZAÇÃO
DAS ENTIDADES DO
TERCEIRO SETOR
Ana Cristina Diógenes Rêgo
Acadêmica do 6º período do
curso de Direito da UFRN
Davi Costa Feitosa Alves
Acadêmico do 6º período do
curso de Direito da UFRN
Karoline Lins Câmara Marinho
Professora Orientadora
RESUMO
O terceiro setor compreende as organizações de
caráter privado que prestam serviços de interesse
público. Nos últimos anos, assistimos a um crescimento impressionante desse setor, em virtude da
ação ineficiente do Estado na concretização dos
direitos sociais garantidos pela Constituição Federal
e do contexto neoliberal de adoção de um modelo
de gestão reguladora. Não obstante nasçam com
a missão de suprimir as lacunas deixadas pelo Estado, a proliferação de organizações que servem de
fachada para a prática de ilegalidades e atos escusos
ressalta a necessidade de controle e fiscalização
de sua atuação, como forma de conferir-lhe maior
legitimidade e confiabilidade.
Palavras-chave: Terceiro Setor. Contrato de Gestão.
Controle. Fiscalização.
106
Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor
1 INTRODUÇÃO
Uma Sociedade constituída é organizada em três esferas, conforme
os objetivos que buscam e a estrutura necessária para atingi-los: o Primeiro
Setor corresponde ao Estado, enquanto ente com personalidade jurídica de
direito público, encarregado de funções públicas essenciais e indelegáveis ao
particular. O Segundo Setor compreende a livre iniciativa; as organizações do
mercado, que exercem atividades privadas, visando ao lucro. O Terceiro Setor,
por sua vez, é constituído por organizações privadas que, embora prestem
serviços de caráter público, não são governamentais, nem possuem fins lucrativos com os empreendimentos realizados. Essas organizações, incluídas
as Associações, Sociedades sem fins lucrativos, Fundações, Organizações
Não-Governamentais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público,
atuam nas lacunas deixadas pelos setores público e privado, buscando o bemestar da população.
Em virtude da ação ineficiente do Estado e da capacidade limitada
de execução de tarefas sociais, o Terceiro Setor vem experimentando, nos
últimos anos, um expressivo crescimento a nível global, visando suprir a demanda por serviços sociais, requisitados por relevante parcela da população
mundial. Assim, a iniciativa privada assume o compromisso de combater sérios
problemas da atualidade, como a pobreza, a fome, o desrespeito aos direitos
humanos, entre muitos outros, devido à inépcia demonstrada pelos governos.
No Brasil, um estudo realizado pelo IBGE em 2002, que avaliou, pela
primeira vez, a participação econômica do Terceiro Setor no país, revelou que
este foi o segmento econômico mais ativo no período de 1996 a 2002, tendo
conhecido um crescimento de 157%. Ainda segundo a pesquisa, o setor
movimenta cerca de 32 bilhões de reais por ano, o que representa 1,4% na
formação do Produto Interno Bruto (PIB) 1.
No entanto, o grande crescimento do setor e a diversidade que
lhe é característica – é formado por entidades completamente distintas, que
vão desde hospitais e escolas até instituições religiosas – têm gerado críticas
fundamentadas na fragilidade da fiscalização das organizações que compõem
o segmento. De fato, não é difícil encontrar exemplos que demonstrem a utilização das Organizações Não-Governamentais (ONGs) para favorecer políticos
Dados disponíveis em <http://www.responsabilidadesocial.com/article/article_view.
php?id=499> Acesso em 04/06/2010.
1
Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves
ou burlar as leis de licitação.
Nesse diapasão, o presente artigo objetiva, através de um ensaio
teórico-argumentativo, demonstrar a atuação do Terceiro Setor no cenário
nacional, analisando a legitimidade de suas atividades, a credibilidade de
suas ações e, acima de tudo, as ilegalidades cometidas por determinadas
organizações que se utilizam da condição estrutural do Terceiro Setor para
praticarem infrações e atos escusos, realizados à míngua da ética e da moral.
2 DEFINIÇÃO DO TERCEIRO SETOR E SEUS AGENTES
Existem várias definições para aquilo que se convencionou chamar
de “terceiro setor”. A expressão, embora não tenha sido adotada pelo legislador constituinte, é amplamente utilizada pela doutrina e consta também na
jurisprudência e leis ordinárias e complementares.
Apesar disso, o termo ainda padece de uma imprecisão conceitual,
decorrente da própria abrangência do terceiro setor, eis que, como já observamos, é constituído por uma grande variedade de organizações, as quais
atuam nas mais diversas áreas.
Entre suas principais personagens, podemos citar as fundações,
sociedades e associações, as quais podem obter a qualificação de Organização
Social (OS) e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
As OS e OSCIPs, portanto, não representam instituições concretas,
como pode parecer à primeira vista, mas títulos “concedidos às pessoas jurídicas
de direito privado, sem fins lucrativos, quando estas atenderem determinados
requisitos legais” (VIOLIN, 2006, p. 210).
As fundações constituem uma universalidade de bens com destinação específica a que a lei atribui personalidade jurídica. Como determina
o parágrafo único do art. 62 do Código Civil acerca das fundações privadas “a
fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais
ou de assistência”. Estas instituições diferenciam-se das demais porque não
nascem da associação entre pessoas físicas, mas da dotação de um patrimônio
inicial para atingir as finalidades estipuladas pelo seu instituidor. As fundações
privadas têm grande importância para o Terceiro Setor porque são responsáveis
por financiá-lo, fazendo doações às entidades beneficentes.
As associações, por sua vez, são pessoas jurídicas constituídas pela
união de pessoas que se organizam para fins não econômicos. Esses fins podem ser egoísticos, quando têm como objeto o interesse pessoal dos próprios
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108
Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor
associados, desde que sem o intuito de lucro (como um clube esportivo ou
literário), ou altruísticos, quando visam ao benefício de terceiros, como as associações beneficentes.
Para Di Pietro (2010), as fundações, associações e cooperativas integram o grupo das entidades de apoio, entendidas como pessoas jurídicas
de direito privado que prestam serviços sociais não exclusivos do Estado,
mantendo vínculo jurídico com a Administração por meio de convênio. A autora identifica ainda o conjunto de serviços sociais autônomos, que seriam as
entidades instituídas por lei, sem fins lucrativos, para atuar em certas categorias
sociais, sob um regime jurídico tributário mais benéfico.
Nesse diapasão, os Serviços Sociais Autônomos (entidades do
sistema “S”) têm por escopo ministrarem assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos
por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São instituídas
por lei e seus empregados ficam sujeitos à legislação do trabalho em toda sua
plenitude, só sendo equiparados a funcionários públicos para responsabilização criminal dos delitos funcionais.
As entidades de apoio prestam serviços públicos propriamente
ditos, porém não como serviço público delegado pela Administração Pública,
mas como atividade privada aberta à iniciativa privada (atuam juntamente
a hospitais e universidades públicas). Não são instituídas por iniciativa do
Poder Público, mas por servidores públicos de determinada entidade estatal.
Conforme esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Em suma, o serviço é prestado por servidores públicos,
na própria sede da entidade pública, com equipamentos
pertencentes ao patrimônio desta última, só que quem
arrecada toda a receita e a administra é a entidade de
apoio. E o faz sob as regras das entidades privadas,
sem a observância das exigências de licitação (nem
mesmo os princípios de licitação) e sem a realização de
qualquer tipo de processo seletivo para contratação de
empregados. (DI PIETRO, 2010, p. 495)
A qualificação como Organização Social, regulamentada pela Lei nº
9.637/98, é concedida, pela autoridade competente, às entidades que atendem
aos requisitos legais – formais e materiais – atinentes à espécie, firmando contrato de gestão com o Poder Público. A instituição que recebe esse título está
apta a receber bens públicos em regime de permissão e sem licitação prévia.
Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves
Conforme arts. 7º, I, e 8º da Lei 9.637/98, cabe ao Poder Público fiscalizar o
cumprimento do contrato de gestão, verificando a execução do programa de
trabalho e a observância dos prazos e metas fixados. O desrespeito às exigências acordadas pode ensejar a perda da qualificação de organização social.
Tais organizações submetem-se, portanto, a um regime jurídico
especial, que contempla benefícios especiais do Estado para execução de
determinadas atividades de interesse coletivo. As OSs recebem ou podem
receber delegação para a gestão de serviço público. Maria Sylvia Zanella Di
Pietro leciona em sentido consonante:
Nenhuma entidade nasce com o nome de organização
social; a entidade é criada como associação ou fundação
[…] Aparentemente, a organização social vai exercer
atividade de natureza privada, com incentivo do Poder
Público, dentro da atividade de fomento. Mas, na realidade, o real objetivo parece ser o de privatizar a forma
de gestão de serviço público delegado pelo Estado. (DI
PIETRO, 2010, p. 496- 497).
A alcunha de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
(OSCIP) foi criada pela Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999. Antes dela, já havia
outros títulos no Brasil, como o Certificado de Utilidade Pública Federal, que
confere a permissão de abater doações no Imposto de Renda ou o Certificado
de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), que concede a isenção
de contribuição patronal ao INSS, ou mesmo a qualificação como Organização
Social. A Lei das OSCIPs não revogou esses títulos, porém exige exclusividade
para a concessão de tal qualificação, apesar de não conferir, por si só, qualquer
benefício tributário ou fiscal.
Nada obstante, as novas instituições do setor estão sendo orientadas para se constituírem dentro das exigências estabelecidas pela Lei nº
9.790/99. A busca pelo título de OSCIP se justifica pelas outras vantagens que
ele trouxe. A primeira diz respeito ao procedimento de obtenção, que simplifica
os trâmites burocráticos exigidos pelos demais títulos: a entidade interessada
deve encaminhar requerimento escrito ao Ministério da Justiça, com os documentos exigidos, estando tal órgão vinculado a outorgar a qualificação para
as entidades que atenderem os requisitos legais, decidindo o caso em trinta
dias. Neste ponto, difere da Lei disciplinadora das organizações sociais, que
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Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor
estabelece como discricionária a atribuição da alcunha2.
Outro benefício, instituído pelo art. 4º, VI, da Lei nº 9.790/99, consiste
na possibilidade de remuneração dos seus dirigentes. Mister ressaltar que a
remuneração não altera a finalidade não lucrativa da entidade.
3 EVOLUÇÃO DO TERCEIRO SETOR NO BRASIL
Após o regime ditatorial, o Brasil experimentou um processo de
redemocratização que culminou com a promulgação da Constituição Federal
de 1988, classificada como uma Constituição Cidadã. A grande expectativa que
se criou em relação à nova Lei Maior é explicada pelo contexto que a originou: além de consagrar o fim da ditadura, a Constituição obteve, durante sua
confecção, uma ampla participação da sociedade, feito incomum na história
política brasileira. De fato, a Carta de 1988 foi a que apresentou maior legitimidade popular. Nesse mesmo sentido preleciona Walber de Moura Agra:
A Constituinte de 1988 exerceu plenipotenciariamente
os seus poderes, graças à legitimação popular de que
estava imbuída. De todos os Textos Constitucionais foi o
que mais apresentou legitimidade por parte da população […] Dentre todas as Constituições, foi a que contou
com maior apoio popular. Com isso, a feitura de suas
normas atendeu aos interesses da maioria da população,
relegando a segundo plano os anseios de importantes
setores da elite econômica. (AGRA, 2008, p. 55)
Seguindo esse espírito, o Estado passou a adotar um modelo de
gestão mais preocupado com as questões sociais, voltado para o interesse
público e para assegurar as condições básicas que propiciem o exercício dos
direitos fundamentais pela população. Entretanto, a efetivação dos direitos e
garantias constitucionais pelo Estado social ainda gera inseguranças. Conforme
advertiu Bonavides:
Outras relevantes diferenças trazidas pela Lei das OSCIPs são a forma de vínculo com o Poder
Público (enquanto, as organizações sociais celebram contratos de gestão, as OSCIPs firmam termos de parceria com o Estado), tema que abordaremos a seguir, e o âmbito de atuação, mais
restrito para as organizações sociais.
2
Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves
Até onde irá contudo na prática essa garantia, até
onde haverá condições materiais propícias para
traduzir em realidade o programa de direitos básicos
formalmente postos na Constituição, não se pode
dizer com certeza. É muito cedo para antecipar
conclusões, mas não é tarde para asseverar que, pela
latitude daqueles direitos e pela precariedade dos
recursos estatais disponíveis, sobremodo limitados,
já se armam os pressupostos de uma procelosa crise.
(BONAVIDES, 2008, p. 373)
Assim, concretizar e introduzir as disposições do texto constitucional, que em razão de seu caráter programático, genérico e abstrato apresenta
baixo teor de auto-aplicabilidade, na realidade nacional, constitui, ainda segundo o abalizado doutrinador, “o desafio das Constituições brasileiras, desde
os primórdios da República”. (BONAVIDES, 2008, p. 373).
Nesse sentido, a divergência criada entre a abundância de direitos
trazidos pela Carta de 1988 e a falta de garantias de seu cumprimento acabam
servindo como justificativas para a criação de movimentos em prol do Terceiro
Setor, frente à ineficácia do Estado em promover a consecução do bem comum.
Tem início, então, uma verdadeira proliferação de ONGs, associações
e fundações como alternativa para preencher as lacunas deixadas pelo Estado
na esfera social. Como exemplo dessa propagação, e um exemplo dos mais
bem-sucedidos, diga-se de passagem, podemos citar a ONG “Ação da Cidadania
contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, criada pelo sociólogo Herbet de Souza
em 1993, no Rio de Janeiro, no contexto da luta pelo impeachment do Presidente Collor. Segundo o próprio Betinho, “a motivação fundamental da Ação
da Cidadania era a certeza de que democracia e miséria eram incompatíveis”.3
Outro caso de sucesso é o do Programa de Alfabetização Solidária, fundado em
1997, com o intuito de reduzir os altos índices nacionais de analfabetismo e
promover o fortalecimento da oferta pública de Educação de Jovens e Adultos
(EJA) no Brasil. O IBGE creditou à ONG grande responsabilidade pela diminuição
em 32,2% na taxa de analfabetismo no Brasil na última década.
Essas iniciativas ajudaram a difundir a imagem, entre a população,
Informações disponíveis em< http://www.acaodacidadania.com.br/templates/acao/publicacao/publicacao.asp?cod_Canal=1&cod_Publicacao=41> Acesso em 21/05/2010.
3
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Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor
de que as ONGs são a expressão dos ideais de altruísmo, solidariedade e compromisso com o bem comum. Realmente, existem milhares de organizações
que lutam pelo que acreditam e fazem a diferença. Além disso, essas organizações acumulam infra-estrutura, recursos e conhecimentos que as permitem
trabalhar em parceria com órgãos públicos, possibilitando a diminuição dos
custos operacionais das ações estatais.
Infelizmente, porém, não são todas as organizações que defendem essa bandeira. Muitas delas servem apenas de fachada para a prática
de ilegalidades, facilitada pela falta de leis específicas para regulamentar as
prestações de contas pelas ONGs. Essa situação motivou uma reportagem na
revista Época4 que, em 2006, advertiu para o surgimento da “pilantropia”, característica do novo tipo de ONG, que, na falta de fiscalização, desvia recursos
públicos, propiciando enriquecimento ilícito.
4 RELAÇÃO ENTRE TERCEIRO SETOR E ESTADO
No contexto de reforma do Estado brasileiro a partir da década de
1990, verifica-se uma nova orientação no exercício de suas funções. A execução
de serviços antes prestados por empresas estatais é transferida para a livre
iniciativa, por meio das privatizações. O Estado, então, deixa de atuar diretamente na economia para fazê-lo de forma indireta, através da normatização
e regulamentação dessas atividades.
No caso do terceiro setor, segundo Di Pietro (2010, p. 493), suas entidades não prestam um serviço público delegado pelo Estado, mas serviços
que não lhe são exclusivos, apesar do interesse público que lhes é inerente.
Por isso, não integram a Administração Indireta – razão pela qual a autora
também adota a expressão “entidades paraestatais” para designar tal grupo
de instituições.
Sem embargo, o Estado não deixa de interferir na sua atuação,
fazendo-o através do poder de polícia (ao qual estamos todos submetidos) e
do regime de fomento, a ser efetivado mediante contrato de gestão, termo de
parceria e convênios, que concedem subvenções, auxílios ou contribuições,
observados os requisitos legais para tanto.
Conforme assinala Vladimir França,
Reportagem disponível em <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74385-6009
-420,00.html> Acesso em 21/05/2010.
4
Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves
o Estado realiza o fomento de diversos modos: (i) a
outorga de títulos honoríficos ou prêmios a pessoas
físicas ou jurídicas que desempenham atividades de
relevante interesse coletivo; (ii) o uso gratuito de bens
públicos ou de serviços da Administração pelo particular; (iii) subvenções econômicas; (iv) reconhecimento de
prerrogativas ou privilégios especiais. (FRANÇA, 2006,
p. 12-13)
O autor ressalta ainda que, embora não atuem como delegados do
Poder Público, os particulares que exploram serviço de relevância pública, no
caso as entidades do terceiro setor, devem orientar-se pelos princípios constitucionais peculiares à atividade prestada e pelas limitações administrativas
impostas à gestão e prestação desses serviços sociais. (FRANÇA, 2006, p. 04).
Assim, às prerrogativas concedidas pelo Estado sob o regime de
fomento deve corresponder uma contraprestação das entidades paraestatais
de execução dos serviços de utilidade pública com maior eficiência, a ser verificada a partir do controle da Administração e do Tribunal de Contas, como
determina a Constituição Federal, e também da própria população, enquanto
maior interessada na realização desses serviços.
1.1 Controle interno da Administração Pública
As vantagens oferecidas pelo Estado para as entidades do terceiro
setor, sob o regime de fomento, ainda são objeto de muitas atividades ilícitas
que se desenvolvem sob a fragilidade da fiscalização promovida pela Administração. Além disso, a atuação do terceiro setor é defendida sob o argumento de que suas instituições possuem melhor infra-estrutura e, portanto,
melhores condições de fornecer os serviços que o Estado já não presta com
tanta eficiência. No entanto, a mera posse de uma infra-estrutura mais desenvolvida, quando ela de fato existe, não implica, por si só, em maior efetividade
e agilidade na execução desses serviços.
O Estado, portanto, não pode se abster de fiscalizar essas entidades
para conferir a relevância de sua atuação, de forma efetiva e lícita, na consecução do interesse público. Por isso, as entidades do terceiro setor, apesar
de não integrarem a administração pública indireta, sujeitam-se ao controle
interno e externo do Estado, conforme previsto no art. 70 da Constituição
Federal.
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Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor
Contudo, embora haja esforços para se proceder a uma triagem
dessas entidades para a concessão dos benefícios, a quantidade de candidatas
e as limitações demonstradas pelo Poder Público dificultam a realização de
um processo mais criterioso. Essas dificuldades vêm sendo vencidas através
das disposições da Lei 9.637/98, que disciplina as OS, e, principalmente da Lei
nº 9.790/99 5 (Lei das OSCIPs). Esta lei trouxe diversas inovações em relação à
legislação anterior, prevendo novos instrumentos de controle e fiscalização
das organizações pelo Poder Público, ou aperfeiçoando os mecanismos já
existentes. A ênfase do controle, antes concentrada na aplicação dos recursos,
foi transferida para o alcance dos resultados.
Entre esses novos mecanismos de controle, destacamos a exigência
da adoção de práticas gerenciais que coíbam o favorecimento pessoal em
processos decisórios e a vedação à participação de OSCIPs em campanhas
de interesse político-partidário ou Eleitoral, independentemente da origem
dos recursos (públicos ou próprios), além da criação de um Conselho Fiscal,
responsável pela emissão de pareceres para os organismos superiores da entidade, funcionando como a primeira instância de controle interno. (LEITE, 2010).
Quanto ao Termo de Parceria, introduzido como forma de repasse
de recursos públicos às OSCIPs, a Lei nº 9.790/99 também regulamentou a
sua fiscalização, complementada pelo Decreto 3.100/99, e aumentou o rigor
das normas referentes à responsabilização das organizações quando restar
comprovado o uso indevido desses recursos.
No âmbito da apuração da responsabilidade das entidades do
terceiro setor, vale ressaltar que o regime jurídico quanto às perdas e danos
decorrentes da prestação dos serviços públicos que executam, segue o regime
jurídico de responsabilidade objetiva do Estado. Desnecessária, portanto, a
investigação da culpa do agente da organização, bastando haver nexo causal
entre a sua conduta e a lesão ao direito do cidadão. Vale salientar também
que o Estado responde subsidiariamente por essas questões, já que foi ele
que atribuiu à entidade a concessão da atividade pública. Conforme esclarece
Celso Antônio Bandeira de Mello:
Ademais, para fins de responsabilidade subsidiária do
Estado, incluem-se, também, as demais pessoas jurídicas
de Direito Público auxiliares do Estado, bem como quaisquer outras, inclusive de Direito Privado, que, inobstante
5
Ver art. 4º, VII, “d”, da Lei nº 9.790/99.
Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves
alheias à sua estrutura orgânica central, desempenham
cometimentos estatais sob concessão ou delegação
explícitas ou implícitas. (MELLO, 2007, p. 998-999)
4.2 Fiscalização pelo Tribunal de Contas da União
O controle externo da Administração, que, como determina o art.
71 da CF, fica “a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do
Tribunal do Contas”. A este, incumbe o exame inicial e o parecer prévio e não
vinculante sobre as contas da Administração.
O controle externo pode ser exercido antes, concomitantemente,
ou após a realização do ato administrativo. Na realidade brasileira, a regra é
o controle “a posteriori”, e o contemporâneo, a exceção. Nossa Constituição
não adota o controle prévio, pois, conforme destaca Ricardo Lobo Torres, ele
“implica interferência do Legislativo e do Tribunal de Contas sobre a ação do
Executivo, retarda a execução dos contratos, é perfunctório e incompleto”.
(TORRES, 2008, p. 635 a 645).
No caso das entidades paraestatais, a concessão e aplicação dos
benefícios fiscais e subvenções devem ser objeto de controle que irá avaliar
sua eficiência, eficácia e economicidade, por meio de inspeções, auditorias e
prestações de contas. A outorga do título de OS ou OSCIP confere à instituição
um regime jurídico que implica em maiores restrições e amplia o âmbito de
controle pelo Estado, em relação ao regime das demais entidades do Terceiro
Setor.
A maneira de realização desse controle, porém, varia de acordo
com o vínculo da instituição com o Poder Público, tendo em vista que esses
pactos constituem o meio adotado para a transferência de recursos públicos
e fornece a base para a análise de seu desempenho. Por isso, analisaremos
separadamente a fiscalização das organizações sociais – regidas pelo contrato
de gestão – e das OSCIPs – sujeitas ao termo de parceria.
4.2.1 Contrato de Gestão
O art. 5º da Lei nº 9.637/98 conceitua o contrato de gestão como
“o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como
organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º”. Este
contrato de gestão, firmado com as organizações sociais, difere do contrato
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Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor
previsto pela Constituição6, a partir da EC 19/98, celebrado entre Administração Direta e Indireta, cuja regulamentação ainda padece da inexistência do
diploma legal previsto pela CF.
Ao conceituar os contratos de gestão, Di Pietro afirma que:
O contrato de gestão é o instrumento pelo qual se concretiza a parceria e se estabelecem as referidas metas,
formas de incentivo e controle. Quando celebrado com
entidades da administração indireta, o contrato tem por
objetivo ampliar a autonomia; todavia, quando celebrado com organizações sociais, restringe sua autonomia;
pois, embora entidades privadas, terão que sujeitar-se a
exigências contidas no contrato de gestão. (DI PIETRO,
1999. p. 205)
Assim, para o cumprimento dos objetivos estabelecidos pelo contrato de gestão previsto pela Lei 9.637/98, podem ser repassados recursos
orçamentários à organização social, além de tal entidade poder contratar
mediante dispensa de licitação, para atividades contempladas no contrato de
gestão, conforme previsto pelo art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93. Nesse sentido,
destaque-se o entendimento do Ministro Relator Valmir Campelo, logo após a
promulgação da Lei 9.637/98, quando, na decisão 908 de 1999, referindo-se à
“Organização Social Roquette Pinto”, afirmou que7:
Não está sujeita a todos os ditames da lei de licitações
e contratos, pois recebe os recursos da União mediante contrato de gestão, estando, portanto, consoante
entendimento de caráter normativo estabelecido na
Decisão nº 020/94-TCU-Plenário (Ata nº 03/94), adstrita
tão-somente aos princípios básicos previstos no caput
do art. 3º da Lei nº 8.666/93.
Celso Bandeira de Mello (2007, p. 231) argumenta que a isenção de
licitação nesse caso constitui uma manifesta inconstitucionalidade, posto que
fere os princípios da licitação, positivado no art. 37, XXI da CF, e da isonomia
6
7
Ver art. 37, § 8º da CF.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, Decisão nº 908/99, Rel. Min. Valmir Campelo, j. 17/03/1999
Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves
(art.5º). Para o autor, outra inconstitucionalidade presente na Lei 9.637/98
é a desnecessidade de demonstração de habilitação técnica ou econômico
financeira, sendo suficiente a concordância do Ministro da área de atividade
correspondente ao objeto social da organização, ou do Ministro da Administração (cujas atribuições foram absorvidas pelo Ministro do Planejamento,
Orçamento e Gestão).
Esse ponto, contudo, merece maiores esclarecimentos, em virtude
da edição de novos diplomas que divergem quanto à utilização ou não de
procedimentos licitatórios pelas OS para efetuarem seu poder de contratar.
O primeiro deles, o Decreto nº 5.504/05, exige que as organizações, ���������
relativamente aos recursos por elas administrados oriundos de repasses da União,
realizem licitação para obras, compras, serviços e alienações, enquanto prevê a
obrigatoriedade do procedimento na modalidade pregão, preferencialmente
de forma eletrônica.
O Decreto nº 6.170/07, por outro lado, estabelece que essas entidades podem realizar somente uma cotação prévia de preços, contanto que sejam respeitados os princípios da moralidade, impessoalidade e economicidade.
Assim, podemos entender que a obrigatoriedade prevista pelo Decreto nº 5.504/05 foi parcialmente revogada pelo último diploma, tornando a
licitação meramente facultativa para as Organizações Sociais, sendo imperativa
apenas a realização de cotação prévia de preços no mercado.
De qualquer forma, mesmo que seja dispensável o processo licitatório, essas entidades não se eximem da fiscalização promovida pelo Tribunal de Contas. No caso do TCU, em que essa atuação é mais nítida, ela era,
inicialmente, feita por meio do controle direto, exigindo a prestação de contas
direta anualmente. Esse foi o entendimento adotado pela egrégia Corte em
diversas disposições mais antigas do colegiado, como relatou o Min. Benjamin
Zymler durante a Decisão 592/19988:
As organizações sociais sujeitam-se, também, a controles externos de resultados, periódicos e a posteriori,
tendo por fim a verificação do cumprimento do contrato
de gestão. No caso das Organizações Sociais, esse controle é exercido pelo órgão ou entidade supervisora da
área de atuação correspondente à atividade fomentada
8
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, Decisão 592/98, Rel. Min. Benjamin Zymler, j. 23/05/2008.
117
118
Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor
[...]. Nesse contexto, o controle da legalidade deve ceder
espaço ao controle teleológico ou finalístico. A aferição
de resultados e, sobretudo, a satisfação do usuário serão
a tônica da atividade controladora dos setores externos
ao núcleo burocrático do Estado.
Esse posicionamento, porém, foi modificado a partir de 2007, pela
Corte de Contas, quando, no acórdão 1952/07, estabeleceu que as Organização
Sociais devem prestar contas ao respectivo Órgão Supervisor, com os quais
mantêm os contratos de gestão, e não mais diretamente ao TCU.
De fato, a aferição de resultados, a que o próprio Ministro Benjamin
Zymler se referia, deve ser realizada conforme os parâmetros estabelecidos
no contrato de gestão, de modo que o órgão que celebra tal pacto com essas
entidades possui maiores possibilidade e oportunidade de fiscalizar seu adimplemento. Vale destacar que o descumprimento de suas disposições pode
ensejar a desqualificação da entidade como organização, por meio de processo
administrativo que assegure o contraditório e a ampla defesa.
4.2.2 Termo de Parceria
Quanto ao termo de parceria, a Lei 9.790/99 o disciplina claramente
em seu art. 9º, caracterizando-o como o instrumento necessário para a formação do vínculo entre o Poder Público e as OSCIPs.
Conforme o entendimento do TCU, a prestação de contas relativa
ao termo de parceria deverá ser apresentada, à semelhança dos convênios,
ao órgão ou entidade repassadora dos recursos. As OSCIPs, portanto, são
submetidas a um controle indireto, assim como as Organizações Sociais. A
celebração dos termos seria apreciada quando do exame da prestação de
contas anual dessas entidades repassadoras, oportunidade em que deve ser
analisada a regularidade da execução desses termos.
Além disso, o TCU tem competência para instaurar tomadas de contas especiais sempre que se verificar irregularidades na aplicação dos recursos
federais repassados. Como nos contratos de gestão, a fiscalização do Tribunal
de Contas abrange também o controle finalístico dos serviços públicos e a
aferição dos resultados, levando em consideração o atendimento dos interesses dos destinatários desses serviços, ou seja, a sociedade.
Quanto à realização de licitação, incidem sobre as OSCIPs os mesmos
preceitos aplicados às OS, de modo que podemos chegar à mesma conclusão.
Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves
Dessa forma, será obrigatória somente a realização de cotação prévia de preços
no mercado, como prevê o art.11 do Decreto 6.170/07, atendendo-se, sempre,
aos princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade.
Mister ressaltar, ainda, que o termo de parceria, diferentemente do
que ocorre com as OS, oferece uma maior possibilidade de controle social,
representando uma importante avanço da Lei 9.790/99 e do Decreto 3.100.
A relevância dessa inovação decorre do risco que as entidades paraestatais representam para os cidadãos. Essas organizações passaram então
a substituir a prestação do Poder Público, em vez de apenas funcionar como
um acréscimo à atuação do Estado. (DI PIETRO, 2003)
Essa preocupação torna-se ainda mais evidente nos serviços públicos sociais, com destaque para a saúde e educação, tendo em vista que a
própria Constituição expressamente permite a sua execução pela iniciativa
privada.
Por isso, a lei e o Decreto 3.100 contemplaram, também, a possibilidade do controle social9, permitindo o requerimento, por qualquer cidadão,
da perda da qualificação de OSCIP da entidade, nos termos do art. 7º da Lei
9.970/99.
Além disso, diversos outros dispositivos também corroboram esse
espírito, ao enfatizar a necessidade de publicidade das atividades financeiras e
das informações referentes a tais organizações, junto ao Ministério da Justiça,
permitindo seu acompanhamento por qualquer interessado.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até a década de 1990, a intervenção do Estado na economia se
dava diretamente, através da empresas estatais, que dominavam os setores
de relevante interesse público. Porém, a manutenção dessas empresas tornase muito onerosa para o Poder Público, que não consegue atender a todas
as demandas da população, nem competir com os avanços tecnológicos do
setor. Tem início, então, uma Reforma do Estado, visando redefinir o seu papel
dentro do contexto neoliberal, por meio de privatizações ou da transferência
de atribuições estatais a órgãos privados, como no caso das entidades do
terceiro setor. Em vez de intervir diretamente, o Estado passa a atuar como
9
Sobre o controle social das OSCIPs, ver também os arts. 11, § 3º e 17 da Lei 9.790/99.
119
120
Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor
órgão regulador e fiscalizador do setor privado, que possui melhor estrutura
e mais capacidade para oferecer serviços de melhor qualidade.
Contudo, algumas organizações se afastaram desse escopo, comprometendo a credibilidade do Terceiro Setor. O modo mais eficaz de coibir
esse desvio de finalidade é o controle mais rigoroso de suas entidades, a ser
realizado pela própria Administração, e a fiscalização promovida pelo Tribunal
de Contas, especialmente pelo TCU, que mais rapidamente procurou se adequar a essa realidade. Os Tribunais de Contas do Estado, com destaque para
o de São Paulo, também têm procurado se adequar às orientações do TCU,
apesar de muitos ainda apresentarem um controle incipiente das organizações
do Terceiro Setor.
Sem esse controle, a transferência dos serviços públicos sociais
para tais entidades representaria um risco muito grande para a população,
corrompendo a própria razão de ser dessas organizações. Assim, a fiscalização
pelos órgãos competentes e mesmo pela comunidade é indissociável da noção
de Terceiro Setor e indispensável na defesa dos interesses sociais.
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VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro setor e as parcerias com a administração
pública: uma análise crítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Fórum, 2010.
CONTROL AND INSPECTION OF THE THIRD SECTOR ORGANIZATIONS
ABSTRACT
The third sector comprehends the private organizations that provide services of public interest. In
the last years, we’ve watched an impressive growth
of this sector, in virtue of the inefficient action of
the State in the implementation of the social rights
guaranteed by the Brazilian Federal Constitution
and of the neoliberal context of adoption of a
regulatory management. Despite they are born
with the assignment of fulfilling the gaps left by
the State, the spread of organizations that cover
the practice of illegalities emphasizes the need of
control and inspection of their performance, as
a way to confer more legitimacy and reliability
to them.
Keywords: Third Sector. Public Services. Control.
Inspection.
ENTRE O MITO E A REALIDADE:
A VISÃO DE KELSEN E
MALINOWSKI SOBRE O DIREITO
NAS SOCIEDADES ÁGRAFAS
Roberto Fernando de Amorim Júnior
Acadêmico do 8º período do
Curso de Direito da UFRN.
RESUMO
Geralmente os estudos sobre as normas jurídicas
nas sociedades ágrafas são apresentados seguindo
um modelo padrão, caracterizado como uma confusão de preceitos de toda espécie e regidos através
de prescrições proibitivas e coercitivas de natureza
divina ou sobrenatural, que surgem de maneira espontânea. Com isso, tais estudos ignoram a pluralidade normativa originária das inúmeras formas de
organização social. Diante dessa problemática, este
artigo – a partir do diálogo do pensamento de Hans
Kelsen e dos estudos conduzidos por Bronislaw Malinowski nas Ilhas Trobriands, em Nova Guiné, dois
expressivos representantes das ciências humanas,
do Direito e da Antropologia, respectivamente –
objetiva contribuir para uma melhor compreensão
do caráter plural da norma jurídica nas sociedades
ágrafas e, com isso, desmitificar alguns mitos criados
sobre o Direito em tais sociedades.
Palavras-chave: Sociedades ágrafas. Pluralidade
normativa. Mitos.
Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsk
sobre o direito nas sociedades ágrafas
124
1
PRIMEIRAS PALAVRAS
Até hoje, a discussão acerca da existência, ou não, da norma jurídica
nas sociedades primevas ainda causa inquietação. Acerca do assunto, há, em
síntese, duas grandes correntes que se contrapõem na atualidade. A primeira,
de concepção jusnaturalista, advoga que as normas sociais que regiam a vida
das comunidades, tribos e grupos nômades dos primórdios tinham natureza
jurídica. Entretanto, a concepção estatalista (ou positivista) sustenta que
naquele período não havia norma jurídica por que não existia Estado.
Seja como for, percebemos que há, entre ambas as correntes, ao
menos um consenso em considerar que a norma de Direito é uma norma
social, pois é capaz de regulamentar a conduta da sociedade. Entrementes,
como é cediço, tal característica também é comum a outras normas sociais,
como, por exemplo, a norma religiosa, a moral e as regras de trato social. Todas
são, portanto, normas sociais, sendo que cada uma delas tem uma essência
que as diferenciam entre si.
Para muitos jusfilósofos, seja de concepção estatalista ou jusnaturalista, o elemento de distinção fundamental entre a norma jurídica e as demais
normas sociais constitui-se na possibilidade de a norma de direito coagir
(através de sanções físicas ou psíquicas) os seres humanos com o desiderato
de viabilizar a vida em sociedade. Fácil é entender essa distinção com o advento do Estado, ente titular e monopolizador da criação e aplicação das leis,
cabendo-lhe sancionar as condutas violadoras dos preceitos jurídicos. Porém,
no âmbito das sociedades ágrafas – ou pré-estatais – tal distinção (entre a
norma de direito e as demais normas sociais) comumentemente causa inquietação, isto porque, em tais sociedades, embora já houvesse normas de Direito
(como assegura a corrente jusnaturalista), como elas eram criadas, aplicadas e
transmitidas através de gerações, haja vista que os órgãos estatais de controle
social ainda não existiam?
Pois bem, partindo desse questionamento, este estudo busca oferecer instrumentos para a sua elucidação com amparo na leitura das obras
de Kelsen e Malinowski, que, vivendo na mesma época histórica, também se
preocuparam em investigar a existência, formação e características da norma
jurídica nas sociedades ágrafas. Assim, com esteio nos estudos desses eminentes cientistas sociais, procuraremos demonstrar, ao final deste trabalho, que,
diante da diversidade cultural das sociedades ágrafas, torna-se impossível
deduzir o caráter da norma jurídica dos povos pré-estatais a partir de um único
exemplo de organização social, pois, de outro modo, haverá o risco de cairmos
Roberto Fernando de Amorim Júnior
numa singularidade ou padronização normativa que destoará da realidade.
É bem verdade que, além dos supracitados pensadores, outros estudiosos há muito tempo também voltaram seus olhares para as sociedades
mais remotas da superfície terrestre com o escopo de resolver tais questões.
Porém, as investigações iniciais, que foram marcadas pela ausência de pesquisas empíricas, eram conduzidas dentro de gabinetes com base em relatos
de missionários, navegadores, colonizadores e viajantes. Em razão disso, os
resultados dessas investigações foram prejudicados, visto que não continham
credibilidade científica. Mais tarde, com a introdução da pesquisa de campo,
parte desses resultados preliminares passou a ser refutado.
Conforme assevera Everardo Rocha (1996), o cientista social Bronislaw Malinowski (1884-1942), considerado um dos fundadores da Antropologia
Social, tornou-se o pioneiro na introdução do trabalho de campo nos estudos
antropológicos. Esse eminente antropólogo, em uma de suas inúmeras obras,
denominada Crime e Costume na Sociedade Selvagem, apresenta-nos os resultados de seus estudos empíricos de Antropologia Jurídica, que foram conduzidos a partir de observações in locu do mundo de vida dos povos autóctones
situados no arquipélago das Trobriands, em Nova Guiné.
Em termos gerais, os estudos de Malinowski revelaram que, mesmo
sem a presença de órgãos estatais de legislação, administração e aplicação
de sanções de caráter coercitivo, os aborígenes possuíam mecanismos de
organização social bastante complexos, baseados notadamente (mas não
exclusivamente) na reciprocidade, que, para o autor, constitui-se em um dos
elementos caracterizadores do Direito em tais sociedades.
Naquela época, tais resultados contrariaram muitas publicações
que discorriam sobre o processo histórico de formação da ordem jurídica nas
sociedades ágrafas, pois aqueles trabalhos corriqueiramente ignoravam o
pluralismo cultural arrimado no papel ativo de cada coletividade que é capaz
de criar e estabelecer suas próprias normas de controle social para atender a
suas necessidades específicas.
Sem embargos, ainda hoje é comum vermos a norma jurídica sob
uma perspectiva geral, como se houvesse uma única forma de manifestação
do Direito e esta fosse estendida indistintamente para todos os grupos sociais
da superfície terrestre. Assim, o Direito das sociedades ágrafas que, na verdade,
manifesta-se de maneira plúrima, é-nos apresentado de forma contrária, quer
dizer, seguindo um modelo padrão, revelado como uma mistura de preceitos
de toda espécie, regidos por prescrições proibitivas e coercitivas de natureza
divina ou sobrenatural que surgem de maneira espontânea.
125
Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsk
sobre o direito nas sociedades ágrafas
126
Essa concepção da norma jurídica dos povos pré-estatais encontrase latente até mesmo no pensamento de um dos maiores juristas da humanidade, o eminente jusfilósofo positivista Hans Kelsen (1881-1943). Em uma de
suas inúmeras obras, denominada Teoria Pura do Direito, podemos constatar
algumas passagens que explicam a ocorrência da norma jurídica nas sociedades ágrafas a partir de um modelo singular que, como dissemos anteriormente, enfatiza uma concepção de norma jurídica que enaltece o seu caráter
proibitivo e coercitivo, sem olvidar das intervenções divinas ou sobrenaturais.
