A FUNÇÃO SOCIAL NA APROPRIAÇÃO DE BENS AMBIENTAIS: EM BUSCA DE UM
REFERENCIAL DE SUSTENTABILIDADE
LA FUNCIÓN SOCIAL EN LA APROPIACIÓN DE BIENES AMBIENTALES: EN BUSCA DE UNA
REFERENCIA DE SOSTENIBILIDAD
FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA
ROBSON OCHIAI PADILHA
RESUMO
O funcionamento da economia de mercado exige a ampliação dos processos de mercantilização, que atingem
bens ambientais e potencializam riscos para a vida em sociedade.
Nesse contexto, coloca-se a necessidade de precisar a idéia de bens ambientais, por exemplo a água, de
modo a identificar a forma como articulados os processos de mercantilização, no atual estágio da economia
globalizada, com o propósito de estruturar a regulação dos limites em torno dos riscos potencializados pela
expansão da forma mercadoria e pela disputa de usos e fins estando em jogo a vida humana.
A proposta do presente trabalho, na perspectiva de regulação de limites dos processos de mercantilização, é
a de estruturar fundamentos de funcionalização na apropriação de bens ambientais que esteja de acordo com
as premissas de sustentabilidade.
A estruturação dos fundamentos de funcionalização, no sentido do objetivo debatido no trabalho, está
construída em torno dos valores e finalidades eleitos pela Constituição Brasileira de 1988 para a salvaguarda
da garantia fundamental do direito de propriedade funcionalizado e do direito fundamental ao meio ambiente.
PALAVRAS-CHAVES: MERCANTILIZAÇÃO - PROPRIEDADE - BENS AMBIENTAIS – FUNÇÃO
SOCIAL - SUSTENTABILIDADE
RESUMEN
El funcionamiento de la economía de mercado requiere la expansión de los procesos de mercantilización, que
afectan a los activos ambientales y aumentan los riesgos para la vida en sociedad.
En este contexto, existe la necesidad de aclarar la idea de los bienes ambientales, como el agua, con el fin de
identificar cómo se articulan los procesos de mercantilización, en la etapa actual de la globalización, con el
propósito de estructurar los límites reglamentarios alrededor de los riesgos reforzada por la expansión de la
forma mercancía y el concurso de los usos y fines que pone en juego la vida humana.
El propósito de este trabajo, en la perspectiva de regulación de los limites de los procesos de
mercantilización, es estructurar los fundamentos de la funcionalización de la propiedad de los bienes
ambientales que cumpla con las condiciones de sostenibilidad.
La estructuración de las razones de funcionalización, para alcanzar el objetivo discutido en el trabajo, se basa
en los valores y los fines elegidos por la Constitución de 1988 para la salvaguardia de la garantía fundamental
de los derechos de propiedad funcionalizado y del derecho fundamental de lo medio ambiente.
PALAVRAS-CLAVE: MERCANTILIZACÍON - PROPIEDAD - BIENES AMBIENTALES – FUNCIÓN
SOCIAL - SOSTENIBILIDAD.
1. Introdução
O funcionamento da economia de mercado exige a ampliação dos processos de mercantilização que
atingem bens ambientais e potencializam riscos para a vida em sociedade.
Nesse contexto, coloca-se a necessidade de precisar a idéia de bens ambientais, por exemplo a água,
de modo a identificar a forma como articulados os processos de mercantilização, no atual estágio da
economia globalizada, com o propósito de estruturar a regulação dos limites em torno dos riscos
potencializados pela expansão da forma mercadoria e da disputa de usos e fins estando em jogo a vida
humana.
A proposta do presente trabalho, na perspectiva de regulação de limites dos processos de
mercantilização, é a de estruturar fundamentos de funcionalização na apropriação de bens ambientais que
esteja de acordo com as premissas de sustentabilidade.
A estruturação dos fundamentos de funcionalização, no sentido do objetivo debatido no trabalho, está
construída em torno dos valores e finalidades eleitos pela Constituição Brasileira de 1988 para a salvaguarda
da garantia fundamental do direito de propriedade funcionalizado e do direito fundamental ao meio ambiente.
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
** Trabalho indicado pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UNICURITIBA – Centro Universitário Curitiba
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Busca-se identificar na funcionalização de bens ambientais um referencial de sustentabilidade
compatível com o atual estágio de configuração da sociedade pós-moderna, que possa tanto quanto possível
preservar o meio ambiente e a vida digna em sociedade.
2. Processos de mercantilização na realidade pós-moderna
O funcionamento da economia de mercado depende da expansão da forma mercadoria, cuja
dinâmica de circulação pode favorecer expectativas de crescimento ou de desenvolvimento econômico ou
ainda, nos momentos de declínio, implicar redução da atividade econômica, com conseqüências sociais
imprevisíveis.
No plano jurídico, a circulação de mercadorias se viabiliza pelo modelo do contrato e da
propriedade em que os contratantes, na figura de sujeitos proprietários, mediante a manifestação livre da
vontade, realizam trocas.
O modelo de sistema jurídico da modernidade, estruturado em torno do direito contratual e do direito de
propriedade, conseguiu assegurar o processo de industrialização e desenvolvimento econômico ao mesmo
tempo que, pela incorporação dos direitos sociais, impôs limites à expansão da forma mercadoria de modo a
evitar comprometer a vida em sociedade.
Na realidade da sociedade pós-moderna, contudo, ainda que se tenha intensificado o
reconhecimento dos direitos da pessoa humana, generalizou-se a tal ponto o processo de circulação e de
expansão da forma mercadoria que a própria natureza está sujeita à mercantilização sem limites, o que coloca
em risco a preservação da vida; nesse contexto, o direito de propriedade acaba por transformar a própria
organização social, marcada pelo signo do econômico.
