III SEMINÁRIO “GESTÃO DA ÉTICA NAS EMPRESAS ESTATAIS” CCBB – junho/2007 O Tráfico de Influência como prática de assédio moral, anti-democrática, anti-ética. Alípio Casali PUC-SP 1. “Os que trocam presentes mutuamente são amigos todo o tempo... Um presente dado espera sempre um retorno”. Com essas estrofes do Havamál, um dos velhos poemas da Eda escandinava, o antropólogo Marcel Mauss inicia sua obra clássica “Ensaio sobre a Dádiva – forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” (1924). A referência do subtítulo é clara: “sociedades arcaicas”; mas isso não significa afirmar que tais formas não se encontrem mais nas sociedades contemporâneas; significa, certamente, que as sociedades contemporâneas contêm algo de arcaico; e, mais ainda, significa talvez que a troca seja um fenômeno arcaico por ser inerente à sociabilidade humana. Todos reconhecemos o quanto em nosso dia-a-dia nos movemos numa rede de solidariedades, favores, atenções, cuidados de uns para com os outros. Desde as etiquetas mais formais e puramente repetitivas das retribuições de bons votos, bom dia, agradecimentos, até os vínculos reais que se formam entre pessoas que por casualidade ou não em algum momento se prestaram algum favor... e se sentiram obrigadas umas às outras. Observe-se que quando dizemos “obrigado” a alguém estamos declarando que nos sentimos ligados / vinculados a esse alguém (ob-ligare significa literalmente estar-ligado a). Essa circulação de gentilezas e amabilidades é certamente constitutiva da civilização. Chamamos simplesmente de “bem educada” uma pessoa que é capaz de circular nessa rede de sociabilidade. No fundo, há aí um sentido positivo de vida em sociedade que expressa o reconhecimento da dignidade inerente a cada pessoa; daí o respeito, a reverência, o sentido de justiça, de compaixão e de solidariedade que o sistema de trocas sociais implica. As formas concretas, históricas e culturais, pelas quais os sistemas de trocas se enraizaram foram certamente as instituições mais primárias: famílias, clãs, tribos. Nelas o sentido das trocas era o mesmo das outras estratégias de sobrevivência: cada família cuida dos seus (cada clã, cada tribo, cada povo, cada nação...). A coisa começa a complicar eticamente quando, a partir desse fundo civilizatório das boas trocas de dádivas sociais, estabelecem-se redes particulares de instituições, irmandades, fraternidades, corporações, estamentos, castas, seitas, bandos, máfias. Não por acaso vários desses nomes aparecem como extensão da família (irmandades, fraternidades...). Aí já começamos a falar de trocas propriamente interesseiras, negócios, corporativismos, disputas, busca de vantagens, cuja essência consiste em processos de inclusão de uns em detrimento dos demais. Aí está implicado o levar vantagem indevida, sair na frente, furar a fila, passar alguém para trás. Aí os interesses particulares 1 III SEMINÁRIO “GESTÃO DA ÉTICA NAS EMPRESAS ESTATAIS” CCBB – junho/2007 sobrepõem-se e antecipam-se aos direitos universais. Aí a ética está comprometida. 2. Reconheçamos: não há sistema perfeito de administração (pública ou privada). As democracias bem instituídas caracterizam-se, entre outras coisas, pelo estabelecimento de procedimentos transparentemente definidos, acessíveis a todos, para a realização da vontade coletiva no que se refere ao uso do dinheiro e do poder público. Esse incômodo fato da “imperfectibilidade” dos sistemas é uma fenda na ordem pública por onde podem esgueirar-se sombrios interesses particulares. Essa imperfeição dos sistemas obriga-nos a compreender essa expressão tão em voga nas manchetes da mídia contemporânea: o tráfico de influência. Preliminarmente, somos obrigados a esclarecer que duas pessoas em pé de igualdade, simétricas em sua posição de poder, podem influenciar-se mutuamente, mas só podem fazer isso mediante uma argumentação racional. E, convenhamos, uma influência que resultasse de uma boa argumentação seria certamente uma influência muito benéfica para a boa vida social e para a democracia. Coisa diferente se passa quando duas pessoas encontram-se em posição assimétrica de poder: a influência da que tem mais poder (real ou potencial) certamente dispensa qualquer argumentação racional; basta insinuar o uso do poder... e a isto chamamos simplesmente de ameaça ou chantagem. Mas somos obrigados também a estabelecer uma outra distinção, ainda mais sutil e ao mesmo tempo mais grave. Uma coisa é um tráfico de influência de quem, sabedor da “imperfeição” dos sistemas de administração (no nosso caso, pública), está interessado em fazer com que seu processo caminhe, e sabe que para isso é preciso agilizar o sistema, desimpedindo ou desbloqueando obstáculos casuais, porém faz isso respeitando os procedimentos estabelecidos, as normas, as rotinas democraticamente definidas. Supõe-se também, nesse caso, que o tal processo seja algo de pleno direito da pessoa interessada. Por princípio, não se vê incorreção ética nessa iniciativa de interferir no andamento das rotinas administrativas para ajudar a mover e fazer circular o sistema. Afinal, é isso mesmo que o sistema de administração deve fazer: a circulação dos processos. Entretanto, é preciso cuidado. Pois ao mesmo tempo estamos aí numa fronteira ética, uma vez que admitir como válida uma interferência externa no sistema de administração, ainda que de direito, resulta em admitir como norma possível que