Nº 13 Dezembro/2011 Saúde em risco: realizar exame desnecessário pode ser prejudicial Presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família diz que problema diminui quando um médico generalista é a primeira opção em atendimento Crítico do que chama “medicina comercial”, o médico Gustavo Gusso alerta que o costume brasileiro de fazer autodiagnóstico e, a partir dele, procurar diretamente um especialista pode ser prejudicial à saúde. Gusso é presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), professor de Medicina de Família e Comunidade da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Faculdade de Saúde Pública do Reino Unido. Ele defende que a especialização em medicina de família se torne obrigatória para os profissionais atuarem em postos de saúde, emergências e UTI no Brasil. Segundo ele, países desenvolvidos como Inglaterra e Canadá adotam esse modelo e têm resultados melhores em saúde. Na entrevista ao Jornal da CASSI, ele avalia que a Caixa de Assistência está correta ao oferecer profissionais generalistas como porta de entrada aos pacientes, como ocorre nas CliniCASSI. CASSI – Qual o problema de ir diretamente ao especialista? Gustavo – Não faz sentido ir a um especialista se a gente não sabe qual é o problema e, se são vários problemas, qual precisa ser abordado de forma conjunta. Nos países desenvolvidos, os pacientes praticamente vão sempre aos generalistas. CASSI – O que levou o brasileiro à cultura de ir direto ao especialista, partindo de um diagnóstico que o próprio paciente faz? Gustavo – Isso começou nas décadas de 50 e 60, com a medicina de mercado e a concorrência entre planos de saúde. Desde então, ficou muito mais fácil ser especialista em termos de mercado para se conquistar um paciente. Você fala para ele: “Só eu que posso resolver esse problema”. O paciente acredita e embarca nesse shopping center que acaba virando a saúde. Para resolver o problema da próstata, vai ao urologista; para resolver o do coração, a um cardiologista; a dor de cabeça, a um neurologista. Existe um apelo muito grande no mercado, não só na saúde, mas na educação ou em qualquer outra área em que as pessoas se especializaram em conquistar clientes. Em países como Inglaterra e Holanda há um controle maior dessa medicina comercial. CASSI – Existe estudo comparativo, mostrando que, nos países nos quais a população vai primeiro a um generalista, a saúde da população é melhor do que naqueles em que se procura diretamente especialistas? Gustavo – Há muitos estudos que comprovam isso. A Barbara Starfield (pediatra americana, mestre em saúde pública que virou referência internacional em atenção primária na saúde e morreu em junho de 2011, aos 78 anos) praticamente dedicou a vida inteira para isso, e demonstrou claramente – em estudos publicados em revistas como a Lancet (uma das mais importantes publicações científicas médicas mundiais, editada no Reino Unido) – que é mais eficiente ter generalista como porta de entrada. No Brasil, há estudos demonstrando que quem vai ao generalista tem mais chance de ter uma abordagem melhor para a saúde. Os países que adotam generalista na porta de entrada (primeira opção de atendimento em saúde), como Inglaterra, Holanda, Dinamarca, Canadá, têm bem melhores resultados. Isso é bem claro. Agora, para o vendedor do plano de saúde, é importante falar que a pessoa vai ter acesso a todos os especialistas que quiser. É como dizer: você vai poder comprar todos os sapatos que você desejar, vá a um shopping center e pegue tudo o que quiser, de graça. O que não é verdade, porque alguém paga a conta. A remuneração do médico fica muito baixa, criando um monte de problemas que levam o plano a ficar inviável. Essa ilusão que a medicina comercial vende é meio falaciosa. CASSI – Além do impacto financeiro para o plano, a busca indiscriminada por especialistas pode representar risco à saúde da pessoa? Gustavo – A própria Barbara Starfield publicou na Lancet que essa medicina comercial, que é bem comum nos Estados Unidos, é responsável pela terceira causa de morte. Para a saúde da população, é muito mais arriscado ir a um especialista e fazer um monte de exames. As pessoas não se dão conta, mas fazer um monte de exames desnecessários muitas vezes leva a resultados falsos positivos que levam a intervenções muitas vezes desnecessárias, a internações e a biópsias que elevam o risco de morte. Todo dia é comum pessoas obterem resultados positivos para doenças das quais não foram acometidas. Nesse caso, o paciente precisou fazer outro exame para provar que não existia. É muito mais fácil isso causar um dano do que um bem. Vou dar um exemplo: o PSA (exame que revela a quantidade de proteína produzida na próstata e que é elevada em pacientes com câncer) é muito comumente indicado e hoje em dia a gente sabe que não é bem assim. Não é um benefício fazer PSA todo ano. Aliás, há 48 vezes mais chances do exame causar um dano do que um benefício [para pacientes que não têm câncer na próstata. CASSI – Como, então, se recomenda PSA aleatoriamente? Gustavo – Não se recomenda. É uma questão comercial de urologistas, só. CASSI – O dano, nesse caso do PSA, ocorre pela realização do exame? Gustavo – Pelo falso positivo, que acaba encaminhando o paciente para biópsia, aí não acha nada e se faz outra biópsia. Até acreditar que o resultado era falso positivo, realizam-se três ou