A quantidade de bens produzidos e consumidos se tornou a medida da existência e o mercado surge
como o único modelo de sistematização racional da vida social; como diz Pietro BARCELLONA,
Quando questa lógica diventa sistema reale di organizzazione della società, quando la stessa
tendenza allá generalizzazione e all'inclusione di tutti gli individui nel sistema del calcolo
economico si realizza, l´universalità del soggetto cessa di apparire come un a priori astratto,
no ha più bisogno di presentarsi come l´idea che si pone di fronte al mondo e lo ordina: Il
mondo è già construito secondo Il suo ordine.L´ordine sociale non ha bisogno di una
legitimazione esterna perché ha incorporato Il funzionamento del principio proprietario come
principio dell´apropriabilità, consumabilità e manipolabilità della natura. Il principio
dell´apropriabilità e della produzione illimitata è diventado oramai un autonomo critério di
funzioneamento della società complessa. (1988, p. 36).
A expansão da forma mercadoria pela ampliação de objetos integrados ao processo de circulação
dos mercados também está assegurada, no plano jurídico, pela percepção da existência de um discurso
individualista de propriedade.
Eroulths CORTIANO JUNIOR afirma que o individualismo proprietário jurisdicionaliza a
sociedade, na medida em que nele o direito converte-se em paradigma constitutivo do sistema social e da
planificação, de forma a neutralizar os outros modos de organização social; diz ele,
O homem e a propriedade são reduzidos a puras formas jurídicas (sujeito de direitos e
mercadoria) e as relações sociais restam mercantilizadas. Deixa de importar a realidade e o
sistema se auto-regula, com base na autonomia do econômico. É o triunfo da mercancia
absoluta: o indivíduo é um sujeito sem qualidades (a não ser aquela de participar do sistema
como consumidor) e as relações sociais ocorrem no mercado, que é, assim o seu mediador
fundamental. (2002, p. 9)
A complexidade da sociedade pós-moderna, portanto, reside na consolidação de um sistema
econômico autônomo em que a autorreferencialidade opera por meio do princípio de apropriação e de
produção ilimitada de bens, o que implica, naturalmente, a expansão da forma mercadoria que avança sobre a
natureza em razão das possibilidades abertas pela biotecnologia e pela engenharia genética.
A extração de recursos ambientais, e a consequente apropriação mercantil, constitui uma das marcas
históricas da modernidade; porém, essa forma de ação humana tem provocado enorme degradação
ambiental; na atual realidade pós-moderna existe o risco de que a prática de exploração de recursos naturais
possa provocar catástrofes sem precedentes; o processo de racionalização da vida em sociedade está em
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
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risco; conforme aponta Boaventura de Souza SANTOS,
A promessa da dominação da natureza, e do seu uso para o benefício comum da humanidade,
conduziu a uma exploração excessiva e despreocupada dos recursos naturais, à catástrofe
ecológica, à ameaça nuclear, à destruição da camada de ozônio, e à emergência da
biotecnologia, da engenharia genética e da conseqüente conversão do corpo humano em
mercadoria última. (2000, p. 56)
Com efeito, na realidade da sociedade pós-moderna, o meio ambiente está comprometido pela
produção desenfreada, com risco para a existência humana, em que pese o aumento de recursos tecnológicos
e científicos.
O incremento de tecnologia e de conhecimento científico paradoxalmente aumenta as incertezas e dificulta a
tomada de decisões no âmbito do sistema jurídico acerca de problemas ambientais que envolvam interesses
difusos; conforme escreve José Esteve PARDO,
Paradójicamente, la ciencia, que es la principal fuente de incertidumbres, al ser ella en el
fondo la que alimenta y pontecia el entramado tecnológico que nos envuelve, no se apresta
luego a resolverlas al no figurar y ala búsqueda de la certeza entre sus objetivos prioritarios.
(2009, p. 54-55)
A s incertezas produzidas pela tecnologia e pela ciência ajudam a perpetuar processos de
mercantilização; ou seja, prepondera a lógica econômica ao invés da prevenção de riscos ambientais. A
própria idéia de aquecimento global, na medida em que implica limitar de certo modo o crescimento da
atividade industrial e mercantil, acaba contestada por especulações científicas, razão pela qual, para Ulrich
BECK, os princípios da precaução e da prevenção acabam sendo ineficazes na solução de crises ecológicas
(1997).
A finitude dos recursos naturais, assim como da própria vida biológica no planeta, não detém a
lógica mercantil de super-exploração da natureza exigida pela produção de bens necessários para suprir
necessidades artificialmente construídas dos mercados globais; o que é finito acaba traduzido pela escassez e
pelas necessidades de consumo que aumentam os valores de trocas nos mercados; a lógica econômica e
mercantil prepondera sobre a lógica de preservação ecológica; nesse sentido, Enrique LEFF afirma que,
A razão cartesiana e a física newtoniana modelaram uma racionalidade econômica baseada em
um modelo mecanicista, ignorando as condições ecológicas que impõem limites e potenciais à
produção. A economia foi se desprendendo de suas bases materiais para ficar suspensa no
circulo abstrato dos valores e preços do mercado. (2006, p. 225)
É nesse contexto que emerge a possibilidade de a forma mercadoria, no plano econômico,
incorporar a proposta ecológica de funcionalização da propriedade que possa compatibilizar interesses
mercantis e de sustentabilidade do meio ambiente.
Competirá ao sistema jurídico, à semelhança do que ocorreu nos processos de industrialização da
modernidade, estruturar a regulação dos limites de expansão da forma mercadoria que possam colocar em
risco a vida humana, como por exemplo o que ocorre com a água, em que já se materializa disputa entre
usos mercantis e biológicos.