Assim, apesar de sabermos que a questão da formação das normas
jurídicas nas sociedades ágrafas é um dilema que perpassa por várias obras de
diversos autores, o trabalho que ora apresentamos busca oferecer subsídios
para enriquecer a discussão com supedâneo na visão de um jurista contraposta
à visão de um antropólogo.
Portanto, aproveitando a contribuição de expressivos representantes das ciências humanas, do Direito e da Antropologia, tentaremos estabelecer
um diálogo entre ambos com o objetivo de compreender a formação da norma
jurídica nas sociedades ágrafas, enfatizando, ao final, o seu caráter plúrimo,
e, com isso, contribuir para a desmistificação de alguns mitos criados sobre o
Direito em tais sociedades, cujos estudos muitas vezes ignoram a importância
das inúmeras formas de organização social para a construção da norma.
2
UMA DEFINIÇÃO DE NORMA JURÍDICA SEGUNDO KELSEN E MALINOWSKI
Em sua obra, Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen afirma que o Direito
constitui-se em uma ciência que tem como objeto de estudo as leis de caráter
jurídico, sendo estas definidas como normas capazes de regular a conduta dos
seres humanos. No entanto, ainda segundo esse influente jusfilósofo austríaco,
a norma jurídica não se constitui na única norma social reguladora da conduta
humana, visto que, ao lado dela, há outras, como a Moral e a Religião, por
exemplo. Entrementes, essas normas sociais não possuem caráter coercitivo.
A coercibilidade, para Kelsen, é atributo que distingue a norma jurídica das
demais. Portanto, a ocorrência de conduta violadora dos limites prescritos
pelas normas jurídicas, que causarem ameaça à sociedade, poderá ser punida
fisicamente. Assim sendo,
como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O momento coação, isto é, a circunstância
Roberto Fernando de Amorim Júnior
de que o ato estatuído pela ordem como conseqüência
de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da
pessoa atingida e – em caso de resistência – mediante
o emprego de força física, é o critério decisivo (KELSEN,
2003, p. 37).
Veja que, como “ordem coativa”, Hans Kelsen entende a força física
– capaz de limitar, por exemplo, o direito à liberdade, à vida e à propriedade.
Portanto, para o maior filósofo do dogmatismo jurídico, a possibilidade de
punição, sinônimo de privação de direitos, constitui-se em elemento fundamental de distinção entre o Direito e as outras normas sociais, como a
Moral, a Religião e as Regras de Trato Social, pois estas últimas não se utilizam
daquelas sanções de caráter físico e repressivo para garantir o cumprimento
de suas normas, porém, gozam de outras espécies de sanções, como o arrependimento, a crítica, a rejeição, a reprovação, o remorso, o preconceito, o
constrangimento, dentre outras.
Já Bronislaw Malinowski, durante seus estudos antropológicos nas
Ilhas Trobriands, procurou distinguir a norma jurídica das demais normas
sociais a partir do “princípio da bilateralidade”, isto é, da existência de direitos
e obrigações recíprocas. Assim, considerando o conjunto das normas de controle social, “as regras da lei sobressaem ao resto porque são sentidas e consideradas obrigações de uma pessoa e justos direitos de outra” (MALINOWSKI,
2003, p. 47). Esse caráter bilateral da norma jurídica, arrimado no sentimento
de reciprocidade, é elemento constitutivo da lei civil dos povos pré-estatais,
conforme assevera Malinowski (2003, p. 49), senão, vejamos:
lei formal que rege todas as fases da vida tribal, consiste
de um conjunto de obrigações consideradas corretas por
um grupo e reconhecidas como dever pelo outro, mantida
em vigor por um mecanismo determinado de reciprocidade e publicidade inerente à estrutura da sociedade.
[grifamos]
Nesse sentido, é de bom alvitre destacar que a lei civil das sociedades ágrafas, de acordo com Bronislaw Malinowski, não prevê aplicação de
punições pelas falhas, sendo que, por outro lado, é comum premiar aqueles
que cumprem excessivamente as normas jurídicas. Essa sanção premial se dá
após uma avaliação racional sobre a conduta prevista, sendo esta analisada
127
Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsk
sobre o direito nas sociedades ágrafas
128
a partir da sua relação de causa e efeito, “aliada a uma série de sentimentos
sociais e pessoais, como a ambição, a vaidade, o orgulho, o desejo de aperfeiçoamento pessoal pela exibição, além de apego, amizade, dedicação e
lealdade aos parentes” (MALINOWSKI, 2003, p. 49).
Não obstante, segundo nos relata Bronislaw Malinowski (2003), o
membro da coletividade que intransigentemente desobedece às regras da
lei em seus tratos econômicos, logo se encontra fora da ordem econômica e
social, ressaltando que todos têm perfeita consciência disso.
Assim, apesar de o autor afirmar categoricamente que a lei civil nas
sociedades ágrafas não prevê castigo pelo seu descumprimento, percebemos,
pela leitura do parágrafo suso, que a rejeição social também era de uso comum
pelos membros da coletividade, fato que demonstra, a bem da verdade, uma
verdadeira forma de sanção punitiva, muito embora não tenha natureza física
(que, para Kelsen, é requisito essencial de distinção da norma jurídica das
outros normas sociais, como vimos alhures).
Enfim, como veremos mais adiante, as distinções entre as normas
jurídicas e as demais ordem sociais que, consoante Hans Kelsen e Bronislaw
Malinowski, baseiam-se na coercibilidade e na reciprocidade, serão bastante
importantes para compreendermos como esses princípios influenciaram
o pensamento desses renomados cientistas conquanto à compreensão da
concretização do Direito nas sociedades ágrafas.
3
O SURGIMENTO E A TRANSMISSÃO DO DIREITO
Como vimos, para os jusfilósofos naturalistas, o Direito, compreendido como sinônimo de ordem social, subsiste na vida humana desde as
sociedades ágrafas, em todas elas contribuindo para a manutenção da ordem,
da uniformidade e da coesão entre seus membros, garantindo, de maneira
eficiente, uma relação “harmônica” entre eles. Assim, partindo dessa concepção jusnaturalista, pergunta-se: como era possível todos os membros das
sociedades ágrafas perpetuarem as normas de controle social (e, em especial,
as de natureza jurídica) se, naquela época, os seres humanos ainda não possuíam o domínio sobre a técnica da escrita, capaz de transmitir às gerações
descendentes o conhecimento desses padrões comportamentais?
Em termos mais breves, como o Direito surgia, transmitia-se e se
conservava, porquanto ainda não havia a lei escrita?
Antes de tudo é importante ressaltarmos, com supedâneo nos
Roberto Fernando de Amorim Júnior
estudos de Bronislaw Malinowski, que o conjunto de normas jurídicas das
sociedades ágrafas não surge de maneira irracional, como se a sua criação e
conservação resultassem de uma forma espontânea, sem qualquer função
ou vínculo com o modo de vida dessas sociedades, nas quais é reconhecido
como legítimo e adequado aos valores praticados por seus membros. Assim,
as normas de Direito
era ou é determinado inteiramente pelas necessidades
básicas da vida. Se se souber que um povo, seja qual for,
é determinado pelas necessidades mais simples da vida
– encontrar subsistências, satisfazer as pulsões sexuais e
assim por diante –, então está-se apto a explicar as suas
instituições sociais, as suas crenças, a sua mitologia e
todo o resto. (LÉVY-STRAUSS, 1978, p 18).
Nesse diapasão, compreendemos que a conservação das normas
de Direito nas sociedades ágrafas devesse ocorrer a partir das práticas cotidianas comuns à tribo, isto é, do costume, tendo em vista que, de acordo
com Bronislaw Malinowski (2003, p. 9-10), “a lei e a ordem permeiam os usos
tribais das raças primitivas, regem o curso monótono da existência cotidiana
e também os atos mais importantes e veneráveis”. Por conseguinte, essas normas de natureza jurídica, que comumentemente são denominadas de Direito
consuetudinário, juntamente com as outras normas de controle social e os
demais usos e hábitos das sociedades ágrafas, eram transmitidas de geração
para geração através da oralidade ou da tradição.
Porém, esse Direito de origem consuetudinária não deve ser confundido como uma mistura irremediável de preceitos morais, rituais agrícolas,
religiosos, entre outros, segundo a concepção geral, haja vista que, conforme
assevera Bronislaw Malinowski, embora exista nas sociedades ágrafas um
conjunto vasto de normas tradicionais que exercem importantes funções
sociais, os membros da coletividade sabem distinguir bem a lei civil “de todos
os outros tipos de normas, sejam morais, sejam de conduta, regras das artes
ou mandamentos religiosos” (MALINOWSKI, 2003, p. 60).
Pois bem, nas sociedades ágrafas o Direito surge através de uma
construção intelectual elaborada a partir dos modos de vida de tais sociedades,
contribuindo para a satisfação das necessidades de seus membros, sejam elas
físicas, emocionais ou sociais. No entanto, muito embora as normas jurídicas
das sociedades ágrafas não fossem fixadas em um ordenamento jurídico
129
Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsk
sobre o direito nas sociedades ágrafas
130
positivado, elas não devem ser confundidas como um conjunto de regras de
toda espécie de origem consuetudinária, tendo em vista que os membros
pertencentes a essas sociedades são capazes de distinguir as normas de Direito
das demais, como sublinha Malinowski.
4
A OBRIGATORIEDADE DA NORMA JURÍDICA
Como já expomos suso, Hans Kelsen utilizava-se do elemento “coercibilidade” para distinguir a norma jurídica das demais normas sociais. Da
mesma forma, ao tratar das características da norma de Direito nas sociedades
ágrafas, o mestre austríaco também faz referência ao elemento punitivo,
acrescentando apenas que tais normas estavam “contaminadas” por preceitos
míticos e religiosos, cuja transgressão, portanto, resultaria em punição através
de castigos sobrenaturais, que, na verdade, consistiam em manifestações do
sentimento de reprovação das almas ou seres supra-humanos sobre a conduta
transgressora.
Deveras, para Kelsen, as leis não escritas de uso consuetudinário
constituem-se em um sistema híbrido formado por tabus e crenças, sendo
obedecidas em virtude do “medo dos graves malefícios com os quais a instância supra-humana – as almas dos mortos – reage contra a ofensa da ordem
tradicional” (KELSEN, 2003, p. 32).
Porém, Bronislaw Malinowski critica essa concepção do Direito
das sociedades ágrafas adotada por Hans Kelsen, segundo a qual, diferentes
grupos das sociedades ágrafas obedeciam às normas de conduta de maneira
espontânea, servil e involuntária “por ‘inércia mental’, associada ao temor da
opinião pública ou de castigo sobrenatural” (MALINOWSKI, 2003, p. 15). Aliás,
tal concepção por muitos anos se difundiu entre os antropólogos e demais estudiosos sobre o tema, denominada por Malinowski de concepção de “dogma
da submissão automática”.
Contudo, esse influente antropólogo acredita que o “dogma da
submissão automática” resultou de uma adaptação infeliz do princípio da
coercibilidade da lei às sociedades ágrafas. Para ele, tal adaptação pode ser
atribuída ao fato de estarmos habituados aos atuais mecanismos da lei, que não
prescindem das diversas autoridades de fiscalização, da polícia, da promotoria
pública e dos tribunais, todos eles agindo de maneira coercitiva. Vivendo essa
realidade, procuramos algo análogo nas sociedades ágrafas; porém, por não
entendermos a sua complexa organização societária, deduzimos que a norma
Roberto Fernando de Amorim Júnior
de caráter jurídico é obedecida em virtude de imposições sobrenaturais.
Malinowski, divergindo de Hans Kelsen, entende que as forças que
asseguram a adesão à lei “primitiva” e a tornam obrigatória e legal não são
impostas por nenhum motivo indiscriminado, como o medo da punição ou a
submissão geral a todas as tradições, mas por incentivos psicológicos e sociais
muito complexos” (MALINOWSKI, 2003, p. 18). Nesse pórtico, insta destacar
que o nativo de Trobriand
é guiado primariamente não pelo desejo de satisfazer
suas necessidades vitais, mas sim um complexo de
sistema de deveres e obrigações, de forças tradicionais, de crenças mágicas, ambições sociais e vaidade.
Enquanto homem, ele deseja alcançar prestígio social
como um bom lavrador e, de maneira geral, como um
bom trabalhador (MALINOWSKI, 1984, p. 57).
Desse modo, Malinowski, não obstante saiba que subsiste uma
vasta série de elementos sociais e psicológicos responsáveis por vincular os
membros da coletividade às disposições da lei, afirmará que a “reciprocidade”
é o elemento que distinguirá a norma jurídica das demais, constituindo, desse
modo, na principal arma capaz de tornar possível a obrigação dos deveres e a
reivindicação dos direitos de cada grupo social perante os demais.
Todavia, os interesses pessoais e os sentimentos sociais também
contribuem, vez que se configuram em fatores adicionais que possibilitam a
manutenção das tarefas mútuas, concorrendo para que o cumprimento das
normas jurídicas não ocorra de maneira rígida e integral. A bem da verdade,
essas normas apresentam-se bastante ajustáveis, porquanto abrem oportunidade para a possibilidade de obedecê-las, ou não, devendo ser ressaltado,
como vimos antes, que, nos casos de desobediência, a rejeição social atua
como instrumento de sanção coercitiva, excluindo o indivíduo das relações
sócio-econômicas da comunidade.
No entanto, ainda que Bronislaw Malinowski não tenha se rendido
a esse caráter coercitivo da lei civil, não há como negar a sua existência, pois
esta é extraída de seus próprios estudos empíricos. Por outro lado, frise-se que
o cumprimento em excesso desse tipo de lei (civil) gera aplicação de sanções
premiais. Ora, esse tipo de sanção (premial) destoa do padrão normativo que
geralmente se atribui às sociedades ágrafas, cuja sanção só possui caráter
punitivo (conforme facilmente se observa dos manuais de introdução ao
131
Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsk
sobre o direito nas sociedades ágrafas
132
direito, inclusive na obra de Kelsen, utilizada neste trabalho como referência).
Portanto, o indivíduo honrado, membro da sociedade ágrafa, “deve
cumprir seus deveres, mas a submissão não se deve a nenhum instinto, impulso
intuitivo ou misterioso ‘sentimento de grupo’, mas ao complexo funcionamento
detalhado de um sistema, em que cada ato tem seu próprio lugar e deve ser
realizado sem falha” (MALINOWSKI, 2003, p. 18). É assim que, para Malinowski
(2003, p. 30), a natureza das forças mentais e sociais “transforma certas regras
de conduta em leis compulsórias”.
5
SANÇÕES SOBRENATURAIS E SOCIALMENTE IMANENTES
Na época das sociedades ágrafas, o ser humano, diante das inclemências da natureza, procurava compreender seus fenômenos naturais a partir
de explicações ilusórias. O aparecimento de trovões e relâmpagos, bem como
o surgimento do fogo e da chuva, por exemplo, constituíam-se em fenômenos
naturais de difícil compreensão. Nesse sentido, sem a possibilidade de uma
explicação científica da realidade, as sociedades ágrafas interpretavam os acontecimentos naturais que diretamente afetavam os seus interesses utilizando o
princípio da retribuição, isto é, “os que lhe são benéficos, interpreta-os como
recompensa, e os que lhe são desfavoráveis como castigo, pela observância
ou não-observância, respectivamente, da ordem social estabelecida” (KELSEN,
2003, p. 32).
Portanto, como podemos ver, essa interpretação social da natureza
faz com que esta se revele como uma ordem social normativa estatuidora de
sanções sobrenaturais, premiando ou castigando as condutas humanas. Em
decorrência disso, os resultados satisfatórios ou insatisfatórios do trabalho
social empregado sobre o meio refletiam, consoante Kelsen (2003, p. 32), o
estado de ânimo das
almas dos mortos que, de acordo com as representações
religiosas do homem primitivo, recompensam a conduta
socialmente boa com o sucesso na caça, boas colheitas,
vitória no combate, saúde, fertilidade, longa vida; e castigam a conduta socialmente má com os fatos opostos,
especialmente com a doença e a morte.
No entanto, para Malinowski, essa intervenção sobrenatural sobre
Roberto Fernando de Amorim Júnior
a realidade não estava totalmente entregue à vontade única das almas, que
agiam com fulcro no princípio da retribuição ao aplicar as sanções sobrenaturais, seja de caráter premial ou coercitivo, como acreditava Hans Kelsen,
consoante transcrito supra.
Na verdade, conforme revelou as observações de campo realizadas
por Malinowski, a “intervenção sobrenatural” sobre a vida dos povos das sociedades ágrafas ocorria mediante provocações da própria coletividade através da
magia executada pelo feiticeiro da comunidade e celebrada em nome de todo
o grupo, como é o caso da “magia das plantações, da pescaria, da guerra, do
tempo e da construção das canoas. Como se nota, conforme as necessidades,
na estação própria ou sob certas circunstâncias” (MALINOWSKI, 2003, p. 39),
o feiticeiro realizava sua mágica para conservar os tabus e também, às vezes,
para controlar todo o empreendimento.
Mesmo sem rejeitar a existência dessas sanções sobrenaturais, Malinowski afirma que, no âmbito das normas de Direito, somente as leis penais
gozam, nas sociedades ágrafas, desse tipo de sanção. Portanto, no âmbito da
esfera jurídica, somente as normas de caráter penal eram aplicadas com arrimo
nas sanções sobrenaturais. As leis civis, por sua vez, não possuíam sanções
coercitivas, segundo entendimento de Malinowski, tampouco sanções de
natureza sobrenatural.
Insta vincar que as sanções de caráter sobrenatural não eram um
fenômeno tão comum no âmbito das sociedades ágrafas, sendo elas aplicadas, mormente, contra condutas violadoras de normas protetoras da coesão
social, reservando-se ao feiticeiro da tribo a competência para a sua aplicação,
como é o caso, por exemplo, da lei da exogamia, cuja violação era considerada
pelos membros da tribo como um crime bastante grave. Assim, os nativos
acreditam que o aparecimento de úlceras, moléstias e até mesmo a morte
estão relacionadas à aplicação de sanções sobrenaturais contra os violadores
dessa espécie de lei (penal).
Já as sanções socialmente imanentes, aplicadas sobre delitos de
ordem penal, somente eram cabíveis quando o culpado assumisse publicamente a prática do crime. O castigo – quando caracterizado como uma espécie
de sanção socialmente imanente (isto é, quando prescindia da vontade das
almas) – vinha na forma de suicídio, representando não somente uma forma
de autopunição, mas também de reabilitação. Nesse sentido, esclarece-nos o
antropólogo Bronislaw Malinowski (2003, p. 76), in litteris:
a pessoa publicamente acusada admite a culpa, assume
133
134
Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsk
sobre o direito nas sociedades ágrafas
todas as conseqüências, castiga o próprio corpo, mas
ao mesmo tempo declara ter sido aviltada, apela aos
sentimentos dos que a levaram a esse extremo – se são
amigos ou parentes – e, se são inimigos, apela para a
solidariedade de seus parentes, pedindo que levem a
cabo a vingança.
No entanto, interessante notar que, caso o violador da lei de exogamia não assumisse publicamente a prática do delito, a comunidade, mesmo
sendo conhecedora dos fatos, não se esforçava para exigir qualquer espécie de
castigo. Contudo, apesar dessa inércia social, cabia ao feiticeiro elaborar magias contra aqueles que violavam a lei de exogamia – ressalte-se, considerada
como um crime de grave natureza –, trazendo-lhes conseqüências patológicas
capazes obstaculizar condutas reiteradas dentro da tribo.
Com supedâneo no sobredito, importante reconhecer que essas
sanções sobrenaturais, utilizadas como recursos coercitivos por meio do uso
da magia negra, muito embora não viessem a surtir efeito automático contra
o violador da norma, funcionavam como autêntica força legal, pois, frise-se,
eram usualmente utilizados para obrigar o cumprimento das regras da lei tribal,
restabelecendo o equilíbrio social. Ademais, além de caráter sancionador, a
feitiçaria tinha um escopo investigativo, isto porque também se constituía
numa forma de investigação acerca dos motivos que ocasionaram a morte
de alguém por bruxaria, isto é, por outro feitiço.
Em que pese tais considerações, Bronislaw Malinowski (2003, p. 74)
alerta: “a feitiçaria não é um método exclusivo de administrar a justiça nem
uma prática criminosa. Ela pode ser usada dessas duas maneiras”. Em outras
palavras, a feitiçaria podia ser empregada como um instrumento de coerção
legal, mas também em oposição direta à lei. Todavia, a consideramos, principalmente, como um instrumento de manutenção do status quo, isto é, como
uma forma de conservar a velha ordem social, isto porque somente ao chefe
estava facultada a possibilidade de empregar a feitiçaria contra aqueles que
ameaçavam os seus privilégios ou a tradição da comunidade.
Por fim, no tocante às sanções socialmente imanentes, Hans Kelsen
lembra que a vingança de sangue é a mais antiga dessas sanções. Segundo o
mestre austríaco, tal sanção é normalmente aplicada quando uma família reage
contra o homicídio perpetrado através de uma forma natural ou mágica por
um membro pertencente a uma outra família. De acordo com o saudoso juspositivista, era assim (através da autotutela) que diferentes famílias resolviam
Roberto Fernando de Amorim Júnior
seus conflitos, já que inexistia um órgão central capaz de punir os crimes de
homicídio. Portanto, um homicídio praticado por um membro de uma outra
família “somente pode ser vingado pela ação dos parentes da vítima. Apenas
o não-cumprimento do dever de vingança fica sob a sanção transcendente da
vingança por parte da alma do assassinado” (KELSEN, 2003, p. 31).
Já com relação ao homicídio praticado por um membro de uma
mesma família, a punição deveria, originariamente, consoante Hans Kelsen
(2003, p. 31), ser sancionada “apenas através da sanção transcendente da
vingança da alma da vítima”, visto que as almas dos mortos têm poder sobre
os membros da sua própria família.
6
ANÁLISE CRÍTICA
Diante do diálogo até aqui exposto, compreendemos que a concepção de Hans Kelsen sobre a norma jurídica nas sociedades ágrafas sofre uma
influência muito forte do princípio da coercibilidade da lei, manifestada, por
exemplo, através dos preceitos proibitivos (tabus) e dos castigos divinos ou
sobrenaturais. Já a concepção de Bronislaw Malinowski encontra-se bastante
influenciada pelo princípio da reciprocidade, o que torna o cumprimento da
norma jurídica menos rígido. Porém, diante da enorme pluralidade cultural
produzida pelas sociedades ágrafas, não há como pensar o Direito consuetudinário somente a partir dessas duas concepções.
Mesmo assim, a temática estudada a partir do diálogo realizado entre esses dois expressivos pensadores, apesar de limitada quanto à bibliografia
utilizada, revela-se bastante profícua haja vista que contribui para derrubar
as amarras ideológicas que insistem em nos apresentar a formação da norma
jurídica de maneira singular, isto é, ignorando que inúmeras coletividades
ainda vivem sobre a superfície terrestre de maneira quase isolada, criando e
estabelecendo as normas de controle social de forma exclusiva e plural.
Nesse contexto, não é correto afirmar que o Direito consuetudinário
surge de maneira espontânea, haja vista que, conforme os estudos empíricos
de Malinowski nos revela, a sua criação está intimamente relacionada às
necessidades específicas de cada coletividade, fato que reforçaria a tese do
pluralismo da norma.
Também não podemos generalizar a afirmação de que a obrigatoriedade do Direito consuetudinário resulte de um temor aos castigos sobrena-
135
136
Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsk
sobre o direito nas sociedades ágrafas
turais ou supra-humanos, haja vista que os estudos empíricos conduzidos por
Malinowski revelam que somente a norma de Direito Penal goza de sanções
de natureza sobrenatural. Já as normas de caráter civil, frise-se, são obedecidas por fatores psicológicos e sociais de grande complexidade, permitindo,
outrossim, a aplicação de sanções notadamente premiais.
Ademais, a ordem jurídica é descentralizada, ou seja, a aplicação
de sanções (premiais ou coercitivas) de natureza jurídica não advém de um
órgão central, como ocorre no Direito positivo (que emerge com o Estado).
Por isso, a reciprocidade – manifestada através do cumprimento dos direitos
e deveres mútuos entre os membros das tribos – constitui-se em elemento
fundamental para garantir o respeito às normas de natureza jurídica nas sociedades ágrafas (ressalvando as normas de caráter penal, que se utilizam de
sanções sobrenaturais aplicadas pelo feiticeiro, como forma de expurgar as
condutas ameaçadoras da coesão do grupo).
Da mesma forma, não há como singularizar a concepção defendida
por Hans Kelsen, segundo a qual a essência do Direito consuetudinário reside
numa série de tabus, que consiste num conjunto de proibições sob a ameaça de
castigos sobrenaturais. Como diz Malinowski, isso tudo gera, na verdade, uma
verdadeira “atmosfera do terror”. Para ele, portanto, o Direito consuetudinário
não é rígido, restritivo e punitivo, nem está resumido à aplicação de leis penais.
As leis civis, como já visto, permeiam todos os modos de vida das sociedades
ágrafas, e são mais comuns no cotidiano dessas sociedades do que a lei penal.
O cumprimento excessivo da lei civil gera aplicação de sanções premiais e,
mesmo sendo bastante ajustável, a possibilidade de desobedecê-la é remota.
No entanto, caso ocorra alguma violação, o membro da comunidade sofre uma
espécie de rejeição social, sendo excluído das relações sociais e econômicas.
Em síntese, percebemos que as leis jurídicas nas sociedades préestatais não se resumem àquelas de natureza essencialmente penal (como
geralmente se vê nos manuais). As sanções porventura aplicadas também têm
natureza premial, fugindo da idéia essencialmente punitiva da norma. Ademais,
a lei civil, comumentemente encontrada no âmbito de tais sociedades, baseiase num sentimento de reciprocidade e de interesse próprio, destoando do
caráter essencialmente sancionador, elemento que, para muitos jusfilósofos,
diferencia a norma jurídica das demais normas sociais.
Diante do exposto, vemos que a tarefa de constituição da norma
jurídica nas sociedades ágrafas (ainda que limitada ao pensamento de dois
grandes pensadores) demonstrou-se bastante árdua, pois, com a revelação da
Roberto Fernando de Amorim Júnior
pluralidade cultural, compreendemos que não podemos falar em uma “norma”,
mas várias “normas” jurídicas que são criadas a partir das necessidades específicas das diversas formas de organização social existentes na superfície terrestre.
Por derradeiro, embora estejamos convictos da insuficiência deste
trabalho para oferecer respostas definitivas acerca da problemática que nos
motivou, sabemos que nossa contribuição servirá para não nos deixarmos
contaminar pelos padrões, dogmas ou reducionismos facilmente encontrados
nas obras jurídicas atuais, que desconsideram o caráter pluralista do direito
nas sociedades pré-estatais, mutilando a realidade, bem como impedindo-nos
que enxerguemos e aceitemos o diferente. Assim, ao desmistificar tais mitos,
acreditamos que cumprimos, em boa medida, nosso mister.
REFERÊNCIAS
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Tradução de João Baptista
Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LEVY-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978.
MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. Tradução
de Maria Clara Corrêa Dias. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2003.
______. Argonautas do pacífico ocidental: um relato do empreendimento e
da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. Coleção
Os Pensadores. 3ª Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
ROCHA, Everardo. O que é mito? São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
BETWEEN MYTHS AND REALITY: A VIEW OF
137
138
Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsk
sobre o direito nas sociedades ágrafas
KELSEN AND MALINOWSKI ON THE LAW ON
SOCIETIES WITHOUT WRITTEN
ABSTRACT
Usually the studies on the laws in societies without
written are presented following a standard model,
characterized as a confusion of precepts of all kinds
and governed by the requirements prohibitive
and coercive nature of divine or supernatural, that
appear so spontaneous. With this, these studies
ignore the plurality legislation originates from
many forms of social organization. Faced with this
problem, this article - from the confrontation of the
thought of Hans Kelsen and studies conducted by
Bronisław Malinowski Trobriands Islands in New
Guinea, two significant representatives of the
humanities, law and anthropology, respectively
- aims to contribute to a better understanding of
the pluralistic nature of the legal norm in societies without written and unmythicize some myths
about the law in such societies.
Keywords: Societies without written. Plurality.
Legislation. Myths.
ÉTICA DO ACADÊMICO DE
DIREITO: CRISE NA UFRN
Thaissa Lauar Leite
Acadêmica do 8º período do
Curso de Direito da UFRN.
Monitora de Direito Processual
do Trabalho
RESUMO
O presente estudo tem o escopo de refletir sobre a
crise ética pela qual passa o acadêmico de direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
reunir os fatores que corroboram para este acontecimento, e, por conseguinte, propor possibilidades
para superá-la. Dessa forma, pretende-se despertar
no bacharelando em direito os valores morais e
éticos sobremaneira relegados quando do estudo
das disciplinas propedêuticas da grade curricular
do curso e fazê-lo conscientizar-se de sua função
enquanto estudante. Inobstante, pretende-se incitar
a UFRN a assumir sua quota de responsabilidade e
exercer seu encargo de não apenas formar centenas
de bacharéis em direito anualmente, mas, também,
educá-los para a vida profissional. Para consecução
dos fins propostos, se utilizará, especialmente, das
doutrinas da introdução ao estudo do direito e da
ética geral e jurídica, sem olvidar do exame do acervo
jurisprudencial pertinente.
Palavras-chave: Ética. Acadêmico de direito. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
140
Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
1 INTRÓITO
Tem-se percebido que boa parte dos estudantes se comove com os
diversos tipos de escândalos cotidianamente ventilados pelos muitos veículos
midiáticos. Quando há um crime brutal nas principais manchetes, questionase a moral do suposto delinqüente, às vezes até condenando-o, de pronto.
Aquele passa a ser o tema central, verbi gratia, de todas as posteriores aulas
de direito penal e processual penal.
No caso de desvio político, imediatamente se falará de inexistência
de ética na política, e o mandatário da vez logo será execrado em todas as mesas de discussão onde se tenha um estudante de direito, ao menos, inserido.
E o que falar, então, das notícias acerca de venda de sentenças por alguns
magistrados em todo o país? O assunto não poderia ser mais polêmico no seio
do curso da UFRN que mais deveria lutar por justiça e equidade.
Nada obstante, a maioria dos estudantes de direito se mostra incapaz de vislumbrar a própria falta de ética ou, mesmo percebendo-a, acredita
ser esta incomparável aos exemplos supra elencados. Em verdade, como se
procurará demonstrar, a falta de ética do estudante de direito está em patamar
no mínimo próximo de todos os exemplos mencionados alhures.
Como ela se manifesta? Quem e o quê concorre para que isto
aconteça? Quais as suas conseqüências? De que forma se poderá superar esta
crise? Buscar-se-á, no decorrer deste trabalho, algumas respostas possíveis a
estas indagações.
2 NOTAS PERFUNCTÓRIAS SOBRE ÉTICA E MORAL
Distinguir os conceitos de ética e moral se mostra tarefa sempre
árdua, dada a sutileza dessa diferenciação, que faz que muitos doutrinadores
a tenham como sinônimos, para fins didáticos1. No entanto, neste estudo,
utilizar-se-á o conceito de José Renato Nalini (2004, p. 26), que realiza, de
maneira simplificada, esta dissociação:
Nessa linha, ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Notas introdutórias à ética jurídica. LTr: São Paulo,
2007: “Assim, a Ética ou Moral não é mero estudo descritivo dos costumes de uma sociedade,
mas estabelece juízos de valor sobre o que torna bom este ou aquele proceder social.”
1
Thaissa Lauar Leite
A mera conceituação de ética resulta em concluir não
se confundir ela com a moral, pese embora aparente
identidade etimológica no significado. Ethos, em grego,
e mos, em latim, querem dizer costume. Nesse sentido,
a ética seria uma teoria dos costumes. Ou melhor, a ética
é a ciência dos costumes. Já a moral não é ciência, senão
objeto da ciência. (grifos no original)
Complementa, o autor supracitado, que o objeto da ética é a moralidade positiva, e, citando Eduardo García Máynez, esta seria “o conjunto de regras de comportamento e formas de vida através das quais tende o homem
a realizar o valor do bem” (2004, p. 25)2. Não é demais lembrar, contudo, que o
conceito de bem sofre influências de fatores históricos, religiosos e culturais,
por exemplo, responsáveis por imprimir, em cada sociedade, as noções e
valores característicos do bem e da justiça relativos a ela.
A moral, por sua vez, deriva da expressão romana mores, referente a
costumes3, e, como objeto da ética, deve ser perseguida em sua faceta positiva,
com valorização e difusão dos hábitos virtuosos que levem ao bem não só
individual, mas também coletivo.
Sobre a importância do exercício do bem para o aprimoramento da
virtude moral, afirma Adauto Novaes (1992, p. 9):
A virtude tem, portanto, por origem o exercício prático,
a ação; e é a ação que dá sentido político à moral. O Bem
é ato próprio de cada ser, e a felicidade está em fazer,
em se construir uma ciência dos valores da ação, como
disse Valéry4, e não na potencialidade.
A partir daqui, já se pode construir a intelecção de que a ética, na
medida em que se pauta na moral, visa a imprimir na sociedade os valores
e princípios que devem norteá-la, apontando para as normas de conduta
Com Emerson Barros de Aguiar (2003, p. 69): “Na verdade, os códigos, roteiros ou diretrizes
de ação moral são apenas expressões de algo que deve estar presente, antes, na consciência
humana. Quando os receituários éticos não possuem essa referência interna, eles se degeneram
em mera papelada burocrática”.
3
Assim como ethos, do latim, também significa costume. Essa terminologia contribui para a comumente similitude entre os conceitos de ética e moral.
4
Aqui, Adauto Novaes refere-se a Paul Valéry, filósofo francês.
2
141
142
Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
impostas pela probidade e pelos bons costumes.
Por conseguinte, aquelas atitudes não pautadas nos valores consignados numa determinada sociedade serão tidas como imorais, dado o
desvirtuamento de conduta em desatenção à ética. Destarte, tenderão a ser
repelidas pelo corpo social.
Deve-se ressaltar, desta forma, que a escolha de cada indivíduo em
seguir a moralidade positiva ou aventurar-se em caminhos de virtuosidade
diversos será responsável por definir os rumos de sua vida. Afinal, “o mundo
será sempre o espelho da escolha moral que cada um faz” (Aguiar, 2003, p. 69).
O curso de Direito da UFRN, conseqüentemente, será o reflexo das
escolhas morais de seu corpo discente, docente e técnico-administrativo.
3 DE QUE FORMA A CRISE SE MANIFESTA?
A crise hodierna da ética do estudante de direito da UFRN se mostra
sob alguns aspectos específicos.
A priori, vem se empregando, com freqüência cotidiana, a máxima
maquiavélica os fins justificam os meios no âmbito do curso de direito. Para a
consecução de seus mais variados objetivos, muitos acadêmicos utilizam-se
de qualquer instrumento disponível, mesmo sendo ele moralmente inaceitável. Nessa senda, tentar ludibriar o professor, desrespeitá-lo e fraudar seus
procedimentos avaliativos são práticas corriqueiras. O que mais assusta, nos
dias de hoje, é utilização assídua de meios ardilosos para tais fins.
No que tange ao desrespeito ao professor, tornou-se comum ver
alunos lidando com aqueles como se fossem colegas de turma, sem o respeito
que está intrínseco, e deve ser mútuo, à relação professor-aluno. Assim, ministrar aulas, por vezes, tem sido um desafio para os docentes, que precisam
driblar as intempéries comportamentais do alunado.
Imagine-se, de outra ponta, as situações pelas quais passam os
monitores voluntários quando, no exercício de seu papel de auxiliar docente,
não conseguem o respeito e a atenção de seus pares, colegas e amigos. Subestimá-los figura como prática trivial especialmente quando estes, enquanto
monitores, aplicam avaliações nas turmas monitoradas e/ou ministram aulas
esporádicas.
Outro exemplo, também oportuno, é a prática comum de desrespeito às filas, sejam as das salas de fotocópia, sejam as de vendas de ingressos
para eventos da própria UFRN, tais como os de lançamento da Revista Jurídica
Thaissa Lauar Leite
In Verbis5 e do Seminário de Pesquisa do Centro de Ciências Sociais Aplicadas6.
O que falar, então, das fraudes aos procedimentos avaliativos (a
popular cola)? Estas fraudes, para a vergonha do curso de Direito da UFRN,
têm ganhado feições preocupantes.
Muitos alunos se utilizam de meios ardis para ludibriar o professor.
Hodiernamente, a cola é planejada e organizada com antecedência, inclusive
com previsão de um plano para sua implementação. Utilização de telefones
celulares, consultas a materiais não autorizados pelo professor, fotocópias
destes para consulta no momento da prova e anotações indevidas nos códigos são apenas alguns dos meios declaradamente utilizados pelo alunado
nos dias de hoje.
Declaradamente, enfatize-se, porque a presença do professor em
sala de aula se mostra incapaz de desencorajá-los.
Impende acentuar, ainda, que a concessão de benesses pelo docente, tais como a realização de avaliações com consulta à doutrina, à legislação ou em grupos de alunos, não se mostra suficiente para coibir as fraudes
em comento.
Infelizmente, mesmo alunos destaques das turmas, mesmo os dedicados às disciplinas e que, efetivamente, estudam para as avaliações periódicas,
se rendem à utilização destes meios fraudulentos. Insegurança? (Má) influência? Oportunismo? Por vezes, estas são algumas das justificativas envidadas.
O que está por trás disso, no entanto, é um desvirtuamento de valores morais.
Por fim, outra manifestação da crise ética pode ser percebida na profanação dos símbolos do direito. Este se mostra, culturalmente, marcado pelo
decoro, pela educação, pelo recato do trajar e pela serenidade. Não por outro
motivo, clientes esperam dos profissionais de direito procurados exatamente
os caracteres descritos supra. No entanto, comumente se vê nas salas de aula
“Publicação científica semestral (ISSN 1413 – 2605), sem fins lucrativos, realizada pelos acadêmicos do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN”. Informação
colhida do sítio eletrônico da Revista. Disponível em: www.inverbis.com.br. Acesso em 28 de
setembro de 2010.
6
Evento anual organizado pelo Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA) com o escopo de
“tornar acessível à comunidade universitária a produção científica existente no CCSA por meio
da divulgação dos trabalhos apresentados; estimular a comunidade acadêmica do CCSA para a
prática da pesquisa; contribuir para o desenvolvimento da pesquisa e da reflexão teórico-metodológica no campo das Ciências Sociais Aplicadas; abrir espaço para interlocução com outras
áreas do conhecimento”. Informações oriundas do sítio <http://ccsa.ufrn.br/seminario2010/>.
Acesso em 24 de outubro de 2010.
5
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144
Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
da UFRN comportamentos indecorosos e afastados da simbologia do direito.
Consoante se vê, a UFRN não vem logrando êxito na construção de
uma base minimamente ética de seu alunado.
4 QUEM E O QUÊ CONCORREM PARA A CRISE?
Não se mostra possível individualizar um único fator responsável
pela atual crise da ética do acadêmico de direito da UFRN. Enumeram-se,
abaixo, alguns dos vetores identificados como possíveis concorrentes para
este momento crítico.
4.1 A falta de maturidade do alunado
Não se pode exigir, do estudante recém chegado à faculdade,
maturidade suficiente para o despertar espontâneo de sua consciência para
a importância e a necessidade de imprimir a ética em sua vida. Muitos, nesta
fase inicial, ainda não se acham perfeitamente seguros da opção feita pelo
curso, visto que podem tê-la realizado em condições insuficientes de aferir,
tão jovens, o destino profissional a ser perseguido.
Assim, o direito que os circunda a todo instante na sala de aula ainda
pode não ter conseguido penetrá-los em seu âmago e apaixoná-los a ponto de
fazê-los compreender de pronto que seu dever social com a justiça envolve,
indubitavelmente, a passagem pela ética. Com este fator correlaciona-se, de
imediato, o seguinte.
4.2 A inabilidade de alguns professores
A brusca ruptura da vida escolar para o universo do ensino superior
requer um acompanhamento docente capaz de tornar esta transição menos
traumática e mais eficaz no que tange ao aprendizado. Destarte, não basta
qualidade de formação e conhecimento ao docente das disciplinas iniciais da
grade curricular do curso de direito. Mostra-se imprescindível que o mestre e
educador seja capaz de transmitir seu conhecimento de uma forma inteligível
para o nível da turma pela qual esteja responsável.