quaisquer processos poderão ser empurrados a partir de fora, a partir de uma influência externa. Ora, a conduta propriamente ética nesse caso deveria ser a de contribuir para corrigir o problema dos obstáculos na sua fonte, ou seja, ajudar o sistema a circular independente de influências externas. Isso, por uma singela razão óbvia: porque somente aqueles cidadãos com alguma capacidade de exercer (traficar) influência nos meandros do poder teriam acesso ao direito. Esse tráfico de influência, portanto, é uma maneira de se levar vantagem indevida sobre os demais: passouse à frente, furou-se a fila, alguém ficou para trás. 2 III SEMINÁRIO “GESTÃO DA ÉTICA NAS EMPRESAS ESTATAIS” CCBB – junho/2007 Outra coisa é o tráfico de influência de quem, sabedor da “praxe” de que “só anda o processo em que se põe a mão”, visa interferir no sistema de administração pública para intencionalmente “apressar”, fazer “passar na frente” e, pior, “alterar” (adulterar) procedimentos para que o processo de seu interesse caminhe. Muitos outros objetivos e modos de se interferir nos procedimentos regulares do poder público podem ser identificados como tráfico de influência: interferir para obter tratamento diferenciado para si ou para outrem; exercer pressão para obtenção de favores, benesses ou vantagens indevidas; influenciar alguém para que exerça o poder ou a autoridade com finalidade estranha ao interesse público (mesmo que observando formalidades legais e não cometendo qualquer violação expressa à lei); extrair informações privilegiadas em benefício próprio, de parentes, de amigos ou de quaisquer terceiros; pressionar servidor a agir em seu favor, violando o princípio da dedicação integral de servidor público a seu cargo ou função; influenciar em favor da nomeação de alguém; influenciar conspirando contra a promoção de um desafeto ou concorrente; pressionar para arranjar um emprego para o filho de um amigo; etc. 3. Prestígio é poder. E pode ser utilizado com diversas intenções e sentidos. Por princípio, o poder é bom, quando é bem distribuído. Por exemplo, o ex-Secretário Geral da ONU Kofi Anan usou o poder imenso de seu prestígio quando lançou, com grande êxito de influência, os dez princípios do Pacto Global (o décimo dos quais era exatamente o de um pacto global contra a corrupção...). Um artista famoso ou jogador de futebol pode também usar do poder de seu prestígio para atuar como Embaixador da UNICEF em defesa de uma infância mais digna etc. Esses são usos éticos do poder de influência, pois são feitos em favor da vida, da vida de todos, sendo que a realização plena da vida de todos é o fundamento da ética. Outra é a situação quando o poder de influência é usado num negócio escuso em que, como contrapartida da influência, se espera uma vantagem indevida. Uma vantagem é indevida quando é diferenciada em relação às possibilidades dos demais (temos aí uma situação de ineqüidade) ou, pior, quando é realizada em prejuízo de terceiros (temos aí a flagrante injustiça). Nesse caso, o exercício de influência é um negócio e por isso pode-se falar propriamente de um tráfico. Nesses casos, estamos diante de uma fratura no direito, na democracia, na ética. Em síntese: a) o tráfico de influência é uma prática de assédio. Ainda que consentido, gera submissão (ou corrupção passiva). Estamos assumindo, aqui, “assédio” genericamente, como uma imposição indevida de poder sobre alguém. No tráfico de influência é isso que se passa: alguém supostamente investido (direta ou indiretamente) de algum poder faz valer sua vontade e interesse interferindo nos mecanismos e procedimentos do poder público, contrariando o interesse público, para obtenção de alguma vantagem indevida para si ou para terceiros; b) o tráfico de influência é uma prática antidemocrática. A democracia implica na instituição e preservação de procedimentos adequados e rotineiros (eficientes e eficazes), isto é, capazes de realizar o interesse e o poder público 3 III SEMINÁRIO “GESTÃO DA ÉTICA NAS EMPRESAS ESTATAIS” CCBB – junho/2007 adequadamente. Quebrar esses procedimentos é formalmente quebrar a democracia (no mérito é quebrar a eqüidade do direito e a justiça); c) em conseqüência de tudo: o tráfico de influência é uma prática antiética. A ética implica várias obrigações. Uma delas é o respeito a toda e qualquer pessoa. Impor sua vontade e interesse sobre alguém (assediar) é uma conduta antiética. Outra obrigação ética é a de subordinar os interesses individuais aos interesses coletivos quando forem conflitivos e excludentes. No limite, o critério de validação de uma conduta ética é a universalidade. Ora, a democracia é, pelo menos intencionalmente (nem sempre efetivamente, em conseqüência da imperfeição dos sistemas a que nos referimos), a realização do direito na sua máxima universalidade. Violar a democracia é violar o direito; trata-se de uma fratura ética. O tráfico de influência disfarça-se de “boa conduta social”, de “saudável e amigável troca de favores e gentilezas”. O traficante de influências nem sempre atua na linha de frente, nem sempre arrisca-se diretamente. Costuma ter um intermediário, que não é prepotente ou ameaçador, que não fala grosso. Que é, antes, um “boa praça”, que circula com desenvoltura pelos lobbies de hotéis e salas de espera de gabinetes, e costuma mandar presentinhos para secretárias. Nessa ambivalência reside seu perigo e seu poder de corrosão ética. 4