A construção de critérios de delimitação da função social na apropriação de bens ambientais, na
perspectiva do sistema jurídico, pode constituir um dos modos de preservar a vida e a sociedade dos riscos
potencializados pelos processos de circulação de mercadorias; a estruturação desses critérios, todavia, deve
estar de acordo com a regulação da garantia do direito de propriedade funcionalizado e do direito
fundamental ao meio ambiente, nos termos da Constituição de 1988.
3. O direito fundamental à propriedade funcionalizada e a finalidade dos bens ambientais
3.1. Precisão da premissa de bens ambientais
Na perspectiva de patrimonialidade, a idéia de bens compreende objetos corpóreos e incorpóreos
suscetíveis de apropriação. A concepção de bens pode incluir coisas, no sentido do art. 90 do BGB (Begriff
der Sache - Sachen in Sinne des Gesetzes sind nur körperliche Gagenstände) e direitos sendo que nestes
últimos não está em causa, pelo menos de forma imediata, o aspecto de materialidade.
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Pode-se dizer que a noção de bens, na teoria do direito civil, de um modo geral, está relacionada à
apropriação; nos direitos reais ela diz respeito à função de atribuição que, segundo Harry WESTERMANN,
tem como significado a pertença do objeto ao patrimônio do titular, com eficácia absoluta (1998, p. 59). Em
sentido amplo, portanto, a categoria de bens constitui construção dogmática necessária para, no plano
jurídico, legitimar a apropriação econômica de objetos e permitir ao sistema jurídico, na autorreferencialidade
que lhe é própria, operar conexões de conceitos sem relação direta com as relações sócio-econômicas.
A distinção entre bens e coisas para o efeito de, pela materialidade, determinar o caráter absoluto da
função de atribuição, em especial nos direitos reais, perde sentido na atualidade em que a tecnologia
informática coloca em evidência o valor social e econômico de formas materializáveis. Como sustenta Vilém
FLUSSER, revela-se necessário estabelecer a distinção entre material e formal; o modo material diz respeito
a representações, enquanto que o modo formal produz modelos; logo, o que está em causa na sociedade de
tecnologia informática da atualidade é o conceito de informar, que significa impor formas à matéria, ou seja,
realizar formas projetadas para criar mundos alternativos em uma cultura digital materializadora (2007, p.
31).
Nesse contexto, a distinção entre coisas corpóreas e incorpóreas resulta superada pela
operatividade do conceito de informação que, na realidade de formas projetadas materializáveis, amplia
horizontes sociais e econômicos diante de uma nova constelação de bens apropriáveis.
Numa cultura digital materializadora, a noção de bens passíveis de apropriação, em vista do
potencial de exploração econômica, ganha maior expressão na perspectiva de consideração de possibilidades
abertas pela tecnologia informática de modelos de formas; o que está em causa, portanto, é a possibilidade de
materialização de coisas a partir dos modelos de formas criados pela tecnologia informática.
Na medida em que, na sociedade atual, as tecnologias informático-comunicativas ampliam os
modelos de formas, multiplicam-se as possibilidades de materializações possíveis. O que assegura a expansão
de apropriabilidade de bens não é mais o aspecto material e físico da coisa, mas as possibilidades de
materialização de coisas ou objetos e direitos a partir de modelos de formas. Pode-se dizer então que na
sociedade de tecnologia informática, em razão de um novo eixo de relações sociais mediadas pela
informação, a forma mercadoria pode atingir novos horizontes possibilitados pelos modelos de formas
materializáveis, que não se restringem a coisas ou objetos físicos.
No quadro social de expansão da forma mercadoria ampliada pelas possibilidades de modelo de
formas e pelas tecnologias informáticas, deve-se delinear, num primeiro momento, no plano dogmático, a
categoria conceitual de bens ambientais e sua conexão estrita com uma forma de apropriação estritamente
mercantil.
Na regulação do comércio internacional, em especial nas negociações no âmbito da Organização Mundial do
Comércio, a noção de bens ambientais surge atrelada à viabilidade de negócios envolvendo investimentos em
serviços ligados ao meio ambiente; o objetivo da Declaração de Doha, por meio do Comitê de Comércio e
Meio Ambiente, é liberalizar o comércio de bens ambientais; a noção de bens ambientais pode envolver
tecnologias para a solução de problemas ambientais, tais como tratamento e fornecimento de água ou esgoto
ou de regulação de níveis de poluição do ar e das águas ou ainda a industrialização de produtos de baixo
impacto ambiental, que possam usufruir de benefícios tarifários.
Como se verifica, na medida em que, mediante a materialização de um determinado modelo de
forma, uma tecnologia pode ser desenvolvida e aplicada para, por exemplo, regular a distribuição de água, a
própria água acaba capturada pela forma mercadoria e, nesse sentido, pode ser compreendida também como
bem ambiental.
A racionalidade econômica fixa conteúdos e escolhas voltados unicamente para maximização de resultados,
o que, segundo Amartya SEN, pode reduzir o compromisso com valores éticos e sociais; mas o próprio
Amartya SEN adverte para a necessidade de a racionalidade econômica contemplar vínculos de solidariedade
porque "A economia do bem-estar pode ser substancialmente enriquecida atentando-se mais para a ética, e
o estudo da ética também pode beneficiar-se de um contato mais estreito com a economia." (2008, p. 105)
O princípio da função social, nesse contexto, pode romper com a racionalidade economicista
estreita, na medida em que introduz na vida de relação um componente valorativo e induz comportamentos
positivos em prol do interesse social.
Do ponto de vista jurídico, bens ambientais compreendem direitos e objetos apropriáveis na
exploração de recursos naturais.
Traçados os contornos econômicos, sociais e jurídicos dos bens ambientais é necessário verificar se,
no plano jurídico, eles comportam funcionalização.