Outrossim, nesta etapa especialmente, o professor deve exercer, fundamentalmente, seu papel de educador, visto estar diante de um momento de
construção dos valores norteadores de toda a vida acadêmica e profissional da
classe discente. Análises críticas e provocações intelectuais são fundamentais,
Thaissa Lauar Leite
mas, por vezes, esquecidas.
Dessa forma, será insuficiente e ineficaz para a impressão dos valores
morais o simples despejo de conhecimentos sobre os alunos, com conseqüente
prejuízo para sua formação ética.
4.3 Pouco comprometimento de parte do corpo docente
O exercício do magistério requer compromisso. Este, por sua vez,
decorre da vocação. O professor não vocacionado certamente não terá prazer
e realização em seu labor, de forma que a responsabilidade com a educação
e o ensino dos seus alunos será sobremaneira penalizada.
Ainda se observam, nos quadros na UFRN, professores não vocacionados ao ensino na graduação e unicamente interessados no status social
e profissional trazido pelo exercício do magistério em uma universidade de
renome.
Logo, o conteúdo das disciplinas é dado de qualquer forma, as
avaliações são feitas seguindo a mesma sistemática e suas correções são,
igualmente, carentes de responsabilidade. A conseqüência disso será vista
no ponto subseqüente.
4.4 Ineficácia/inexistência de desestímulo às condutas antiéticas do aluno
O professor pouco compromissado com seu mister não se preocupa
com o resultado do ensino repassado ao aluno. A educação deste, então, deixa
de ser objetivo abraçado por este profissional.
Como exemplo, cite-se o mestre que não repreende o aluno em
meio a fraudes às suas avaliações, permitindo o desenvolvimento perpétuo
da prática de colas, bem como o docente que não coíbe o plágio nos trabalhos acadêmicos e deixa de incentivar o estabelecimento de um ambiente
respeitoso em sala de aula. O que falar, então, do docente que sequer lê o que
o aluno escreve nas atividades solicitadas?
Por vezes, esta coibição às condutas antiéticas do alunado inexiste.
No entanto, ainda quando o mestre se esforça para fazê-la, mostra-se possível
que não logre êxito.
Por êxito deve-se compreender a real coibição à prática em desacordo com a moralidade e a concomitante transmissão de mensagem educativa
ao discente. Dessa forma, se poderá prevenir futuras reincidências por meio
da compreensão da importância e necessidade de que o futuro profissional
145
146
Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
do direito se comporte dentro da moralidade.
Sobre o tema, Miguel Reale (1998, p. 44) aduz que:
Não é possível conceber-se o ato moral forçado, fruto da
força ou coação. Ninguém pode ser bom pela violência.
Só é possível praticar o bem, no sentido próprio, quando
ele nos atrai por aquilo que vale por si mesmo, e não
por interferência de terceiros, pela força que venha a
consagrar a utilidade ou conveniência de uma atitude.
Entrementes, acredita-se que a interferência do docente, enquanto
educador, se mostra fundamental para a lapidação do caráter do aluno. No
entanto, sua intervenção tem lugar no âmbito da educação, tornando-se
exemplo e incentivo para que o corpo discente, a partir dele, tenha atração
natural pela eticidade.
Ocorre que, hodiernamente, grande parte dos professores não se
compromete com sua função de educador. Abraçam – ou não – apenas o
papel de difusor de conhecimento, sem a preocupação com a forma que o
aluno irá digeri-lo: se o utilizará para o interesse público e desenvolvimento
social, se o interpretará na égide da moralidade, se, ao fim do curso, será ou
não um profissional ético.
O resultado, destarte, será o estímulo a condutas distantes dos
valores morais, permitindo a formação de bacharéis carentes de eticidade.
4.5 Desvalorização das disciplinas propedêuticas
O encontro do aluno com as primeiras disciplinas do curso escolhido
é sempre marcado por muita expectativa. De outra ponta, a conjunção das
disciplinas propedêuticas com o recém chegado estudante de direito se mostra
fundamental para o seu salutar crescimento ao longo da graduação. A partir
delas, o discente abrirá sua mente para a compreensão e a visão crítica acerca
das matérias dogmáticas que lhe serão, a posteriori, apresentadas.
No entanto, há algum tempo, esse encontro tem sido frustrante para
os acadêmicos. As disciplinas propedêuticas, tais como Sociologia Jurídica,
Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica, vinham sendo ministradas por
Thaissa Lauar Leite
professores substitutos7. Estes, independentemente de seu compromisso e
vocação, não costumam ter o domínio completo das disciplinas assumidas,
dado o caráter temporário de sua atuação.
Há, ainda, muitas vezes, designações de professores substitutos
para o ensino de disciplinas para as quais não prestaram concurso público,
comprometendo o seu aproveitamento.
Dessa forma, considerando-se a indefinível importância de uma
boa sedimentação destas cátedras para a construção de bases sólidas para o
desenvolvimento do estudante, crê-se que é imperiosa a disponibilização de
professores efetivos – compromissados e vocacionados – para o ministério
destas disciplinas. Estas, além de conhecimento, exigem do docente um desafio
de adequar o seu cabedal científico à capacidade de absorção e à compreensão
do alunado recém chegado na Universidade, ainda em processo de maturação.
Do contrário, serão sempre exaustivas e frustrantes para os discentes, que as vêem, comumente, como uma barreira a ser transposta para o
encontro desesperado e ansioso com os códigos, e não como um ponto de
partida necessário para tanto.
Por outro lado, as disciplinas propedêuticas ligadas a departamentos não jurídicos, tais como Sociologia e Antropologia Geral, Filosofia, Ciência
Política e Economia Política, ministradas por professores das próprias grades
curriculares do curso de que, originariamente, fazem parte, costumam ser
ministradas por professores desprestigiados em seus próprios departamentos, não tendo, muitas vezes, o tato necessário ao trato dos estudantes recém
chegados à UFRN.
Dessa forma, a base da formação ética, que deveria consolidar-se
nos primeiros semestre da graduação, resta efêmera.
4.6 Apologia ao Índice de Rendimento Acadêmico (IRA)
No âmbito do curso de Direito da UFRN, obter um Índice de Ren-
Impende observar alguns avanços nessa seara, com a assunção de disciplinas propedêuticas
por consagrados docentes efetivos do curso de direito. Atualmente, semestre letivo 2010.2, a
disciplina de Hermenêutica Jurídica e Teoria da Argumentação é ministrada pelo Prof. Me. Luciano Athayde Chaves, no turno da manhã; a disciplina de Filosofia do Direito, por sua vez, pelo Prof.
Me. Ronaldo Alencar dos Santos, no turno matutino e a disciplina de Introdução à Ciência do
Direito pelo Prof. Me. Morton Luiz Faria de Medeiros, à noite. No entanto, ainda há disparidades
entre o turno matutino e o noturno.
7
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Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
dimento Acadêmico de destaque tem sido o objetivo da pujante maioria do
alunado.
A Resolução nº 227/2009 do Conselho de Pesquisa e Extensão
(CONSEPE)8 contemplou novos índices numéricos para a avaliação do rendimento acadêmico acumulado do aluno (art. 112). A partir de então, a concessão
da Medalha de Mérito Estudantil, a popular láurea, passou a ser concedida não
apenas ao discente de maior Índice de Rendimento Acadêmico, consoante o
era na Resolução nº 235/95 do CONSEPE9, mas ao discente com o mais vultoso
IEAN (Índice de Eficiência Acadêmica Normalizado):
Art. 307. Ao aluno de cada curso que obtiver o maior
IEAN, dentre os aptos à colação de grau em um determinado período letivo regular, a UFRN entrega a medalha
de mérito estudantil
O IEAN é obtido pelo produto da MCN (Média de Conclusão Normalizada) pelo IECH (Índice de Eficiência em Carga Horária) e pelo IEPL (Índice
de Eficiência em Períodos Letivos), conforme anexo III do Regulamento dos
Cursos Regulares de Graduação da UFRN. Dessa forma, altera-se o método
de concessão de láurea unicamente a partir do IRA, mas não se retira o vício
do critério de seleção, dada a não contemplação das atividades de pesquisa
e extensão10.
Assim como a antiga Resolução nº 235/95 do CONSEPE, a nova
Resolução nº 227/2009 continua ferindo a norma da Constituição Federal de
1988 ínsita em seu art. 207: “As universidades gozam de autonomia didáticocientífica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão
ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” Logo, um
critério selecionador que não englobe um único destes pilares estará à margem
da constitucionalidade.
Disponível em <www.sigaa.ufrn.br/sigaa/downloads/regulamento_dos_cursos_de_graduacao.pdf.> Acesso em 28 de setembro de 2010.
9
Art. 1º - Fica estabelecido que a Medalha de Mérito Estudantil será concedida ao final de cada
período letivo, por curso, ao aluno que, de acordo com o respectivo histórico escolar, obtiver
o maior Índice de Rendimento Acadêmico (IRA), desde que não inferior a 8.500 (oito mil e quinhentos), entre os alunos concluintes.
10
Sobre o tema, consultar: LEITE, Marcelo Lauar. Moldes hodiernos da concessão de láurea: Um
golpe contra a Constituição. Um atraso para a UFRN. Revista Jurídica In Verbis, Natal, v. XI, n. 19,
jan/jun 2006. ISSN: 1413-2605.
8
Thaissa Lauar Leite
Nada obstante, renomadas instituições, tais como o Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região11 e o Ministério Público Federal12, realizam a
seleção de seus estagiários com base no Índice de Rendimento Acadêmico.
Esta o utiliza como critério selecionador dos candidatos aptos a realizarem
posterior prova avaliativa; e aquela, como selecionador único dos candidatos
à vaga de estágio.
Dessa forma, cria-se a ilusão de que um excelente aluno, por exemplo, apto a ingressar nos quadros de tais instituições como estagiário, capaz de
aprender o mister dos Juízes do Trabalho e Procuradores da República e, quem
sabe, galgar uma dessas carreiras a posteriori, será aquele aluno de maior IRA.
Ou seja: o aluno que mais se dedica – teoricamente – ao ensino.
No entanto, seguindo-se o intuito das instituições supramencionadas, e outras que igualmente adotem este critério seletivo, e crendo-se que
o IRA realmente seja o melhor parâmetro, ainda deveria se levar em consideração que este se mostra sobremaneira fraudável, mormente pela falta de
ética do alunado, pela resignação do corpo docente e pelos outros motivos
já citados alhures.
Desta feita, estimula-se o aluno, ainda mais, ao alcance dos mais
insignes Índices de Rendimento Acadêmico a qualquer custo, abrindo-se mão,
por vezes, da eticidade, com prejuízo não só para a formação do discente que
se propõe a fraudar os métodos de avaliação, como, também, para o que tem
mérito efetivo.
Por outro lado, renega-se totalmente o incentivo às atividades de
Consoante item V, subitem 4, do Edital de Seleção de Estagiários disponível no sítio eletrônico <www.trt21.jus.br/publ/concurso/pdfs/2010/EDITAL_SELECAO_ESTAGIARIOS%20-1_2010.
pdf>, acesso em 28 de setembro de 2010: “4 – Serão considerados aptos para a classificação todos os candidatos que atenderem aos requisitos de admissibilidade dos itens 1 e 2, efetivamente
inscritos no TRT da 21ª Região. A classificação obedecerá como critério a nota expressa na Declaração de Rendimento Acadêmico de que trata o item 1, II, informada pela instituição de ensino na
qual se encontra regularmente matriculado”.
12
Conforme Edital E-01/2009, subitem 2.2.1, disponível no sítio eletrônico www.prrn.mpf.gov.br/
concursos/estagiarios/2009/e01-2009-processo-seletivo-para-estagiarios-natal-area-de-direito/Concurso_Estagio_Natal_012009.pdf: Acesso em 28 de setembro de 2010: “2.1.1. Dos requerimentos recebidos serão selecionados até 35 (trinta e cinco) inscrições por IES – Instituição de
Ensino Superior – conveniada (FACULDADE CÂMARA CASCUDO, FACEX, FAL, FARN, UERN, UFRN
e UNP), sendo definida a lista de habilitados à prova por ordem de classificação das médias (ou
IRA’s) constantes no documento referido no item 1.1 “a” supra, a qual será divulgada, juntamente
com o local da aplicação da prova, no edifício-sede em Natal e/ou na home-page da PR/RN, no
dia 26 de novembro de 2009.”
11
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150
Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
pesquisa e extensão, ferindo o princípio da indissociabilidade elencado na
norma constitucional do art. 207 e, também, os valores morais ínsitos a estas
atividades, tais como a busca pelo bem-estar social, a solidariedade, a prestação
voluntária de serviços à sociedade e a produção de pesquisa13, em retribuição,
no mínimo, ao acesso a ensino superior público e gratuito.
4.7 Mau exemplo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Em meio à dificuldade de se encontrarem professores comprometidos com o saber, com a educação, vocacionados e dedicados à vida acadêmica,
a UFRN vai de encontro ao seu dever de diligenciar pelo aprendizado de seu
alunado realizando processos seletivos inadequados para a escolha dos profissionais mais aptos ao mister acadêmico.
Por vezes, estes certames não recebem publicidade efetiva, de forma
que resta obstaculizada a sua ampla divulgação e, também, o recrutamento
de concorrentes. Outrossim, mostra-se comum a realização dos mesmos em
tempo sobremaneira exíguo, o que compromete sua qualidade. 14
A forma de atuação em comento denota a adoção, pela UFRN, de um
modelo de seleção que não prestigia os princípios que norteiam a Administração Pública15. Revela, igualmente, falta de cuidado na seleção dos docentes
que irão educar o alunado e, pois, iniciá-los na vida profissional. Dessa forma, a
Universidade macula também alguns dos princípios elencados em seu próprio
Estatuto16, a ética e a publicidade dos atos e das informações (art. 3º, incisos I
No âmbito do curso de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, diversas iniciativas e projetos de extensão contemplam as possibilidade mencionadas, tais como Revista
Jurídica In Verbis, a Simulação de Organizações Internacionais (SOI), o Programa Lições de Cidadania, o Programa Ligas Jurídicas, a Simulação de Tribunais Constitucionais (STC) e a mais
recente, Justiça Itinerante.
14
E.g. Edital nº 020/2010, visando o preenchimento de vagas para docência das disciplinas de
assistência jurídica, dentre outras, vinculadas ao Departamento de Direito Privado, publicado no
Diário Oficial da União em 28.07.2010, com período de inscrição entre 28.07.2010 a 30.07.2010 e
seleção realizada entre 03 e 05.08.2010.
15
CF/88, art. 37, caput: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
16
Estatuto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Disponível em <http://www.sigrh.
ufrn.br/sigrh/public/colegiados/anexos/estatuto_ufrn_2009.pdf>. Acesso em 17 de out. de
2010.
13
Thaissa Lauar Leite
e XII) e, sem dúvida, dá um mau exemplo para o corpo discente.
Mostra-se indubitável que certames realizados sem publicidade
efetiva e em tempo diminuto não se mostram plenamente capazes de angariar
concorrentes e, tampouco, entre os candidatos acudidos, parece possível
haver uma seleção de qualidade, hábil a aferir a aptidão do futuro docente
ao mister da vida acadêmica. Do encontro de estudantes em formação com
docentes despreparados para educá-los certamente resultará formação ética
deficiente do educando.
5 QUAIS SÃO AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE?
Certamente, as conseqüências mais relevantes da crise ética
hodierna pela qual passa o acadêmico de direito da UFRN são as atinentes
à sua futura vida profissional. O estudante que, ao longo da graduação, não
incorporou à sua formação moral familiar as virtudes ínsitas e indispensáveis
ao exercício profissional, sofrerá dificuldades para construir uma carreira plenamente exitosa como um operador do direito adequado aos interesses da
sociedade brasileira.
A fim de ilustrar a apresentação das possíveis conseqüências da
crise ética em comento, confira-se os julgados oriundos do Tribunal de Ética
da Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Rio Grande do Norte, em que
se vislumbra a punição de membros da advocacia potiguar por condutas à
margem da ética:
Falsidade ideológica comprovada. Advogado que insere
declaração de endereço falso, diverso do endereço
verdadeiro. Infração do art. 34, xiv, da lei nº 8.906/94.
Representação procedente. Pena de censura convertida
em advertência, em oficio reservado, sem registro.17
(Sem destaques no original).
Processo disciplinar. Locupletamento. Participação em
procedimento judicial contencioso para realização de
ato contrário à ordem jurídica - vedação ética - infração
Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Rio Grande do Norte. Processo
disciplinar nº 803/05. Juiz Relator: Jansen Leiros Ferreira. Julgado em 30/10/2006.
17
151
152
Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
caracterizada. I - Os atos descritos nos autos e confirmados pelo representado são inconcebíveis na relação
cliente/advogado, contribuindo, outrossim, a fraudes
e ao desprestígio da classe. II - Age em desrespeito aos
regramentos éticos e disciplinares advogado que recebe
valores e não presta os serviços contratados. Violação
ao artigo 34, XX, do Estatuto. III - Havendo o advogado
concorrido para a prática de atos contra a lei, com o
objetivo de, causando prejuízos a terceiros, favorecer
a parte adversa, amoldando sua conduta à trilha repudiada pelo art. 34 , inciso XVII do EAOAB, configura-se
infração ética. Sanção do artigo 37, I, § 1º, da referida
norma. Aplicação da pena de suspensão.18 (Destaques
acrescidos).
Inequívoca a constatação de ocorrência de agressão
física e puxamento de arma de fogo contra colega de
profissão nas dependências do fórum. Tese de legitima
defesa inacolhida. Não houve moderação do representado na utilização dos meios para repelir agressão verbal
sofrida. Enquadramento como infração disciplinar face a
conduta incompatível com a advocacia.19 (Destacou-se).
Em seqüência, confira-se julgado do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) onde se vê a repressão de conduta antiética de um magistrado:
Conclui-se, então, que o Juiz, como todo agente público,
está sujeito aos preceitos éticos, inserindo-se aí a vedação
de uso de linguagem excessiva em seu discurso judiciário,
a merecer a devida reprimenda na medida em que se
demonstre a existência do intuito de ofensa à honra de
terceiros, restando evidente a necessidade do elemento
dolo por parte do magistrado quando da exteriorização
de sua opinião sob a forma de crítica judiciária20. (De-
Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Br, secção do Rio Grande do Norte. Processo n.º
446/2000. Relator: Artur Mauricio Maux De Figueiredo. Julgado em 09.09.2003..
19
Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Rio Grande do Norte. Processo
n.º 001/96 – 2ª T. Relator: Juiz Ulpiano Moura Soares de Souza. Julgado em 11.09.98.
20
Conselho Nacional de Justiça. RD 5047 – Rel. Min. Corregedor Nacional Cesar Asfor Rocha. DJ
18
Thaissa Lauar Leite
staques acrescidos).
Destaque para trechos do julgado abaixo, também do CNJ, de lavra
do Conselheiro potiguar Walter Nunes da Silva Junior, onde se vê a punição,
por conduta à margem da moralidade, de um Corregedor-Geral de Justiça, cuja
atribuição se pauta, contraditoriamente, na fiscalização, disciplina e controle
dos serviços forenses:
Processo Administrativo [...] Modificação de decisão
judicial de outro Estado. Afronta a decisão do STJ. Favorecimento de uma das partes. Recebimento de propina.
Desídia no cargo de Corregedor Geral de Justiça. Arts. 35,
I, II, VII c/c os arts. 42, V, e 56, caput da LOMAN. Aposentadoria compulsória. Procedência. [....] 8) O direcionamento
de processos, seja como Corregedor Geral de Justiça, com
quebra do princípio do juiz natural, seja por meio de decisões ou ações teratológicas e arbitrárias, praticadas na
qualidade de julgador, revela comportamento funcional
que viola o Estatuto da Magistratura, mormente quando
demonstrado o claro desiderato de beneficiar uma das
partes, até porque evidencia a falta de comprometimento
com dever elementar imprescindível para o exercício da
judicatura, que é a imparcialidade nos julgamentos. 9) Levar a julgamento, aproveitando-se do exercício precário
da presidência do Tribunal, embargos de declaração
em embargos de declaração com efeitos infringentes,
quando não era o relator natural, sem o correto pregão
do feito, com isso induzindo a erro os demais pares, para,
assim, com o provimento da pretensão recursal, atender
interesse de uma das partes, caracteriza grave violação
dos deveres da magistratura. [...] 13) Utilizar manobra
para, com ausência de fundamentação, determinar a
nulidade do processo sem apreciar, assim como havia
determinado o Superior Tribunal de Justiça em julgamento
de recurso especial, a preliminar de litispendência, revela
que, no escopo de atender os interesses de uma das partes valia tudo, até mesmo desrespeitar acórdão de Corte
Superior, [...]15) O depoimento de testemunha revelando
07.12.2007.
153
154
Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
que pagou propina para obter decisão favorável aos seus
interesses, contestada pelo assessor e o desembargador
acusado, protagoniza o fenômeno da colisão de provas,
devendo o exegeta dos fatos, na valoração dos elementos
probatórios, ter em consideração que, na hipótese, conquanto a pessoa tenha efetuado o pagamento e recebido
o pronunciamento judicial em prol de seu interesse, logo
após, por meio de outro recurso, foi dado ganho de causa à
parte adversária, circunstância que motivou a sua revolta e
o desejo de revelar os fatos, ainda que esse comportamento
importasse em confissão quanto à prática de crime, circunstâncias que, aliadas aos detalhes de onde, como, quando
e quanto foi pago confere credibilidade ao testemunho.
[...]17) Procedência das imputações, diante da prática
de condutas que violaram os deveres da magistratura
estampados nos art. 35, I, II, VII, c/c o art. 56, I, II e III, segunda parte, com a aplicação da pena de aposentadoria,
com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço,
prevista nos arts. 42, V, e 56, caput, todos da Lei Orgânica
da Magistratura Nacional – LOMAN. 18) Remessa de cópias dos autos ao Ministério Público para providências
necessárias à promoção de responsabilidade por atos
de improbidade administrativa, bem como à Ordem dos
Advogados do Brasil para apuração da conduta éticoprofissional de advogados envolvidos nos fatos.21 (Sem
destaques no original).
O Superior Tribunal de Justiça, no julgado abaixo, também enfrentou
a problemática da falta de eticidade de profissional do direito, veja-se:
RECURSO ESPECIAL. ADVOGADO. VÍNCULO EMPREGATÍCIO COM A PARTE. OFENSAS IRROGADAS EM JUÍZO.
RESPONSABILIDADE DO CAUSÍDICO. INDEPENDÊNCIA
TÉCNICA E ÉTICA. MULTA. ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO,
DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AFASTAMENTO. 1. O
advogado, ainda que submetido à relação de emprego,
deve agir de conformidade com a sua consciência
Conselho Nacional de Justiça. PAD 200910000032369. Rel. Cons. Walter Nunes. DJ 21/12/2009
p. 24.
21
Thaissa Lauar Leite
profissional e dentro dos parâmetros técnicos e éticos
que a regem. 2. Em decorrência, sua atuação em juízo,
mesmo mantendo vínculo empregatício com a parte,
será sempre relação de patrocínio, sem submissão ao
poder diretivo do empregador, que não se responsabiliza por supostas ofensas irrogadas em juízo. 3. Não
se revestindo os embargos de declaração de Caráter
protelatório, há de ser afastada a multa prevista no art.
538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. 4.
Recurso especial conhecido e provido.22
A Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon, recentemente respondeu em entrevista23 qual o motivo, em sua visão, da grande
quantidade de denúncias sobre a corrupção na magistratura hodiernamente.
Confira-se:
Durante anos, ninguém tomou conta dos juízes,
pouco se fiscalizou, corrupção começa embaixo. Não
é incomum um desembargador corrupto usar o juiz de
primeira instância como escudo para suas ações. Ele
telefona para o juiz e lhe pede uma liminar, um habeas
corpus ou uma sentença. Os juízes que se sujeitam a
isso são candidatos naturais a futuras promoções. Os
que se negam a fazer esse tipo de coisa, os corretos,
ficam onde estão.
Destarte, vê-se que a inexistência de solidez na base ética do
acadêmico de direito refletirá em sua vida profissional independentemente
da carreira escolhida. As atitudes tomadas enquanto advogado, defensor
público, membro do ministério público, delegado de polícia ou magistrado,
por exemplo, devem ter como respaldo os valores morais cultivados por cada
profissional.
O sucesso profissional, o respeito perante a classe a que pertence
Superior Tribunal de Justiça. REsp 1048970 / MA. 4ª . Relator Ministro Fernando Gonçalves. DJ
26/08/2010.
23
Notícia extraída do sítio eletrônico da Associação dos Oficiais de Justiça do Estado do
Rio Grande do Norte. Disponível em < http://www.aojern.com.br/novo/noticias_mostrar.
asp?sCodigo=829>. Acesso em 23 de out. 2010.
22
155
156
Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN
e o reconhecimento público de um trabalho de êxito só serão possíveis se
respaldados por um conjunto de condutas éticas do profissional de direito.
Do contrário, este será paulatinamente ejetado do mercado de trabalho e da
comunidade jurídica. Este complexo ético, por sua vez, deve começar a ser
erguido ainda na graduação.
De outra ponta, a crise apontada gera conseqüências no próprio
curso de direito da UFRN haja vista que este ganha a forma que seu corpo
discente, docente e técnico-administrativo moldar, refletindo suas escolhas.
Por fim, as práticas abusivas, corruptas e desonestas que podem
levar a efeito profissionais do direito aéticos, tais quais as vistas nos julgados supra, contribuem sobremaneira para o descrédito hodierno no Poder
Judiciário pela população, visto que são aqueles que ocuparão algumas das
funções mais importantes na sociedade brasileira.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consoante o exposto, a construção da base ética indispensável à
vida profissional que deveria ser erguida na academia não vem logrando êxito
no âmbito do curso de direito da UFRN. Como conseqüência, a graduação
em direito torna-se empobrecida de valores éticos, refletindo as condutas de
grande parte do alunado, e este, por sua vez, chega ao mercado de trabalho
despreparado e sem perspectivas de melhoria por não ter concluído a maturação moral na Universidade, último estágio da vida escolar.
Mostra-se imprescindível, destarte, que se supere a crise entabulada. Para tanto, faz-se mister que se unam a UFRN, o corpo docente e o corpo
discente, cada qual abraçando sua quota de responsabilidade, com o escopo
maior de formar bacharéis em direito com formação ética de referência para
todas as demais Instituições de Ensino Superior.
Dessa forma, os acadêmicos e futuros bacharéis sentir-se-ão e estarão aptos a lutar pela justiça da forma como se deve persegui-la: pautados
na ética.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Emerson de Barros. Ética: instrumento de paz e justiça. 2. ed. Natal:
Tessitura, 2003.
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2004.
Thaissa Lauar Leite
NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das letras: Secretaria
Municipal de Cultura, 1992.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1998.
SÁ, Antônio Lopes de. Ética profissional. São Paulo: Atlas, 2009.
ETHICS OF LAW ACADEMIC: CRISES IN UFRN
ABSTRACT
The present study has as an intention the reflection
about the ethical crisis that is happening with the
law student of Federal University of Rio Grande do
Norte (UFRN), to find the factors that contributes
for this event, and therefore offer opportunities
to overcome it. Then, it is intended to awake the
students to the moral and ethical values forgotten
when happened the study of propedeutics disciplines from the curriculum of the course and make
them become aware of its student role. Besides,
it is intended to prompt the UFRN to assume its
portion of responsibility and carry out his task of
not only to produce hundreds of law graduates
per year, but also educate them for professional
life. In order to do such a research, the introduction to the study law and general and legal ethics
doctrines were used, as well as the most recent
judicial decisions about the theme
Keywords: Ethics. Law academic. Federal University of Rio Grande do Norte.
157
NULIDADE DAS NEGOCIAÇÕES
COLETIVAS ACERCA
DA “FLEXIBILIZAÇÃO” DAS
NORMAS RELATIVAS ÀS
HORAS IN ITINERE
Louise Caroline Pinheiro de Souza
Acadêmica do 9º período do
Curso de Direito da UFRN.
RESUMO
O instituto das horas in itinere teve origem na jurisprudência dos tribunais trabalhistas, transformando-se, mais adiante, em norma positivada de caráter
imperativo. Não obstante o seu status de norma de
ordem pública, a jurisprudência das cortes trabalhistas tem admitido a “flexibilização” deste direito pela
via da negociação coletiva, independentemente de
se verificar qualquer benefício compensatório para
os trabalhadores atingidos pela norma autônoma, o
que representa flagrante retrocesso social, além de
vulnerar as finalidades institucionais dos sindicatos
na qualidade de representantes da classe obreira.
O presente trabalho busca elucidar as razões que
ensejam a nulidade das cláusulas de instrumentos
coletivos de trabalho que dispõem sobre a “flexibilização” do direito às horas de percurso. Ao final,
infere-se a necessidade de uniformização dos julgados relativos a este tema, em razão dos imperativos
de proteção do trabalhador, que impõem o respeito
aos direitos e garantias mínimos assegurados pela
Constituição e pela lei, inclusive no âmbito coletivo,
realçando a participação do Ministério Público do
Trabalho na busca deste escopo.
Palavras-chave: Jornada laboral. Horas in itinere.
Flexibilização. Nulidade.
160
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
1 INTRODUÇÃO
O direito às horas in itinere consiste na contabilização na jornada
diária de trabalho do tempo despendido pelo trabalhador no percurso entre a
sua residência e o local da prestação dos serviços, e na volta deste para aquele,
em transporte fornecido pelo empregador, quando se tratar de local de difícil
acesso ou não servido por transporte público.
Este tema surgiu da construção jurisprudencial dos tribunais pátrios,
a partir da interpretação extensiva do art. 4º da CLT, e dos imperativos de saúde
e segurança do trabalho, considerando-se que as horas in itinere constituem
espécie de hora extra. A partir deste entendimento, surgiram as Súmulas 90,
320, 324 e 325, e Orientações Jurisprudenciais 50 e 236 do TST, consolidadas,
mais tarde, no enunciado da Súmula 90. Ainda, a Lei 10.243/2001, seguindo
a tendência das cortes trabalhistas, acrescentou o § 2º ao art. 58 da CLT, positivando, então, o instituto.
Ocorre que, embora se trate de matéria relativa à proteção do trabalhador, já incorporada ao ordenamento jurídico, gozando, portanto, do caráter
imperativo próprio desta espécie de norma, os tribunais trabalhistas têm admitido a sua “flexibilização” via negociação coletiva, desprovida, no entanto,
de qualquer contrapartida em benefício da classe trabalhadora atingida pela
avença sindical, configurando, portanto, verdadeira renúncia prévia, mesmo
que parcial, de direitos assegurados por normas cogentes.
Diante deste quadro, proceder-se-á ao estudo da impossibilidade de
“flexibilização” do instituto das horas in itinere através da negociação coletiva
de trabalho, salvo a hipótese expressamente consignada no art. 58, § 3º, da CLT,
e da conseqüente nulidade das normas coletivas editadas com este teor, sob
a ótica dos princípios trabalhistas aplicáveis ao tema, e da análise do alcance
dos institutos da renúncia e transação na seara trabalhista, considerando,
ainda, a atual conjuntura jurídico-normativa sobre o tema da jornada laboral.
2 ORIGEM DO TEMA DAS HORAS IN ITINERE
A existência do tema das horas in itinere no ordenamento jurídico
positivo é recente, tendo advindo da interpretação extensiva conferida pela
Louise Caroline Pinheiro de Souza
jurisprudência trabalhista ao art. 4º da CLT1 (DELGADO, 2008, p. 842). Buscando garantir a observância dos preceitos constitucionais e consolidados
de proteção ao trabalhador, em especial os atinentes à saúde e segurança do
trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Súmula 902, albergando na
hipótese do art. 4º consolidado os trabalhadores que dependam de transporte
fornecido pelo empregador para o local de trabalho de difícil acesso ou não
servido por transporte público. Mais adiante, foram editados os enunciados
320, 324 e 325, e as Orientações Jurisprudenciais 50 e 236 do TST, tendo os
quatro últimos sido cancelados em razão de sua incorporação ao texto da
Súmula 90, hoje com a seguinte redação3:
SUMÚLA nª 90 – HORAS IN ITINERE. TEMPO DE
SERVIÇO (incorporadas as Súmulas nºs 324 e 325 e as
Orientações Jurisprudenciais nºs 50 e 236 da SBDI-1) –
Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - O tempo despendido pelo empregado, em condução
fornecida pelo emprega-dor, até o local de trabalho de
difícil acesso, ou não servido por transporte público
regular, e para o seu retorno é computável na jornada
de trabalho. (ex-Súmula nº 90 - RA 80/1978, DJ
10.11.1978)
II - A incompatibilidade entre os horários de início e
término da jornada do empregado e os do transporte
público regular é circunstância que também gera
o direito às horas in itinere. (ex-OJ nº 50 da SBDI-1 inserida em 01.02.1995)
III - A mera insuficiência de transporte público não
enseja o pagamento de horas in itinere. (ex-Súmula nº
324 – Res. 16/1993, DJ 21.12.1993)
IV - Se houver transporte público regular em parte
do trajeto percorrido em condução da empresa, as
CLT. Art. 4º. Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à
disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada.
2
Resolução Administrativa nº 69/1978 do TST, com redação alterada pela Resolução Administrativa nº 80/1978. Disponível em <http://www.tst.jus.br/iframe.php?url=/DGCJ/IndiceResolucoes/
tifs/I1978.htm> Acesso em: 26/10/2010.
3
Resolução nº 129 do TST, de 05/04/2005 (DJU de 20-4-2005). Disponível em: < http://www.tst.
gov.br/DGCJ/IndiceResolucoes/Resolucoes/129.htm> Acesso em: 26/10/2010.
1
161
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
162
horas in itinere remuneradas limitam-se ao trecho não
alcançado pelo transporte público. (ex-Súmula nº 325
– Res. 17/1993, DJ 21.12.1993)
V - Considerando que as horas in itinere são computáveis
na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a jornada
legal é considerado como extraordinário e sobre ele
deve incidir o adicional respectivo. (ex-OJ nº 236 da
SBDI-1 - inserida em 20.06.2001)
Após longo período de maturação jurisprudencial, a matéria foi,
finalmente, incorporada ao texto consolidado através da Lei nº 10.243/01, que
incluiu o § 2º no art. 58 da CLT, in verbis:
CLT
Art. 58. [...]
§ 2º. O tempo despendido pelo empregado até o local
de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de
transporte, não será computado na jornada de trabalho,
salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou
não servido por transporte público, o empregador
fornecer a condução.
Assim, as horas in itinere configuram exceção à regra do tempo de
deslocamento do empregado, para efeitos no âmbito do direito material do
trabalho4, sendo dois os requisitos necessários à configuração desta hipótese:
a) que o transporte no percurso residência-trabalho-residência seja fornecido
pelo empregador; b) que o local de trabalho seja de difícil acesso ou não servido por transporte público5.
Sobre o primeiro requisito, cumpre destacar, conforme ensinamento de Delgado (2008, p. 842), que o fato de o transporte ser fornecido
por empresa contratada pelo empregador, ou de ser ofertado pelo tomador
de serviços, nos casos de terceirização, não elidem o direito ao cômputo das
Delgado (2009, p. 841) ensina que a regra, no Direito Trabalhista, é a não contabilização do tempo de deslocamento na duração do trabalho, enquanto que, para o Direito Previdenciário, este
período é considerado para fins de caracterização de acidente do trabalho, independentemente
do meio de locomoção utilizado, ou de quem o fornece, albergando, inclusive, o transporte em
veículo de propriedade do segurado, nos termos do art. 21, IV, “d”, da Lei nº 8.213/1991.
5
A expressão “regular” existe apenas na redação da Súmula 90 do TST, mas não no art. 58, § 2,
da CLT.
4
Louise Caroline Pinheiro de Souza
horas de deslocamento, uma vez que, mesmo indiretamente, o transporte está
sendo fornecido pelo empregador. Além disso, nos termos da Súmula 3206, é
irrelevante o fato de o empregador cobrar pelo transporte fornecido, sendo
suficiente, apenas, a observância dos requisitos estampados no art. 58, § 2º,
da CLT, e na Súmula 90, I, do TST.
Acerca do segundo requisito, é importante enfatizar que a configuração das hipóteses “local de difícil acesso” e “local não servido por transporte
público” é alternativa, ou seja, basta que apenas uma dessas condições se
verifique, cumulativamente com o requisito do fornecimento de transporte
oferecido pelo empregador, para que a situação seja enquadrada no disposto
no art. 4º da CLT.
Ainda, a hipótese de inexistência de transporte público foi devidamente contemplada pela Súmula 90 do TST, que cuidou de pôr fim à polêmica
acerca do seu alcance, tendo os itens II e III fixado que “a incompatibilidade
entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas in
itinere”, e que “a mera insuficiência de transporte público não enseja o pagamento de horas in itinere”.
Sem embargo da sua natureza de direito indisponível mesmo antes
de sua inclusão no ordenamento jurídico positivo, uma vez concernente à
matéria da duração do trabalho, estando, portanto, diretamente relacionado
à saúde e segurança do trabalhador, a partir da edição do § 2º do art. 58 da
CLT, o tema das horas in itinere deixou de ser mero enunciado jurisprudencial,
merecendo elevação ao patamar de norma de ordem pública, insuscetível de
derrogação pela vontade das partes.
3 PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À ESPÉCIE
O princípio da proteção do trabalhador, resultante do conjunto de
normas que informam o direito positivo laboral, sempre constituiu o fundamento máximo, a razão de ser do Direito do Trabalho (DELGADO, 2008, p. 198).
TST – Súmula 320: Horas in itinere. Obrigatoriedade de cômputo na jornada de trabalho. O fato
de o empregador cobrar, parcialmente ou não, importância pelo transporte fornecido, para local
de difícil acesso, ou não servido por transporte regular, não afasta o direito à percepção das
horas in itinere.
6
163
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
164
O surgimento deste instituto justrabalhista está intimamente relacionado à
verificação da desigualdade econômica entre os sujeitos da relação de emprego, nascendo daí a necessidade de adoção de mecanismos aptos a garantir
o alcance da igualdade substancial entre estes, por meio do tratamento jurídico
desigual entre empregado e empregador.
C. Meireles e E. Meireles (2009, p.76) acrescentam que, no Estado
Social de Direito, o princípio da proteção não tem como fundamento apenas
essa característica objetiva, baseada no aspecto patrimonial dos sujeitos da
relação trabalhista, e realçam, pois, o seu dado subjetivo, calcado na dignidade
do trabalhador, conferindo ao Direito do Trabalho uma nuance humanista,
conforme é possível extrair dos dispositivos constitucionais que tratam dos
direitos sociais desta classe7.
Nas palavras de Delgado (2008, p. 198), o princípio protetivo consiste
em “uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia –
o obreiro –, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio
inerente ao plano fático do contrato de trabalho”. Com este mesmo espírito,
Radbruch (apud PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 85/86), ensina que “a idéia central
em que o direito social se inspira não é a da igualdade entre as pessoas, mas a
do nivelamento das desigualdades que entre elas existem. A igualdade deixa
assim de constituir ponto de partida do direito para converter-se em meta ou
aspiração da ordem jurídica”.
Em resumo, a aplicação do princípio da proteção à parte economicamente hipossuficiente na relação de emprego está intimamente relacionada à
ratio legis, ou seja, ao objetivo que o legislador almejou quando da edição das
leis trabalhistas. Logo, tendo o legislador estabelecido um sistema de proteção
do trabalhador, por meio de normas juridicamente favoráveis a este, o intérprete e aplicador do direito deve se conduzir no mesmo sentido, objetivando
o alcance do escopo inicialmente vislumbrado (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 86).
É certo que o princípio em comento não é absoluto, embora as hipóteses de sua mitigação estejam expressa e taxativamente consignadas na lei,
como é o caso do jus variandi, que significa a possibilidade de o empregador,
em razão do seu poder diretivo, realizar pequenas alterações contratuais que
não impliquem em lesão ao empregado; a hipótese do art. 468 da CLT, que
autoriza mudanças bilaterais do pacto laboral, desde que estas não provoquem
o prejuízo, direto ou indireto, do trabalhador; e a negociação coletiva, nos casos
7
Vide os arts. 1º, III e IV, 6º, 7º e 170 da CF.
Louise Caroline Pinheiro de Souza
expressamente autorizados pela lei.
