A26
ID: 60952708
14-09-2015
Tiragem: 35268
Pág: 45
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 22,28 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Confiar ou não nas pessoas,
eis a questão
João Carlos Espada
Cartas do Atlântico
á tudo terá sido dito sobre o
famoso debate de quarta-feira
passada entre Pedro Passos
Coelho e António Costa. Mas
talvez seja ainda permitido
um breve registo sobre a
dissonância cognitiva que
parece ter envolvido boa parte
do debate.
Os portugueses sabem
que Portugal esteve em bancarrota.
Foi por isso que a diabolizada “troika”
teve de ser chamada. E foi por isso que
houve um programa de assistência e a
correspondente política de austeridade.
Se o programa foi mal ou bem aplicado,
se podia ter sido diferente, etc., tudo
isso pode e deve ser discutido. Mas
nada nessa discussão fará sentido sem a
assunção prévia da gravidade da situação
que enfrentámos e que, em parte, ainda
enfrentamos. E sem detectar com algum
rigor e bastante energia as razões que nos
levaram à bancarrota.
Lamento que o líder da Oposição não
pareça ter consciência destes factos
cruciais. Julgo que a única atitude credível
por parte do líder do partido que estava no
Governo na época da bancarrota teria sido
começar por assumir frontalmente essa
responsabilidade. Não o fez.
Receio que essa lacuna afecte a
credibilidade do novo programa que
apresenta. Pode ser um programa
fantástico. Mas tem de responder à
pergunta: por que motivo(s) entrámos em
bancarrota? Em rigor, todos nós (incluindo
os membros do actual Governo) devíamos
tentar responder a essa pergunta. Seria
uma espécie de “exame de consciência”
que talvez não nos ficasse mal.
Quem seguramente tem um
programa fantástico é o novo líder do
Partido Trabalhista britânico, Jeremy
J
Corbyn. No sábado passado, foi eleito
esmagadoramente com quase 60% dos
422 mil votantes trabalhistas. Entre as
propostas do seu programa conta-se: (1)
saída da NATO; (2) desnuclearização do
Reino Unido; (3) fim da austeridade; (4)
nacionalização dos caminhos-de-ferro,
dos serviços de água e electricidade; (5)
abolição das propinas nas universidades;
(6) fim dos cortes nas prestações sociais do
estado; (6) reforço do apoio do estado às
artes, educação e ciência.
É indubitável que 251 mil votos (os
referidos 60%) são muitos votos. E todos
inteiramente respeitáveis. Mas é igualmente
indubitável que são uma pequeníssima
fracção dos muitos milhões de eleitores
britânicos. Vários
líderes históricos do
Partido Trabalhista
- entre os quais
Tony Blair e Gordon
Brown - avisaram
repetidamente
que a eleição do sr.
Corbyn afastaria o
partido de qualquer
esperança de
obter uma maioria
parlamentar.
Isso parece ter
apenas reforçado
o entusiasmo
dos apoiantes de
Corbyn: “mais
vale um programa
certo do que um
programa maioritário”, disseram eles.
Receio detectar aqui mais uma
dissonância cognitiva. Por que motivo
um “programa certo” não deve ser “um
programa maioritário”? E porque é que um
“programa maioritário” não pode ser um
“programa certo”?
A única resposta possível é porque os
apoiantes do sr. Corbyn não confiam nos
eleitores. Pertencendo à escola marxista,
eles desdenham a chamada “democracia
“Confiar nas
pessoas” é o
lema básico
da política
democrática
BEN STANSALL/AFP
burguesa” e os eleitores “alienados pelo
consumismo”. Preferem o programa
ideológico das vanguardas esclarecidas e
desprezam o senso comum das pessoas
comuns.
Infelizmente, uma dissonância
semelhante, embora de efeitos opostos,
parece por vezes afectar os políticos
moderados, ao centro-esquerda e ao
centro-direita. Impressionados pelos
estudos quantitativos dos técnicos de
marketing, estes políticos dizem o que os
técnicos lhes mandam dizer. Hoje uma
coisa, amanhã outra. Um truque aqui, mil
promessas ali.
Em ambos os casos - entre os marxistas
centrados na pureza ideológica e entre os
moderados dominados pelo marketing encontramos um equívoco comum. Eles
não confiam na capacidade de avaliação de
argumentos políticos por parte das pessoas
comuns.
Acontece que todos os grandes
líderes democráticos se distinguiram
por acreditar no bom senso das pessoas
comuns. “Trust the people” era uma das
máximas preferidas de Winston Churchill
e de Edmund Burke. Por isso mesmo, eles
foram capazes de muitas vezes desafiar
modas dominantes. Entendiam-nas como
passageiras e acreditavam na capacidade
de as contrariar - dirigindo-se com vigor
ao bom senso das pessoas comuns. E não
consta que seguissem sondagens.
Isso mesmo foi celebremente dito por
Péricles, há 2500 anos, na inesquecível
Oração Fúnebre em defesa da democracia
ateniense: “Embora só uns poucos sejam
capazes de criar uma política, todos nós
somos capazes de a julgar.”
Por outras palavras, não há qualquer
oposição inevitável entre um “programa
certo” e um “programa maioritário”.
“Confiar nas pessoas” é o lema básico da
política democrática.
Professor universitário, IEP-UCP
Escreve à segunda-feira
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Confiar ou não nas pessoas, eis a questão