Segundo Gustavo TEPEDINO a função social da propriedade remonta à doutrina cristã de São
Tomas de Aquino, na Idade Média. O instituto viu-se reforçado com o jusnaturalismo, inspirado em critérios
de igualdade e de valores humanos. A crítica mais contundente, que fez ressurgir a questão da função social
da propriedade, foi formulada por Karl Marx que concebeu a propriedade como elemento concentrador de
riqueza, simples objeto de troca e de supremacia do capital (1991, p. 314-315).
No sistema jurídico brasileiro, o direito de propriedade funcionalizado está inserido na categoria de
garantias fundamentais; a funcionalização da propriedade está referida em vários dispositivos
constitucionais[1], algo que, na visão de José Afonso da SILVA, relaciona-se com a própria mudança da
estrutura social (1997, p. 273). Luiz Edson FACHIN afirma que o perfil alcançado pelo instituto da
propriedade deriva invariavelmente do grau de complexidade das relações sociais. A idéia de função social
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não chega a recolocar o trabalho como único elemento legitimador da propriedade; contudo faz do trabalho
adequado do homem sobre a terra e os bens elemento decisivo para a configuração do direito de propriedade
(1988, p. 18).
É certo que, atualmente, a função social redireciona o exercício do direito de propriedade; a
propriedade permanece garantida na Constituição observada a função social; não existe propriamente um
limite ao direito propriedade; na linha do sustentado por Francisco Cardozo OLIVEIRA, insere-se no direito
de propriedade valor finalístico de conteúdo social, conforme preceitua o artigo 170 da Constituição (2006,
p. 267-283).
A função social impõe ao proprietário a observância de valores fundamentais para a vida em
sociedade, tais como o equilíbrio ambiental, a utilização produtiva e a erradicação do trabalho escravo; o
direito de propriedade, portanto, deve ser exercido de modo a atender interesses individuais e sociais.
A função social não diz respeito apenas ao direito de propriedade; também a posse resulta
funcionalizada; a bem da verdade a função social da propriedade emerge de espécie de aproximação
finalística entre a posse e a propriedade.
Mesmo a regulação do direito contratual passa a afirmar a necessidade de o contrato observar
critérios de funcionalização.
Pode-se afirmar então que a função social modifica a estrutura da posse, do direito de propriedade e
do direito contratual e, com isso, atua para impor limites à expansão da forma mercadoria que possa
comprometer a vida em sociedade.
Na medida em que avança a mercantilização da natureza, abre-se também a possibilidade de
funcionalização da apropriação de bens ambientais, de modo a corrigir eventuais distorções no processo de
construção da sociabilidade.
Tomando-se como exemplo a apropriação da água, que se trata de recurso essencial à preservação
da vida, justifica-se plenamente a adoção de critérios de funcionalização, até para que a racionalidade
econômica que determina a cobrança de uma espécie de taxa ou preço pelo uso, ao modelo do regrado pelo
artigo 5º da Lei nº 9.433/1997, não traduza apenas equação mercantil e empresarial, sem levar em conta
elementos sociais e humanísticos; tenha-se em perspectiva, nesse particular, que o art. 26 da Constituição
Federal de 1988 inovou ao afirmar que a água constitui espécie de bem público.
A aplicação do princípio da função social na regulação da apropriação da água está justificado na
medida em que Lei n.º 9433/1997 não estabelece prioridades ou ordens hierárquica de valores e de
finalidades de uso; no inciso III do art. 1.º da referida Lei a principal distinção entre os usuários limita-se à
prioridade de dessedentação humana e animal em casos de escassez; ao que parece, pouco importa como a
água é utilizada, desde que pago pelo uso.
Ainda que reconhecida a necessidade de estabelecer um valor econômico à água, tal como previsto
em Lei, reduzi-la à forma mercadoria pode gerar graves conseqüências sociais, a começar pela restrição de
uso aos economicamente hipossuficientes, entre eles incluídas as comunidades carentes, os pequenos
agricultores e as pequenas empresas.
Assim, numa perspectiva concretizadora, impõe-se tratar da forma como deve ser delimitada a
função social de bens ambientais.
3.2 O problema da delimitação da função social na apropriação de bens ambientais
O princípio de função social da propriedade regulado no inc. XXIV da Constituição da República
exige estruturação concretizadora, que permita operar a passagem do abstrato ao concreto em que, segundo
Karl ENGISCH, deve-se considerar que o concreto diz respeito ao real e sua relação com o individual (2004,
p. 129).
Na questão relativa à normatividade dos princípios, a passagem do abstrato ao concreto opera em duas
direções sobrepostas e dialéticas: uma que relaciona a abstração do princípio à realidade dos elementos do
caso concreto e a outra que relaciona a abstração do conceito ao particular da situação; em uma e outra, no
que diz respeito à função social, encontra-se imbricada a relação entre normas e valores.
O problema da normatividade dos princípios exige considerar o que Castanheira NEVES define no
nível pragmático da linguagem como a normatividade da norma que demanda trabalho interpretativo e que,
ao contrário do postulado pelo positivismo e pelo racionalismo analítico, não se esgota no aspecto textual;
segundo Castanheira NEVES, em termos metodológicos, a interpretação jurídica deve ser vista como
determinação normativo-pragmática de um critério jurídico do sistema do direito vigente para a solução do
caso (1993, p. 142). A tarefa da interpretação jurídica, portanto, é explicitar critérios que permitam operar
no sistema jurídico a solução para o caso.
Nesse sentido, a interpretação jurídica implica sempre a problematização que envolve uma pergunta
de algo como algo, no sentido da filosofia de Martin HEIDEGGER e que incorpora o uso correspondente
aos jogos de linguagens de uma determinada forma de vida (2006).