Decorrência lógica do princípio da proteção, o princípio da norma
mais favorável consiste, resumidamente, na aplicação do preceito legal mais
proveitoso ao trabalhador, independentemente de sua hierarquia, contrariando, pois, a idéia de hermetismo da ordem jurídica, que informa outros ramos
jurídicos (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 123). No Direito do Trabalho, ao contrário,
sempre que existirem duas ou mais normas que alberguem polêmica quanto
à preferência na aplicação, deverá optar-se pela que revele maiores benefícios
ao trabalhador (BARROS, 2009, p. 181).
Por sua vez, o princípio da imperatividade das normas trabalhistas
traduz-se no entendimento de que estas são inderrogáveis pela vontade das
partes. Assim, diferentemente do que ocorre no direito comum, sobreleva a
restrição da autonomia da vontade no Direito Trabalhista, consistindo esta
regra em “instrumento assecuratório eficaz de garantias fundamentais ao
trabalhador, em face do desequilíbrio de poderes inerente ao contrato de
emprego” (DELGADO, 2008, p. 201).
Como projeção do princípio anterior, o princípio da indisponibilidade diz respeito à impossibilidade de o trabalhador renunciar, ou mesmo
transacionar – de forma que lhe implique prejuízo –, aos direitos e garantias
que lhe são assegurados pelo ordenamento jurídico. Assim como no caso
do princípio da proteção, Delgado (2008, p. 201) sustenta que este princípio
“constitui-se talvez no veículo principal utilizado pelo Direito do Trabalho
para tentar igualizar, no plano jurídico, a assincronia clássica existente entre
os sujeitos da relação socioeconômica de emprego”.
De índole constitucional, o princípio do não-retrocesso social, nas
palavras de Canotilho, (apud MEIRELES, A. C. C.; MEIRELES, E., 2009, p. 19),
consiste na garantia constitucional da manutenção do núcleo essencial de
direitos já efetivados pela lei, merecendo a declaração de inconstitucionalidade
quaisquer atos que, destituídos de medidas compensatórias, impliquem em
revogação, pura e simples, deste mínimo essencial. Por sua vez, Sarlet (apud
MEIRELES, A. C. C.; MEIRELES, E., 2009, p. 21) ensina que alcançado certo grau
de concreção dos direitos fundamentais sociais em nível infraconstitucional,
estes passam a gozar do status de direito adquirido, aplicando-se, por sua vez,
o princípio da proteção da confiança, sendo inconstitucional qualquer medida
que ameace esse padrão.
Este princípio foi contemplado pela Constituição Federal em seu
art. 7º, caput, que indica a exemplificatividade do rol de direitos trabalhistas
ali elencados, possibilitando a instituição de “outros que visem à melhoria
165
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
166
de sua condição social”, e no art. 114, § 2º, que determina que as decisões
dos tribunais devem respeitar “as disposições mínimas legais de proteção ao
trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.
Por fim, não seria possível deixar de mencionar os princípios
aplicáveis à negociação coletiva de trabalho. São dois: o princípio da criatividade jurídica e o da adequação setorial negociada. O primeiro consiste,
em suma, no “poder legislativo conferido aos sindicatos para dispor sobre
condições de trabalho” (MEIRELES, A. C. C.; MEIRELES, E., 2009, p. 102), criando
verdadeiras normas jurídicas em harmonia com o as normas estatais (DELGADO, 2008, p. 1319). Previsto no art. 7º, inciso XXVI, da CF, subordina-se, pois,
ao princípio do não-retrocesso social (art. 7º, caput, da CF).
Por seu turno, o princípio da adequação setorial negociada cuida das
hipóteses e limitações da possibilidade de negociação coletiva, buscando a
harmonização entre as normas estatais e as coletivas. Nas palavras de Delgado
(2008, p. 1321), “reside, em síntese, na pesquisa e aferição sobre os critérios de
validade jurídica e extensão de eficácia das normas oriundas de convenção,
acordo ou contrato coletivo do trabalho em face da legislação estatal imperativa, que tanto demarca o ramo justrabalhista individual especializado”. Ainda,
conforme os ensinamentos do mesmo autor, os critérios permissivos da negociação são o da implementação de um padrão setorial de direitos superior ao
padrão geral decorrente da legislação heterônoma, e o da transação setorial de
parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa8 (2008, p. 1322).
Indubitavelmente, além dos princípios específicos, os demais
princípios enunciados acima são aplicáveis às negociações coletivas. Isto
porque não é permitido aos sindicatos, na representação da respectiva
categoria profissional, renunciar ou transacionar – neste último caso, fora
das hipóteses expressamente autorizadas pela lei, ou sem auferir benefícios
compensatórios – acerca de direitos trabalhistas previstos em normas de
aplicação cogente, sob pena de desvirtuar a sua função negocial (DELGADO,
2008, p. 1341), pautada pela incessante busca de melhoria das condições de
Delgado (2008, p. 217-218) esclarece que a indisponibilidade absoluta verifica-se “quando o
direito enfocado merecer uma tutela de nível de interesse público, por traduzir um patamar
civilizatório mínimo [...]. É o que ocorre [...] com o direito à assinatura de CTPS, ao salário mínimo, à incidência das normas de proteção à saúde e segurança do trabalhador”. Por sua vez,
a indisponibilidade relativa ocorre “quando o direito enfocado traduzir interesse individual ou
bilateral simples [...]”, podendo ser objeto de transação, como se dá, por exemplo, com a fixação
da modalidade de salário – fixo ou variável (DELGADO, 2008, p. 218).
8
Louise Caroline Pinheiro de Souza
trabalho (art. 7º, caput, CF), e de configurar, inclusive, atitude anti-sindical
(DELGADO, 2008, p. 1308).
4 RENÚNCIA E TRANSAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
A renúncia e a transação, na seara laboral, estão intimamente relacionadas ao princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas. A primeira
consiste em ato unilateral do empregado de despojamento dos direitos que
lhes são assegurados pelo ordenamento jurídico, sem o auferimento de
nenhum benefício em contrapartida, enquanto a segunda pressupõe bilateralidade, ou até a plurilateralidade, devendo haver vantagens e desvantagens
mútuas (DELGADO, 2008, p. 216; NASCIMENTO, 2005, p. 349).
Em regra, no Direito do Trabalho, a renúncia é sumariamente repelida,
sobretudo em razão da imperatividade das suas normas e do princípio da
indisponibilidade (DELGADO, 2008, p. 219)9. Quanto à transação, ela encontra
limitações expressas nos textos constitucional e consolidado. Aliás, a Constituição Federal, no caput do seu art. 7º, enuncia a principal regra limitadora da
negociação, individual ou coletiva, acerca dos direitos trabalhistas, estabelecendo que esta apenas pode se realizar quando vise à melhoria da condição
social dos trabalhadores.
As situações que autorizam a flexibilização das normas trabalhistas
constam dos incisos VI, XIII e XIV do art. 7º da Constituição Federal, que dispõem, respectivamente, sobre a irredutibilidade salarial, a jornada normal de
trabalho e a duração do trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento. Estas hipóteses são taxativas, não comportando interpretação extensiva, considerado o caráter imperativo e indisponível das normas garantidoras
de proteção mínima aos trabalhadores (BARROS, 2009, p. 205; BELTRAMELLI
NETO, 2008, p. 79 e 83). Nas palavras de França (1994, p. 42), “excluídas estas
exceções, a normatividade emergente de instrumento convencional deve
ser direcionada necessariamente no sentido de melhorar e ampliar o sistema
Não obstante a sua raridade, Delgado (2008, p. 219/220) exemplifica algumas possibilidades de
renúncia, indicando a hipótese de renúncia à estabilidade celetista vigente antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, e a renúncia tácita à garantia de emprego pelo dirigente
sindical transferido para fora da respectiva base territorial, nos termos do art. 543, caput e § 1º
da CLT.
9
167
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
168
de proteção aos direitos dos empregados e jamais reduzí-los ou eliminá-los”.
Na Consolidação das Leis do Trabalho, os arts. 9º, 444 e 468 tratam de impor
limites à liberdade dos contratantes na relação jurídica de trabalho, independentemente do caráter individual ou coletivo do ajuste, sendo aplicáveis tanto
às hipóteses de renúncia, como às de transação. Logo, qualquer estipulação
com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos
contidos na CLT, que contravenha o disposto neste diploma, as convenções
aplicáveis, ou as decisões das autoridades competentes, ou que implique lesão
direta ou indireta ao trabalhador, será nula de pleno direito.
Merece especial destaque o art. 468 da CLT, que trata da alteração
do contrato de trabalho, dispondo que “nos contratos individuais de trabalho
só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e
ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia”. Ora, se
no âmbito individual as alterações contratuais suportam todas estas limitações,
na esfera coletiva este preceito ganha especial relevância, considerando-se que
ao sindicato não foi conferido o poder de renunciar aos direitos individuais
dos seus representados, ou mesmo de transacionar sem lhes proporcionar, em
contrapartida, melhoria das condições de trabalho da respectiva categoria,
sendo que esta consiste em sua prerrogativa sindical basilar10.
5 NULIDADE DA “FLEXIBILIZAÇÃO” DAS HORAS IN ITINERE VIA NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO
Segundo o art. 4º da CLT, não se considera como tempo de serviço
efetivo apenas o período em que o empregado esteja trabalhando, mas também o tempo que ele se encontra à disposição do empregador, aguardando ou
executando ordens, seja no ambiente da prestação do trabalho, seja fora dele,
albergando, pois, a hipótese das horas in itinere, conforme o entendimento
consubstanciado na Súmula 90 do TST e no art. 58, § 2º, da CLT.
Logo, estando à disposição do empregador, o tempo correspondente computa-se na jornada laboral, atraindo, por decorrência lógica, o disposto
no art. 7º, incisos XIII e XIV, da CF, que constituem direitos indisponíveis do
trabalhador. Isso não quer significar, contudo, que não possa haver transação
10
Artigos 7º, caput, 8º, III, da CF, e 513, “a”, da CLT.
Louise Caroline Pinheiro de Souza
acerca das normas relativas à jornada laboral, uma vez que o próprio dispositivo
constitucional referido expressa esta possibilidade, devendo, no entanto, ser
observada a taxatividade desta disposição, senão vejamos:
CF
Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros que visem à melhoria de sua condição
social:
[...]
XIII - duração do trabalho normal não superior a oito
horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a
compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;
XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em
turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação
coletiva; [...]. (grifos nossos)
Observe-se que, na primeira hipótese, o constituinte apenas autorizou a negociação acerca da compensação de horas e da redução da jornada, não deixando margem a nenhuma outra estipulação. Quanto aos turnos
ininterruptos de revezamento, a Constituição Federal permitiu a alteração da
jornada via negociação coletiva, estando esta subordinada, no entanto, ao
disposto no caput do art. 7º.
Além dessas hipóteses de flexibilização da jornada laboral, no caso
específico das horas in itinere, o texto consolidado, no § 3º do art. 58, acrescentado pela Lei Complementar nº 123/2006, dispõe que:
CLT
Art. 58. [...]
§ 3º. Poderão ser fixados, para as microempresas e
empresas de pequeno porte, por meio de acordo ou convenção coletiva, em caso de transporte fornecido pelo
empregador, em local de difícil acesso ou não servido
por transporte público, o tempo médio despendido
pelo empregado, bem como a forma e a natureza da
remuneração. (grifo nosso)
Assim, a CLT é taxativa acerca do cabimento de fixação de tempo
médio de horas in itinere através de negociação coletiva, e da forma e natureza
do respectivo pagamento, não sendo possível a sua extensão a casos diversos,
169
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
170
em respeito à imperatividade da norma e a indisponibilidade deste direito.
Não obstante este entendimento, a jurisprudência trabalhista,
inclusive a do Tribunal Superior do Trabalho – embora haja, frise-se, vozes
dissonantes11 –, tem chancelado as negociações coletivas que, indiscriminadamente, limitam previamente o cômputo deste período na jornada laboral
efetiva, sem conferir nenhuma contrapartida aos empregados, conforme
exemplificado a seguir:
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA.
HORAS IN ITINERE. NORMA COLETIVA. O entendimento
externado pelo Órgão uniformizador de jurisprudência
interna corporis desta Corte Superior, a SBDI-1, segue no
sentido de que deve ser considerada válida a negociação
coletiva estabelecendo o pagamento de horas in itinere
em determinado número de horas, independentemente
do efetivo tempo gasto pelo empregado no transporte
fornecido pelo empregador, nos termos do art. 7°, XXVI,
da CF. Agravo de instrumento conhecido e não provido.12
HORAS IN ITINERE - FIXAÇÃO MEDIANTE ACORDO COLETIVO, DE 1 (UMA) HORA NORMAL DIÁRIA, SOBRE O
SALÁRIO DA CATEGORIA E AUSENTE DETERMINAÇÃO
DE INTEGRAÇÃO SALARIAL - VALIDADE - INTELIGÊNCIA
DO ART. 7º, XXVI, DA CONSTITUIÇÃO. I - É sabido que
o princípio do conglobamento, adotado na interpretação dos acordos e convenções coletivos, permite a
redução de determinado direito mediante a concessão
de outras vantagens similares, de modo que no seu
conjunto o ajuste se mostre razoavelmente equilibrado. II - Por isso mesmo é que se deve prestigiar os
acordos e convenções coletivas, por injunção do art.
TST. AIRR 244/2007-141-03-40.9. T3. Relatora: Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa.
Julgamento: 07/03/2008; TRT 21. RO 00883-2008-012-21-00-9. T2. Redatora: Juíza Lygia Maria
de Godoy Batista Cavalcanti. Julgamento: 13/04/2010; TRT 5. RO 0122800-74.2009.5.05.0511. T2.
Relatora: Desembargadora Débora Machado. Julgamento: 21/10/2010; TRT 10. RO 00147-2008821-10-00-7. T2. Relator: Desembargador Brasilino Santos Ramos. Julgamento: 03/09/2008; TRT
3. RO 0037400-83.2009.5.03.0047. T3. Relator: Juiz Danilo Siqueira de Castro Faria. Julgamento:
03/02/2010.
12
TST. AIRR 74440-65.2008.5.03.0102. T8. Relatora: Ministra Dora Maria da Costa. Julgamento:
13/10/2010.
11
Louise Caroline Pinheiro de Souza
7º, inciso XXVI, da Constituição, em que se consagrou
o princípio da autonomia privada da vontade coletiva,
desde que a pactuação não agrida norma de ordem
pública ou norma constitucional de proteção mínima
ao empregado. III - A norma do § 2º do artigo 58 da CLT,
introduzido pela Lei 10.243/01, embora tenha reconhecido
o direito às horas de trânsito, não se classifica como norma
de ordem pública e nem envolve direito indisponível dos
empregados. IV - Daí ser forçoso privilegiar o que fora
acertado pelos protagonistas das relações coletivas de
trabalho, sobre a fixação de 1 (uma) hora normal diária
a título de horas de percurso, incidente sobre o salário
da categoria, sem integração salarial, circunstância
que dilucida a violação literal e direta do art. 7º, XXVI,
da Constituição. V - Nesse sentido, aliás, orienta-se a
jurisprudência desta Corte. VI - Recurso conhecido e
provido [...].13 (grifo nosso)
EMENTA: PEDIDO DECLARATÓRIO DE NULIDADE DE
CLÁUSULAS DE CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO HORAS EXTRAS “IN ITINERE” - MERO TEMPO DE REPOUSO
EM TRÂNSITO - INSUSCETIBILIDADE DE VIOLAÇÃO DE
NORMAS DE TUTELA DA SAÚDE DO TRABALHADOR
- COMPOSIÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITO POR
MEDIAÇÃO DE PERITO. Não se pode olvidar que o artigo
7º, incisos XIII e XIV, da Constituição Federal de 1988
autoriza a negociação coletiva em matéria de duração
da jornada de trabalho, tema jurídico do qual resulta
o sub-tema das horas extras, pelo que não prospera o
argumento de que as reclamadas e o sindicato obreiro
não poderiam ter celebrado a questionada convenção
coletiva de trabalho e de que essa negociação coletiva
fere direitos indisponíveis. Relativamente às horas extras
in itinere, bem decidiu a r. sentença recorrida no sentido de
que “o núcleo intangível de direitos de indisponibilidade
absoluta, que alberga normas de ordem pública, como as
que protegem a saúde, a higiene e a segurança do traba-
TST. RR 11600-77.2009.5.09.0567. T4. Relator: Ministro Antônio José de Barros Levenhagen. Julgamento: 29/09/2010.
13
171
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
172
lhador, não comporta as horas de percurso”. Efetivamente,
as horas extras in itinere são insuscetíveis de violar normas
de tutela da saúde do trabalhador, eis que não se tratam
de horas de atividade de trabalho que possam submeter
o empregado ao excesso de fadiga, mas de mero tempo
de repouso em trânsito à disposição do empregador,
sendo, por isso, meramente computável o tempo do deslocamento na duração da jornada de trabalho. [...] Lícita,
portanto, a negociação coletiva. Negado provimento.14
(grifo nosso)
Estes posicionamentos jurisprudenciais fundamentam-se, em sua
maioria, no argumento do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (art. 7º, inciso XXVI, da CF) e da flexibilização das normas
trabalhistas, a fim de adequá-las às diferentes realidades laborais. Alguns
deles sustentam-se no entendimento de que, em razão de o dispositivo não
ter disciplinado a forma de contabilização deste período, às convenções e aos
acordos coletivos caberia esta tarefa, o que, claramente, não se sustenta, visto
que a contabilização deverá ocorrer em razão do tempo efetivamente despendido, não havendo dúvida quanto a este aspecto. Ademais, um dos julgados
se aventura na afirmação de que a norma do § 2º do art. 58, da CLT, “não se
classifica como norma de ordem pública e nem envolve direito indisponível
dos empregados”, o que, data venia, não se coaduna com os princípios e regras
que norteiam o ramo justrabalhista.
Deve-se esclarecer, ainda, que embora se fale em “flexibilização”,
o que ocorre, na verdade, nada mais é do que a renúncia prévia de direitos
trabalhistas indisponíveis, consistente na supressão, mesmo que parcial, dos
mesmos (FRANÇA, 1994, p. 42). Some-se a isto que o art. 7º, caput, da Constituição Federal, ao indicar a exemplificatividade do rol que lhe segue, deixa
claro que outros direitos que venham a ser criados deverão visar à melhoria das
condições sociais dos trabalhadores. Logo, o inciso XXVI do art 7º, da CF, não
alberga preceito absoluto, uma vez que, mesmo garantido o reconhecimento
TRT 3. RO 00651-2009-151-03-00-0. T3. Relator: Juiz Milton Vasques Thibau de Almeida. Julgamento: 25/11/2009. Importante mencionar, ainda, no mesmo sentido, os seguintes julgados:
TST. AIRR 244/2007-141-03-40.9. T3. Relatora: Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa. Julgamento: 07/03/2008; TRT 21. RO 01337-2005-020-21-00-7. Pleno. Relatora: Des. Maria de Lourdes Alves Leite. Julgamento: 06/02//2007; TRT 4. RO 0095100-50.2009.5.04.0221. T4. Relator: Desembargador Hugo Carlos Scheurmann. Julgamento: 07/10/2010.
14
Louise Caroline Pinheiro de Souza
dos acordos e das convenções coletivas, estes deverão observar as normas de
ordem pública que informam o Direito do Trabalho, sempre respeitando os
direitos e garantias mínimos conferidos aos obreiros.
Ademais, permitir a limitação ou supressão de direitos já positivados
em normas de aplicação cogente, além de configurar patente ilegalidade, uma
vez ausente disposição legal que autorize esta flexibilização, importa em inegável retrocesso social, ocasionando, por conseguinte, a inconstitucionalidade
do ato frente ao preceito contido no caput do art. 7º da CF.
Impossível ignorar, ainda, que as cláusulas de instrumentos coletivos que assim dispõem vão de encontro às prerrogativas institucionais dos
sindicatos, previstas na Constituição Federal e na CLT, uma vez que cabe a
estes entes a busca incessante da melhoria da condição da classe sindicalizada
(art. 7º da CF), competindo-lhes, portanto, a defesa dos direitos e interesses
coletivos ou individuais da categoria representada (art. 8º, III, da CF). Ainda,
os princípios aplicáveis às negociações coletivas – o da criatividade jurídica
e o da adequação setorial negociada – devem estar sempre em harmonia
com as normas estatais, de forma que não agridam os direitos e garantias já
conferidos por estas.
Sendo assim, os dispositivos constitucionais e legais asseguradores
de direitos e garantias mínimos aos trabalhadores, sobretudo os atinentes à
saúde, segurança e higiene destes (art. 7º, inciso XXII, da CF), à irredutibilidade
salarial (art. 7º, inciso VI, da CF) bem como à jornada laboral (incisos XIII e XIV
do art. 7º da CF), deverão ser irrestritamente observados, sem possibilidade
de derrogação, mesmo que pela via coletiva, ressalvadas as hipóteses expressamente vislumbradas pela lei, sob pena de nulidade, nos termos dos arts.
9º e 444 da CLT. Aliás, este é o entendimento dos julgados a seguir – alguns,
aplicáveis por analogia –, de exemplar inteligência:
EMENTA: Estabilidade provisória da empregada gestante
(ADCT, art. 10, II, b): inconstitucionalidade de cláusula
de convenção coletiva do trabalho que impõe como
requisito para o gozo do benefício a comunicação da
gravidez ao empregador. 1. O art. 10 do ADCT foi editado
para suprir a ausência temporária de regulamentação da
matéria por lei. Se carecesse ele mesmo de complementação, só a lei a poderia dar: não a convenção coletiva, à
falta de disposição constitucional que o admitisse. 2. Aos
acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como às
sentenças normativas, não é lícito estabelecer limitações
173
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
174
a direito constitucional dos trabalhadores, que nem à lei
se permite.15 (grifo nosso)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. RITO
SUMARÍSSIMO. HORAS IN INTINERE. Incólume o art. 7º,
XXVI, da Constituição Federal. O Tribunal Regional trasladou a norma coletiva em questão, a qual não prevê que
as horas in itinere seriam computadas na jornada de trabalho, mas apenas o fornecimento obrigatório e gratuito
do transporte aos trabalhadores rurais. E, mesmo que
houvesse previsão na norma coletiva, o Tribunal Superior do Trabalho reiteradamente se posiciona no sentido
de que deve ser prestigiada a composição espontânea
do conflito, tendo em vista o princípio da autonomia
privada coletiva consagrado nos artigos 7º, incisos VI,
XIII, XIV e XXVI e 8º, inciso VI, da CF/1988. Contudo, esta
autonomia da vontade das partes não pode ser absoluta,
privando o empregado de garantias mínimas previstas
na legislação trabalhista. Os pactos coletivos, também
garantidos pela Lei Maior, não emprestam validade, por
si sós, à supressão de direitos trabalhistas indisponíveis.
A flexibilização das condições de trabalho, em princípio
possível em matéria de jornada de trabalho, não pode se
sobrepor ao princípio da valorização social do trabalho
(artigo 1º, IV, da CF). Precedentes. Agravo de instrumento
a que se nega provimento.16 (grifo nosso)
EMENTA: HORAS IN ITINERE. Demonstrado nos autos
que o tempo despendido pelo reclamante no percurso
entre a residência e o local e trabalho, e vice-versa, é
superior àquele previsto na norma coletiva da categoria,
tais minutos deverão ser pagos como extras, integralmente, uma vez que se trata de tempo à disposição do
empregador. Inteligência do art. 4º da CLT, da Súmula
90 do TST e do § 2º do art. 58 da CLT. Mesmo antes da
inclusão do §2º ao art. 58 da CLT, pela Lei 10.243/2001,
tenho ressaltado que a exclusão de horas in itinere por
STF. RE 234186. T1. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento: 05/06/2001.
TST. AIRR 865-51.2010.5.18.0000. T3. Relator: Ministro Horácio Raymundo de Senna Pires. Julgamento: 25/08/2010.
15
16
Louise Caroline Pinheiro de Souza
meio de negociação coletiva é ilegal. A meu ver, existe
interdição específica prevista no art. 444 da CLT, segundo o
qual as relações contratuais de trabalho podem ser objeto
de livre estipulação das partes interessadas em tudo que
não contravenha a ordem pública. A primazia da lei sobre
a negociação coletiva encontra-se inserida no art. 9º da
CLT. Portanto, celebrada convenção ou acordo coletivo
que infrinja a lei, é de se decretar a nulidade da cláusula,
até mesmo por meio de reclamação individual, sob
pena de se negar à Justiça do Trabalho a atribuição de
julgar.17 (grifo nosso)
EMENTA: HORAS IN ITINERE. DIREITO FUNDAMENTAL SUPRESSÃO POR NORMA COLETIVA. IMPOSSIBILIDADE. As
horas in itinere são horas de trabalho, motivo pelo qual
descabe suprimir seu pagamento, ainda que parcialmente,
sob pena de se concluir que o empregado deve trabalhar
(nas horas in itinere) sem direito a receber os respectivos
salários. Tal regra viola o direito fundamental ao salário,
daí a impossibilidade na supressão, ainda que por norma
coletiva.18 (grifo nosso)
Logo, possibilitar a negociação sobre o tema das horas in itinere,
alçado à condição de norma de ordem pública a partir de sua inclusão no texto
consolidado, fora da hipótese expressamente consignada no art. 58, § 3º, da
CLT, de forma que implique danos aos obreiros, consistirá em patente afronta
ao art. 7º, caput e incisos XIII, XIV e XXII, da CF, e ao próprio art. 58, § 2º, da CLT,
além de desobediência ao primado da lei sobre as negociações coletivas, nos
termos dos arts. 9º e 444 da CLT.
Logo, negociações coletivas no sentido de suprimir por completo,
ou mesmo limitar (supressão parcial), o direito previsto no art. 58, § 2º, da
CLT, chanceladas pela Justiça Laboral, configuram flagrante retrocesso das
condições sociais dos trabalhadores até hoje conquistadas, uma vez que
implicam o reconhecimento de uma suposta condição de igualdade sócio-
TRT 3. RO 0142200-57.2009.5.03.0082. T7. Relatora: Desembargadora Alice Monteiro de Barros.
Julgamento: 08/07/2010.
18
TRT 5. RO 0110700-70.2008.5.05.0431. T1. Relator: Des. Edilton Meireles. Julgamento:
13/09/2010.
17
175
176
Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
econômica entre a classe trabalhadora e a classe empregadora, o que, de
certo, não existe.
Neste sentido, importa transcrever o entendimento consubstanciado na Orientação Jurisprudencial nº 31 da SDC do TST, aplicável analogicamente:
OJ-SDC nº 31 – ESTABILIDADE DO ACIDENTADO.
ACORDO
HOMOLOGADO.
PREVALÊNCIA.
IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 118 DA LEI Nº
8.213/91 (INSERIDA EM 19.08.1998)
Não é possível a prevalência de acordo sobre legislação
vigente, quando ele é menos benéfico do que a própria lei,
porquanto o caráter imperativo dessa última restringe o
campo de atuação da vontade das partes. (grifo nosso)
6 CONCLUSÃO
Por todo o exposto, resta clara a necessidade de uniformização
dos julgados concernentes à flexibilização das horas in itinere, de forma que
se prestigie o rol de direitos mínimos conquistados e assegurados pelos trabalhadores através das normas de ordem pública, que não podem, mesmo
com a chancela do Judiciário, ser vulneradas. Ainda, a prevalência do disposto
nas normas estatais, quando estas forem mais benéficas ao trabalhador, não
enseja, de forma alguma, o engessamento da liberdade sindical, mas garante
aos obreiros a vedação do retrocesso dos direitos sociais trabalhistas tão
dificilmente alcançados.
Deve-se considerar, ademais, sem embargo da veemência com que
se rechaça a impossibilidade de renúncia (ainda que parcial) da norma que
dispõe sobre as horas de percurso à disposição do empregador, que os sindicatos profissionais, mesmo que representem, inegavelmente, instrumento de
união e força dos trabalhadores, não estão totalmente isentos das pressões e
influências das classes econômicas, o que evidencia, mais uma vez, o perigo
de se permitir a flexibilização de matérias como a das horas in itinere.
Sussekind e Maranhão (apud FRANÇA, 1994, p. 43), com propriedade,
sintetizam a conclusão do presente estudo, dispondo que “assim como a lei
pode criar direitos não previstos na Constituição, nunca, porém, negar os que
sejam por esta assegurados, assim também, direitos podem ser criados pela
convenção coletiva, mas esta não poderia jamais contrariar os que, por lei,
Louise Caroline Pinheiro de Souza
sejam garantidos”.
Para arrematar, importa destacar o papel do Ministério Público do
Trabalho na busca da prevalência da lei sobre as normas coletivas que importem em desrespeito aos direitos trabalhistas mínimos. A Lei Complementar
nº 75/1993, em seu art. 83, inciso IV, atribui ao Ministério Público do Trabalho,
expressamente, a função de “propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole
as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis
dos trabalhadores”. Assim, resta incontroversa a importância da atuação do
órgão ministerial na defesa dos direitos sociais mínimos dos trabalhadores
em face de ajustes, inclusive os coletivos, que ameacem os princípios que
direcionam e limitam toda a relação empregatícia.
REFERÊNCIAS
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São Paulo: LTr, 2009.
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São Paulo: LTr, 2008.
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FRANÇA, Milton de Moura. Renúncia de direito às horas in itinere prevista
em acordo coletivo: ineficácia. n. 5. São Paulo: Revista do Tribunal Regional
do Trabalho da 15ª Região – Campinas, 1994, p. 42-44. Disponível em <http://
bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/18471>. Acesso em: 22/10/2010.
MEIRELES, Ana Cristina Costa; MEIRELES, Edilton. A intangibilidade dos direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2009.
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Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”
das normas relativas às horas in itinere
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 31. ed. São
Paulo: LTr, 2005.
PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo:
LTr, 2000.
NULLITY OF COLLECTIVE BARGAINING ON THE
“FLEXIBILITY” OF IN ITINERE HOURS RULES
ABSTRACT
The in itinere hours rule was originated on the labor
courts jurisprudence, becoming later mandatory
positive law. Despite of its law and order status,
the labor courts jurisprudence has accepted the
“flexibility” of this right by means of collective
bargaining, regardless there isn’t any compensating benefits for the workers covered by this
autonomous regulation, which represent blatant
social backlash, besides violating trade unions’
institutional purposes in their condition of workers
representative. This paper intend to explore the
reasons that give rise to the nullity of collective
agreement clauses that provides the “flexibility”
of in itinere hours right. In the end, it’s found out
the need to uniform the sentences regarding this
theme, taking into account the precepts on the
workers protection, that demand the respect to
the minimum rights and guarantees ensured by
the Constitution and law, inclusive in the collective
sphere, emphasizing the Labor Public Attorney’s
role in the pursuit of this aim.
Keywords: Working time. In itinere hours. Flexibility. Nullity.
O TRABALHO INFANTOJUVENIL DOS ARTISTAS
MIRINS SOB UMA
PERSPECTIVA CRÍTICA DO
DIREITO FUNDAMENTAL À
PROFISSIONALIZAÇÃO
Ana Paula Barros Amaral Oliveira
Acadêmica do 8º período do
Curso de Direito da UFRN.
Nathalie Maia Chung
Acadêmica do 8º período do
Curso de Direito da UFRN.
Mariana de Siqueira
Professora Orientadora
RESUMO
A participação de crianças em programas televisivos,
teatros e no cinema é fato bastante comum na atualidade, deixando a sociedade perplexa com a aparente precocidade dos jovens artistas. Entretanto, a
exploração infanto-juvenil no meio artístico pode
comprometer sobremaneira a formação dos astros
mirins, ocasionando-lhes transtornos psicológicos
e adultização precoce, em razão do afastamento do
convívio com sua faixa etária, da dedicação exigida,
da participação em cenas dramáticas, da vivência
de personagens polêmicos e da exposição a que os
mesmos ficam sujeitos – que é tamanha a ponto de
torná-los, até mesmo, alvos de chacotas na mídia,
o que influencia de maneira negativa na formação
da personalidade do jovem. De fato, o astro mirim
torna-se uma celebridade, não mais podendo sair
180
O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectiva
crítica do direito fundamental à profissionalização.
em público sem ser assediado pela imprensa,
deixando de viver normalmente uma fase fundamental da vida. Não raro, o labor desempenhado
pelos jovens artistas figura em primeiro plano na
seara de suas responsabilidades, passando a criança a assumir compromissos incompatíveis com
sua idade, que ganham proporções significativas
a ponto de limitar a realização de atividades que,
em outro contexto, seriam por eles desenvolvidas.
É bem verdade que a profissionalização - direito
fundamental por excelência dos adolescentes -, é
salutar na formação e desenvolvimento dos jovens
e deve, bem por isso, ser estimulado no cotidiano.
Extrapolar os limites, contudo, passando o labor
artístico a ocupar a totalidade da vida do astro
mirim, cerceando-lhes outros direitos que igualmente lhe são assegurados, é prática que merece
críticas e, pois, reprimenda na seara jurídica.
Palavras-chave: Direito à profissionalização. Trabalho infanto-juvenil. Artistas Mirins.
1 INTRODUÇÃO
Consagrado na Constituição Federal de 1988 como direito fundamental das crianças e dos adolescentes, a ser garantido pela família, sociedade
e Estado com absoluta prioridade, o direito à profissionalização dos jovens é
tema bastante controverso, que envolve críticas e discussões nas mais diversas
áreas do conhecimento.
Se, por um lado, o trabalho de crianças nas ruas e lavouras é condenado pela opinião pública, por outro, o trabalho desenvolvido pelos artistas
mirins em programas artísticos e televisivos é fonte de aplausos pela sociedade.
O ordenamento jurídico, contudo, não distingue tais espécies de labor, sendo
expresso no sentido de que é proibido o trabalho dos menores de dezesseis
anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos.
A Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
entretanto, ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 4.134 de 15 de fevereiro
Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung
2002, permite à autoridade competente conceder exceções à proibição do trabalho infantil para fins artísticos, o que é utilizado como argumento favorável
ao exercício desse tipo de atividade por parte daqueles que a defendem.
Decerto, não se pode negar que as conseqüências advindas destas
formas de labor são distintas, mas é certo que o segundo também pode acarretar riscos ao desenvolvimento do jovem, devendo-se indagar: o trabalho
desenvolvido pelos astros-mirins é realmente compatível com os preceitos
constitucionais de proteção à infância e adolescência e, principalmente, com
a contemporânea doutrina da proteção integral?
2 UMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA ACERCA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DOS ADOLESCENTES
A Constituição Federal de 1988 foi a legislação responsável por
sacramentar a tutela atualmente contemplada pelos direitos da criança e
do adolescente, ao incorporar a teoria da proteção integral, atingindo ponto
culminante na evolução do conhecimento jurídico acerca do tratamento institucional conferido aos pequenos cidadãos. As disposições mais relevantes que
a consagram são o art. 7º, XXXIII, e o art. 227, caput e § 3º, todos da Lei Maior.
De fato, conforme afirma Souza (2002), a origem do atual contexto
histórico-social da proteção conferida às crianças e adolescentes remonta à
Primeira Guerra Mundial, ocasião em que foram concedidos alguns direitos
aos jovens cidadãos, conseqüência das pressões sociais exercidas em razão
da fragilidade que o mundo vivenciava com o pós-guerra, resultando na
elaboração da “Declaração de Genebra”, em 1924.
No entanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
foi o principal marco evolutivo da concepção contemporânea dos direitos
relativos à pessoa humana. Elaborada sob o reflexo da Segunda Guerra Mundial, resgatou os fundamentos da Revolução Francesa, defendendo que os
valores ideais de liberdade, justiça e paz no mundo somente seriam alcançados
com o anterior reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos.
Ademais, tal declaração compôs o alicerce para a elaboração da denominada
“Doutrina da Proteção Integral das Nações Unidas para a Infância”, construção
filosófica que teve suas raízes na Declaração Universal dos Direitos da Criança,
de 1959. Nesse documento, foi edificado o princípio norteador de todas as
ações voltadas para a infância: o princípio do melhor interesse da criança,
segundo o qual os infantes passaram a ser considerados sujeitos detentores
181
182
O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectiva
crítica do direito fundamental à profissionalização.
de direitos próprios, oponíveis, inclusive, em relação aos próprios genitores
ou a quaisquer outros indivíduos.
É certo que tal princípio, sem dúvida, deu força para o surgimento da
doutrina da proteção integral, tutelado atualmente na Constituição em vigor,
segundo a qual, consoante entendimento de Castro (1994, p. 24):
Afirma o valor intrínseco da criança como ser humano;
a necessidade de especial respeito à sua condição de
pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da
infância e da juventude, como portadores da continuidade do seu povo, da sua família e da espécie humana
e o reconhecimento da sua vulnerabilidade, o que torna
as crianças e os adolescentes merecedores de proteção
integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o
qual deverá atuar por meio de políticas específicas para
o atendimento, a promoção e a defesa dos seus direitos.
Inserido nesse rol de direitos indispensáveis à formação e tutela dos
jovens como seres em desenvolvimento, o direito à profissionalização surgiu
com o escopo de garantir a educação dos mesmos e sua inserção satisfatória
no mercado de trabalho, sob os limites impostos pela própria legislação pátria e
internacional, no afã de evitar o abuso e a exploração dos futuros profissionais,
em respeito latente à doutrina da proteção integral.
Desde os primórdios, as relações humanas contemplavam as relações de trabalho. Entretanto, foi com a Revolução Industrial que começaram
a surgir os primeiros problemas alarmantes referentes ao trabalho infantil,
em que os industriais, a fim de reduzir os custos e maximizar a produção,
inseriam as crianças nas linhas de produção, fazendo com que as chamadas
“meias-forças” passassem a compor o mercado de trabalho. Exacerbou-se a
exploração do trabalho infantil e feminino, tanto que, após protestos sociais,
veio à tona a primeira lei de Direito do Trabalho, em 1802, na Inglaterra, como
bem afirma Fonseca (1966).
Após a lei inglesa precursora, leis correlatas foram sendo editadas
na Europa, até que, em 1919, com a fundação da Organização Internacional
do Trabalho, vislumbrou-se o ideal de que o labor dos adolescentes mereceria
proteção especial. Nesse sentido, veio a limitar a idade mínima para o trabalho,
inicialmente em quatorze, e posteriormente em quinze anos.
Sobrevieram intensos debates a respeito do tema, até que em
1973, a Convenção 138 da OIT, fixou, de forma generalizada, a idade mínima
Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung
de quinze anos, admitindo exceções aos países em desenvolvimento, onde
se permite o labor aos quatorze anos, devendo estas nações assumirem o
compromisso de, progressivamente, elevar esta idade aos parâmetros gerais.
No tocante à atual Carta Magna de 1988, ao tempo em que foi promulgada, seu art. 7°, XXXIII elevou para catorze anos a idade mínima para o
trabalho, exceto no que tange aos aprendizes, em que esta era de doze anos,
bem como o trabalho noturno, perigoso ou insalubre foi vedado aos menores
de dezoito anos. Todavia, em 1998, a Emenda Constitucional n° 20 alterou o
referido inciso, disciplinando ser a idade mínima para o trabalho não mais de
catorze anos, mas de dezesseis anos, alterando igualmente a matéria no que
compete ao trabalho aprendiz, de doze para catorze anos.
Tal direito foi incorporado no contexto educacional, tanto pela
Constituição, nos artigos. 203, III, 205, caput, e 214, IV, quando pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90) em seus artigos. 62 a 69.
3 A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E O DIREITO À PROFISSIONALIZAÇÃO
Como dito anteriormente, desde o advento da Carta Magna de
1988, o ordenamento jurídico pátrio encontra-se sob a égide da doutrina da
proteção integral, consagrada no art. 227, da Constituição Federal, a qual, além
de assegurar um complexo mínimo de direitos fundamentais às crianças e aos
adolescentes, acrescentou aos mesmos o status de absoluta prioridade, em
homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana e rompendo com
a antiga doutrina da “situação irregular”1.
De fato, a nova doutrina consubstancia-se em um conjunto de
princípios e normas jurídicas voltadas à efetiva concretização dos direitos
das crianças e adolescentes, levando em consideração a condição peculiar
de pessoas em desenvolvimento que os mesmos ocupam, estabelecendo
responsabilidades pela garantia do pleno desenvolvimento de tais sujeitos
de direitos ao Estado, família e sociedade.
Tal doutrina, eminentemente restritiva, ocupou o cenário jurídico infanto-juvenil sob a égide
do Código de Menores de 1979, por quase um século, limitando-se a tratar dos jovens que se enquadravam no modelo pré estabelecido de situação irregular, definido em tal dispositivo legal,
não enunciando direitos que poderiam ser exigidos judicialmente.
1
183
O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectiva
crítica do direito fundamental à profissionalização.
184
A proteção integral dos jovens, evidencie-se, não é satisfeita por
um mero assistencialismo, mas, do contrário, através dos esforços positivos
empreendidos pelos agentes suprarreferidos2, que assumiram o encargo
institucional e solidário de assegurar às crianças e aos adolescentes, prioritariamente, um digno desenvolvimento.
Os direitos estabelecidos constitucionalmente passaram, decerto,
a ser exigíveis pelos mesmos, que, diante de uma iminente violação, podem
acionar o Poder Público no afã de protegê-los, tendo em vista a necessidade
de colocar os jovens a salvo de qualquer forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Analisando a importância da doutrina da proteção integral Amin
(2009, p. 14), afirma, com brilhantismo:
Com o fim de garantir efetividade à doutrina da proteção
integral a nova lei previu um conjunto de medidas
governamentais aos três entes federativos, através
de políticas sociais básicas, políticas e programas de
assistência social, serviços especiais de prevenção
e atendimento médico e psicossocial às vítimas de
negligência, maus-tratos, abuso e proteção jurídicosocial por entidades da sociedade civil. Adotou-se o
princípio da descentralização político administrativa,
materializando-o na esfera municipal pela participação
direta da comunidade através do Conselho Municipal
de Direitos e Conselho Tutelar.
O direito à profissionalização emerge, neste aspecto, como um dos
corolários da doutrina da proteção integral, cuja principal idéia consiste na
possibilidade de os jovens, ainda que menores de 18 (dezoito) anos, desenvolverem uma relação trabalhista, uma vez respeitadas as disposições legais,
doravante elucidadas.
Nesse sentido, com bem ensina Oliveira (1994), a profissionalização deve ser entendida como um processo metódico em que se alternam
experiências teóricas e práticas, com uma sucessão de tarefas gradualmente
mais complexas e tendentes à aquisição, pelo jovem, de um trabalho qualificado ou de uma profissão.
2
Conforme Novo Acordo Ortográfico.
Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung
É bem verdade que, em que pese a peculiar condição de pessoa em
desenvolvimento, que, deveras, exige um regime especial de trabalho, com
direitos e restrições, a profissionalização é salutar ao processo de formação
do jovem, desde que não seja analisada isoladamente e, pois, conviva em um
todo harmônico com os demais direitos constitucionalmente garantidos ao
empregado mirim.
A profissionalização, deveras, deve permitir que o adolescente
possua tempo e condições de exercer outras atividades, que também são de
inquestionável importância em seu processo de desenvolvimento, como é o
caso, verbi gratia, do direito à educação e à convivência familiar e comunitária,
de modo que, uma vez estando estes direitos em conflito, o trabalho não
poderá persistir.
Desse modo, convém evidenciar que o exercício de uma atividade
laboral por parte de um jovem trabalhador, em hipótese alguma, pode lhe
retirar não só o tempo necessário para freqüentar a escola, mas também para
estudar o que foi passado em sala de aula, para conviver com sua família, para
ter um momento de lazer e até mesmo para descansar. A relação trabalhista,
por certo, deve ser apenas um dos fatores que contribuem para o bom desenvolvimento do jovem, não podendo ocupar sua vida por completo e lhe
atribuir responsabilidades que vão além do aconselhável para a faixa etária.
É nesse sentido, a propósito, que o art. 69 do ECA dispõe que o
adolescente apenas possui o direito à profissionalização e à proteção do trabalho quando lhe for assegurado o respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento e capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho.
É importante notar que muito embora a Constituição Federal, no art.
227, assegure o direito à profissionalização de maneira genérica às crianças e
aos adolescentes, o ECA apenas o faz em relação a estes, como bem se vê nos
artigos 60-69, que, em todas as vezes a que se referem a este grupo de pessoas,
menciona o termo “adolescente”, não fazendo qualquer alusão às crianças. Quis
o legislador garantir este direito apenas aos maiores de doze anos, excluindo,
mesmo que indiretamente, os jovens abaixo desta idade?
A despeito das divergências que podem surgir a respeito da mens
legis, certo é que a profissionalização, nada obstante ocupe um lugar de
extrema importância no processo de formação da criança e do adolescente,
sendo deveras relevante como figura complementar ao aprendizado, é um
direito que deve ser exercido com extrema cautela, sob pena de todo o con-
185
O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectiva
crítica do direito fundamental à profissionalização.
186
texto que envolve a temática ser descaracterizado, cujas principais vítimas
serão os próprios jovens.
4 O TRABALHO INFANTIL: REALIDADE SOCIAL VERSUS REALIDADE JURÍDICA
Como se sabe, a exploração do trabalho infantil, ainda nos tempos
atuais, é uma realidade constante nos países subdesenvolvidos, não sendo
diferente no Brasil. As causas da precoce inserção das crianças no mercado de
trabalho são múltiplas e complexas. A decisão de laborar, com o conseqüente
abandono escolar, é influenciada tanto pela escassez de recursos financeiros da
família do jovem, como também, em alguns casos, pela suposta atratividade
do mercado de trabalho onde os mesmos serão inseridos e o permanente
descrédito com relação ao sistema escolar.
Oportuno evidenciar, neste aspecto, que, apesar de haver norma
constitucional3 expressa proibindo o trabalho infantil, o cotidiano da sociedade brasileira demonstra que a disposição da Lei Maior é ignorada, sendo
comum a utilização da mão de obra infantil, principalmente nas ruas e nas
zonas rurais do país.
A realidade é assustadora: segundo levantamento da PNDA (Pesquisa Nacional por Amostra de Domícilio), divulgada pelo IBGE (Instituo Brasileiro
de Geografia Estatística) no ano de 2008, mais de 1,2 (um vírgula dois) milhões
de crianças de cinco a treze anos ainda eram vítimas de exploração no ano de
2007, como bem expôs Uchinaka (2008).
Discorrendo sobre a temática, assim afirma Amsus (2005, p. 10):
O trabalho diminui o tempo disponível da criança para
seu lazer, vida em família, educação, e de estabelecer
relações de convivência com seus pares e outras pessoas
da comunidade em geral. Além disso, experimentam um
papel conflitante na família, no local de trabalho, e na
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de
sua condição social:
Omissis
XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.
(Grifo acrescentado)
3
Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung
comunidade, pois como trabalhadores, adolescentes e
crianças são levados a agir como adultos, porém não
podem escapar do fato de que são sujeitos em desenvolvimento. Estes fatores são uma fonte de desgaste e
podem afetar o desenvolvimento emocional, cognitivo
e físico.
Em que pese a disparidade existente entre o disposto na legislação
em vigor e a realidade social do Brasil, insta evidenciar que, a partir da edição
do Estatuto da Criança e do Adolescente, a proteção ao trabalho infantil passou a receber maior atenção na seara jurídica.
Diante dessa situação, e buscando combater qualquer forma de
exploração de mão de obra infantil, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece um conjunto de normas protetivas a favor desse grupo populacional,
fornecendo diretrizes, limites e condições mínimas para que o jovem possa
trabalhar. Qualquer modalidade laboral que vá de encontro aos preceitos
legais, deve ser considerada trabalho precoce e, portanto, ilegítimo.
Como se disse alhures, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em
consonância com a Constituição Federal, proíbe qualquer espécie de labor
aos menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos
quatorze anos, nos termos do art. 60, do ECA.
Pois bem. A Consolidação das Leis Trabalhistas, em seus arts. 402410, disciplina a “proteção do trabalho do menor”, este considerado como
aquele exercido pelo trabalhador entre quatorze e dezoito anos, sendo
expressa em proibir que tal espécie laboral se realize em locais prejudiciais
a formação, desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, e em horários e
locais que não permitam a freqüência escolar do jovem.
Os adolescentes de idade compreendida entre quatorze e dezesseis
anos, repita-se, podem fazer parte do contrato de aprendizagem, espécie laboral ajustada por escrito e por prazo determinado, não superior a dois anos,
pelo qual o empregador se compromete a assegurar ao jovem, inscrito em
programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, consoante se
observa dos ensinamentos de Barros (2010).
Trata-se, de fato, de uma formação técnico-profissional, conforme
prevê art. 428, da CLT, e art. 62, do ECA, realizada por meio de atividades teóricas
e práticas, racionalmente organizadas em tarefas de complexidade progressiva,
desenvolvidas no ambiente de trabalho. Convém evidenciar, na oportunidade,
187
188
O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectiva
crítica do direito fundamental à profissionalização.
que o aprendiz é empregado regido efetivamente pelo Direto do Trabalho,
sendo destinatário de normas previstas na Consolidação das Leis Trabalhistas.
No que tange especificamente ao ECA, dispositivo legal sob o qual
cinge-se o presente artigo, cumpre evidenciar que nele são estabelecidos parâmetros mínimos sobre o direito à profissionalização e à proteção no trabalho
para as crianças e adolescentes, prevendo, no art. 67 e incisos, vedações que
devem ser observadas para o labor infanto-juvenil.
Inicialmente, mister ressaltar que configura por trabalho educativo
a atividade laboral em que as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevaleçam sobre o aspecto produtivo,
consoante art. 68, §1º, do ECA.
Outrossim, o programa social que tenha por base tal forma de trabalho, sob responsabilidade de entidade governamental ou não-governamental
sem fins lucrativos, deverá assegurar ao jovem que dele participe condições
mínimas de capacitação para o exercício de atividade regular remunerada,
conforme dicção do art. 68 do ECA. Evidencie-se, inclusive, que a remuneração
devida ao adolescente aprendiz não desconfigura o caráter educativo de tal
espécie laboral.
Desse modo, é vedado ao adolescente empregado, aprendiz, em
regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade
governamental ou não governamental, a realização de trabalho noturno
(aquele compreendido entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas
do seguinte), perigoso, insalubre, penoso, realizado em locais prejudiciais a
sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, bem
como aquele que não permita a freqüência escolar.
Como se vê, o trabalho infantil, no cenário jurídico atual, possui inúmeras limitações e peculiaridades, em razão da própria condição dos jovens
como seres em desenvolvimento, de modo que, qualquer forma laboral que
vá de encontro aos preceitos estabelecidos pela legislação pátria, torna-se
ilegítima e, pois, merecedora de críticas.
5 AS NUANCES DO LABOR DESEMPENHADO PELOS ARTISTAS MIRINS
Conforme discorrido em linhas anteriores, o artigo 403, parágrafo
único, e o artigo 67, III, ambos do ECA, vedam ao jovem de catorze a dezoito
anos incompletos o trabalho exercido em locais prejudiciais à sua formação,
ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, e em horários e locais
que não permitam a freqüência à escola.
Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung
Questão bastante discutida nos tempos hodiernos diz respeito
ao trabalho desempenhado por crianças e adolescentes no meio artístico,
surgindo altercações acerca dos limites desta atividade, buscando-se saber
até que ponto a mesma mostra-se salutar ao jovem ou, em caso contrário,
prejudicial ao seu desenvolvimento. A respeito do tema, manifesta-se Minharro (2003, p. 61):
A questão do trabalho artístico desempenhado por
crianças e adolescentes sempre suscitou discussões.
Há os que entendem que não se pode impedir que os
pequenos demonstrem seus dons criativos, proibindoos de cantar, representar e dançar em público, compor,
desfilar etc. Outros opinam que este tipo de trabalho é
tão árduo quanto aos demais e que, assim como todos
os outros, roubam da criança o tempo necessário para
estudar, brincar e desenvolver-se.
Não se pode negar, é verdade, que as conseqüências acarretadas aos
jovens artistas são bem diferentes daquelas ocasionadas às crianças que trabalham nas ruas, por exemplo. Todavia, especialistas alertam haver igualmente
riscos para o desenvolvimento dos astros mirins, segundo afirma o procurador
Rafael Dias Marques, vice-presidente da Coordenação Nacional de Combate
à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público
do Trabalho: “as pessoas assistem com mais naturalidade quando o trabalho
é artístico. Mas tanto em novelas quanto nas lavouras há trabalho infantil e
ele é proibido”. (MARQUES apud RACHEL, 2009, p.1).
A questão gera intensas polêmicas e divide opiniões de especialistas a respeito da temática, mormente ao vislumbrarem-se as consequências
acarretadas in casu, oriundas da atuação precoce de crianças e adolescentes
no meio artístico, a exemplo do caso que gerou significativa repercussão na
mídia e imprensa, referente à apresentadora mirim Maísa da Silva Andrade, que
trabalhava ao lado do apresentador Silvio Santos do SBT, no quadro “Pergunte
para Maísa”, exibido no “Programa Silvio Santos”. Nas perguntas direcionadas
à criança, era ela constantemente alvo de deboches e chacotas, em geral destinadas a ridicularizá-la perante os telespectadores, o que resultou, inclusive,
em paródias veiculadas sobre a menina em sítios eletrônicos internacionais.
O desrespeito à condição de infante da jovem artista foi tamanho
que toda sociedade pode presenciá-lo no dia 14 de maio de 2010, durante o
mencionado quadro, ocasião em que Maísa teve uma crise de choro ao ficar
189
190
O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectiva
crítica do direito fundamental à profissionalização.
frente a frente com um menino fantasiado de monstro. Antes disso, chegou
ela a pedir desesperadamente ao apresentador Silvio Santos para que não
o deixasse entrar no palco, haja vista estar ela apavorada, pedido este não
atendido, sendo visível o propósito da situação em divertir o público às custas
do temor da menina. Nervosa e assustada, Maísa saiu do palco chorando e
acabou batendo com a cabeça em uma câmera.
Após deixar o palco do programa chorando por dois domingos
consecutivos, a apresentadora mirim, de apenas seis anos de idade, passou a
ser observada de perto pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do
Adolescente de São Paulo, responsável por analisar, por meio das imagens
dos programas veiculadas na internet, se a menina sofreu algum tipo de constrangimento. O Procurador do Trabalho de Osasco, Orlando Schiavon Junior,
chegou a impetrar uma Ação Civil Pública em que pede à Justiça do Trabalho
aplicação de indenização de um milhão de reais, pelos danos morais causados
à criança, em virtude do desrespeito a normas que protegem os menores de
idade e a exposição pública da mesma (MINISTÉRIO..., 2009).
Atualmente, Maísa apresenta um programa compatível com a sua
idade e situação de ser em desenvolvimento, no programa Sábado Animado
do SBT, que vai ao ar das 7h às 12h45.
Muito embora determinadas situações, como a explanada, se configurem indiscutivelmente como subversivas à formação psicológica do jovem,
capaz de ocasionar transtornos que irão refletir diretamente na construção
de sua personalidade, não se deve reconhecer que toda e qualquer atividade
artística seja atentatória aos artistas infanto-juvenis, mas apenas aquelas que
desrespeitam as condições peculiares dos mesmos.
Nesse sentido, convém ressaltar o pensamento de José Roberto Dantas Oliva (2006), que reconhece ser um problema considerar toda e qualquer
atividade artística infanto-juvenil como imorais, tendo em vista o momento
histórico de criação da norma, uma vez que os valores eram completamente
diferentes e certamente influenciaram o legislador, merecendo interpretação
diferenciada para os tempos contemporâneos.
Na tentativa de ajudar a sanar a subjetividade do conceito de imoral,
o legislador previu o artigo 405, § 3º da CLT, mencionando espécies de trabalho
consideradas prejudiciais ao jovem. Não obstante tal dispositivo, somente
uma interpretação teleológica, capaz de apreciar a evolução dos costumes, e
não aquela puramente literal, impedirá que se rotule como imoral o trabalho
artístico em geral. Nesse afã, caberá ao aplicador do direito aferir situações
em que o trabalho artístico infanto-juvenil ocasiona, de fato, prejuízos graves
Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung
à formação e desenvolvimento moral, psíquico e social das crianças e adolescentes. Ressalte-se que se reconhece a necessidade de disciplinar a matéria,
todavia sob a cautela de evitar a generalização, permitindo vislumbrar-se as
nuances de cada caso concreto.
Nesse diapasão, a Convenção nº 138 da OIT, anteriormente mencionada, ratificada pelo Brasil, relativiza a proibição ao trabalho infantil, estabelecendo que:
Art. 8º.
1. A autoridade competente, após consulta com as
organizações de empregadores e de trabalhadores
interessadas, se as houver, podem, mediante licenças
concedidas em casos individuais, permitir exceções à
proibição de emprego ou trabalho disposto no artigo
2º desta Convenção, para fins tais como participação
em representações artísticas.
2. Permissões dessa natureza limitarão o número de
horas de duração do emprego ou trabalho e estabelecerão as condições em que é permitido.
Sob essa ótica, segundo posicionamento de Peres (2005), numa
interpretação sistemática e harmônica entre as previsões constitucionais e
do ECA, bem como a disposição abarcada pela OIT, aos pequenos artistas é
conferido o direito à liberdade de expressão e de desenvolver talentos inatos,
assim como o acesso aos níveis mais elevados de ensino, inclusive de criação
artística, de acordo com a capacidade de cada um, a teor do artigo 208, V da
Carta Magna.
No cumprimento deste escopo, as escolas figuram como o espaço
primordial de estímulo às atividades artísticas e incentivo à cultura, ambiente
propício para que talentos sejam descobertos na idade e nas condições adequadas.
Em contrapartida, papel relevante também deve ser exercido pelos
pais dos jovens artistas, no afã de limitarem a responsabilidade a que seus filhos
ficariam submetidos, impedindo que atinja patamares capazes de prejudicar a
execução de atividades compatíveis e saudáveis à idade do jovem, permitindoos o direito ao lazer, ao descanso, ao pleno desenvolvimento físico e psíquico.
Corroborando com este entendimento, afirma, com brilhantismo, a
psicanalista Olmos apud Vita (2009): “Isso não quer dizer que eles não possam
trabalhar em um espetáculo. Mas a criança precisa ser preservada pela família.
191
192
O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectiva
crítica do direito fundamental à profissionalização.
Quanto mais perto da escola e do seu grupo etário maior será a garantia de
se ter uma vacina contra situações de exagero”.
De mais a mais, em quaisquer situações, caberá ao juiz analisar a
mínima possibilidade de comprometimento da formação moral do adolescente
capaz de ser provocada pelo trabalho dos artistas mirins, caso em que deverá
negar a permissão para este labor, atento ao fato de que, tanto o ócio, como
o trabalho artístico pode revelar-se extremamente pernicioso a depender das
circunstâncias de cada caso.
6 CONCLUSÃO
Muito embora seja o direito à profissionalização dos jovens garantido, de maneira expressa, no ordenamento jurídico pátrio a nível constitucional,
a inexistência de regulação específica acerca do trabalho desenvolvido pelos
astros mirins no meio artístico, de um lado, e os diversos abusos praticados
no cotidiano, de outro, demonstram, com clarividência, a temeridade de que
pode se revestir esta modalidade laboral.
É bem verdade que o meio artístico pode revelar-se um ambiente
adequado e até mesmo propício ao surgimento das novas celebridades e ele,
por si só, não é nocivo aos interesses da criança e adolescente, nem compromete os demais direitos fundamentais que lhes são garantidos. As variadas implicações que podem advir da dedicação exigida e da conseqüente exposição
a que o jovem fica submetido, contudo, é que deve ser tratada com cautela.
De fato, a criança, vista como ser em desenvolvimento, não pode ser
submetida a um trabalho precoce, tampouco exposta às suas conseqüências,
mormente quando da observância da vivência prática pode-se perceber que,
por mais nobre e consagrado pela mídia que seja o trabalho dos jovens artistas, o desgaste e o estresse à que os mesmos ficam sujeitos acarretam-lhes
conseqüências psicológicas muitas vezes irreparáveis.
N’outro giro, não se pode olvidar que o trabalho desempenhado
pelos artistas mirins é uma expressão de sua criatividade e que, bem por isso,
pode e deve ser impulsionado, todavia com extrema parcimônia e em estrita
observância às condições peculiares do labor e da própria criança.
Como alternativa, e forma de preservar as aptidões artísticas dos
jovens, estas devem ser estimuladas, cabendo em especial às escolas o papel de incentivá-las, por intermédio do fomento à arte e cultura, tendo em
vista que esse é o local propício para talentos serem descobertos da maneira
Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung
adequada. Infelizmente, a realidade vem se comportando de outra maneira,
pois o exercício do direito à profissionalização pelos jovens astros no meio
midiático ocorre de maneira arriscada, orientando-se, na maioria das vezes,
apenas e tão somente pela finalidade lucrativa.
Diante da omissão legislativa sobre o tema, cabe em especial à
jurisprudência o relevante papel de definir em que situações será possível o
trabalho dos jovens astros no meio artístico, desde que o faça com cautela e
em respeito a elementos jurídicos variados.
A relevância do tema, a propósito, se torna ainda mais evidente
quando se percebe que a discussão não envolve apenas aspectos psicológicos,
mas também e, principalmente, o imperativo de bem se pensá-lo juridicamente.
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THE YOUTHFUL WORK OF JUNIOR ARTISTS
FROM A CRITICAL PERSPECTIVE OF THE FUNDAMENTAL PROFESSIONALIZATION RIGHT
ABSTRACT
The participation of kids in television programs,
theater and cinema is a common fact in the current
days, leaving the society perplex with the seeming forwardness of the young artists. However,
youth exploration in the those situations could
greatly complicate the formation of young stars,
causing psychological disorders and early aging,
because of the separation of their age group, the
dedication that is required, the participation in
dramatic scenes, the experience with controversial
character and the exposition that they are submitted – that is so big that make them target of
jokes in the media, what influences in a negative
way in the generation of the personality of the
child. In fact, the young artist becomes a celebrity, what impede them to go in public without
being besieged by the journalists. Sometimes,
the labor realized by the young star becomes the
first responsibility of them, passing the child to
take over many commitments incompatibles with
their condition, that earn significant proportions
that limit the realization of some activities that,
in other context, could be performed by them. It
is true the de professionalization – fundamental
right par excellence of teenagers -, is relevant
to the development process of the youth, and
195
196
O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectiva
crítica do direito fundamental à profissionalização.
should, because of this, be stimulated day by day.
Transcend the limits, although, passing the artistic
work to occupy the entire life of the junior artist,
restricting other rights that are also guaranteed
to them, is a practice that deserve critical, and, so,
reprimand in the legal harvest.
Keywords: Professionalization right. Youth work.
Junior Artists.
SUCESSÃO PRESIDENCIAL
INTERINA: BREVES
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
POSSIBILIDADE DE DEPUTADO
FEDERAL COM IDADE INFERIOR
A 35 ANOS, NA CONDIÇÃO
DE PRESIDENTE DA CÂMARA
DOS DEPUTADOS, ASSUMIR A
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
INTERINAMENTE
Tiago Mantoan Farias Nunes
Acadêmico do 7º período da
Faculdade Batista Brasileira.
Monitor de Direito Constitucional II
RESUMO
Possuindo como tema central e fio condutor a
sucessão presidencial interina disposta no art. 80,
da Constituição Federal, o trabalho examina, em
síntese, uma contextualização sobre a idade mínima
como condição de elegibilidade e assunção ao cargo de Presidente da República, discorrendo sobre a
possibilidade da Chefia do Executivo Nacional ser
assumida pelo Presidente da Câmara dos Deputados, ou Câmara Baixa, que, à época da vacância ou
impedimento do Presidente e Vice-Presidente da
República, possua idade inferior a 35 anos. Sabe-se,
prima facie, que para os cargos de Presidente, VicePresidente da República, Senador Federal e Ministro
do Supremo Tribunal Federal, se faz imprescindível
o preenchimento de alguns requisitos, dentre os
quais a idade mínima de 35 anos. Porém, para ser
eleito Deputado Federal, representante do povo, a
198
Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
Constituição exigiu a idade mínima de 21 anos (art.
14, § 3º, VI, “c”) como condição de elegibilidade,
sendo silente o texto constitucional no tocante à
idade para galgar e assumir o cargo de Presidente
da Câmara dos Deputados. Em suma, o presente
trabalho aborda a possibilidade de Deputado
Federal, com idade inferior a 35 anos, na condição
de Presidente da Câmara dos Deputados, poder assumir de forma provisória e interina a Presidência
da República, respeitando a sucessão constitucional interina disposta em Constituição.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Poder Executivo. Sucessão Presidencial Interina. Condição
e Requisitos de Elegibilidade. Três Poderes. Poder
Legislativo. Câmara dos Deputados.
“Conhecer o espírito de um homem significa
conhecer sua história; e conhecer uma história
não é somente conhecer a sucessão dos fatos, mas
encontrar o elo que os liga”.
(Francesco Carnelutti)
1 INTRODUÇÃO
Situado no cerne do debate constitucional, tendo como tema
central e fio condutor a sucessão presidencial interina, disposta no art. 80, da
Constituição Federal, o presente trabalho examina, em síntese, uma contextualização sobre a idade mínima como condição de elegibilidade e também
sobre a assunção ao cargo de Presidente da República, discorrendo sobre
a possibilidade da Chefia do Executivo Nacional (Presidência da República)
vir ser assumida pelo Presidente da Câmara dos Deputados que, à época da
vacância ou impedimento do Presidente e Vice-Presidente da República, possua idade inferior a 35 anos, idade esta tida como condição para se pleitear
cargo de Presidente da República (art. 14, § 3º, VI, “a”, da CF), posto que, para
Tiago Mantoan Farias Nunes
ser Presidente da Câmara Baixa, conseqüentemente, Deputado Federal, representante do povo no Congresso Nacional, necessita-se de 21 anos, no mínimo
(art. 14, § 3º, VI, “c”, da CF).
Dentro da temática ora sugerida, buscou-se evidenciar a possibilidade da assunção ao cargo de Chefia do Executivo pelo Presidente da Câmara
dos Deputados que, à época da vacância ou impedimento do Presidente e
Vice-Presidente da República, respectivamente, possua idade inferior a 35
anos. Sem embargos, para se eleger Deputado Federal a Constituição da
República determina que o candidato à investidura do cargo eletivo deve ter
idade mínima de 21 anos (art. 14, § 3º, VI, “c”). Assim, buscou-se descobrir se
a idade mínima, como condição de elegibilidade, implicaria impedimento na
assunção do Presidente da Câmara dos Deputados ao cargo de Presidente da
República (art. 80, da Magna Charta).
Em suma, nosso objetivo é fomentar a discussão acerca de uma
omissão constitucional no tocante a sucessão presidencial interina, a saber, de
um Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente
da Casa, poder assumir provisoriamente o cargo de Presidente da República,
isso sem sequer cogitar a hipótese de dissipar e exaurir o presente assunto,
primeiro pela falta de aptidão – no sentido semântico da palavra – do autor
que subscreve, sem contar, ademais, pela riqueza e importância do assunto
para a nação, em eventual acontecimento.
Finalmente, na conclusão da questão ora levantada, em atenção ao
princípio da simetria constitucional estendemos o entendimento a casos mui
semelhantes, quais sejam, onde Deputado Estadual (Presidente de Assembléia
Legislativa) com idade inferior a 30 anos possa vir assumir interinamente o
Governo de Estado ou do Distrito Federal, bem como de Vereador (Presidente
da Câmara Municipal) que, à época de impedimento ou vacância, possua idade
inferior a 21 anos.
2 DA IDADE MÍNIMA COMO CONDIÇÃO DE ELEGIBILIDADE
O sistema presidencialista é uma tradição brasileira que se iniciou
com a primeira Constituição da República, promulgada em 24 de fevereiro de
1891 e, doravante, as sucessivas Constituições, de modo geral, se mantiveram
firme nesse sistema de governo, inclusive após o plebiscito de 1993, onde o
povo escolheu definitivamente o sistema e a forma de governo da República
Federativa do Brasil (art. 2º, ADCT). Nessa perspectiva, portanto, o Poder Exe-
199
200
Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
cutivo Nacional é exercido, em sua plenitude, pelo Presidente da República
que, eleito periodicamente pelo povo (art. 1º, parágrafo único, CF), e auxiliado
por seus Ministros de Estado, concentra sua função nas chefias do Estado e
Governo. 1 É valido aduzir, dessa forma, que os rumos políticos e as direções da
nação estão totalmente concentrados nas mãos do representante do povo. 2
Quiçá o cargo de Presidente da República é o mais alto e almejado
em um sistema presidencialista, porquanto este exerce a representação máxima de um Estado soberano. Para que uma pessoa possa investir candidatura
em cargo eletivo, todavia, faz-se em regra observância de certos requisitos,
que são chamados em doutrina de condições de elegibilidade, e a Constituição
da República é o local mais que adequado para tratar sobre o assunto. 3
O constituinte, sabendo da importância dessa matéria, determinou
que para investir-se nos cargos de Presidente, Vice-Presidente da República,
Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e Ministros – de
modo geral – do Supremo Tribunal Federal (ordem sucessória presidencial,
no caso de impedimento ou vacância: art. 80, da Constituição), o indivíduo
deve ter, primordialmente, a condição de brasileiro nato (conforme determina
o art. 12, § 3º, incisos I, II, III e IV, respectivamente, da Carta Política de 1988).
Evitando, destarte, que pairassem dúvidas acerca do conceito de
brasileiro nato, o próprio constituinte achou por bem a tarefa de defini-lo na
Constituição Federal, verbis:
Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda
que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam
a serviço de seu país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe
brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da
República Federativa do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe
brasileira, desde que sejam registrados em repartição
brasileira competente ou venham a residir na República
Cf. MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 453.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 19-23.
3
VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de direito eleitoral. 1ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 551.
1
2
Tiago Mantoan Farias Nunes
Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo,
depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade
brasileira.
Mister salientar, neste viés, que a Constituição Federal adotara, como
regra, o aspecto territorial (jus soli) para enfatizar os nascidos em solo brasileiro.
Contudo, em alguns casos, v.g., como nas alíneas “b” e “c”, do art. 12, a própria
Lei Fundamental faz exceção à regra quando afasta o requisito territorial para
acolher o jus sangüinis e o fator funcional e o fator residencial. 4
Para os cargos eletivos de modo geral, exceto para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, que é por nomeação (art. 101, parágrafo
único), a Constituição Federal exige algumas determinadas condições de
elegibilidade (art. 14, § 3º) para que cidadão possa investir em cargo eletivo: a)
nacionalidade brasileira (em alguns casos, como visto, deve ser nata); b) pleno
exercício dos direitos políticos; c) alistamento eleitoral; d) domicílio eleitoral
na circunscrição; e) filiação partidária; e f ) idade mínima.
Para tratarmos com mais afinco a matéria ora suscitada, apegar-noe-mos, doravante, a esta última condição de elegibilidade, “a idade mínima”,
um dos requisitos para investidura em cargo eletivo. A partir daí poderemos
firmar um raciocínio preciso e lógico atinente à questão.
O professor gaúcho Joel José Cândido nos ensina com acuidade, no
tocante a idade mínima como condição de elegibilidade, que “ao estabelecer
a idade mínima como condição de elegibilidade, o legislador adotou o critério
meramente biológico”. 5 Outrossim, a despeito deste requisito constitucional,
exigido para investidura em cargo eletivo, afirma a nossa Constituição:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio
universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante:
§ 3º – São condições de elegibilidade, na forma da lei:
VI – a idade mínima de:
a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da
República e Senador;
MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 766-769; CUNHA, Dirley. Curso de direito constitucional. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009,
p. 749-752.
5
Cf. CÂNDIDO, Joel José. Direito eleitoral brasileiro. 10ª ed. Bauru: Edipro, 2003, p. 119.
4
201
202
Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de
Estado e do Distrito Federal;
c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado
Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;
d) dezoito anos para Vereador. (grifo nosso)
A norma em epígrafe determina a condição de elegibilidade para os
cargos eletivos de Presidente, Vice-Presidente da República e Senador Federal,
a idade mínima de 35 anos. Pode-se visualizar, não obstante, que ao completar 35 anos de idade o cidadão brasileiro adquire o ápice de sua capacidade
eleitoral para pleitear mandato político.
Ademais, no tocante ao quesito de idade mínima de 35 anos, esta
é, também, condição exigida pela Constituição Federal para que cidadão
brasileiro nato venha ser empossado Ministro do Supremo Tribunal Federal,
como já dito alhures. Esta condição, todavia, não se assemelha em nada a
condição de elegibilidade, que é requisito para poder ser eleito periodicamente pelo povo, mas é necessária para poder ser nomeado pelo Presidente
da República, após sabatina do Senado Federal, ipsis litteris:
Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de
onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de
trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade,
de notável saber jurídico e reputação ilibada.
Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal
Federal serão nomeados pelo Presidente da República,
depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do
Senado Federal. (grifo nosso)
Podemos concluir, pois, que para exercer o cargo de Presidente,
Vice-Presidente da República, Senador Federal e Ministro da Corte Suprema
(STF), imprescindível se faz dar devida atenção aos requisitos constitucional
da idade mínima de 35 anos e o de brasileiro nato.
Cumpre ressaltar, por outro lado, que para ser Deputado Federal,
em atenção do disposto no art. 14, § 3º, VI, “c”, da Constituição, necessário é
possuir idade mínima de 21 anos. 6 Ademais, ressalta-se que para ser Presi-
A idade mínima para eleger-se é, inclusive, tema de tremenda discórdia doutrinária no que
atine sobre o momento que se deve realmente verificar a condição de elegibilidade constitu6
Tiago Mantoan Farias Nunes
dente da Câmara dos Deputados necessário é antes ter sido eleito Deputado
Federal, haja vista que o cargo de Presidente da Câmara Baixa é conseqüência
do preenchimento das condições de elegibilidade, de ser eleito pelo povo, e
de ser brasileiro nato.
Assim, surge a incógnita: há possibilidade de Deputado Federal
com idade inferior a 35 anos, porém que esteja na condição de Presidente da
Câmara dos Deputados, vir assumir o cargo de Presidente da República nos
casos de impedimento ou vacância deste e do Vice-Presidente, em consonância
ao que determina o art. 80, da Constituição Federal?
3 DO BREVE ESCORÇO HISTÓRICO SOBRE A SUCESSÃO PRESIDENCIAL NAS
CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS DO BRASIL
Como outrora exposto, o presidencialismo esteve presente em todas
as Constituições do Brasil, exceto a Constituição Imperial de 1824, sendo, pois,
este sistema de governo uma tradição brasileira que teve por início a Constituição de 1891. A figura do Presidente da República, ao menos em nosso país,
talvez seja uma das mais importantes e sua função possui papel de relevo para
nação de modo geral, tendo em vista que este é o representante máximo do
Estado soberano brasileiro.
Partindo do pressuposto que haveria situações em que o Chefe do
Executivo Nacional não poderia exercer suas funções e atribuições, seja por
impedimento, seja por vacância, o constituinte originário precisou prever
uma saída para que o Estado não viesse a estagnar em um de seus cargos
mais importantes, até porque, como já dizia um famoso cantor brasileiro, o
tempo não pára!
cional: na data do registro de candidatura, da diplomação ou da posse? A Lei n. 9.504/97, no
art. 11, § 2º dispõe que “a idade mínima constitucionalmente estabelecida como condição de
elegibilidade é verificada tendo por referência a data da posse”. Entretanto, como poderiam ser
explicados e punidos os atos ilícitos praticados por menores em sua campanha eleitoral? Por
outro lado, se um menor entre 16 e 18 anos possui “capacidade” para escolher o rumo do país,
através do sufrágio universal, por que não poderia se tornar elegível para tomar posse quando
completar sua maioridade? Porém, não nos ateremos a este assunto, cuja temática é de grande
importância, sob pena de fugirmos, por completo, do foco de estudo do presente trabalho, até
porque estamos tratando de situação onde indivíduos (políticos) já foram eleitos e devidamente
empossados para seu mister e ofício.
203
204
Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
Para o alemão Carl Schmitt, a Constituição de uma nação é o próprio
Estado e o Estado é a própria Constituição, e desta situação concreta e fática
surge o conjunto da unidade política e ordenação da sociedade e do Estado
7
. Tendo, pois, o Estado uma forma escrita que é a Constituição, este mesmo
diploma deve prever tal situação, ou seja, o impedimento e a vacância do
representante de Estado e de Governo. Destarte, o caminho mais apropriado
encontrado pelo constituinte originário, ao menos em nosso país, fora o da
sucessão presidencial provisória.
As Constituições brasileiras de modo geral assim o fizeram. A Constituição de 1891, a despeito da temática, tratou a linha sucessória presidencial
no país no art. 41, §§ 1º e 2º:
Art 41. Exerce o Poder Executivo o Presidente da
República dos Estados Unidos do Brasil, como chefe
eletivo da Nação.
§ 1º. Substitui o Presidente, no caso de impedimento, e
sucede-lhe no de falta o Vice-Presidente, eleito simultaneamente com ele.
§ 2º. No impedimento, ou, falta do Vice-Presidente,
serão sucessivamente chamados à Presidência o VicePresidente do Senado, o Presidente da Câmara e o do
Supremo Tribunal Federal.
Nota-se que a Carta Política de 1891 aduz que no impedimento ou
falta do Presidente e Vice-Presidente, o Vice-Presidente do Senado Federal
seria o substituto na sucessão presidencial, isso porque o então Presidente
do Senado Federal era o próprio Vice-Presidente da República.
Por sua vez, a Constituição de 1934 dispôs o assunto no art. 52, §
8º, in verbis:
Art. 52. O período presidencial durará um quadriênio,
não podendo o Presidente da República ser reeleito
senão quatro anos depois de cessada a sua função,
qualquer que tenha sido a duração desta.
§ 3º. Se a vaga ocorrer nos dois últimos anos do período,
a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, trinta dias
Apud SILVA, José Afonso. Aplicabilidade de normas constitucionais. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 27.
7
Tiago Mantoan Farias Nunes
após, em sessão conjunta, com a presença da maioria
dos seus membros, elegerão o Presidente substituto,
mediante escrutínio secreto e por maioria absoluta
de votos.
§ 8º. Em caso de vaga no último semestre do quadriênio,
assim como nos de impedimento ou falta do Presidente
da República, serão chamados sucessivamente a exercer
o cargo o Presidente da Câmara dos Deputados, o do
Senado Federal e o da Corte Suprema.
O constituinte, aqui, mudou completamente à regra da linha
sucessória presidencial interina, passando para o Presidente da Câmara dos
Deputados à substituição direta do Presidente da República, em havendo
impedimento ou vacância deste, tendo em vista que neste período há uma
característica peculiar, a saber, não havia Vice-Presidente da República. A despeito dessa Carta Política, vale tecer alguns breves comentários.
A norma do § 3º, do art. 52, da Constituição de 1934, dispunha que
haveria eleição indireta (pela reunião da Câmara dos Deputados e Senado Federal) para Presidente da República se a vaga (vacância) ocorresse nos últimos
dois anos, não diferente do que temos hodiernamente em nosso sistema, que
admite a eleição indireta (art. 81, § 1º, da Lei Maior de 1988).
Por outro lado, o § 8º, do art. 52, da Carta Política de 34, declarava não
haver necessidade da eleição indireta se faltassem somente seis meses restantes
para o término do mandato presidencial, devendo assumir os Presidentes da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal para
cumprir mandato tampão, isto é, para completar o período de seu antecessor.
No tocante a impedimentos do Presidente da República, estes membros da
cadeia sucessória sempre assumiriam, de forma interina e provisória.
Portanto, na Constituição de 1934 se houvesse vaga do cargo de
Presidente da República nos últimos dois anos de mandato, haveria eleição
indireta pelas Câmaras Baixa e Alta para escolha do novo Presidente. Sempre
que houvesse impedimento, ou restando seis meses para término do mandato
presidencial, iriam assumir o Presidente da Câmara, do Senado Federal e do
Supremo Tribunal Federal.
Seguindo a linha cronológica, após pouco tempo de vigência da
Carta de 1934, surge a Constituição de 1937, dispondo a sucessão presidencial
de modo mais diferente:
Art. 77 – Nos casos de impedimento temporário ou
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206
Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
visitas oficiais a países estrangeiros o Presidente da
República designará, dentre os membros do Conselho
Federal, o seu substituto.
Art. 78 – Vagando por qualquer motivo a Presidência
da República, o Conselho Federal elegerá dentre os
seus membros, no mesmo dia ou no dia imediato, o
Presidente provisório, que convocará para o quadragésimo dia, a contar da sua eleição, o Colégio Eleitoral
do Presidente da República.