Na questão da concretização do princípio da função social deve-se adotar uma perspectiva prático* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
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material em torno dos elementos do caso, cuja integridade normativa pode adquirir validade na direção da
premissa de model of principles proposta por Ronald DWORKIN, em sentido ético-jurídico (2007), que
mais se justifica quando está em causa a proteção de bens essenciais à manutenção da vida em sociedade,
como é o caso dos bens ambientais, de titularidade coletiva e difusa.
A relevância dos elementos do caso coloca a necessidade de tratar da objetividade de valores na
situação em que estão em causa critérios finalísticos de funcionalização.
No plano jurídico, pode-se afirmar que a função social da propriedade envolve aspectos normativos
e valorativos. Na questão normativa, considerado que a função social integra um conjunto de normas e
princípios positivados desde o texto da Constituição, não é difícil demonstrar o caráter vinculante que possa
determinar condutas no exercício da titularidade de direitos proprietários; a vinculação emerge da
objetividade e da generalidade inerente às normas integrantes do ordenamento jurídico. No que respeito aos
valores em torno de finalidades de funcionalização a questão é mais complexa. A pluralidade que envolve a
objetivação de valores torna problemático o estabelecimento de liames de vinculação.
As dificuldades em torno do estabelecimento da vinculatividade dos valores não implica admitir
que a função social da propriedade, naquilo que diga respeito à valoração finalística, esteja situada numa
zona não-cognitiva, inalcançável na perspectiva do sistema jurídico para o efeito de construção dogmática e
de racionalidade concretizadora.
A partir de Kant, numa perspectiva pragmática, Jürgen HABERMAS sustenta que na vida
comunicativa, em que os sujeitos estão empenhados em jogos de linguagem e ação, podem ser encontrados
os elementos cognitivos que asseguram a objetividade dos princípios; diz ele,
Lo que no está a nuestra disposición es la forma de vida comunicativa en la que, como
sujetos capaces de lenguaje y de acción, nos encontramos "ya siempre" y que nos obliga a
discutir con razones sobre las cuestiones morales. En la vida cotidiana misma el juego de
lenguaje moral nos implica en una disputa mediante razones. Normalmente se trata sólo de
averiguar cómo debe ser enjuiciado un conflicto a la luz de las convicciones normativas de
fondo que compartimos. Tan pronto como la controversia se extiende a este mismo trasfondo
normativo común, a la aptitud de las normas mismas para ser dignas de reconocimiento y,
con ello, a la conformación de intereses comunes, aceptamos ya, junto con la prosecución de
la práctica de la argumentación, determinadas presuposiciones que nos obligan a la
inclusión equitativa de las pretensiones de todas las personas afectadas. Este punto de
referencia inserto en los discursos racionales no está a nuestra disposición, aunque ello bajo
una condición: debemos entender las cuestiones morales como cuestiones de saber cuestiones cognitivas -, incluso cuando se ha agotado el repertorio - proveniente del mundo
de la vida - de convicciones éticas comunes. (2007, p. 299)
No que diz respeito especificamente à obrigatoriedade dos princípios HABERMAS sustenta que
Para cerciorarnos de la obligatoriedad categórica de los mandatos morales no necesitamos
tomar contacto con un mundo más allá del horizonte de nuestras justificaciones. Bastas con
extender el espacio "no mundano" del discurso, porque desde la perspectiva del participante
nos guiamos por el punto de referencia de una comunidad inclusiva de relaciones
interpersonales bien ordenadas. Es decir, un punto de referencia que deja de estar a nuestra
disposición tan pronto entramos en argumentaciones. (2007, p. 298-299)
A cognição e a objetividade dos valores em HABERMAS, de que deriva a obrigatoriedade, estão
relacionadas de forma direta aos vínculos comunicativos intersubjetivos dos jogos de linguagem no mundo
da vida. A vinculatividade dos valores, portanto, reclama a adoção de um ponto de vista interno ao sentido
da ação comunicativa e à vida em sociedade.
A teoria da ética do discurso, contudo, não escapa à crítica de Hilary PUTNAM que afirma que,
pela separação entre normas e valores, ela incorre numa espécie de minimalismo moral aproximado do
positivismo lógico e de um relativismo ético que inviabilizariam a objetividade necessária ao estabelecimento
de critérios de obrigatoriedade (2008, 26-27). A defesa de um ponto de vista realista para a questão dos
valores, como parece ser o caso de PUTNAM, de todo modo, pode não dar conta da significatividade
lingüística envolvida na compreensão dos valores na vida em sociedade.
Permanece válido sustentar que a objetividade dos valores e, consequentemente, o caráter
obrigatório deles, na perspectiva do sistema jurídico, resulta da ação comunicativa decorrente dos jogos de
linguagem na vida em sociedade, ainda que possa não ser o caso, em determinados contextos, como pode
ocorrer na questão da funcionalização, de uma separação rígida entre normas e valores.
A filiação à teoria habermasiana do discurso, no que diz respeito à vinculatividade de valores
finalísticos na função social da propriedade, pode mostrar-se apropriada para uma prioridade de justiça social
que emerge do texto da Constituição de 1988 e que está de certo modo pressuposta nos jogos de linguagem
da vida social brasileira da atualidade. É necessário ter em conta, todavia, que mesmo em torno da função
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social da propriedade gravita pluralidade de valores que reclama uma espécie de aprendizagem comum, de
que também não escapa a sociedade brasileira, para o que podem ser fundamentais os pontos de vista de um
realismo e de um pragmatismo, de acordo com a proposta de PUTNAM (2008, 47-78).
O problema da objetividade dos valores, no que diz respeito à função social da propriedade,
também contempla um componente econômico.
Do ponto de vista econômico, na questão da função social da propriedade, também é necessário ter
em conta a relação entre fins e valores. Partindo-se das premissas postas por Max WEBER a relação entre
fins e valores, compreendida na função social da propriedade, pode estar mediada por uma racionalidade
instrumental que diga respeito à alocação de recursos materiais e humanos para o desenvolvimento da
atividade de produção de bens e serviços.(2004).