§ 1º – Caso a eleição do Presidente provisório não possa
efetuar-se no prazo acima, o Presidente do Conselho
Federal assumirá a Presidência da República, até a
eleição, pelo Conselho Federal, do Presidente provisório.
Da mesma forma que a Constituição de 1934, na Constituição de
1937 não existiu a figura do Vice-Presidente da República. O mais interessante,
neste diploma, fora que os únicos que alcançariam a Chefia do Executivo Nacional, por sucessão presidencial, seriam os membros do Conselho Federal,
pois o Executivo, na ocasião, detinha poderes sobre o Legislativo, a ponto de
destituir a Câmara dos Deputados (art. 75, “b”), a única Casa Legislativa na
época, tendo em vista que o então Presidente da República, Getúlio Vargas,
havia dissolvido o Senado Federal.
A Constituição de 1946 trouxe a sucessão presidencial de modo caso
semelhante a que possuímos atualmente em nossa vigente Carta Política, não
fosse a previsão do Vice-Presidente do Senado ser o terceiro na linha sucessória,
vez que o Vice-re Presidente da República presidia a Casa dos representantes
dos Estados – Câmara Alta, in verbis:
Art 79 – Substitui o Presidente, em caso de impedimento, e sucede-lhe, no de vaga, o Vice-Presidente da
República.
§ 1º – Em caso de impedimento ou vaga do Presidente e
do Vice-Presidente da República, serão sucessivamente
chamados ao exercício da Presidência o Presidente da
Câmara dos Deputados, o Vice-Presidente do Senado
Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal.
A Constituição de 1967 e sua EC n. 1, de 1969 trazem previsão como
a de atualmente:
Constituição de 1967 – Art 80. Em caso de impedimento
Tiago Mantoan Farias Nunes
do Presidente e do Vice-Presidente, ou vacância dos
respectivos cargos, serão sucessivamente chamados
ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara
dos Deputados, o Presidente do Senado Federal e o
Presidente do Supremo Tribunal Federal.
Emenda Constitucional n. 1, de 1969 – Art. 78. Em caso
de implemento do Presidente e do Vice-Presidente ou
vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente
chamados ao exercício da Presidência o Presidente da
Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do
Supremo Tribunal Federal.
A Constituição Federal de 1988, promulgada em 05 de outubro,
não muito diferente da última, dispõe em seus arts. 79, caput, e 80, a linha
sucessória presidencial interina:
Art. 79. Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente.
Art. 80. Em caso de impedimento do Presidente e do
Vice-Presidente, ou vacância dos respectivos cargos,
serão sucessivamente chamados ao exercício da
Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados,
o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal.
Outrossim, em havendo vacância ou impedimento do Presidente e
do Vice-Presidente da República, serão sucessivamente chamados ao exercício
do cargo, em caráter provisório, os Presidentes da Câmara dos Deputados, do
Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal, daí a necessidade dos membro
destes cargos serem brasileiros natos (art. 12, § 3º, da Constituição).
Se houver, todavia, vaga para os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, fazer-ser-á nova eleição (direta, pelo povo) noventa dias
após aberta a última vaga (art. 81, caput), caso isso ocorra nos dois primeiros
anos. Faltando dois anos, porém, para o término do mandato presidencial,
realizar-se-á eleição trinta dias após aberta a última vaga, de forma indireta,
pelo próprio Congresso Nacional, na forma da lei.
4 CONCEITO DE IMPEDIMENTO E VACÂNCIA
Consoante ao que preconiza o art. 79, da Constituição, o Presidente
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208
Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
será sempre sucedido (vaga) e substituído (impedimento) pelo Vice-Presidente
da República. Imprescindível se faz ressaltar, portanto, a diferenciação entre
os conceitos de vacância e impedimento, que se distinguem no tocante a possibilidade de retorno ao cargo pela ausência curta do afastamento.
Em evidência, nos ensina o professor Pedro Lenza que “vacância nos
dá uma idéia de impossibilidade definitiva para assunção do cargo (cassação,
renúncia ou morte), enquanto a substituição tem caráter temporário (por
exemplo: doença, licença e férias)”. 8 Impedimento, por sua vez, nas precisas e
imortais lições do professor Plácido e Silva, é “significar todo obstáculo, todo
embaraço, toda oposição, seja de ordem física ou de ordem legal que vem tolher ou vedar a execução do ato ou criar situação para que ele não se pratique”.9
A vacância é, pois, a impossibilidade definitiva de retorno ao cargo,
sendo dentre os dois institutos aqui abordados, quiçá seja o de maior peso.
Por outro lado, o impedimento é um fator temporário que acaba por afastar
o agente de seu cargo por motivo de curto espaço temporal, v.g., férias ou
licença, ou ainda para tratamento médico adequado.
Em suma, mister frisar que havendo impedimento (afastamento
temporário) ou vacância (afastamento definitivo), quem assume prioritária e
primordialmente a Presidência da República é o Vice-Presidente da República.
Este assume (como substituto) a Chefia do Executivo Nacional enquanto
durar o impedimento, porque, se houver vacância, o Vice-Presidente assume
(sucessão) até o final do mandato, isso em respeito ao art. 79, in fine, da Constituição Federal. 10
Vale trazer à baila um exemplo para elucidação da matéria: em
decorrência de cassação, pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE, do Governado
do Estado do Tocantins, Sr. Marcelo Miranda (PSDB), tornando, portanto, vago
o cargo, assumiu o Governo daquele Estado, de forma interina e provisória,
o então Presidente da Assembléia Legislativa, Sr. Carlos Henrique Gaguim
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Método, 2007, p. 459.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 21ª ed. São Paulo: Forense, 2003, p. 849.
10
Importante destacar que para haver nova eleição presidencial (ex vi do art. 81, caput e § 1º, da
CF) a vacância deve ser de ambos os cargos (Presidente e Vice-Presidente da República – art. 81,
caput), não de um, pois havendo vaga (impedimento definitivo) tão-somente do cargo do Presidente, assume o Vice-Presidente da República (art. 79, in fine). No campo prático e da realidade,
vale lembrar quando o Sr. Fernando Collor de Mello, 32º Presidente da República, fora cassado
de seus direitos políticos (havendo vaga, portanto), vindo assumir a Presidência da Republica o
Sr. Itamar Franco Augusto Cautiero Franco, então Vice-Presidente da República na época.
8
9
Tiago Mantoan Farias Nunes
(PMDB), que convocou, no prazo de 30 dias, eleições indiretas (votaram somente os Deputados Estaduais) para escolha do novo Governador do Estado.
No dia 08 de outubro de 2009, o então Governador provisório tornou-se Governador do Estado do Tocantins, sendo eleito (de forma indireta) para chefiar
o Executivo Estadual no “mandato tampão” até dia 31 de dezembro de 2010.
5 SUCESSÃO PRESIDENCIAL: ELEGIBILIDADE VERSUS ASSUNÇÃO
Quiçá a problemática central do presente trabalho gire em torno da
seguinte incógnita: a idade mínima como condição de elegibilidade pode ser
motivo que impeça Deputado Federal, na condição de Presidente da Câmara
dos Deputados, que tenha idade inferior a 35 anos, à época do impedimento
ou vacância do Presidente e Vice-Presidente República, de exercer a Chefia do
Executivo por assunção de forma interina e provisória?
Não se olvide que a Constituição no art. 14, § 3º, se refere a condições
de elegibilidade e não sobre a possibilidade de assunção, como se pode passar despercebido em breve leitura à norma constitucional. Urge, portanto, a
necessidade de trazer o conceito desses dois vocábulos.
Imprescindível se faz ressaltar, ab initio, os ensinamentos de Gilmar
Ferreira Mendes no tocante à interpretação de normas jurídicas, in verbis:
Inicialmente, sem necessidade de enfrentar as tormentosas discussões que se travam no terreno da lingüística,
diremos, com a generalidade dos autores, que a interpretação de qualquer norma jurídica é uma atividade
intelectual que tem por finalidade precípua – estabelecendo o seu sentido –, tornar possível a aplicação de
enunciados normativos, necessariamente abstratos e
gerais, a situações da vida, naturalmente particulares
e concretas. 11
A elegibilidade, segundo Alexandre de Moraes, “é a capacidade
eleitoral passiva na possibilidade de o cidadão pleitear determinados mandatos
políticos, mediante eleição popular, desde que preenchidos certos requisitos”.12
11
12
MENDES, Gilmar Ferreira et al. Ob. cit., p. 77.
MORAES, Alexandre. Ob. cit., p. 222.
209
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Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
Em mesma sintonia é a lição de José Afonso da Silva:
Elegibilidade se refere à capacidade eleitoral passiva, à
capacidade de ser eleito. Tem elegibilidade, portanto,
quem preencha as condições exigidas para concorrer
a um mandato eletivo. Consiste, pois, a elegibilidade
no direito de postular a designação pelos eleitores a
um mandato político no Legislativo ou no Executivo. 13
Por outro lado, para elucidar a expressão assunção, pede-se venia
para transcrever mais uma vez o ensinamento do professor alagoano Plácido
e Silva, quando afirma:
[Assunção é] palavra derivada de assumptio, de assumere
(assumir, receber para si), vem significar o ato pelo qual
uma pessoa, a quem se nomeou ou se elegeu para
desempenho de determinadas funções, assume o seu
cargo ou posto. Precisamente, em virtude de designação, por nomeação ou eleição, e seguida da posse, que
são atos preliminares e materiais para o exercício do
cargo, este exercício passa a executar-se, e o empossado, por motivo de assunção, pode legitimamente
desempenhar todas as atribuições e funções inerentes
ao mesmo. Assim, a assunção é ato que se segue à posse
e dela decorre. 14
Podemos perceber, nesse ínterim, que a condição de elegibilidade
disposta no art. 14, § 3º, da Constituição, refere-se como regra àqueles que
podem ser eleitos, ou seja, os elegíveis propriamente ditos, pessoas físicas detentoras de direitos políticos que preencham as condições constitucionais para
investidura em cargo eletivo. Por outro lado, a assunção é o ato de assumir, e,
no caso em questão, nos aponta o exercício e função do Chefe do Executivo
Nacional, a saber, o Presidente da República.
Nessa esteira, não há que se falar, prima facie, em dúvida referente
às demais figuras na sucessão ao cargo da Presidência da República (os Presidentes do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal), porquanto, como
13
14
SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 366.
SILVA, De Plácido e. Ob. cit., p. 90.
Tiago Mantoan Farias Nunes
dito em linhas atrás, a própria Constituição Federal impõe a estes cargos o
condição mínima de 35 anos para elegibilidade e nomeação, respectivamente.
Visualizando, entretanto, pela assunção da Chefia do Executivo por
Deputado Federal, cuja Constituição impôs condição de elegibilidade a idade
de 21 anos, podemos perceber uma grotesca omissão constitucional em um
tema de tamanha importância para a nação: a sucessão presidencial interina.
O constituinte originário fora omisso nesse sentido, não há que negar.
Não obstante isso, visando sanar a problemática ora suscita, fomos
buscar no Regimento Interno da Câmara dos Deputados norma que impedisse
Deputado Federal com idade inferior a 35 anos assumir a Presidência daquela
Casa e, conseqüentemente, esta vedação implicaria total impedimento no assumir a Chefia do Executivo Nacional nos casos de impedimento ou vacância
do Presidente e Vice-Presidente da República, momento em que talvez se
pudesse imaginar que estaria sanado tal equívoco.
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados quando dispõe
sobre a eleição de sua mesa, precisamente no título I, capítulo III, seção II, entre
os arts. 5º e 8º, omite o assunto como o fez a nossa Constituição da República.
Entretanto, mesmo que de fato houvesse impedimento no Regimento Interno da Câmara Baixa para que Deputado Federal com idade menor
de 35 anos viesse a assumir a Presidência da Casa, entendemos que haveria
evidente inconstitucionalidade de tal norma regimental, haja vista que estaria
por violar o princípio da isonomia, erigido na Constituição, porque eleito
Deputado Federal, este pode assumir Comissões e inclusive cargo na Mesa
Diretora da Casa. 15
Partindo do pressuposto de que não existe vedação constitucional
para Deputado Federal vir assumir o cargo de Presidente da Câmara dos
Deputados, podemos concluir que havendo, pois, impedimento ou vacância
do Presidente e Vice-Presidente da República, aquele não só pode como deve
assumir a Chefia do Executivo Nacional provisoriamente, mesmo que à época
Sobre o princípio da igualdade e isonomia, ensina o saudoso professor baiano Dirley da
Cunha: “O direito à igualdade é o direito que todos têm de ser tratados igualmente na medida
de em que se igualem e desigualmente na medida em que se desigualem, quer perante a ordem
jurídica (igualdade formal), quer perante a oportunidade de acesso aos bens da vida (igualdade
material), pois todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. A exigência de
igualdade decorre do princípio constitucional da igualdade, que é um postulado básico da democracia, pois significa que todos merecem as mesmas oportunidades, sendo defeso qualquer
tipo de privilégio e perseguição. O princípio em tela interdita tratamento desigual às pessoas
iguais e tratamento igual às pessoas desiguais” (CUNHA, Dirley da. Ob. cit., p. 658).
15
211
212
Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
tenha idade inferior a 35 anos, porquanto a Constituição exige o preenchimento deste requisito para ser eleito periodicamente pelo povo – e não passar
assumir interinamente a determinado cargo.
Assim, é fácil verificar que há diferença gritante entre elegibilidade (art. 14, § 3º) e a possível e provável assunção ao cargo de Presidente
da República, preconizada no art. 80, da Constituição. Estamos tratando de
situação jurídica onde o parlamentar (nesse caso, Deputado Federal) já fora
devidamente eleito (portanto, cumpriu com as condições de elegibilidade) e
fora empossado para exercer tal mister.
6 CONCLUSÃO
Podemos visualizar em linhas atrás que para os cargos de Presidente,
Vice-Presidente da República, Presidente do Senado Federal, da Câmara dos
Deputados e do Supremo Tribunal Federal, se faz necessário, primordialmente,
a condição de brasileiro nato, como assim determina o art. 12, § 3º, da Constituição Federal.
Outrossim, embora o indivíduo possua este requisito constitucional
de brasileiro nato e deseja investir-se em cargo eletivo, exceto o de Ministro
do Supremo Tribunal Federal, que é cargo indicado de forma política, vimos
que mister se faz outras condições instituídas pela própria Constituição, que
em doutrina são concebidas por condições de elegibilidade. O trabalho destacou uma, dentre as seis condições, a saber, o da idade mínima. Não se olvide,
assim, que o constituinte estabeleceu o critério meramente biológico para
elegibilidade de cargos políticos.
Diante de todo o exposto, e com base no entendimento amplo
acerca da assunção na sucessão presidencial interina, acreditamos que Deputado Federal que possua à época da vacância ou impedimento do Presidente e
Vice-Presidente da República, esteja na condição de Presidente da Câmara dos
Deputados, não só pode como deve assumir o cargo de Chefia do Executivo,
visto não haver no ordenamento jurídico brasileiro qualquer vedação que o
impeça para tal mister.
Urge ressaltar, por outro lado, que mesmo se houvesse impedimento
no sistema jurídico, que não fosse pela própria Constituição Federal, haveria
patente vício de inconstitucionalidade de tal norma, vez que há diferença entre
o instituto da assunção a cargo e condição de elegibilidade.
Não obstante, havendo vaga ou impedimento dos cargos de Presi-
Tiago Mantoan Farias Nunes
dente e Vice-Presidente da República, o Presidente da Câmara Baixa (Câmara
dos Deputados) deve, sim, ser chamado ao exercício da Chefia do Executivo,
caso não esteja impedido, independentemente se possuir idade inferior a 35
anos na data da vaga ou do impedimento, conforme o art. 80, da Constituição.
Entretanto, destaca-se que o art. 81 e seu § 1º dispõem que havendo
vacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República haverá
sempre eleição para escolha de Presidente e Vice-Presidente da República. Na
verdade o que irá diferenciar será a exteriorização da eleição, que em um caso
será direta (pelo povo) e, no outro, será indireta (pelo Congresso Nacional).
Assim sendo, em havendo nova eleição para os cargos de Presidente
e Vice-Presidente da República, em havendo vacância, os candidatos ao pleito
deverão atender todas as condições de elegibilidade do art. 14, § 3º, da Constituição da República.
Nessa hipótese, de novo eleição presidencial por vacância dos
cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, o Presidente da Câmara
dos Deputados, que possua idade inferior a 35 anos, não poderá participar
do pleito como candidato, posto que não preenche as condições de elegibilidade no tocante a idade mínima (art. 14, § 3º, VI, da Constituição Federal),
devendo permanecer no cargo, caso não haja impedimento seu, até a posse
dos sucessores.
É de bom alvitre trazer à baila, ainda, que a linha sucessória presidencial é assunto de grande relevância, não ocupando, destarte, tão-somente
os meios acadêmicos e científicos. A substituição do Chefe do Executivo tem
ocorrido nos casos de crise e normalidade institucional, como, v.g., quando o
Presidente da Câmara dos Deputados, Sr. Arlindo Chinaglia, assumiu a Presidência da República em outubro de 2007, quando o Presidente da República, Sr.
Luís Inácio Lula da Silva, viajou para a Suíça, e o Vice-Presidente da República,
Sr. José Alencar Gomes da Silva, substituto primário, encontrava-se internado
para tratamento hospitalar em São Paulo.
Outrossim, na esfera Estadual, urge trazer à baila quando a Desembargadora Sílvia Zarif, então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado
da Bahia, assumiu o Governo daquele Estado provisória e interinamente em
setembro de 2008 pelo impedimento do Vice-Governador e do Presidente da
Assembléia Legislativa. Na ocasião, destaca-se que esta fora a primeira mulher
a governar o Poder Executivo da Bahia, mesmo que provisória e interinamente.
Como citado nas considerações introdutórias, pelo princípio da simetria constitucional não poderíamos deixar de estender nosso entendimento
para outros dois casos que, ao nosso ver, também podem ser suscetíveis de
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Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
assunção e merecem atenção, como é o caso de Vereador, com idade inferior
a 21 anos, que venha exercer a Chefia do Executivo Municipal, na condição
de Presidente da Câmara Municipal, de acordo com a interpretação do art.
14, § 3º, VI “c” e “d”.
Em mesma esteira, consoante ao que dispõe o art. 14, § 3º, VI “b” e “c”,
da Constituição Federal, a situação de Deputado Estadual que ocupe o cargo
de Governador de Estado, provisória e interinamente, desde que, com idade
inferior a 30 anos, esteja na condição de Presidente da Assembléia Legislativa.
Concluímos, portanto, que na República Federativa do Brasil pode
haver situação em que podemos ter um Presidente da República com idade
inferior a 35 anos, desde que esteja na condição de Presidente da Câmara
dos Deputados e que assuma a Presidência da República de forma provisória
e interina, ex vi do que dispõe o art. 80, combinado com o art. 14, § 3º, “c”, da
Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
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BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário da língua portuguesa. 11ª ed.
Brasília: FAE, 1995.
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10ª ed. São Paulo: Atlas, 1989.
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GOVERNADOR: Carlos Henrique Gaguim é eleito governador do Tocantins.
Secretaria de Comunicação do Estado de Tocantins. Disponível em: < http://
Tiago Mantoan Farias Nunes
secom.to.gov.br/noticia/carlos-henrique-gaguim-e-eleito-governador-dotocantins/27365 >. Acesso em: 09 jan. 2010.
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Método, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2009.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. 3ª ed. São Paulo:
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MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.
POLÍTICA: Sílvia Zarif é a primeira mulher a governar a Bahia. Jornal A
Tarde Online. Disponível em: <http://www.atarde.com.br/politica/noticia.
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SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2008.
____________. Curso de direito constitucional positivo. 31ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de direito
eleitoral. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
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Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado
Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,
assumir a Presidência da República interinamente
PROVISORY PRESIDENTIAL SUCCESSION:
BRIEFLY CONSIDERATIONS ABOUT THE POSSIBILITY OF A FEDERAL DEPUTY UNDER 35 YEARS
BECOMES AN INTERIM REPUBLIC PRESIDENT.
ABSTRACT
Based on a central theme and a thread conduct to
assume the interim presidency written in art. 80,
of the Federal Constitution, the project analyzes,
in synthesis to contextualize about the minimum
age as an electoral condition to assume the position of a Republic President, discussing about the
National Executive Command, being assumed by
the Congress Deputies Leader, or the Low Congress, which is time of vacancy or stoppage of
the Republic President and Vice President, who is
under 35 years. Known, initially, for the Republic
President and Vice President Position, Federal
Senator and Federal Supreme Court Minister, it
is indispensable the fulfillment of some requirements, such as being 35 years as the minimum
age. However, to be elected as a Federal Deputy,
people’s representative, the Constitution requires
21 years as the minimum age (art. 14, § 3º, VI,
“c”) as the electoral condition, being silent the
constitutional text, refers to the age to assume
the Congress Deputies Leader. In fact, this project
presents the possibility of a Federal Deputy, under
35 years, in the condition of the Congress Deputies Leader, assume in a provisional and interim
condition, the Republic Presidency, respecting
the assuming interim constitutional written in the
Constitution Letter.
Keywords: Constitutional Law. Executive Branch.
Provisory Presidential Succession. Condition and
requirements eligibility. Separation of powers.
Legislative Branch. Chamber of Deputies.
TUTELA COLETIVA DOS
IDOSOS: UM ENFOQUE
SOBRE O ESTATUTO DO
IDOSO E ATUAÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
Acadêmico do 7º período do
Curso de Direito da UFRN.
Monitor da disciplina de
Direito Penal IV
Paulo Renato Guedes Bezerra
Professor Orientador
RESUMO
Nos últimos anos tem-se observado cada vez mais
um número maior de pessoas idosas em nosso país,
as quais vêm sendo discriminadas e tendo seus
direitos preteridos nas mais diversas esferas: seja
no mercado de trabalho; na previdência; na saúde;
e tantas outras. O presente estudo tem como objetivo discutir a tutela coletiva dos idosos, quando
estes têm seus direitos lesados enquanto membros
de uma coletividade. A Lei nº 10.741 instituiu o Estatuto do Idoso, o qual veio elencar os direitos de
tais pessoas, e o Ministério Público é o órgão legitimado na tutela destes, inclusive quando o direito
for individual indisponível, por isso não iremos nos
omitir da análise deste último, com o fim de tratarmos da referida lei de uma forma mais completa,
já que no próprio capítulo sobre a tutela coletiva o
mesmo é abordado. Assim sendo, iremos analisar as
disposições mais relevantes do Estatuto, e como o
218
Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
Ministério Público tem atuado na sua efetivação,
expondo também o Microssistema Processual
Coletivo Brasileiro e sua estruturação em nosso
ordenamento, para melhor compreendermos a
tutela coletiva. Nos utilizamos da doutrina pátria e
da jurisprudência para fazer uma análise de como
os direitos da pessoa idosa, seja numa coletividade
ou individualmente estão sendo aplicados na realidade brasileira, após o advento do Estatuto do
Idoso e suas inovações.
Palavras-chave: Tutela coletiva dos idosos. Estatuto do idoso. Ministério Público. Microssistema
processual coletivo brasileiro.
1 INTRODUÇÃO
Na Constituição de 1988, os Direitos e Garantias Fundamentais receberam uma atenção especial, estão expressos logo no início da Carta Magna,
no Título II, Capítulo I, o qual passa a expor “Dos Direitos e Deveres Individuais
Coletivos”, ou seja, observamos que os direitos coletivos foram inseridos nos
Direitos Fundamentais, e a partir de então passaram a receber gradativamente
a atenção que fazem jus.
O artigo 5º, XXXV também expôs o princípio da inafastabilidade do
Poder Judiciário, assim não mais a tutela jurisdicional se restringe ao Direito
Individual, é nesse contexto que o Processo Coletivo dá os primeiros passos
no nosso Ordenamento. Ainda não há um Código de Processo Coletivo, mas
sim o que a doutrina tem chamado de “Microssistema Processual Coletivo
Brasileiro”, o qual é formado por diversos instrumentos normativos, os quais
devemos relacioná-los entre si, de modo que haja uma integração, para que
uma sirva de base conceitual para o outro.
Na tutela coletiva, a matéria litigiosa discutida envolve uma coletividade de indivíduos, se verifica uma estrutura molecular, ao contrário da
estrutura atômica verificada nos direitos individuais. Por tal relevância é dever
do Estado agir em defesa da sociedade, através de órgãos como o Ministério
Público e a Defensoria Pública que estão entre os legitimados para buscar a
solução desses conflitos metaindividuais.
Assim sendo, iremos discutir a tutela coletiva dos idosos. Nos dias
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
de hoje, se observa como essas pessoas vêm sendo alvo da discriminação e
sofrendo com as barreiras e desigualdades crescentes em nossa sociedade,
nesse contexto surge o Estatuto do Idoso, com o objetivo de proteger e trazer
garantias as pessoas com mais de 60 anos, as quais merecem uma maior proteção por parte do Estado, devido a sua natural hipossuficiência na maioria dos
casos. É comum se observar a aplicação de golpes contra elas, como também
outros atos que atingem não apenas um, mas vários idosos, nesses casos o
Estatuto do Idoso delega ao Ministério Público protegê-los: “Art. 74. Compete
ao Ministério Público: I – Instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a
proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis
e individuais homogêneos do idoso;”.
Nesse contexto, faremos uma abordagem de como está estruturado
o Processo Coletivo Brasilero, e a tutela coletiva dos idosos, observando o
Estatuto do Idoso e como o Ministério Público está atuando na defesa destes,
inclusive no que se refere à tutela individual, fazendo uma análise doutrinária
e jurisprudencial do assunto.
2 MICROSSISTEMA PROCESSUAL COLETIVO BRASILEIRO
A tutela coletiva no Direito Brasileiro vem sendo construída ao longo
do tempo com o surgimento de leis que tratam da defesa não mais de uma
só pessoa, e sim de diversas, o relacionamento entre elas não está alocado
em um interesse público ou privado, lembrando que quando nos referimos
ao primeiro, estamos falando daquele que envolve o relacionamento entre
o Estado e o indivíduo, enquanto que o segundo diz respeito aos indivíduos
entre si, os quais podem dispor de seus direitos. Como podemos verificar na
obra de Hugo Nigro Mazzilli (2005, p. 17):
Entre essas duas categorias básicas (interesse público e
interesse privado), existe uma categoria intermediária
de interesses que não são meramente individuais,
porque transcendem os indivíduos isoladamente
considerados, mas também não chegam a constituir
interesse do Estado nem de toda a coletividade: são os
interesses transindividuais, também conhecidos como
metaindividuais.
São esses interesses que passaram a ter uma atenção especial do
219
Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
220
Processo Coletivo, pois devem receber uma tutela jurisdicional própria, e é isso
que se verifica atualmente, um conjunto de princípios próprios que atendem
as peculiaridades e estão aptos a resolver situações, as quais o processo civil
comum não tinha como resolver.
Assim como em todo o direito processual, as leis que tratam da tutela
coletiva estão baseadas em um conjunto de princípios e garantias do direito
constitucional processual, ou seja, aqueles princípios previstos na Constituição
sobre processo, os quais fundamentam a teoria geral do processo, como o
contraditório, o devido processo legal, a ampla defesa, entre outros.
Os instrumentos normativos que constituem o microssistema processual coletivo (a Lei da Ação Civil Pública; da Ação Popular; da Improbidade
Administrativa e o Código de Defesa do Consumidor1), devem ser aplicados
de forma integrativa e harmônica. Sempre que duas dessas leis puderem ser
aplicadas, deverão ser aplicadas de modo que uma servirá de base conceitual
para a outra, com isso se atingirá ao máximo a tutela coletiva dos direitos
pleiteados, evitando os litígios individuais, assim como também irá se alcançar
uma maior efetividade da justiça.
No livro de co-autoria de Didier & Zaneti (2009, p.123) sobre Processo Coletivo, estes renomados autores expõem: “Antes de voltar os olhos
para o sistema geral, o intérprete deverá examinar, no conjunto legislativo
que constitui o microssistema, se não existe uma norma melhor e mais adequada a correta pacificação com justiça”, ou seja, o Código de Processo Civil
será aplicado de forma subsidiária, conforme também se verifica no artigo 22
da Lei da Ação Popular: “Aplicam-se à ação popular as regras do Código de
Processo civil, naquilo em que não contrariem os dispositivos desta lei, nem
a natureza específica da ação”.
Após as breves explanações no sentindo de situar o leitor sobre o
processo coletivo, a seguir iremos expor as principais leis que formam esse
microssistema. O primeiro instrumento na luta pela defesa dos direitos coletivos foi a Lei nº 4.717/65, que instituiu a Ação Popular, essa lei apesar de já
legitimar o cidadão para impugnar ato ilegal e lesivo ao patrimônio público,
era muita restrita, legitimando o cidadão a atuar apenas nessas duas hipóteses,
Estes são os principais instrumentos normativos, portanto, faremos explanações breves somente dessas leis, tendo em vista que esse tópico objetiva apenas expor noções gerais sobre o processo coletivo brasileiro, os quais serão fundamentais ao entendimento dos tópicos seguintes, e
não fazer uma abordagem exauriente sobre o tema.
1
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
sem falar que este se encontrava numa posição bastante desprivilegiada ao
litigar contra o poder público, réu nesses tipos de ações.
Por isso, se diz que apenas em 1985 com a Lei nº 7347 da Ação Civil
Pública, e com as transformações que a Constituição de 1988 e o Código de
Defesa do Consumidor trouxeram, a tutela coletiva passou a ser realmente
efetiva, conforme exposição de Gregório Assagra de Almeida (2003, p. 265):
A partir da entrada em vigor da Lei nº 7347, de 24 de
julho de 1985, que verdadeiramente instituiu a ação civil
pública no Brasil, operacionalizou-se no ordenamento
jurídico brasileiro uma revolução, transformando-se de
ordenamento de tutela jurisdicional de direito individual, para ordenamento de tutela jurisdicional também de
direitos e interesses massificados. Inicialmente a tutela
era admitida de forma mais restrita, tendo em vista que
o rol, pelo texto aprovado da Lei da Ação Civil Pública,
era taxativo; contudo, com a Constituição Federal (art.
129, III), observa-se que a referida taxatividade da ACP
não mais existia, por falta de recepção constitucional, o
que se tornou inquestionável com a entrada em vigor
do Código de Defesa do Consumidor.
Por força do artigo 129, inciso III da Constituição, o qual afirma como
uma das funções institucionais do Ministério Público: “promover o inquérito
civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do
meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”, não mais ficou limitado o objeto da referida ação, sendo reforçado com o Código de Defesa do
Consumidor que por meio do artigo 110, influenciou o retorno do inciso IV a
LACP, o qual havia sido vetado, dispondo agora que qualquer outro interesse
difuso ou coletivo poderá ser tutelado pela mesma.
Com a Lei nº 8.078/90, que institui o Código de Defesa do Consumidor, e passou a dispor do art. 91 ao 100 sobre as ações coletivas, houve uma
integração deste com a LACP, gerando uma sintonia e interação indispensáveis
para a defesa dos direitos difusos, coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos – em breve iremos expor e diferenciá-los.
A lei de improbidade administrativa nº 8429/92 foi fundamental
no controle jurisdicional exercido atualmente aos agentes públicos no Brasil,
tanto no âmbito do executivo, legislativo e judiciário. A Constituição já previa
os atos de improbidade administrativa em seu art. 37, §4º: “os atos de impro-
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222
Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
bidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda
da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário,
na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”, e a
referida lei veio a regulamentar o que está expresso no referido artigo.
Para concluir o tópico, comentaremos de forma breve as três modalidades de direitos coletivos: direitos difusos, os direitos coletivos stricto
sensu e os direitos individuais homogêneos.
O Código de Defesa do Consumidor, no parágrafo único do artigo 81
expõe e diferencia as três categorias. Os direitos difusos são aqueles transindividuais (pertencentes a uma coletividade), de natureza indivisível (só podem
ser considerados em sua totalidade), cujos titulares são pessoas indeterminadas
(não há como individualizá-los, e não podemos determinar os sujeitos), os
quais estão ligados entre si por uma situação fática e não jurídica. Exemplo
deste seria uma propaganda enganosa ou abusiva veiculada na imprensa, a
qual atingiria um número incalculável de pessoas, todas vítimas dessa lesão, e
que portanto, se encontram ligadas por circunstâncias do fato. A coisa julgada
será erga omnes, atingindo a todos de maneira igual.
Os direitos coletivos stricto sensu também são classificados como
transindividuais, de natureza indivisível, cuja titularidade é de pessoas indeterminadas, mas determináveis enquanto grupo, categoria ou classe, os quais
estão relacionados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica
base. Tal relação pode se dar entre os membros do grupo (por exemplo,
médicos inscritos no Conselho Regional de Medicina, ou qualquer outra associação profissional, os quais se relacionam entre si como membros de uma
classe), ou pela ligação com a parte contrária (clientes de uma operadora de
telefonia celular, os quais possuem um vínculo jurídico com a parte contrária).
Importante ressaltar que a relação-base deve ser anterior à lesão. Destacamos
como elemento diferencial, ao compararmos aos direitos difusos, a determinabilidade e a coesão como grupo, categoria ou classe antes mesmo da lesão,
enquanto naqueles surge do fato lesivo. A coisa julgada será ultra partes, ou
seja, além das partes, porém limitada aquele grupo.
Os Direitos individuais homogêneos surgem da própria lesão ou
ameaça de lesão, a qual gera uma relação jurídica entre as partes a partir do
fato lesivo, são os únicos de natureza divisível e compreendem indivíduos
determináveis. A sentença terá eficácia erga omnes, de modo que possa beneficiar os titulares de direitos individuais, quando pleiteados em ações coletivas
o pedido será uma tese geral, de modo que venha a beneficiar a todos os
substituídos e as peculiaridades individuais, caso exista, devem ser atendidas
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
em liquidação de sentença, de forma individualizada.
3 O ESTATUTO DO IDOSO (LEI Nº 10.741/03)
Em 1º de outubro de 2003 foi editada a lei 10.741, a qual institui o
Estatuto do Idoso, no entanto ela só entrou em vigor em 1º de janeiro de 2004,
devido a um período de vacatio legis de 90 dias. Dispondo de forma clara sobre
os direitos e garantias da pessoa idosa, tanto de forma individual como coletiva,
no plano civil, administrativo e criminal. Caracteriza o idoso como aquele que
possui idade igual ou superior a 60 anos, assim descreve o Estatuto logo em
seu primeiro artigo, no entanto ressalvamos que para fins de gratuidade no
transporte coletivo, somente o que tiver 65 anos em diante (art. 230, §2º da
Constituição Federal), e para fins de aposentadoria compulsória no serviço
público os maiores de 70 anos de idade (art. 40, II, da Constituição Federal).
Antes desse instrumento normativo, é importante registrar que
havia outro dispondo sobre os direitos da chamada “terceira idade”, também
chamada por muitos de “a melhor idade”, porém este não era tão abrangente
e não trazia disposições sobre matéria processual, como traz o atual. Era intitulado de Lei da Política Nacional do Idoso, havia desde 1994, e dispunha
sobre a política nacional do idoso, criou o Conselho Nacional do Idoso e outras
providências.
O Estatuto do Idoso deve ser aplicado na defesa dos sexagenários, a
maioria deles pela idade avançada já possui algum tipo de deficiência, seja ela
motora, auditiva, visual, entre outras. Por isso, o país deve procurar se adequar
e melhor servi-los, para que assim essas pessoas que tanto contribuíram para o
país, sintam-se cidadãs. Qualquer forma de discriminação deve ser combatida,
pois a proteção ao idoso deve se pautar no princípio da igualdade, visto que
a Constituição já no caput do artigo 5º, afirma que: “todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza...”.
Porém é importante destacar uma observação sempre que se fala
no princípio da igualdade, pois como bem defende Celso Antônio Bandeira
de Mello (2006, p.35), “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas
igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há
como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontrem fatores
desiguais”. Portanto, podemos dizer que em alguns casos entre dois idosos
ou situações que os envolva, possa ser necessário que haja um tratamento
diferenciado entre eles, no entanto quando não houver fatores que os tornem
223
224
Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
desiguais, estes devem ser tratados de forma igualitária.
Retomando os dispositivos sobre o Estatuto, verificam-se duas garantias com o intuito de promover uma maior celeridade aos processos em que
o idoso é parte, visto que a perspectiva de vida deste já não é mais tão longa,
a primeira menciona prioridade a esses processos em todas as instâncias, e a
segunda é que o poder público poderá criar varas especializadas para a pessoa
idosa, bem como o Ministério Público, promotorias específicas, tais garantias
estão expressas no art. 70 e no caput do art. 71 da referida lei. Segundo o §
2º do art. 71, a prioridade do trâmite processual não cessará com a morte do
beneficiado, se perpetuando em favor do cônjuge e herdeiros.
O título V do estatuto trata do acesso a justiça e será o foco de
nosso trabalho no tópico seguinte, dentro dele temos o capítulo II que trata
da atuação do Ministério Público e o capítulo III abordando a “proteção judicial
dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos”,
ambos serão detalhados mais adiante.
O Estatuto dispõe sobre os direitos fundamentais, direitos estes que
observamos ser desrespeitados, seja dentro de casa, ou pelo poder público.
Muitos se encontram abandonados pelas famílias em asilos ou sendo tratados
de forma desumana, sendo vítimas de maus tratos e passando necessidades
dentro de seus lares. Diante disso é que o art. 9º expõe: “É obrigação do Estado,
garantir à pessoa idosa a proteção à vida e a saúde, mediante efetivação de
políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em
condições de dignidade”.
Quanto à saúde é assegurada atenção integral, por meio do Sistema
Único de Saúde, e garantia do acesso universal e igualitário, de forma articulada, com o fim de prevenir, proteger e recuperar o idoso. Ao poder público,
está o encargo do fornecimento gratuito de medicamentos, especialmente
quando estes forem de uso continuado. Fica vedado, aos planos de saúde,
a cobrança de valores diferenciados em razão da idade, sendo considerada
discriminatória tal prática.
O Estatuto afirma o princípio da solidariedade e da proteção, ao
obrigar a família, a comunidade, a sociedade em geral e o poder público a
assegurar, de forma prioritária, a efetivação dos direitos referentes à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho,
à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e
comunitária.
A Constituição Federal também destacou a proteção ao idoso no
art. 230, que está inserido no capítulo VII, o qual trata da Família, da criança, do
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
adolescente, do jovem e do idoso: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever
de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
Com relação a essa proteção constitucional, destacamos o que
expõe Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo
Gonet Branco (2009, p.1427):
Sob essa perspectiva, o constituinte colocou o Brasil
em sintonia com os países mais avançados, onde o
cuidado com os idosos é uma questão social da maior
importância, até porque em decorrência do aumento
de sua expectativa de vida e da redução das taxas de
natalidade, os componentes da chamada terceira idade
passaram a constituir expressiva parcela da população,
demandado prestações que se refletem diretamente
na relação receita/despesa da seguridade social, para
cujo custeio, na condição de inativos, eles pouco ou
nada contribuem.
Importante destacarmos o direito de alimentos que os idosos podem
exigir de seus filhos maiores, estes têm o dever de amparar os pais na velhice,
carência e enfermidade, do mesmo modo que aos pais possuem o dever de
assistir, educar e criar os filhos menores. Dispõe sobre o tema o Código Civil,
e não o Estatuto do Idoso, no entanto achamos conveniente abordar o tema
neste tópico, no art. 1696 está expresso: “O direito a prestação de alimentos
é recíproca entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo
a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”. No mesmo
sentido o art. 1695 do Código Civil: “São devidos os alimentos quando quem
os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho,
à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem
desfalque do necessário ao seu sustento”.
Por fim iremos destacar o título VI do Estatuto, o qual vem a abordar
os crimes cometidos contra o idoso. Quando não ultrapassar 4 anos de pena
privativa de liberdade, reger-se-á pela lei 9.099/95 que regula as ações nos
juizados especiais criminais, e de forma subsidiária utilizará as disposições do
código penal e de processo penal. Os artigo 95 ao 108 do Estatuto referem-se
aos crimes em espécie, pode-se observar que alguns crimes podem superar a
pena de 4 anos mencionada anteriormente, seriam eles o do art. 107 que pode
chegar a 5 anos e ocorre quando o idoso é coagido, de algum modo, a doar,
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226
Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
contratar, testar ou outorgar procuração, e há também o do art. 99 que na sua
forma mais grave, quando resultar em morte poderá chegar a 12 anos: “expor
a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a
condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados
indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado”.
O Estatuto do Idoso é uma lei que sem dúvidas trouxe muitos benefícios a pessoa idosa, pois com sua inovação e os diversos direitos elencados,
protege e resguarda o idoso em diversas situações de ameaças e violações aos
seus direitos. No entanto, apesar de estar em vigor desde o ano de 2004, o que
se observa é que poucos conhecem o Estatuto, os 118 artigos que o compõem
ainda são muito pouco conhecidos pelo cidadão brasileiro, principalmente
pelo próprio idoso. Enquanto que alguns direitos, como o atendimento preferencial nos estabelecimentos públicos e privados é um dos mais conhecidos
e podemos dizer que um dos mais respeitados, outros como a gratuidade
nos transportes intermunicipais e interestaduais são esquecidos ou pouco se
fala, e os idosos acabam sem poder desfrutar dos direitos e benefícios que o
Estatuto oferece. Por isso, torna-se fundamental para uma efetividade maior
dessa lei, que se noticie e divulgue, não só aos idosos, como a toda sociedade,
os direitos destes, os quais estão resguardados e merecem máxima proteção,
pois assim estaremos tratando a “terceira idade” com o respeito mínimo que
eles merecem.
4 A LEGITIMIDADE E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PERANTE O
ESTATUTO DO IDOSO
O Ministério Público por meio da ação civil pública e do inquérito
civil é o órgão legitimado a atuar na defesa coletiva do idoso, pois assim
legitimou o Estatuto: “Art. 74. Compete ao Ministério Público: I – Instaurar o
inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses
difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do
idoso;”. Observamos que nem sempre é instaurado o inquérito civil, tendo
em vista não ser um requisito obrigatório para a propositura da ação civil
pública, e, portanto, fica a critério do membro do Ministério Público avaliar sua
necessidade. Ao longo dos incisos do art. 74, a referida lei procura detalhar as
hipóteses de atuação do órgão ministerial e deixa clara a importância deste
na defesa do idoso, mesmo quando não for parte, o art. 75 trata de forma ex-
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
pressa que o referido órgão atuará obrigatoriamente e o art. 77 destaca que
a falta de intervenção acarreta nulidade do feito, podendo ser declarada de
ofício ou a requerimento de quem for interessado.
A Constituição de 1988 também já havia deixado claro, ao elencar as
funções institucionais do Ministério Público no art. 129, que quando tratarmos
de ações coletivas caberá ao mesmo atuar, conforme se observa no inciso III:
“promover o inquérito civil e ação civil pública, para a proteção do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;”
verifica-se que um Promotor de Justiça ou Procurador da República é quem
preside o referido inquérito, o que demonstra a postura atuante do órgão
ministerial.
Com a promulgação da Carta Magna, o referido órgão passou a
gozar de autonomia administrativa e funcional, o que contribuiu para o seu
crescimento e atuação. Sua principal função é fiscalizar e garantir a democracia
e os direitos fundamentais. Sua atuação pode ser como agente ou interveniente, no primeiro caso atua como titular da ação penal pública ou da ação
civil pública, e no segundo a intervenção ocorre em processos onde haja de
atuar como fiscal da lei, quando a matéria envolver o idoso, necessariamente
o Ministério Público irá atuar de uma forma ou de outra, conforme se observa
no art. 75 do Estatuto: “Nos processos e procedimentos em que não for parte,
atuará obrigatoriamente o Ministério Público na defesa dos direitos e interesses de que cuida esta Lei, hipóteses em que terá vista dos autos depois
das partes, podendo juntar documentos, requerer diligências e produção de
outras provas, usando os recursos cabíveis”.
Compete ao Ministério Público atuar segundo os incisos do art.
74, nas seguintes hipóteses, as quais sintetizamos: instaurando o inquérito
civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou
coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso; em
ações de alimentos, nas quais o idoso seja parte, seja promovendo as mesmas
ou acompanhando; atuar como substituto processual do idoso em situação
de risco; revogar procuração nos autos processuais; instaurar procedimento
administrativo; instaurar sindicâncias e requisitar a instauração de inquéritos
policiais; inspecionar entidades públicas e particulares que estão sujeitas ao
Estatuto; promover as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis para assegurar
os direitos e garantias legais do idoso e referendar transações envolvendo
interesses e direitos dos idosos que estejam previstos nesta lei. Importante
destacarmos que o Ministério público será sempre intimado pessoalmente,
em qualquer dos casos, o art. 76 assegura essa prerrogativa.
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Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
Iremos discorrer nesse tópico sobre a primeira hipótese descrita
no parágrafo anterior, abordando de início a parte processual do estatuto
que está disposta dos artigos 78 a 92 e que dispõe sobre “a proteção judicial
dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos”,
e em seguida abordaremos alguns exemplos e jurisprudência dessa tutela
ministerial.
A princípio, verificamos que no capítulo IIII, o qual abrange os artigos
mencionados no parágrafo anterior, o Estatuto visa proteger também os direitos individuais indisponíveis, além dos individuais homogêneos, ou seja, um
direito essencialmente individual, à parte daqueles que mencionamos como
os transindividuais, descritos no art. 81 do Código de Defesa do Consumidor.
Isso se deve porque como sabemos, a maioria dos idosos se encontram numa
posição naturalmente desprivilegiada, acometidos de uma relativa hipossuficiência, o que nos leva a falar em uma presumida incapacidade, justificando
a intervenção do Ministério Público, que segundo o art. 82, I, do Código de
Processo Civil, terá competência para intervir nas causas em que há interesses
de incapazes.
O foro competente é o do domicílio do idoso para as ações previstas nesse capítulo, com a ressalva feita a competência da Justiça Federal e a
originária dos Tribunais Superiores, conforme preceitua o art. 80. Quanto aos
legitimados, observamos que o art. 81 trata do assunto, e está inserido no rol
destes a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, no entanto o legislador deixou
de legitimar outras entidades, como a Defensoria Pública, que se destaca de
forma expressiva na luta dos direitos sociais, e muito tem contribuído na busca
e efetividade desses direitos, neste ponto tem a doutrina criticado a elaboração
do referido artigo. Além dos já mencionados, temos também no rol a União,
os Estados, o Distrito Federal e Municípios, e aquelas instituições legalmente
constituídas a 1 ano e que lutam pela defesa dos interesses e direitos da pessoa idosa, dispensando autorização da assembléia, quando o próprio estatuto
social trouxer essa autorização.
Admite-se, de acordo com os § 1º e 2º do art. 81, o litisconsórcio
facultativo entre os Ministérios Públicos da União e dos Estados, e quando
houver desistência ou abandono por associação legítima, caberá ao Ministério Público ou outro legitimado assumir a titularidade do pólo ativo da ação,
garantindo-se assim que sempre haverá um legitimado a levar a ação adiante.
No artigo 82, observamos que o legislador ao expressar que para
proteger os direitos dispostos no Estatuto, admitir-se-á todas as espécies de
ações pertinentes, aplicou um dos princípios do processo coletivo, que é a não
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
taxatividade da ação coletiva, que deriva do princípio do interesse jurisdicional
no conhecimento do mérito do processo, aplicando a instrumentalidade das
formas.
O Estatuto também prevê o instituto da tutela antecipada nos moldes do Código de Processo Civil, e também a multa, conhecidas por astreintes,
como meio de coerção. Como exemplo, temos uma ação ajuizada pelo Ministério Público que visa uma obrigação de fazer para melhorar as condições de
higiene em um determinado asilo, e o magistrado impõe que a multa deverá
ser cobrada a partir de tal dia, e caso esta venha a ocorrer, expressa o art. 84
que deverá ser revertida ao fundo do idoso, e na falta deste, ao fundo municipal
de assistência social, vinculados a atender o idoso. Outro ponto importante a
ser abordado está no art. 85, o mesmo trata da possibilidade de ser concedido
efeito suspensivo aos recursos para evitar dano irreparável à parte, ou seja, está
ao livre arbítrio do magistrado atribuir ou não o efeito suspensivo, ao contrário
do que dispõe o Código de Processo Civil que é taxativo nas hipóteses.
Após a abordagem processual do Estatuto, iremos à abordagem
prática e jurisprudencial. A administração pública muitas vezes se omite em
efetivar políticas públicas em prol do idoso, e quando o Ministério Público vem
a ajuizar ações com esse fim, o judiciário, tem sentenciado a administração a
aplicar tais políticas, isso tem sido bastante discutido ao se falar no princípio
do ativismo judicial, e até que ponto o judiciário pode intervir nas políticas
públicas. Segundo Didier & Zaneti (2009, p.127), nas causas de processo coletivo como há um forte interesse público primário, tal princípio encontra-se
mais presente na atuação do juiz, e não poderá ser colocada a vontade do
administrador escolher em efetivar ou não as políticas públicas, e sim que o
seja sentenciado a fazer, principalmente quando este direito vier assegurado
na Constituição e em lei infraconstitucional.
Ações coletivas com o fim de que sejam construídos abrigos públicos
para os idosos; ações coletivas que visem um tratamento mais adequado ao
idoso com doenças crônicas; ações para que sejam fornecidos medicamentos
de forma gratuita pelo poder público a essas pessoas; ações com o fim de
que sejam disseminadas atividades de lazer aos idosos. Enfim, são diversos
os direitos que o Estatuto oferece e podem ser tutelados em sede de ação
coletiva ou individual, conforme se observa no julgado do STJ abaixo que trata
do fornecimento de medicamentos:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMATIO AD CAUSAM
229
230
Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
DO PARQUET. ART. 127 DA CF/88. ESTATUTO DO
IDOSO. DIREITO À SAÚDE. ART. 557 DO CPC. DECISÃO
MONOCRÁTICA DO RELATOR RESPALDADA EM JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL A QUE PERTENCE.
1.O Ministério Público está legitimado a defender os interesses transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos
e os individuais homogêneos.
2. Recurso especial interposto contra acórdão que
decidiu pela ilegitimidade ativa do Ministério Público
Estadual para pleitear, via ação civil pública, o fornecimento de medicamento em favor de pessoa idosa.
4. É mister concluir que a nova ordem constitucional
erigiu um autêntico ‘concurso de ações’ entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a
fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo
dos mesmos.
5. Legitimatio ad causam do Ministério Público à luz da
dicção final do disposto no art. 127 da CF, que o habilita a
demandar em prol de interesses indisponíveis.
6. Sob esse enfoque, se destaca a Constituição Federal
no art. 230:”A família, a sociedade e o Estado têm o
dever de amparar as pessoas idosas, assegurando
sua participação na comunidade, defendendo sua
dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à
vida.” Conseqüentemente a Carta Federal outorgou ao
Ministério Público a incumbência de promover a defesa
dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para
tanto, exercer outras atribuições previstas em lei, desde
que compatível com sua finalidade institucional (CF,
arts. 127 e 129).
7. O direito à saúde, insculpido na Constituição Federal
e no Estatuto do Idoso, é direito indisponível, em função
do bem comum, maior a proteger, derivado da própria
força impositiva dos preceitos de ordem pública que
regulam a matéria.
8. Outrossim, o art. 74, inc. III, da Lei 10.741/2003 revela
a autorização legal a que se refere o art. 6.º do CPC,
configurando a legalidade da legitimação extraordinária
cognominada por Chiovenda como “substituição processual”.
10. O direito à saúde assegurado ao idoso é consagrado
em norma constitucional reproduzida no arts. 2º, 3º e 15,
Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado
§ 2º, do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003)
12. Recurso especial parcialmente provido para
reconhecer a legitimidade ativa do Ministério Público
Estadual2. [grifos nossos]
Outra questão, diz respeito à tutela coletiva nas relações de consumo, principalmente em relação aos contratos com os planos de saúde, que
cobram muitas vezes taxas abusivas, podendo em alguns casos resultar em
reparação por dano moral coletivo, quando o abuso praticado atingiu diversos
idosos, além do Estatuto, o CDC aborda a atuação do Ministério Público nesses
casos. Temos também os casos de desrespeito à gratuidade nos transportes
coletivos, com base no art. 230 da Constituição, e dos arts. 39 e 40 do Estatuto,
a jurisprudência do STJ já está consolidada em benefício do idoso, bastando
que o mesmo apresente o documento de identidade, inclusive já se verificou o
tema no Recurso especial 10572743, o qual tratou sobre a conduta de submeter
idosos a cadastramento para desfrutar do passe livre, com o deslocamento
até o local custeado por esses, nesse caso o STJ entendeu inclusive pela configuração de dano moral coletivo, tendo em vista a ilegalidade da exigência
adotada pela empresa.
Portanto, se observa que o Ministério Público tem atuado na defesa
do idoso de forma efetiva e com a legitimidade que as leis lhe conferem, principalmente através da ação civil pública e do inquérito civil, não só coletivamente, como nos casos de direitos individuais indisponíveis, pois os mesmos
segundo o Estatuto devem ser tutelados também pelo órgão ministerial, e este
conforme jurisprudência exposta não tem se esquivado de tal dever.
5 CONCLUSÃO
Por tudo que foi exposto, verificamos quão importante foi o Estatuto
do Idoso ao instituir e dispor sobre os mais diversos direitos da pessoa idosa,
trazendo de forma clara capítulos imprescindíveis que tratam da importantíssima atuação do Ministério Público e da proteção judicial dos interesses difusos,
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 695665 / RS. T.2. Min. Luiz Fux. Julgado em 24.10.2006.
DJ 20.11.2006. p. 276.
3
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1057274 / RS. T.2. Min. Eliana Calmon. Julgado em
01.12.2009. DJ 26.02.2010.
2
231
232
Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos.
O Estatuto legitimou o Ministério Público para representar os idosos
seja de forma coletiva ou individual, esta última quando se tratar de direito
individual indisponível, permitindo a atuação tanto como parte, como fiscal da
lei, garantindo assim que a “terceira idade”, não será esquecida e pelo contrário,
terá prioridade no trâmite processual.
Além do Estatuto que entrou em vigor em 2004, temos a Constituição Federal de 1988, junto com a Lei da Ação Civil Pública de 1985 e o Código
de Defesa do Consumidor de 1990, formando um conjunto das principais
normas sobre processo coletivo a serem aplicadas de forma integrativa e
harmônica na tutela coletiva do Idoso, permitindo que esta venha sendo
exercida de forma eficaz. Portanto, torna-se imprescindível que o órgão ministerial continue com a postura de atuar e lutar pela aplicação e expansão
dos direitos e garantias do idoso.
Por fim, vale ressaltar que muitos ainda não conhecem as disposições
do Estatuto do Idoso, o que vem a ser um obstáculo à sua aplicação, por isso
a publicidade é uma ferramenta essencial no maquinário dessa lei, para que
a mesma gere os frutos almejados, e esperamos que o judiciário não venha
a adotar posturas restritivas, pois como vimos suas inovações e avanços permitem de forma plena e efetiva a concretização dos direitos da pessoa idosa.
Isto fica bastante claro ao observarmos o que dispõe o art. 82: “Para defesa dos
interesses e direitos protegidos por esta lei, são admissíveis todas as espécies
de ações pertinentes”. Tal artigo reflete a essência do Estatuto do Idoso, qual
seja, proporcionar a máxima proteção daqueles que vivem a “terceira idade”.
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21 out. 2010.
233
234
Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre o
Estatuto do Idoso e atuação do Ministério Público
COLLECTIVE GUARDIANSHIP OF THE ELDERLY:
A FOCUS ON THE ELDERLY STATUTE AND THE
ACTUATION OF THE PUBLIC PROSECUTION
SERVICE
ABSTRACT
In the recent years there has been an increasing number of older people in our country, who
are being discriminated and having their rights
omitted in several areas: it is the job market, in
welfare, health, and many others. This study aims
to discuss the collective guardianship of the elderly
when they have violated their rights as members
of a collectivity. Law No. 10,741 established the
Elderly Statute, which came to list the rights of
such people, and the Public Prosecution Service
is the legitimate body in the protection of these,
including when the right is individual unavailable,
so we will not omit the analysis of the later, in order
to treat of that law in a more complete way, since
the very chapter on collective guardianship it is
approached. Therefore, we will analyze the most
relevant provisions of the Statute, and the Public
Prosecution Service has acted on its behalf, also
exposing the Brazilian Collective Microsystem
Procedural and its structure in our planning, to
better understand the collective guardianship. We
use the doctrine and jurisprudence homeland to
make an analysis of how the rights of the elderly
person, either individually or in a community are
being applied to the Brazilian reality, after the
advent of the Elderly Statute and their innovations.
Keywords: collective guardianship of the elderly.
Elderly Statute. Public Prosecution Service. Brazilian Collective Microsystem Procedural.
UMA NOVA FEIÇÃO DO
PARADIGMA DA NECESSIDADE
NA ATUAÇÃO DA
DEFENSORIA PÚBLICA EM
DEFESA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS: ASPECTOS
TEÓRICOS E PRÁTICOS
Bruno Montenegro Ribeiro Dantas
Acadêmico do 9º período do
Curso de Direito da UFRN.
Monitor da disciplina Direito
Processual Coletivo.
RESUMO
A presente tese propõe-se a examinar a legitimidade
da Defensoria Pública para o ajuizamento de Ações
Civis Públicas que tenham por objetos direitos
transindividuais, conferindo-se uma nova feição
ao paradigma da necessidade. Analisar-se-á as
características desta legitimação, bem como a
existência ou não de restrições decorrentes da
atribuição precípua insculpida na Constituição Federal,
tudo em consonância com os preceptivos basilares
da tutela coletiva. Procedeu-se uma interpretação
sistemática, coadunando o paradigma da necessidade
em face de uma novel dogmática, afeta à realidade
social, da qual se sobreleva o direito de acesso à
justiça. Observa-se, sobretudo, os anseios de uma
processualística pautada na vertente instrumental
ora vigente. Neste passo, diante dos fundamentos e
objetivos sociopolíticos colimados na Carta Magna,
sem olvidar do perfil cultural e econômico da
população brasileira, elementos indissociáveis da
hermenêutica aplicável ao microssistema processual
coletivo, infere-se que a Defensoria Pública possui
236
Uma nova feição do paradigma da necessidade na atuação da defensoria pública
em defesa dos direitos transindividuais: aspectos teóricos e práticos
a referida legitimação, mormente em prol dos
necessitados, de sorte que a configuração da
necessidade como pressuposto de sua atuação
há de ser vislumbrada não apenas sob a
perspectiva econômica, senão nas mais diversas
acepções correlatas, restando prescindível
a comprovação individual de carência dos
destinatários, notadamente na atuação atípica
daquela instituição, tendo sido sugeridas alguma
soluções quanto à problemática levantada.
Palavras-chave:
Defensoria
Pública.
Legitimidade.
Direitos
Transindividuais.
Necessidade.
1 INTRODUÇÃO
Ante o atual estágio de miserabilidade que aflige a maioria da população brasileira, eis que o constituinte originário reconheceu, no art. 134 da
Constituição da República, a Defensoria Pública como instituição essencial à
função jurisdicional do Estado, concedendo-lhe a incumbência de promover
a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.
A legislação infraconstitucional já regulamentara o dispositivo
constitucional, deixando patente, doravante, a legitimação da Defensoria
Pública para a defesa de direitos transindividuais, notadamente pela análise
do microssistema de direito processual coletivo, composto essencialmente
pelo diálogo entre as leis federais n.º 7.347/85 e 8.078/90.
Mais tarde, a lei federal 11.448/07 ratificou o que, para muitos, já era
sólido, atendendo aos anseios de uma ordem jurídica lastreada pela criticada
civil law. Deveras, e legalmente legitimada para propor ações coletivas na
defesa de direitos metaindividuais, insurge uma acalorada polêmica acerca
do alcance dessa atuação, a saber, se restrita ou não aos hipossuficientes
econômicos.
A propósito, o objeto de estudo aqui delineado trata exatamente
dessa celeuma, recebendo uma abordagem estreitamente realizada com os
preceitos norteadores do processo coletivo, que clama por mecanismos “efetivadores” de direitos, repudiando qualquer entrave ao fim maior da jurisdição,
Bruno Montenegro Ribeiro Dantas
que visa, como a própria gênese terminológica da expressão sugere, “dizer
o direito”. Busca-se, aqui, soluções que facilitem a prestação jurisdicional,
transplantando o acesso individual à Justiça para a tutela coletiva, apta a evitar decisões contraditórias, de sorte à proporcionar mais eficiência, uma vez
exercida unificadamente, em proveito de todos os substituídos1.
De outro vértice, não raro, no âmbito doutrinário e jurisprudencial,
surgem posicionamentos dissociados da realidade fático-jurídica que ora se
vivencia, sustentando-se a legitimação cingida da Defensoria Pública para,
inexoravelmente, promover a defesa dos economicamente necessitados.
Observar-se-á que um sem-número de argumentos são levantados para
supedanear tal entendimento, com o qual discordamos em todos os termos,
rechaçando-os a tempo e modo.
A análise recairá prioritariamente sobre o paradigma da necessidade, que deverá ser interpretado à luz dos postulados que estruturam a tutela
coletiva.
Eriçadas as primeiras considerações, é basicamente com arrimo
nessas diretrizes que seguirão as linhas desta tese.
2 CONTEXTO ATUAL E ACESSO À JUSTIÇA
O Judiciário hodiernamente tolera uma fase na qual é alvo de
frequentes ataques e críticas, seja pelos meios de comunicação de massas,
seja pelos demais “Poderes” estatais, ou ainda pelos próprios jurisdicionados,
desacreditados nas políticas públicas e no “Ente Público” como um todo. Em
face disso, toda a função judiciária vem convolando seu rumo ao almejo da tão
buscada efetividade da prestação jurisdicional. Princípios como o da celeridade,
eficiência e da economia processual jamais granjearam tanta relevância no
cenário do Direito Público como hoje.
Num país em que as estruturas de poder são constantemente
corrompidas e os menos abastados carecem de entes capacitados a socorrê-
É de bom alvitre ressaltar que a doutrina mais autorizada, quando pretende justificar a legitimação para ações coletivas, subdivide-se em três principais correntes. Defendem, respectivamente,
a legitimação extraordinária por substituição processual, a legitimação ordinária das “formações
sociais” decorrente de uma leitura ampla do art. 6º do CPC e a “legitimação autônoma” para
condução do processo, espécie de legitimação extraordinária. Estamos com esta última posição.
1
237
238
Uma nova feição do paradigma da necessidade na atuação da defensoria pública
em defesa dos direitos transindividuais: aspectos teóricos e práticos
los, só lhes restam inconscientemente buscar aqueles os quais respaldam
sua atuação num ideal aparentemente menos utópico e mais veraz do que
convincentes falácias retóricas bem entoadas, a saber, as estruturas que se
baseiam no dogma da Justiça.
Com vista nisso, e no chamado “unfair play” (jogo injusto) o qual
John Rawls tanto mencionou, cabe ao Poder Judiciário e aos entes como o
Ministério Público e a Defensoria Pública, exempli gratia, arcarem com o ônus
de trazer a Justiça aos incrédulos indivíduos, atendendo aos desejos de que
sempre careceu a sociedade, mas nunca deixou de acreditar que um dia os veria
atendidos. Neste passo, reiteradas quebras de paradigmas foram e continuam
sendo necessárias para atingir um fim maior. O Estado, então, se apresenta
com o encargo importante de fornecer à população o que ela tanto almeja e
o que a ela vem sendo negado constantemente: oportunidades.
O acesso à justiça é um pressuposto essencial do modelo jurídico
moderno e característica inerente ao Estado Democrático de Direito, que
não sobrevive sem a idéia de que seu povo esteja amparado por uma ordem
jurídica justa. Observou Bobbio (1992 p. 25), que “não estamos mais na era
de declaração de direitos, estamos na era de sua efetivação”, ou seja, não é
bastante teorizar o princípio do acesso à justiça, como o era outrora, de forma
que o seu exercício pleno se impõe. Ademais, a expressão acesso à justiça
recrudesceu, ganhando um teor mais abrangente, democrático, que deve
ser “concebido além do acesso ao Judiciário, igualmente acessível a todos, e
cujos resultados céleres, temporais e concretos devam ser individualmente e
socialmente justos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.8).
3 DEFENSORIA PÚBLICA E OS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS
O Poder Judiciário, padecendo da sobrecarga de demandas,
caracteriza-se cada vez mais pela morosidade, em decorrência da denominada hiperinflação de acesso. A solução de litígios de forma coletiva é indiscutivelmente um facilitador de acesso à justiça, trazendo inúmeras benesses,
dentre as quais podem ser elencadas a redução das decisões contraditórias, o
aceleramento dos processos e a diminuição da carga de demandas individuais
no Judiciário, atendendo, inclusive, a um batalhão de pessoas que não teria
direito ao acesso por desconhecer seus próprios direitos ou por faltar-lhe a
representação adequada.
Bruno Montenegro Ribeiro Dantas
Com efeito, não subsistem condições estruturais para atuar somente
de forma individualizada, que não resolvem conflitos em massa, senão geram
gastos públicos excessivos com inúmeras atuações isoladas do órgão jurisdicional. Enfim, torna o sistema ainda mais lento e desacreditado.
A missão constitucional conferida à Defensoria Pública incumbiu-lhe
de prestar assistência jurídica integral aos necessitados, cabendo-lhe a adoção
das medidas imperiosas neste sentido.
Tal instituição, a nosso sentir, já poderia propor ações civis públicas
ou coletivas mesmo antes da Lei n.º 11.448/07, face à permissão que já lhe dava
o art. 82, III, do Código de Defesa do Consumidor, uma vez ser um órgão público
sem personalidade jurídica destinado a exercitar a defesa dos necessitados
(CR, arts. 134 e 5º, LXXIV). Todavia, para evitar maiores controvérsias tanto na
jurisprudência quanto na esfera acadêmica, o legislador, com acerto duvidoso
(estimulando cada vez mais a retrógrada tradição da Civil Law) reconheceu,
expressamente, a legitimidade ativa das Defensorias Públicas.
Demais disso, ressalte-se que a Constituição e as leis vêm alargando
a legitimação ativa em defesa de interesses transindividuais (cidadão, associações civis, sindicatos, Ministério Público, pessoas jurídicas de direito público
interno, entidades e órgãos da administração direta ou indireta, ainda que sem
personalidade jurídica, etc.) e que, ao contrário do que se poderia imaginar, a
legitimidade da Instituição Defensorial não é subsidiária, mas sim concorrente
e disjuntiva com relação aos demais legitimados.
A tendência da dogmática ora vigente no ordenamento jurídico
brasileiro, constatada inclusive nos anteprojetos de Código Processual Coletivo Brasileiro, é que o princípio da legitimação adequada receba cada vez
mais prestígio nos processos coletivos, de modo a superar uma fase na qual
a legitimação ativa é tão-somente fixada ope legis, auferindo uma dilatação
e qualificação cada vez mais veementes no que tange o rol de legitimados.
Perfeitamente possível, desta feita, a adoção da Ação Civil Pública
ou coletiva pela Defensoria Pública para a defesa de direitos difusos, coletivos
e individuais homogêneos, devendo-se enfatizar, portanto, que a natureza
coletiva desses conflitos reclama tratamento diferenciado pelo direito
processual.
3.1 A atuação da Defensoria Pública e o Paradigma da Necessidade
Convém enfatizar que uma vez identificado o bem jurídico violado e verificados os lesados como pessoas necessitadas, abstrai-se como
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240
Uma nova feição do paradigma da necessidade na atuação da defensoria pública
em defesa dos direitos transindividuais: aspectos teóricos e práticos
indiscutível a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura da ação
correspondente.
O nó górdio da questão e objeto do presente estudo reside na
seguinte indagação: É possível para a Defensoria Pública propor ação civil
pública em defesa de um grupo indeterminável de pessoas ou somente de
pessoas determinadas, identificáveis, e necessitadas? (MAZZILLI, 2008, p. 300)
A polêmica ganha relevância principalmente porque, numa ação
coletiva, não raro estar-se-á defendendo direitos difusos, cujos titulares são
indetermináveis, podendo haver, entre os lesados, pessoas necessitadas ou não.
Uma singela análise do artigo 134 da Constituição Federal parece
permitir a alegação peremptória de que a Defensoria Pública somente trata
de interesses dos necessitados.
Muito embora tal instituição ostente o status de auxiliar da justiça,
destinada a beneficiar pessoas carentes no acesso à jurisdição, não é viável
mobilizá-la, tão-somente, a este desiderato. Realizada uma interpretação sistemática da própria Constituição e da legislação infraconstitucional, cum grano
salis, chega-se ao entendimento mais amplo, devendo-se buscar o modo pelo
qual os direitos sejam mais resguardados.
A crítica que se interpela contra a interpretação ampliativa, que ora
se defende, pauta-se, deveras, em teses inócuas, carentes de fundamentação
jurídico-hermenêutica. Sustentam a necessidade da demonstração de um
nexo entre a demanda coletiva e o interesse de uma coletividade composta
por pessoas “necessitadas”, que comprovem a carência econômica, sob pena
de exorbitância da competência da Defensoria Pública face à literalidade do
texto constitucional. No mais, argumenta-se que a legitimação da Defensoria
Pública estaria afrontando diretamente as atribuições do Ministério Público.
Com a devida vênia aos posicionamentos neste sentido, impende
destacar que tais pretensões não merecem prosperar. De forma inarredável,
consideramos um retrocesso imaginar que a existência de outros interessados - desnecessitados – poderia impedir a defesa dos interesses daqueles que
são necessitados e carecem, consequentemente, de maior tutela do Estado.
A própria discussão revela-se paradoxal em si, mormente na já citada hipótese, referente aos direitos difusos, sendo que estes não podem ser
aquinhoados ou terem identificados os titulares do direito violado, restando
impraticável sustentar a defesa de direitos difusos apenas dos necessitados.
A alegação de violação às atribuições do Órgão Ministerial consiste, praticamente, em defender que somente ao parquet caberia a defesa
dos interesses sociais e individuais indisponíveis na qualidade de substituto
Bruno Montenegro Ribeiro Dantas
processual, restando à Defensoria apenas a representação, ou seja, atuando
em nome do próprio titular do direito ofendido.
Nessa esteira, questionar a legitimação da Defensoria sob o argumento de que sua atuação afeta as atribuições do Órgão Ministerial é um
despautério. É curioso o fato de que a grande maioria dos órgãos judicantes,
entidades correlatas e demais instituições públicas se queixam do excesso
de serviços, da sobrecarga de demandas, revelando-se, quando pouco, contraditório suscitar “invasão de atribuições” diante do quadro de ineficácia dos
direitos, que por ora se constata.
Em verdade, não importa qual dos legitimados promoveu a ação
coletiva, e sim reste efetivada a tutela jurisdicional referente aos direitos transindividuais. A interpretação normativa não poderá ter como pano de fundo
o maior ou menor prestígio de tal ou qual instituição, senão homenagear seu
escopo essencial, qual seja, a defesa eficiente dos direitos coletivos lato sensu.
A tendência, repita-se, é o alargamento da legitimação ativa em defesa desses
direitos. Pensar diferente seria atentar contra o próprio cerne do processo
coletivo, seria incorrer em um legalismo anacrônico.
Trago à colação, ainda, o magistério do eminente professor Mazzilli
(2008, p. 301), referendando o sustentado até então, ipsi litteris:
Não nos impressiona o argumento de que, assim, a
Defensoria Pública estaria a invadir atribuições do Ministério Público, seja porque as atribuições do parquet na
promoção da ação civil pública não lhe são exclusivas,
seja porque, embora tenha ele atribuições inconfundíveis com as da Defensoria Pública, existem áreas de
superposição entre ambos, como também existem entre
Ministério Público e Procuradoria do Estado, sem que
com isso cada qual perca sua identidade.
Ressoa evidente, assim, que o paradigma da necessidade, norteador
da atuação da Defensoria Pública, há de ser interpretado com cautelas, a mercê
de incorrer em sérios prejuízos para os jurisdicionados, excluindo, tacitamente,
aquele órgão do rol de legitimados para tutelar direitos difusos, titularizados
por uma coletividade indeterminável de pessoas, o que destoa dos objetivos
colimados pelo legislador.
O próprio conceito de hipossuficiente deve ser interpretado à luz do
texto constitucional. Ressalte-se a existência da hipossuficiência econômica,
cultural, social e política, além de outras, de maneira que nem toda atuação
241
242
Uma nova feição do paradigma da necessidade na atuação da defensoria pública
em defesa dos direitos transindividuais: aspectos teóricos e práticos
da Defensoria Pública deve limitar-se aos pobres.
O paradigma da necessidade é relativizado pela própria Constituição
Federal e pela legislação infraconstitucional. Há dispositivos constitucionais
permitindo atuação da Defensoria Pública para “desnecessitados”, verbi gratia,
o que estabelece sem qualquer restrição a garantia ao contraditório e ampla
defesa, e isto jamais será postergado ante um direito indisponível como a
liberdade, de modo que, mesmo quando um acusado desnecessitado se
recusar a constituir defensor em um processo criminal, o Estado assegurará a
efetivação da garantia constitucional susomencionada, sendo, aliás, constante
esta situação no cotidiano forense.
Em situações como estas jamais se cogitou questionar a atuação
da Defensoria Pública, ou se pretendeu mitigá-la. Outras hipóteses similares
também são conhecidas pelo ordenamento jurídico, como nos casos em que
aquele Órgão atua como curador especial ou na defesa de crianças e adolescentes. Aqui também já não se questiona a hipossuficiência econômica para
fins de atendimento pela Defensoria Pública. A Lei Complementar nº 80/94,
que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios, prescrevendo ainda normas gerais para sua organização nos Estados,
auferiu, inclusive, outras funções que não as enumeradas no rol exemplificativo
preconizado em seu artigo 4º.
Sem embargo, redunda equivocada a insistência em alegar que
a Defensoria Pública estaria adstrita inexoravelmente à assistência dos
hipossuficientes financeiros, máxime pela novel bifurcação das atividades
deste ente público, que exerce, vale dizer, funções típicas e atípicas.
3.1.1 Funções típicas e funções atípicas
É lamentável
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a visão extraída do voto-vista do Ministro Teori Zavascki, no REsp n.º 912.849-RS, no qual se consignou que a decisão coletiva em
ação proposta pela Defensoria Pública somente pode beneficiar pessoas que
comprovarem a necessidade, demonstrando tal condição na fase de liquidação e execução. Concordar com tal posição, repita-se à exaustão, seria ignorar
todos os postulados do processo coletivo, que visa prioritariamente celeridade,
eficiência e economia processuais, bem como simplificar o acesso à justiça. Por
óbvio, qualquer vítima, sendo ou não necessitada, poderá promover liquidação
e execução da sentença prolatada em âmbito coletivo.
Compactuamos, neste particular, com a dicotomia idealizada pelos
professores Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., para quem a Defensoria Pública
Bruno Montenegro Ribeiro Dantas
apresenta funções típicas e atípicas.
As funções típicas referem-se à tutela dos necessitados economicamente, em consonância com o art. 5, LXXIV da CRFB. Nesta hipótese, entendemos ser aconselhável à Defensoria Pública a realização de uma “triagem”,
um procedimento que proporcione a identificação dos destinatários de sua
atuação, ou seja, aqueles que demonstrem insuficiência de recursos para
custear a tutela individual.
Noutro pórtico, vale frisar ainda o exercício das funções atípicas
por parte da Defensoria Pública, que prescinde da hipossuficiência financeira
de seus assistidos. Em sua atribuição atípica, “seu destinatário não é o necessitado econômico, mas sim o necessitado jurídico” (DIDIER JR.; ZANETI, 2010,
p. 217, v. 4).
A tutela recai, não raro, no direito da coletividade, beneficiando-se,
consequentemente, todos os seus membros. Outrossim, é oportuno lembrar
que os legitimados para a propositura da Ação Civil Pública atuam em forma
de substituição processual –embora haja desarmonia na doutrina - e não na
forma de representação processual, não devendo, aqui, ser levado em conta
a qualidade de quem provocou a jurisdição, e sim o fato de que quem exerce
o direito de ação o faz em nome alheio, o que por si só demonstra que a Defensoria Pública, no exercício da legitimidade da Ação Civil Pública não age
em defesa dos seus próprios interesses.
É salutar, assim, enfrentar as dificuldades na definição “do atuar”
da defensoria pública perante as peculiaridades de cada um dos direitos
coletivos lato sensu, bem como nas situações mais suscetíveis de problemas
metodológicos.
Defendemos, sopesados os argumentos em contrário, que nas hipóteses de interesses ou direitos difusos, a Defensoria Pública sempre estará
legitimada para a propositura da ação civil pública ou coletiva, mormente
pela faceta “filantrópica” do exercício dessa tutela e pelo abrangente benefício
proporcionado à esfera jurídica dos necessitados, de maneira que eventuais
proveitos auferidos pelos que não comprovarem a necessidade devem ser
considerados mera conseqüência da observância do dever funcional e missão
constitucional reservada à defensoria. A doutrina do tema ratifica:
Não se pode conceber, ainda que individualmente, onde
acaba a quota de um e começa a de outro. As entidades
voltadas para a proteção dos direitos coletivos não têm
como finalidade específica a proteção dos interesses de
243
244
Uma nova feição do paradigma da necessidade na atuação da defensoria pública
em defesa dos direitos transindividuais: aspectos teóricos e práticos
determinada corporação ou classe, mas sim dos interesses da sociedade como um todo, o que lhes confere um
caráter altruístico (BOTTINI; PEREIRA, 2008.)
Neste caso, exigir a demonstração do atendimento aos interesses
dos necessitados, como “pressuposto de legitimação” autorizador da atuação
da Defensoria Pública, é irrealizável, principalmente quando se leva em consideração a opção legislativa, que em relação aos direitos difusos foi estabelecer
a coisa julgada erga omnes (artigo 103, I do CDC). Ao se proteger um bem jurídico que pertence a todos, não há dúvidas de que os necessitados estarão
incluídos neste contexto, inclusive por corresponderem, lamentavelmente,
a esmagadora maioria da população de um País com os descalabros sociais
como o Brasil.
No que tange aos direitos coletivos, a meu juízo, estaria a Defensoria
Pública autorizada a tutelá-los integralmente, desde que identificável alguma
parcela em condição de necessitado (por qualquer de suas facetas) entre os
integrantes do grupo, classe ou categoria desprovido de proteção, de sorte
que a coisa julgada em relação à tais direitos é ultra partes (artigo 103, II do
CDC), vale dizer, limitada ao grupo, categoria ou classe respectiva.
Por último, nas situações referentes aos interesses e direitos individuais homogêneos, estamos que caberia à própria Defensoria Pública fazer
um juízo de conveniência e oportunidade, uma vez que ninguém melhor do
que seus próprios membros para avaliar as capacidades de produção e suas
limitações, notadamente para o exercício de funções atípicas. Não é demais
repisar que, se o membro da Defensoria Pública reputar-se apto à atuar em
qualquer de suas funções – considerando a dicotomia supra-, a coletividade
titular dos direitos transindividuais será beneficiada com isso, contando com
outro ente interessado em efetivar os referidos direitos.
Com relação à repercussão da coisa julgada coletiva no plano individual, interessante trazer à baila outra lição dos professores Didier Jr. e Zaneti
Jr (2010, p. 218, v. 4), in verbis:
“É claro que somente remanesce legitimação coletiva
para a Defensoria Pública promover a execução individual da sentença genérica (direitos individuais homogêneos, art. 98 do CDC), se as vítimas já identificadas
forem pessoas necessitadas.”
Bruno Montenegro Ribeiro Dantas
A solução alvitrada, ao nosso sentir, e que se coaduna com as diretrizes magnas traçadas pelo espírito do processo coletivo (que, em suma
servem para tutelar os novos direitos e resolver os litígios repetitivos), é a de
que em se tratando da fase de liquidação e execução, a Defensoria Pública
estará autorizada à atuar nas execuções de sentenças genéricas prolatadas
em sede de processos coletivos, desde que os necessitados estejam individualmente identificados, sejam eles hipossuficientes econômicos ou jurídicos,
destinatários principais desta instituição, atendendo aos anseios do legislador
ordinário, que estabeleceu no CDC que a coisa julgada estende seus efeitos ao
plano individual in utilibus. Restará ainda, vale dizer, legitimada para liquidar
e executar a indenização nos casos do art. 100 do CDC, notadamente na ausência de interessados, inertes e cuja tutela de seus direitos seja incumbência
daquela instituição.