Na relação entre fins e valores, de uma perspectiva empírica, John DEWEY sustenta que os
valores-fins se objetivam a partir de desejos e interesses; diz ele,
Empíricamente, hay dos alternativas: la acción puede tener lugar con o sin un fin-a-la-vista.
En el segundo caso, hay una acción abierta sin valoración intermedia; un impulso vital o un
hábito establecido reaccionan directamente a alguna estimulación sensorial inmediata. En el
caso de que exista un fin-a-la-vista y éste sea valorado, o exista en relación con deseo o un
interés, la actividad, (motora) desencadenada está, tautológicamente, mediada por la
anticipación de las consecuencias que entran, como un fin previsto, en la configuración del
deseo o interés. Ahora bien, como hemos repetido tantas veces, las cosas sólo pueden
anticiparse o preverse como fines o resultados en términos de las condiciones por la cuales se
traen a la existencia. Es sencillamente imposible tener un fin-a-la-vista, o anticipar el
resultado de cualquier línea de acción propuesta, a no ser sobre la base de alguna
consideración, por ligera que sea, de los medios que pueden hacerlo existir. En caso
contrario, no hay genuino deseo sino una fantasía ociosa, un anhelo fútil. Que los impulsos
vitales y hábitos adquiridos pueden emplearse en levantar castillos en el aire o en soñar
despierto es, por desgracia, cierto. Mas, por definición, los contenidos de los sueños y de los
castillos en el aire no son fin-a-la-vista, y lo que los convierte en fantasías es precisamente el
hecho de que no se forman en términos de condiciones reales que sirvan como medios para
su materialización. De los deseos e intereses que determinan valores-fines forman parte
necesariamente proposiciones en las que las cosas (actos y materiales) son evaluadas como
medios. (2008, p. 114-115)
A relação de valores-fins deriva de desejos e de interesses que impulsionam a ação social em que
a ação propriamente dita e os recursos materiais acabam avaliados como meio para a concretização de uma
finalidade. Na questão da função social da propriedade, portanto, a objetivação de valores-fins está
conectada a desejos e interesses que desde o princípio devem mediar a ação do titular do direito; o que se
objetiva como fato na função social da propriedade deriva dos desejos e interesses envolvidos na situação
proprietária. Não é caso, portanto, de sustentar que a função social da propriedade contempla um
componente subjetivo de difícil objetivação na vida social e econômica, ou mesmo que a função social é
exterior imposto ao comportamento esperado do titular do direito, na linha do que propunham fundamentos
jusnaturalistas. A função social da propriedade está desde logo inserida no processo de construção da
socialidade.
Por isso, na função social da propriedade não poderia ocorrer mensuração de benefícios mediante
pressupostos do ótimo de Vilfredo PARETO, na forma de uma teoria da economia pura, porque a
funcionalização não se resume a critérios de eficiência, em termos de uma lógica da decisão de produtores e
consumidores, que diga respeito a escolhas e a cumprimento de objetivos (1945, p. 112-188). Do ponto de
vista econômico, a função social da propriedade não se define por um agir estratégico relacionado a fins
medido por regras de ação hipotéticas sem regularidade empírica; conforme assinala HABERMAS, os
enunciados normativos da economia não são tratados como comprováveis, mas como hipóteses sobre um
agir por princípio possível levado a termo por sujeitos econômicos (2009, p. 79). Assim, mesmo do ponto
de vista da teoria econômica a função social da propriedade envolve a objetivação de valores empiricamente
comprováveis o que remete, necessariamente, para a consideração de critérios de justiça, na medida em que a
funcionalização é antes de mais nada processo de assimilação dos direitos do outro.
Nesse sentido, o componente valorativo na função social da propriedade coloca em evidência
critérios redistributivos reconhecidos inclusive no exercício mesmo da titularidade. Levando em conta o
contexto da atual economia pós-moderna, esses critérios redistributivos podem ser tratados, por exemplo, na
linha do liberalismo igualitário proposto por John Rawls ou de ampliação de capacidades, segundo Amartya
Sen, ainda que, conforme adverte Claude GAMEL, na perspectiva da relação entre fatos e valores, possa ser
necessário observar certa hierarquia de valoração para preservar e fecundidade da teoria econômica (2009,
p.135-153).
Especificamente no que diz respeito ao aspecto econômico da função social da propriedade talvez
seja o caso de recuperar a premissa de F. G. W. HEGEL no sentido de que o individuo está inserido no todo
da comunidade e, desse modo, as relações sociais se constroem em meio à luta no contexto social que faz a
passagem desde as particularizações até a unidade entre o universal e o particular; como diz HEGEL,
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Wie nun diese auf das Subjektive oder Negative Beziehung hat, so muβ das Negative
überhaupt unterschieden werde als das Bestehen der Differenz und als der Mangel derselben;
jenes erste Negative ist es, wovon vorhin die Rede war, aber dieses andere Negative, der
Mangel der Differenz stellt die Totalität als ein Eingehülltes und Unentfaltetes vor, in
welchem die Bewegung und die Unendlichkeit in ihrer Realität nicht ist. Das Lebendige unter
dieser Form des Negativen ist das Weden der Sittlichkeit und die Erziehung nach ihrer
Bestimmtheit das erscheinende fortgehende Aufheben des Negativen oder Subjektiven, denn
das Kind is als die Form der Möglichkeit eines sittlichen Individuums ein Subjjektives oder
Negatives, dessen Mannbarwerden das Aufhören dieser Form und dessen Erziehung die Zucht
order das Bezwingen derselben ist. Aber das Positive und das Wesen ist, daβ es, an der Brust
der allgemeinen Sittlichkeit getränkt, in ihrer absoluten Anschauung zuerst al seines fremden
Wesens lebt, sie immer mehr begreift und so in den allgemeinen Geist übergeht. (1986, p.
507)
O modo como se efetiva a função social está inscrito nos valores e finalidades imanentes à
construção da vida em sociedade; assim, os elementos valorativos no princípio da função social podem ser
objetivados no conflito inscrito na construção da vida em sociedade no movimento da passagem de uma
identidade marcada pela ética individual para uma identidade reconhecida socialmente em sua
particularidade; ou seja, no lugar de uma ética de proprietários, introduz-se o movimento dialético da função
social da propriedade que faz emergir o universal de reconhecimento de proprietários e não-proprietários nas
suas particularidades.
A função social da propriedade, desse modo, não pode perseguir critérios de eficiência, valores e
finalidades que não estejam inscritos nos jogos de linguagem constitutivos da socialidade.
Especificamente no que diz respeito à operatividade, a concretização do princípio da função
social, segundo Fernando Rey MARTINEZ passa por critério de delimitação que deve observar princípio de
proporcionalidade em sentido estrito e que requer uma relação adequada entre os fins perseguidos e os meios
empregados; MARTINEZ afirma que no princípio constitucional da função social existe implícito um
mandato de ponderação objetiva dirigido ao legislador para o estabelecimento de escalas de usos e gozo do
direito de propriedade que possam afetar interesses sociais ou de outras pessoas específicas (1994, p. 375).
Esse mesmo mandato de ponderação objetiva está compreendido no processo de concretização jurisdicional
do princípio da função social da propriedade, que deve confrontar interesses de usos e gozo proprietários e
interesses sociais e de outros particulares em torno da situação proprietária específica.
Naquilo que diga respeito especificamente a bens ambientais, a concretização do princípio da
função social deve levar em conta no processo de delimitação valores e fins perseguidos que possam estar
de acordo com as premissas de equilíbrio do meio ambiente e de sustentabilidade o que, inevitavelmente,
redundará na limitação dos processos de mercantilização em curso.
Em torno do acesso a água, a funcionalização deve permitir operar mudanças no modelo de
distribuição, mediante a superação de valores estritamente mercantis e a efetividade de valores de proteção
das necessidades da pessoa humana.
4. Funcionalização de bens ambientais como referencial de sustentabilidade
Entre os valores e finalidades inerentes à funcionalização na apropriação de bens ambientais
podem ser incluídos os escopos de sustentabilidade e de equilíbrio do meio ambiente, na medida em que o §
1.º do art. 1228 do Código Civil afirma que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com
as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Como se observa do regulado pelo Código Civil, a lei elege critérios de funcionalização
correlacionados a valores e finalidades em torno da proteção do meio ambiente; logo, revela-se indispensável
que a concretização do princípio de função social da propriedade tenha como relevantes valores de
sustentabilidade e de equilíbrio do meio ambiente. Mostra-se também na regulação legal e constitucional o
liame que envolve o exercício de poderes proprietários e a proteção do meio ambiente, conforme, inclusive,
nesse sentido, o que dispõe o art. 225 da Constituição da República.
A idéia de sustentabilidade ligada à proteção do meio ambiente surge no Relatório Brundtland da
Comissão de Meio Ambiente da ONU, resumida na idéia de suprir as necessidades das gerações atuais sem
afetar as das gerações futuras; a idéia de sustentabilidade passou a ser associada a de desenvolvimento
sustentável. Contudo, a premissa de desenvolvimento sustentável contém um paradoxo, na medida em que,
do ponto de vista da história econômica, o desenvolvimentismo está atrelado à superação de etapas de
crescimento econômico o que, invariavelmente, implica danos ambientais em larga escala.
Conforme afirma Celso FURTADO a ideologia do progresso da civilização industrial assumiu
novos contornos no processo de industrialização dependente dos países em desenvolvimento, passando a ser
substituída pela idéia mobilizadora de desenvolvimento que privilegia um economicismo mais estreito;
segundo FURTADO, a idéia de desenvolvimento no quadro das economias dependentes como a brasileira
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exige transformações estruturais e um esforço de adaptação em face do transplante maciço de técnicas
geradas em sociedades que se encontram em fase mais avançada de acumulação de capital (2000, p. 109).
Nesse processo de adaptação e de transformações estruturais a preservação do meio ambiente e de escopos
de sustentabilidade acaba relegada a plano secundário. Mesmo no aspecto de sustentabilidade social,
conforme o assinalado por FURTADO, os processos de desenvolvimento engendram instabilidades
intrínsecas à sociedade que acabam por justificar o reforço a um autoritarismo preventivo.
Numa espécie de desenvolvimentismo soft Ignacy SACHS formula a teoria da ecossocioeconomia
que recusa a dissociação entre desenvolvimento e meio ambiente equilibrado e afirma a possibilidade de
práticas capazes de integrar as necessidades humanas a uma economia política de gestão de recursos (2007,
p. 77-95) Mantém-se, portanto, a premissa de viabilidade da idéia de desenvolvimento sustentável que possa
ser válido, inclusive, para os países de desenvolvimento retardatário.
Entre aqueles que formulam a dissociação entre sustentabilidade e crescimento econômico, Serge
LATOUCHE afirma que a premissa de crescimento econômico choca-se com a finitude da bioesfera, porque
o homem transforma recursos em resíduos mais rápido do que a natureza é capaz de transformar resíduos em
recursos; ele propõe então um processo de decrescimento sustentável baseado no círculo que engloba
reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar e reciclar e que, portanto,
conduz a um novo modelo de economia, o que não implica, necessariamente, a inexistência de mercados e de
formas de mediação social de trocas (2009, p.27 e 126-131). Na mesma linha, José Eli da VEIGA afirma
que, na perspectiva de uma economia ecológica, existe uma escala além da qual o aumento físico do
subsistema econômico passa a custar mais do que o benefício que pode trazer ao bem-estar da humanidade
(2009, p. 81).