Em suma, concordamos com a legitimação incondicionada da Defensoria Pública no concernente à fase de conhecimento. No módulo executório, bem como na liquidação, mormente em suas “funções atípicas”, reputamos
viável uma atuação revolvida de discricionariedade, a saber, segundo um juízo
de conveniência e oportunidade em ingressar com tal ou qual medida, dentre
todas as suas atribuições diárias.
Mais uma vez, trago o escólio do eminente professor Mazzilli (2008,
p. 300):
Não cremos seja acertado o entendimento restritivo a
propósito das atribuições da Defensoria Pública, porque
negaríamos os próprios fundamentos do processo coletivo se concluíssemos pudesse ela defender um único
necessitados, ou até todos eles, desde que o fizesse um
a um, mas não os pudesse defender a todos, de uma só
vez, num único processo coletivo.
Parece acertado, a rigor, defender a incontroversa desnecessidade
de que toda a coletividade, grupo ou interessados tutelados pela
Defensoria Pública na defesa de direitos metaindividuais sejam formados,
inexoravelmente, por pessoas necessitadas economicamente, uma vez
que beneficiários dessa atuação podem não ser hipossuficientes, ou sê-los,
porém, sob outras acepções.
245
246
Uma nova feição do paradigma da necessidade na atuação da defensoria pública
em defesa dos direitos transindividuais: aspectos teóricos e práticos
4 CONCLUSÕES
Conseguintemente, infere-se que ganha relevância na tendência do
Direito Processual Coletivo hodierno o papel da atuação da Defensoria Pública em defesa dos direitos transindividuais e que, concomitantemente a isso,
sobreleva-se a função típica dessa instituição em agir em consonância com as
atribuições auferidas pela Constituição Federal e demais diplomas normativos,
pugnando-se, ainda, pelas medidas cujos benefícios se estendam para além
das esferas dos necessitados financeiramente, de forma a corroborar com a
quebra do antigo paradigma da necessidade, sob o qual, por muito tempo,
pairou inexoravelmente o agir da Defensoria Pública, que deve corporificar-se
cada vez mais como instituição com ênfase proeminentemente social.
Não se pode olvidar que todo o arcabouço normativo e principiológico ampara a adoção de medidas de proteção aos bens jurídicos transindividuais, bem como um recrudescimento no rol de legitimados, não sendo
plausível que a alteração recente da lei para incluir a Defensoria Pública no
referido rol sem qualquer ressalva expressa venha admitir interpretação limitadora de sua atuação, contrariando o desiderato basilar das ações coletivas,
qual seja, a proteção dos interesses coletivo lato sensu.
Em última análise, a Defensoria Pública não poderia eximir-se do
dever de possibilitar o acesso à justiça ao carente simplesmente por ocasionar
o benefício concomitante ao não carente. Inexiste, doravante, a exigência de
que a coletividade tutelada por este órgão, nas demandas transindividuais,
seja exclusivamente de pessoas necessitadas, pois se assim o fosse, estarse-ia ofendendo fundamentos basilares tais como a dignidade da pessoa
humana e a própria igualdade material deste País, composto em sua maioria
por hipossuficientes socioeconômicos, além do próprio acesso à justiça,
constituindo um verdadeiro retrocesso no direito brasileiro, considerado,
internacionalmente, um avançado sistema de tutela coletiva.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um
novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003.
Bruno Montenegro Ribeiro Dantas
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2008
BOTTINI, Pierpaolo Cruz; PEREIRA, Marivaldo de Castro. A Defensoria Pública
perante a tutela dos interesses transindividuais: atuação como parte legitimada ou como Assistente Judicial. In: A Defensoria Pública e os processos
coletivos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.
DIDIER JR. Fredie; ZANETI JR. Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 5. ed. V. 4. Salvador: JusPodivm, 2010.
GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Código brasileiro de defesa do consumidor
comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2005.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública em defesa do meio
ambiente do patrimônio cultural e dos consumidores. 8. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos direitos difusos em juízo. 21 ed. São
Paulo: Saraiva, 2008.
A NEW VIEW OF THE PARADIGM OF NECESSITY
IN THE PERFORMANCE OF PUBLIC DEFENDER
IN DEFENSE OF THE TRANSIDIVIDUAL RIGHTS:
247
248
Uma nova feição do paradigma da necessidade na atuação da defensoria pública
em defesa dos direitos transindividuais: aspectos teóricos e práticos
THEORETICAL AND PRACTICAL ASPECTS
ABSTRACT
This thesis proposes to examine the legitimacy
of the Public Defender for the filing of civil class
actions which have as their object transindividual
rights, which gives a new aspect to the paradigm
of necessity. It will analyze the characteristics of
this legitimacy, and the presence or absence of
restrictions from the main attribution inscribe in
the Constitution, all in keep all in keeping with the
basic precepts of collective protection. There has
been a systematic interpretation, harmonizing the
paradigm of necessity in face of a new dogmatic,
affects the social reality of which outweighs the
right of access to justice. There is, above all, the
desire for a proceduralistic based on the prevailing
side instrumental. In this step, before the collimated sociopolitical motives and objectives in the
Constitution, without forgetting the cultural and
economic profile of the population, as inseparable
from the hermeneutic procedure applicable to
micro-collective, it is clear that the Public Defender
has referred the legitimacy, especially in support
the needy, so that the configuration of the need as
a precondition for its action is to be glimpsed not
only from the economic perspective, but in several
related meanings, leaving dispensable proof of
lack of individual recipients, especially in the atypical role of that institution, having been suggested
some solutions regarding the issues raised.
Keywords: Public Defender.
Transindividual rights. Necessity.
Legitimacy.
Artigo
Convidado
REFLEXÕES SOBRE NAÇÃO,
ESTADO SOCIAL E SOBERANIA
Paulo Bonavides1
RESUMO
Condensa este artigo, de início, o substrato idealista
do conceito de nação. Emprega vocabulário de termos afins e usuais que, em geral, denotam o sentido
utópico daquela expressão, de profundas raízes
políticas e espirituais. Sem embargo de toda a complexidade conceitual e cognitiva, a nação continua
sendo, em certa maneira, a força motriz do universo
político de nosso tempo, como expressão de poder
e de vida. Algumas reflexões aqui expendidas acerca
das implicações de sua associação à temática do
Estado social, da soberania e da federação têm em
vista designadamente a realidade do Brasil, em
seus elementos históricos, com abrangência de três
épocas: a colonial, a monárquica e a republicana.
Palavras-chave: Nação, Colônia, Monarquia, Estado
social, Soberania nacional, Democracia, Justiça
social.
CONCEITO IDEALISTA DE NAÇÃO
NAÇÃO é alma, consciência, sentimento, humanismo, cidadania e
apotegma de valores. Nação é o povo na intuição da fraternidade, da justiça e
da liberdade; nação é direito, integridade e dignidade cívica na comunhão do
Paulo Bonavides é catedrático emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Ceará,
em Fortaleza. Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa e Autor de diversas obras jurídicas reconhecidas internacionalmente.
1
252
Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania
destino, na solidez compacta dos valores, no patrimônio dos tempos onde jaz
a grandeza das tradições; na memória perpétua e coletiva da identidade, na
correnteza das idéias que perenizam a energia do povo em se manter uno na
adversidade e estóico na amargura dos reveses.
Nação é a marcha para a universalidade, o caminho moral do homem
em direção às apoteoses do triunfo e a bem-sucedida convivência de todas
as parcelas sociais.
Nação é sacrifício, abnegação e sangue nas causas que confinam
com o heroísmo do gênero humano; é também a expressão da imortalidade
do povo calcinado de dores, mas resgatado de esperanças.
Nação é o culto do solo, o gênio da língua, a inspiração da poesia,
a música do patriotismo, a fé da religião, a força da ideologia, a vocação da
liberdade e do direito; todos esses valores que as gerações memorizam e consagram, movidas da esperança, e do propósito e do pensamento de fazê-los
eternos e indestrutíveis como as forças supremas da natureza, sobre as quais
não tem o homem jurisdição para cominar-lhes a pena capital e extingui-las.
Nação é a pátria que gera os bravos, os justos, os artesãos do progresso e da civilização, tecendo o fio da igualdade para estendê-lo a todas as
esferas sociais; nação é a pátria mesma dizendo não à soberbia, ao ódio, ao
privilegio, ao preconceito, à discriminação.
Nação é o breviário que psicologicamente liberta o ser humano
dos cativeiros espirituais e das sujeições materiais por onde se lhe corrompe
a índole; é do mesmo passo o compromisso pela causa dos oprimidos; o pavilhão dos combatentes patriotas soerguendo o braço e a voz das resistências
constitucionais para colocar o Estado ao serviço dos magnânimos interesses
sociais que fazem a dignidade do homem elevar-se às alturas da fruição de
todos os direitos fundamentais possíveis.
Nação é a história e o idioma forjando o elo de união das gerações
passadas, coevas e porvindouras, projetando assim a imortalidade da pátria
e a eternidade do direito natural na consciência dos homens.2
Na nota 11 do capítulo 5 da nossa Ciência política (São Paulo, Editora Malheiros, 2007, p.88)
reproduzimos lugares admiráveis da obra de Ramalho Ortigão em que esse primoroso escritor
mostra como Portugal se vincula a Os lusíadas. Com efeito, após cair debaixo do domínio espa2
Paulo Bonavides
Nação, entre os povos periféricos, representa a luta pelo Estado da
cidadania livre, democrática e participativa, garantindo a paz, distribuindo
justiça, conciliando classes, protegendo categorias do corpo social.
Nação é a tópica nos tribunais solvendo com a hermenêutica da
eqüidade, por via ponderativa, os casos em que o capital, seguindo a esteira da ambição, da cupidez e da injustiça, comprime e esmaga a causa do
trabalho e destrói com a guerra criminosa a harmonia, a cooperação e a paz
social dos povos.
Nação, segundo o conceito anteriormente exarado, já se vincula,
pelos novos métodos e instrumentos interpretativos, com o princípio, a noção
e a idéia de Estado social; em breve será esse objeto de desenvolvimento no
conspecto das presentes reflexões.
Conduzido ao domínio jurídico, o conceito de nação se prende ao de
soberania constitucional, porque essa é a raiz contemporânea mais profunda
do direito; é, em certa maneira, a forma suprema e absoluta de criar, exercitar
e concretizar os poderes constituintes como órgãos de soberania que se legitimam como expressão da vontade nacional.
Nação incorpora, por conseguinte, a legitimidade do povo soberano
promulgando as constituições democráticas do contrato social.
Levando, porém, mais longe, como urge, a especificidade de uma
preferência fundamental derivada da ideologia e da pré-compreensão axiológica, eleja-se por conceito de nação não apenas o que acabamos de exarar,
versando-lhe a dimensão jusociológica e também jusfilosófica, senão este que,
a seguir, flui do pluralismo, e da generalidade das suas fontes existenciais de
matéria e espírito e nos diz numa síntese substancial ser a nação o solo, a pátria,
o povo, cristalizados e condensados no tempo e no espaço como vontade e
determinação de vida.
nhol, a nação, ferida de morte, desapossada da independência, ainda sobrevive e, em seguida,
se restaura depois de sessenta anos de cativeiro. O poema de Camões, memória e breviário das
glórias de Portugal, conquistadas pelas caravelas dos navegadores, inspira diretamente a ressurreição, em 1640, da independência perdida no deserto africano, entre as areias de Alcácer
Quibir. São páginas da história, em que a nação, ilustrada nesse exemplo, se vê restituída ao seu
papel de mantenedora e guarda de um passado, que foi parte do patrimônio da civilização e
ficou perenizado pelo gênio de Camões nas estrofes do poema imortal, “pedra monumental”,
onde, segundo Ortigão (Figuras e questões literárias, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 2. ed, 1945,
t.I, p.199, 200-3 e 213-9), “os portugueses terão de vir afiar as suas espadas de combate [...] para
resistir a esta invasão terrível com lutamos e que se chama – a decadência”
253
254
Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania
Nessa longa seqüência de reflexões sobre o sentido e o conceito
axiomático de nação, colhido da história, da tradição e das suas raízes morais,
culturais e espirituais, é possível estabelecer a identidade e a vocação dos povos
para perpetuar elementos de cultura, de vida, de solidariedade, de consenso e
valor, que a retórica de Renan resumiu e condensou nesta expressão célebre:
“a nação plebiscito de todos os dias”.
Com o desenvolvimento da doutrina, o conceito complexo de nação,
antes de chegar à inteligência, à razão e ao cérebro já cursou a intuição, o sentimento e o coração. E aí fez, por muito tempo, sua morada, e não ali, porque
é no músculo nobre da vida, nas suas palpitações, que a nação nasce com o
patriotismo e fenece com as circunstâncias e vicissitudes do tempo, pelo açoite
das discórdias e das dissidências, pela fereza dos ódios civis inconciliáveis, pelo
separatismo e secessão que acendem as labaredas da guerra civil, pela traição
das elites extremistas e radicais que não raro atraem aos rincões do solo pátrio
a intervenção das armas estrangeiras.
Armas, em geral, desagregadoras e perpetuadoras habituais do
quebrantamento da unidade nacional, desfeita na colisão ideológica, arruinando nações, espargindo rancores, abrindo as feridas do passionalismo
ressentido. Essas, nem o tempo, que tudo apaga e cicatriza com a distancia
histórica, logra fechar.
Com efeito, tais desastres acontecem sempre, mediante o rompimento da coesão, do equilíbrio e da unidade dos sistemas, dissolvidos na
fragilidade das bases de anuência e contratualismo. Isso quando o bom senso
já não tem linguagem nem força nem capacidade para opor-se, vitorioso, à
degeneração e à falência que os mergulhou na corrupção; quando aqueles
dois poderes, a saber, o Executivo e o Legislativo, se eximiram de exercitar sobre a cidadania a jurisdição da legitimidade; quando o Legislativo, convertido
numa assembléia de capitulações e de deserções aos deveres da legislatio, é
apenas a sombra funesta de um parlamento que abdicou competências de
órgão de soberania e se rendeu à prepotência e soberba de um poder rival;
quando o Executivo, nas suas expansões de arbítrio, invade prerrogativas dos
poderes constitucionais de ação paralela no exercício da soberania, quando os
dois poderes mais ativos dessa mesma soberania – um que faz leis, outro que
as executa –, desfalcados da ética dos governantes e da fé dos governados,
se retraem da senda democrática por resvalarem no abismo da tirania e na
fatalidade das ditaduras; quando aquele Executivo, enfim, faz das Medidas
Provisórias o salvo-conduto de todas as usurpações e violações ao princípio
da separação de poderes, e o poder governante despedaçando a Lei Maior
Paulo Bonavides
se transfigura em fantasma da Constituição e opróbrio da democracia e do
Estado de Direito.
A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE, DESDE O BRASIL COLONIAL AO BRASIL
MONÁRQUICO.
Na época do Brasil colônia as guerras coloniais de fundo nativista
foram, por sem dúvida, as primeiras manifestações embrionárias da nacionalidade em gestação. E o foram por obra social de luta, de resistência, de
adesão do elemento humano aglutinado no processo assimilativo por onde
se ia formando e definindo com lentidão uma conjunção de bens, interesses e
valores, que abrigavam precursoramente o sentimento de autodeterminação.
Mas foi a tragédia da Inconfidência, o cadafalso de Tiradentes, o
degredo de patriotas nas selvas e asperezas dos sertões africanos, bem como
a repressão cega desencadeada da metrópole com o braço-de-ferro dos seus
prepostos, que convergiam para a formação de uma consciência tosca e rudimentar, de substrato um tanto autonomista, do elemento colonial.
Com efeito, tudo dantes confluía para o estuário da violência e da
opressão. Mas a força feroz do colonialismo fora impotente em riscar ou apagar
da memória a brasilidade nativa de Porto Calvo e dos Guararapes, coroada de
feitos que culminaram na expulsão dos invasores holandeses e no estabelecimento de fortes laços de comunhão de sangue e cooperação, das três etnias
constitutivas do primitivo tecido da nacionalidade. Essa união, a historiografia
há celebrado por um dos fatores que criaram o germe da consciência nacional
num período ainda recuado da colonização.
Na guerra surda do Brasil colônia, aparelhou-se a substituição do
espírito colonial de vassalagem das populações nativas por um espírito diverso,
que alentava o ânimo secessionista da emancipação, conforme ficara patente
nas tribulações da Inconfidência Mineira, desde o final do século XVIII. Desse
derradeiro espírito vingaram depois duas sementes: a de Estado, que elevou
o Brasil de colônia a reino unido, sob o pálio da coroa bragantina, e a de nação
com a Revolução Pernambucana de 1817, debaixo do influxo republicano e
federativo da União Americana.
A fase imediatamente precursora da emancipação formal, contudo,
só transcorre quando se dá a transmigração da corte portuguesa à colônia,
com a fuga de D. João VI aos exércitos invasores de Napoleão, comandados
por Junot.
255
256
Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania
E se estende até a volta do rei a Portugal, em 1821. Não podemos
deixar de ter, porém, na vinda de D. João VI e sua comitiva de fidalgos um dos
episódios que mais aceleraram o processo constitutivo das nacionalidade.
Passos fundamentais se deram nesse sentido. A trasladação, por
exemplo, fez o Brasil sede provisória da monarquia portuguesa, gerando efeitos positivos de progresso na organização administrativa do país emergente.
Do mesmo modo, o decreto de abertura dos portos, seguido alguns
anos mais tarde da Carta Régia de 1815, que estabelecia o reino unido, passando a certidão do nascimento de um novo ramo institucional da monarquia
portuguesa, erguido no continente, pareciam inculcar um certo grau de
autonomia com o propósito de pôr freio às iminentes erupções do vulcão
separatista, que D. João VI tão bem intuiu na despedida saudosa ao aconselhar
o filho a cingir a coroa imperial.
A seguir, houve o grito do Ipiranga, que proclamou a independência,
dissolveu o reino unido e pôs termo à união política dos dois povos; união
desigual que encobria a continuidade do vínculo colonialista à velha metrópole, conforme ficou comprovado pelos decretos reacionários e restauradores
das cortes de Lisboa, os quais precipitaram o movimento da independência,
consumada formalmente em 7 de setembro de 1822.
Despontava o Estado sob a forma de Império, mas a nação
prosseguia a caminhada rumo à definição e consolidação da identidade.3
Com a independência, José Bonifácio era a Monarquia; com a Confederação
do Equador, em 1824, Frei Caneca era a República. Mas essa só veio 67 anos
depois. A primeira ocupa quase todo o século XIX; a segunda chega até aos
nossos dias: são cinco repúblicas, com a de 1988, desde a queda do Império.
O Império constituiu a menoridade; a República, a maioridade na
formação do nosso povo como nação e Estado. Maioridade alcançada, sem
embargo do feudalismo branco dos coronéis. Durante a Primeira República
prevaleceu o fenômeno social e político do coronelismo, em substituição da
sociedade de senhores e escravos, ou seja, da casa grande e senzala, cujos
traços de hegemonia desapareceram com a abolição. Os coronéis, sucessores dissimulados dos senhores do cativeiro, mantinham, porém, em servidão
branca, consideráveis contingentes da população rural, privada do exercício
É possível lavrar a certidão de idade de um Estado porque o Estado é como a lei: tem data certa
de seu estabelecimento. A nação, ao revés, é como o costume: obra do tempo, não se lhe conhece, todavia, o momento em que aparece ou ingressa na história.
3
Paulo Bonavides
da legítima cidadania, porque não era cidadania o voto de quem assinava em
cruz atas eleitorais falsificadas.
Os braços do campesinato sustentavam, assim, nos sertões e nas
faixas litorâneas a economia do campo, que fazia a riqueza dos donos da terra,
a opulência dos estamentos privilegiados, o desequilíbrio da organização
social, que perdurava injusta, desigual, desumana e atroz.
Finda a Monarquia, abolida a escravidão, suprimidas as instituições
do sistema, inspiradas do modelo europeu, o sacrifício do parlamentarismo,
a partir da introdução da forma presidencial de governo, constituiu o maior
erro político da República nascente. Desse erro, responsável maior foi Rui
Barbosa. Dislate que logo arruinou a legitimidade representativa, de último
abalada também pelo volume de corrupção e decadência ética do corpo
legislativo nas duas Casas do Congresso Nacional, traduzindo a miséria do
presidencialismo, donde brotaram, pelo golpe de Estado, as piores ditaduras
militares do continente.
Ao traçar a estrutura política da República, Rui Barbosa, principal
redator da Carta Republicana, inspirou-se no modelo americano que associava
três novidades desconhecidas à América lusitana: a república, o presidencialismo e o regime federal; os dois derradeiros foram, em verdade, criações
originais do gênio constituinte dos autores da Magna Carta americana.
O golpe de Estado, de 1889, que alterou todo o quadro institucional
do Brasil, fora tão imprevisível para os monarquistas do gabinete de Ouro Preto
e para outras figuras do regime, incluindo o próprio imperador, que cuidavam
todos eles estar unicamente em presença de crise ministerial, de manifesta
gravidade; nunca, porém, suscetível de derrubar o Império.
A ação fulminante do golpe, determinando a ruptura do sistema
imperial, surpreendeu também em certa maneira o próprio Deodoro.
Parece não haver tido ele consciência plena e imediata de seu ato,
ao montar o cavalo na cena militar do Campo de Santana.
O herói da Guerra do Paraguai, o amigo do imperador, talvez
cuidasse estar sendo protagonista de um desagravo do exército, tendo por
conseqüência, mais uma vez, a simples queda do gabinete, e não a revolução
silenciosa da dissolução de um império; porque revoluções silenciosas ao pé
do trono, a Monarquia já as vira, sem perda de sua continuidade, no 7 de abril
de 1831, com a abdicação de D. Pedro I, que pôs termo ao Primeiro Reinado,
e, do mesmo modo, em 1840, com o decreto da Maioridade, cingindo a coroa
na cabeça de D. Pedro II e inaugurando o Segundo Reinado.
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258
Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania
O ADVENTO DAS BASES NACIONAIS DE UM ESTADO SOCIAL
O Brasil, desde a segunda metade do século XIX, deixara de ser
apenas Estado ou Império para mostrar o rosto de uma nação já constituída
ou pelo menos assim encarada.
Entrara, portanto, a gravitar ao redor de causas nacionais, como a
da abolição, de cunho social; ou as da federação e da república, de caráter
institucional. Todas debaixo da bandeira dos elementos mais organizados e
supostamente capacitados a abrir o canal de comunicação da sociedade e do
Estado com o corpo político da cidadania em gestação.
Quando vamos à história buscar o pensamento precursor do Estado
social no Brasil, a grande surpresa que nos depara é verificar que ele nasceu
no Império e não na República.
Em rigor, a omissão e a neutralidade social da Constituição de
1891, a Primeira da República, se faz mais patente, retrógrada e sentida, se a
cotejarmos com o que constou do Projeto constituinte de 1823, bem como da
Constituição Política do Império, outorgada por D. Pedro I em 1824.
O Título XIII do Projeto de Constituição que Antonio Carlos, depois
de redigir as Bases de outro para a malograda Revolução Pernambucana de
1817, submeteu à Constituinte dissolvida pelo imperador, era deste teor: Da
instrução pública, estabelecimentos de caridade, casas de correção e trabalho.
Rezava a letra do art. 250: “Haverá no Império escolas primárias em cada termo,
ginásios em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais”.
E fechava o Título XIII com o art. 255, não menos perpassado da
vocação precursora do Estado social, como se infere de seu conteúdo, em que
se dizia: “Erigir-se-ão casas de trabalho para os que não acham emprego...”.
A Constituição outorgada em 1824 por D. Pedro I trazia por igual o
germe das regras sociais no art. 179, afiançando que a Constituição também
garante os socorros públicos, que a instrução primária é gratuita, que em
colégios e universidades serão ensinados os elementos das ciências, belasletras e artes.
A profecia do Estado social do porvir parecia estar posta, delineada
e introduzida nesses dois textos de larga visão prospectiva.
Aliás, desde 1934 se intenta edificá-lo, em bases constitucionais, mas
em ritmo tão vagaroso que parece ter analogia com a lentidão do cristianismo
quando erguia no Ocidente as suas catedrais.
Havia, portanto, naqueles primeiros elementos da razão consti-
Paulo Bonavides
tucional em nosso país, disposições expressas de proteção social, dilatada
à educação e ao emprego, conforme já nos fora dado assinalar em 1992, ao
proferirmos o discurso de recepção da Medalha Rui Barbosa num Congresso
Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.
Com efeito, aquele testemunho documental claramente demonstra
que o constitucionalismo da Monarquia, apesar de inspirado e embebido dos
cânones da doutrina liberal, em toda a pureza de suas fontes mais autênticas
e autorizadas, fora, todavia, muitas décadas antes, menos conservador que o
da República em matéria social.
O silêncio constitucional de Rui se mostrava, contudo, tardio e –
singular ironia! – ficara paralítico na retaguarda das idéias por contrastar com
um final de século que já ouvira a pregação do realismo, materialmente constitucional de Lassalle, a nosso parecer, ressuscitado de forma tão brilhante e
atualizada pelo texto clássico de Konrad Hesse acerca da força normativa da
Constituição.
Hesse, sem perceber ou sem disso fazer cabedal, é o constitucionalista da juridicidade do Estado social. E o é na medida em que a hermenêutica,
em sua versão contemporânea de mudança e renovação metodológica, pode
a ele arrimar-se também, ao declarar normativa e de aplicabilidade imediata
a categoria dos direitos fundamentais da segunda geração ou dimensão, a
saber, a dos direitos sociais, assim reconhecidos e proclamados pela grande
revolução jurídica do constitucionalismo de nosso tempo.
As lutas políticas, sociais e constitucionais desencadeadas e feridas
na primeira metade do século passado em nosso país contra o imobilismo
social do Estado liberal tiveram princípio no anseio reformista de mudança
indefinida, jacente nas agitações da década de 1920, nos levantes militares
dos dois 5 de julho, no dedo repressivo dos estados de sítio decretados pelo
governo oligárquico e contraditório de Bernardes, que, por paradoxo, abriria
um respeitável e
forte sentimento de nacionalidade e de proteção à riqueza nacional,
adormecida nas jazidas de ferro de Minas Gerais. E, por derradeiro, na explosão
revolucionária de 1930, seguida da Constituição de 1934.
Explosão batizada de Revolução Liberal, ela no seu reformismo
trazia, por inteiro, as sementes sociais donde resultara a concepção de um
novo Estado em que a ideologia fazia prevalecer na organização institucional
do sistema algumas idéias e alvitres ou sugestões constitucionais tirados de
dispositivos deveras inovadores, legislados pelos constituintes do México em
1917, e de Weimar em 1919, e que traçaram a grande pauta precursora da
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Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania
normatividade dos direitos fundamentais da segunda geração.
Inauguraram-se então as primeiras formas concretas e rudimentares
de Estado social, as quais, sem embargo de sua efemeridade e de suas constituições serem grandemente programáticas, como ficou depois comprovado
designadamente no caso da Alemanha, tiveram, todavia, considerável ressonância e influxo sobre as Cartas promulgadas no período compreendido
entre as duas Grandes Guerras Mundiais, tanto na Europa como na América
Latina.
Os efeitos desse influxo caíram, porém, a baixo nível depois que
se averiguou, com o tempo, o teor meramente retórico e doutrinário desses
preceitos introduzidos pelo revisionismo social das Leis Fundamentais.
A época weimariana, num mundo prestes a desabar e conflagrar-se
novamente, em proporções nunca vistas, representaria em matéria social um
ciclo de reduzida densidade normativa. Mas que parece louvável pelo alcance
e ineditismo dos avanços do constitucionalismo daquela época.
Com efeito, o Estado social nascente, cujo berço vamos encontrar
nas comoções ideológicas do socialismo do século XIX, tanto o de Proudhon
como o de Marx, ainda estava longe de amadurecer ou de trasladar-se, por
via normativa eficaz, às esferas positivas do ordenamento jurídico como seu
título mais sólido de legitimidade; unicamente a concretização dos direitos da
segunda geração, os direitos sociais, pôde outorgar e materializar aspirações
de progresso, isonomia e liberdade, definir o advento de uma nova época
constitucional, em que a nacionalidade se exprime pela paz social interna, por onde se fazem legítimos os governos da nação quando consagram os direitos fundamentais de
todos as dimensões.
O Estado social, de bases nacionais, busca sob a égide do Estado de
direito exercitar um poder democrático, aberto, pluralista e idôneo para conter
os efeitos funestos e devastadores das crises de governabilidade. Em geral, são
crises derivadas da incapacidade e da incompetência de quem governa sem a
visão republicana do poder, rendido ao egoísmo dos estamentos elitistas, os
mais empenhados em revogar ou derruir a normatividade jurídica do sistema
social de proteção ao trabalho, estabelecido contra as agressões do capital.
Essa normatividade, cimentada em princípios, é, sem dúvida, garantia e penhor de sustentação das instituições nos períodos mais graves de
crises supostamente irremediáveis.
Em ocasiões culminantes da diátese nacional, o povo brasileiro tem
revelado por traço maior de sua personalidade, seu caráter e seu tempera-
Paulo Bonavides
mento uma acentuada vocação de concórdia, compromisso e transação, ou
seja, de tornar efetivos, na composição dos interesses, os meios conciliatórios
que abafam a aspereza da luta de classes perpetuada pelo capital, como
sustentáculo de poder das minorias injustas, que governam e comprimem
a sociedade, desamparando-a dos valores republicanos de justiça, liberdade
e democracia. Democracia, sim, mas do cidadão participativo, do elemento
humano movido de compreensão e de lealdade constitucional às instituições
do povo soberano.
Desse povo não se pode apartar o cidadão. Se o fizer, terá perdido a
dignidade, que o constitui parcela da nação-cidadã, da nação-povo, da naçãoconsenso, da nação-soberania constitucional. Só essa pacifica o corpo social de
classes amotinadas na diversificação turbulenta de seus interesses colidentes.
Desde a Carta de 1988, Estado social e nação se unificam na tradição
brasileira, de duas décadas já vividas e atravessadas, numa sinopse axiológica
que traduz a grandeza, a solidez e o vigor da solidariedade na alma do povo
brasileiro, abraçado ao compromisso irrevogável de sua Carta Magna, dirigido
à concretização da justiça social.
Sendo, como é, uma Carta de princípios – e princípios normativos
–, foi a primeira da era republicana que deu neste país estabilidade ao regime
constitucional, não se fazendo mister esconjurar, ao longo de vinte anos, o
fantasma dos golpes de Estado e da intervenção dos quartéis, lembranças
funestas do passado.
A DIMENSÃO FEDERATIVA DO ESTADO NACIONAL NO BRASIL
A geografia no Brasil, pelas dimensões continentais do país, composto de vastas e distintas regiões, tem sido forte fator natural que não só
recomenda como impõe ao Estado, por imperativo de governança, a forma
federativa de sua organização.
Desde o berço da nacionalidade, o espectro da federação apareceu
como uma constante ao longo do Império unitário e centralizador. Esse o
exorcizou quanto pôde, sem, todavia, lograr fazê-lo ausente das reivindicações autonomistas do Ato Adicional de 1834, durante os debates públicos e
parlamentares que o antecederam, desde a abdicação, e fizeram da regência
uma época constitucional de espírito republicano.
A plêiade conservadora do Império, os chefes políticos da grei mais
afeiçoada ao trono viveram sempre debaixo do pesadelo das idéias reformis-
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262
Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania
tas porventura agitadas pela corrente política mais avançada do liberalismo
imperial e mais propensa a mitigar a rigidez de um sistema de poder, e de
uma máquina de governo, por extremo unitarista, introduzindo-lhe mudanças
que só em conjeturar despertavam já no ânimo do elemento conservador o
temor da secessão, da desorganização, do esfacelamento, da ruptura e perda
da unidade imperial, consoante a crítica política da época e a leitura histórica
das crises da regência bem demonstram.
Já os liberais, evidenciando o contraste, temiam o oposto, ou seja,
que o excesso de zelo no preservar a unidade do país monárquico, em virtude
daquelas apreensões generalizadas, determinasse, como aliás determinou, durante o Segundo Reinado, um impulso centralizador e unitarista sufocante. Seus
efeitos negativos para as instituições efetivamente aconteceram, adicionados
a outros fatores não menos graves, a saber, a questão abolicionista, a questão
militar, a questão religiosa, a questão político-partidária, a questão do poder
pessoal do imperador – que abalaram a governabilidade da realeza, minaram o
edifício da Monarquia e acabaram por ocasionar em 1889 a queda do Império.
Formou-se, todavia, em contrapartida, aquele juízo histórico segundo o qual a excelência ímpar da Monarquia entre nós residira em haver
concretizado o milagre dos milagres num continente retalhado de repúblicas,
que eram a imagem das divisões políticas de um passado irremediável: o
milagre da unidade nacional dos povos emancipados, tão desejada e nunca
lograda pela América hispânica, e que só foi possível na América portuguesa
por obra do governo imperial, segundo a corrente preponderante de opinião
em nossa historiografia.
Com efeito, é de pasmar que a América castelhana, na vizinhança
do Império, e onde concorriam iguais elementos comuns de herança étnica,
lingüística, cultural e religiosa, portanto pressupostos homogêneos de sangue,
de tradição e de fé, não lograsse estabelecer nos Estados emergentes do
domínio colonial, como fora o sonho e esperança dos libertadores, a unidade
continental das instituições políticas, debaixo da aparição de uma ou duas,
no máximo, três grandes nacionalidades, todas republicanas, sob a égide do
princípio federativo. O exemplo mais definido e edificante em que se pode
inspirar provinha da União Americana, das bases instituídas pelos autores da
Carta de Filadélfia.
Paulo Bonavides
É A NAÇÃO UMA RESSURREIÇÃO DA PÓLIS NOS PAÍSES PERIFÉRICOS?
A nação está para o Estado moderno assim como a pólis esteve para
o Estado antigo, o Estado da Antigüidade clássica.
A nação é, por um certo ângulo, a pólis da contemporaneidade.
Como unidade de valores, levanta o edifício do Estado com as pedras e o
cimento da solidariedade política e social.
Seu vínculo com o Estado é um cálculo de legitimidade e de justiça
social nos países de periferia, onde se faz indissolúvel quando se trata de estabelecer o conceito de soberania, que no caso é a soberania nacional.
Indissolúvel por igual, o vínculo estabelecido com o povo, porque
esse, qualitativamente, é o corpo da nação, o seu elemento humano, tanto
quanto a população, quantitativamente, o é também do Estado.
Nessa acepção ora desenvolvida, nação é povo, e soberania nacional
é soberania popular; ambas fundamento da mesma legitimidade do poder,
da mesma força condutora dos elementos éticos na organização do Estado
moderno e democrático, da idade contemporânea.
Com efeito, não há como separá-las ou fazê-las distintas, as duas
soberanias; ao revés, por conseguinte, do que fez a teoria constituinte da
Revolução Francesa, por determinantes ideológicas, no confronto da burguesia com o povo, dos moderados com os radicais, ao escreverem o derradeiro
capítulo da Grande Revolução.
Operada pelo extremismo doutrinário dos revolucionários, deu-se
a cisão de nação e povo como duas categorias políticas, como duas entidades
distintas e independentes, mas que dantes comungavam dos mesmos propósitos, a saber, o da derrubada do regime feudal.
A nação, titular da soberania nacional, outorgou a Constituição
francesa de 1791, aquela que aboliu as instituições do feudalismo.
O povo, titular da soberania popular, a soberania do povo revolucionário, promulgou, com ênfase na igualdade, a Constituição de 1793; ambas
as soberanias fortes na doutrina, mas fracas na realidade; ambas eternas na
utopia, mas efêmeras na positividade.
Em verdade, a teoria da soberania nacional é, a nosso parecer, a
única que teoriza e estabelece, pelo ângulo político, a unidade de nação,
povo e Estado.
De tal sorte que quem diz nação, diz também povo, e diz do mesmo
passo Estado, porque Estado, segundo essa concepção, só se constitui legítimo
se não transgredir o princípio da nacionalidade.
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Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania
Conciliar nação com Estado, nos termos do ideal de legitimidade,
parece dominar nossa época na madrugada do terceiro milênio, como dominou o século XIX.
Mas isso só se nos afigura possível, entre as repúblicas do continente,
quase todas da periferia política, com um passado de ditaduras funestas e
atrozes, se exercitarem as franquias públicas do regime democrático e o respeito à fruição inviolável dos direitos fundamentais.
Nessa direção caminham ou devem caminhar, porquanto é unicamente por essa via que se chega, na plenitude constitucional, ao tão almejado
Estado social da justiça, da legitimidade e da democracia participativa, sob
a égide, por conseguinte, da nação soberana, do povo livre e da cidadania
atuante.
Tornamos, ao cabo deste ensaio, a fazer menção dos conceitos de
nação, constantes da parte introdutória, para dizer tão-somente que eles podem ser compendiados, restaurados e ressuscitados, se fizermos, por exemplo,
do modelo clássico de democracia, o modelo ateniense, o norte ético e axiológico de uma agregação espiritual perene que, na democracia participativa
de nosso tempo, há de falar mais alto pela voz do coração, da fraternidade, do
sentimento e da comunhão de valores, que da razão, por onde os egoísmos
de classe buscam legitimar-se.
Só assim a democracia do porvir, emancipadora dos povos periféricos, e concretizada como direito fundamental do homem, há de ser na escala
de valores mais nação que Estado, mais consciência nacional do povo solidário
que razão de Estado dos governos autocráticos.
Estado social e nação pressupõem também, ao lado da democracia,
em seu teor contemporâneo de legitimidade, o primado da justiça, porque
sem justiça a autoridade não se legitima, é dissimulação; a liberdade constitui
privilégio; a igualdade, retórica; a segurança, argumento de opressão; a lei,
mais regra de força que norma de direito; e o Estado, mais absolutismo que
harmonia e separação de poderes.
Sem justiça, a governabilidade é o dogma da tirania, é a nova razão
de Estado das ditaduras constitucionais, a dimensão injusta e soez das invasões
executivas nas órbitas de competência do legislador e do juiz.
Sem justiça, o governo é ingovernabilidade. É a Constituição desamparada, malferida, humilhada, devastada, conculcada. E por que não dizer?
Anexada ao arbítrio, à barbaridade e à onipotência de um Executivo supressor
da livre fruição dos direitos fundamentais e das liberdades públicas. Executivo
que, se lhe não puserem amarras, aniquilará a essência da cidadania.
Paulo Bonavides
Sem justiça, a nação fica a um passo do abismo onde a democracia
já não pode respirar e os laços morais e políticos da união republicana se
dissolvem.
O Estado social deixa então de ser Estado de direito por se converter
tão somente em Estado social de um sistema totalitário, em que o Legislativo,
numa flagrante cumplicidade de submissão, se fez também fantasma do
sistema representativo e da Constituição que abjurou e quebrantou. Fazendo
mão comum com o Executivo, ambos podem implantar uma ditadura funesta
ao futuro da nacionalidade, em razão de dissolver os vínculos democráticos e
os valores que os atavam à Constituição.
O triângulo da liberdade na periferia é justiça, nação e Estado social.
Fora daí, as tribunas vazias, a sombra do absolutismo, o silêncio das ditaduras.
REFLECTIONS ON NATION, SOCIAL STATE AND
SOVEREIGNTY
ABSTRACT
This article starts by condensing the idealistic
substratum of the concept of nation. It makes use
of common nation related terms that, in general,
express the utopian meaning of that expression,
which has deep political and spiritual roots. In
spite of all the conceptual and cognitive complexity, the nation is still, in a certain way, the driving
force of the political universe of our time, as an
expression of power and life. Some thoughts on
the implications of its association to the theme of
the social state, sovereignty and federation, which
are detailed in the article, consider the Brazilian
reality and its historical elements, covering three
different periods: those of the colony, the monarchy and the republic.
Keywords: Nation, Colony, Monarchy, Social state,
National sovereignty, Democracy, Social justice.
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Regras de Publicação
para a Próxima Edição
Todas as normas que regem a publicação de artigos na trigésima edição
da Revista Jurídica In Verbis encontram-se disponíveis para download no site
oficial do periódico – www.inverbis.com.br -, na seção “Normas”. As referidas
normas consistem em Edital e Guia de Normas, este anexo àquele. Na supradita
seção, há também um artigo modelo elaborado, a convite, pelo Professor Igor
Alexandre Felipe de Macêdo.
Revista impressa pela Impressão Gráfica.
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