Em meio às dificuldades de associar desenvolvimento econômico e sustentabilidade, ampliou-se a
concepção de sustentabilidade que, do âmbito de proteção do meio ambiente, passou a ser invocada para
denominar processos e atividades voltados para assegurar bem-estar na vida em sociedade. Passou-se a
empregar a noção de sustentabilidade para identificar toda a atividade ou processo capaz de assegurar a
manutenção da vida digna em sociedade; nesse novo contexto, o sistema econômico atuaria como uma
espécie de suporte dos escopos sociais de sustentabilidade. É duvidoso, porém, que a idéia de
sustentabilidade possa ser transmudada para abarcar toda a realidade das relações sociais sem levar em conta
as contradições e paradoxos envolvidos na construção da sociabilidade. Nesse sentido, a crítica da
concepção da sustentabilidade ainda está por ser feita. Por enquanto, do ponto de vista conceitual, o mais
correto é limitar a concepção de sustentabilidade à questões relacionadas ao meio ambiente.
Assim, a funcionalização de bens ambientais deve estar atrelada a valores de sustentabilidade
relacionados à preservação de recursos, em especial da água. Com efeito, preservar recursos essenciais à
vida humana constitui escopo de sustentabilidade na medida em que assegura necessidades sociais.
Os valores de sustentabilidade podem estar atrelados à efetividade do princípio fundamental de
solidariedade, nos moldes do disposto no inc. I, do artigo 3.º da Constituição, que possa tanto quanto
possível preservar garantias proprietárias e horizontes de manutenção do meio ambiente equilibrado; a
solidariedade que possa emergir dos valores de sustentabilidade deve dizer respeito a uma forma de
reconhecimento de direitos e do outro que possa estar implicado na situação proprietária e mesmo na
preservação do meio ambiente.
Não se trata de mero exercício de compaixão; o vínculo de solidariedade está justificado pela
necessidade de encaminhar o conflito de que emerge a própria socialidade; é nessa direção que deve ser
concenida a advertência de Antonio Herman BENJAMIN para quem a função social como princípio
constitucional impõe limites à apropriação de bens naturais de modo a promover a sustentabilidade; diz ele,
A ecologização da Constituição, teve o intuito de, a um só tempo, instituir um regime de
exploração limitada e condicionada (= sustentável) da propriedade e agregar à função social da
propriedade, tanto urbana como rural, um forte e explicito componente ambiental. Os arts.
170, VI e 186, II da Constituição brasileira, inserem-se nessa linha de pensamento de alteração
radical do paradigma clássico de exploração econômica dos chamados bens ambientais. (2008,
p. 72)
A proposta de funcionalização de bens ambientais, na perspectiva de sustentabilidade, está de
acordo com a premissa de Ingo Wolfgang SARLET de construção de espécie de titularidade social (200),
p.48) sem, contudo, esvaziar o conteúdo de uma determinada titularidade proprietária individual, em que
também pode estar em causa valores finalísticos de proteção da pessoa humana.
5. Conclusão
No momento de realização de novo ciclo de expansão da mercantilização, imposto pelos
processos de globalização econômica, coloca-se para o sistema jurídico a necessidade de renovar a
construção dogmática na perspectiva de fixar os limites da apropriação de bens ambientais que possam
reduzir a potencialização de risco para a vida em sociedade.
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Para essa tarefa deve ser ressaltado que, em meio aos riscos potencializados e as incertezas
produzidas pela ciência e pela tecnológica, a idéia de precaução ou de prevenção pode não ser eficaz para
dar solução a problemas decorrentes do esgotamento de recursos ambientais.
Em torno do confronto que se estabelece entre a lógica mercantil e a lógica de preservação
ecológica, a adoção de critérios de delimitação da função social, na apropriação de bens ambientais, de
acordo com a regulação constitucional da garantida do direito de propriedade e do direito fundamental ao
meio ambiente, pode constituir uma das saídas viáveis para preservar a vida em sociedade da emergência de
catástrofes sociais e ambientais.
Considerado o contexto em que as tecnologias informático-comunicativas multiplicam modelos
de forma, a funcionalização, que não se restringe ao caráter físico dos bens, emerge como espécie de
instituto capaz de, no primeiro momento, objetivar a captura de bens ambientais pela forma mercadoria e no
segundo, estabelecer os limites de uma apropriação que não deve resumir-se a escopos economicistas
estritos; daí a necessidade de adensamento de valores e fins de funcionalização aos parâmetros estabelecidos
pela Constituição da República que diga respeito à preservação do caráter humano do ato de apropriação
para a satisfação de necessidades, ele mesmo impregnado de interesses individuais e sociais.
A tarefa concretizadora da função social, naquilo que diga respeito à apropriação de bens
ambientais, precisa considerar valores e fins, em torno do conflito e dos interesses sociais e econômicos em
jogo, mediante critérios de proporcionalidade, que possam assegurar escopos de sustentabilidade.
Coloca-se então para o sistema jurídico e para o intérprete, diante da máquina do mundo, formular
aberturas e alternativas, possibilitadas pelos avanços da cultura digital, para a solução das crises engendradas
pela atual configuração da sociedade pós-moderna e para a preservação da pessoa, que exige uma postura
corajosa, ainda que humanamente hesitante, confrontada pelo chamamento assinalado por Drummond: olha,
repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo se
revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste; vê, contempla, abre!.
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existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: propriedade
privada, função social da propriedade e defesa do meio ambiente; Art. 186: A função social é cumprida
quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente; Art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."
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