quatro exames, às vezes chega-se a tirar a próstata inteira. A maior parte do dano é fazer a biópsia desnecessária. Tirar um pedaço, fazer um ultrassom transretal, colocar uma agulha no ânus e pegar um pedaço da próstata, o que implica internação de um dia, não é uma coisa tranquila. CASSI – Outro exame bastante indicado é a mamografia. Ela também se enquadra na lista dos exames realizados exageradamente? Gustavo – Depende. Os exames existem para quê? Hemograma, por exemplo, existe para identificar se a pessoa tem anemia, problemas no sangue. Ele não é feito para a população saudável. É feito em quem tem algum problema clinicamente identificado. Fazer um exame para saber se tem alguma coisa não existe. Os exames foram inventados para uma finalidade. Se a pessoa tiver um problema de saúde, ele vai ser bom. Se não tiver, pode ser ruim, porque não foi feito para aquilo. É o mesmo caso para a mamografia. Se for feito numa população que tenha uma prevalência de câncer de mama mais alta, ajuda a detectar a doença. Se fizer numa população na qual é muito raro [ter câncer], o efeito pode ser negativo, porque a chance de o resultado dar positivo é muito grande. Todo exame vai dar, em um para mil, positivo. Todo, em geral. Se eu fizer mamografia em meninas de 15 anos, vai dar positivo em uma para mil. Isso é estatístico. Só que, em nenhuma menina de 15 anos, o resultado desse exame vai ser realmente positivo. Em meninas com essa idade não há câncer de mama. Pense na situação dessa menina cujo resultado der positivo, e que será falso. Já numa mulher com mais de 50 anos, se fizer, a chance desse positivo ser positivo de verdade é maior. Então, o exame tem de ser feito na população que tenha o risco de ter o problema. A mamografia hoje é recomendada para mulheres com mais de 50 anos e, no máximo, de dois em dois anos. CASSI – A recomendação do Inca é essa: mamografia acima de 50 anos. Isso significa que as políticas contra o câncer no Brasil estão adequadas? Gustavo – O que sai nos jornais, com médicos dizendo que o governo não quer gastar dinheiro com exames, é uma falácia. O Inca está preconizando com mais de 50 anos por causa disso que estou falando: se em um para mil dá problema, o exame vai fazer mal para aquela menina cujo exame deu falso positivo. As políticas estão absolutamente corretas. O Brasil tende a exagerar, influenciado por médicos inescrupulosos, que só visam lucro e que tendem a influenciar a mídia. CASSI – O exagero está nos consultórios, não nas políticas de saúde? Gustavo – Há dois meses saiu no jornal declaração de médico dizendo que o governo queria fazer mamografia só depois dos 50 por economia. No mundo todo se faz depois dos 50, em geral. Se a mulher tiver algum parente com câncer de mama, aí faz a partir dos 35. As mulheres que têm algum parente com câncer de mama têm risco diferente das demais e um generalista vai levar isso em conta. Se você vai ao consultório de um mastologista, ele vai te falar que você tem de fazer uma mamografia, porque é isso que ele estuda. Se você vai ao consultório de um urologista, ele vai falar do exame de próstata, num cardiologista, do de coração. Imagine: uma mulher de 52 anos fez mamografia com resultado normal, há dois anos, não tem parente com câncer de mama, mora numa favela, o neto dela foi assassinado, ela bebe e é obesa. Outra com 52 anos fez mamografia há dois anos com resultado normal, não tem nenhum parente com câncer de mama, é professora universitária e procura o médico para fazer um check up. Não tem nenhum problema de saúde, tem um casamento estável e está tudo bem no resto. Você acha que a mamografia tem a mesma importância para as duas? As duas teoricamente teriam que fazer mamografia, porque já faz dois anos que fizeram a última. Mas uma mulher cujo neto morreu assassinado, é obesa, mora numa favela e bebe tem uma necessidade específica, não precisa fazer a mamografia naquele momento. Mas a outra [a professora] não tem mais nada para fazer naquele momento, então você pede uma mamografia. A necessidade da que mora na favela é outra, é ver quem a está apoiando. Não posso chegar para ela e dizer: você tem de fazer mamografia e papanicolau, comer alface, não andar de moto. Para cada pessoa, é necessário que o médico fale algo que tem a ver com a história dela. CASSI – O generalista está mais preparado para perceber essa diferença e agir de forma individualizada do que um especialista? Gustavo – Se for num mastologista, o que ele vai fazer nessas duas mulheres? Vai pedir mamografia. CASSI – Além da cultura de medicina comercial, há mais alguma razão para as pessoas não irem a um generalista? Gustavo – Essa cultura comercial é muito importante. É a base do problema. Mas há outro aspecto: a crença de que quem é especialista estudou mais do que um generalista. Hoje em dia, a gente sabe que o bom generalista tem de fazer uma residência, que no Brasil se chama Medicina de Família. Nem todo mundo faz. O importante é que um bom generalista tem de ser especialista também, tem de estudar, fazer residência. É tão ou mais difícil ser um generalista do que um especialista. Então, a residência é tão ou mais importante para quem quer ser generalista. Isso no Brasil não vinga porque entra, de novo, a parte comercial. A residência para generalista no Brasil não vinga porque o cara que é cardiologista quer manter a área generalista como “fuga”, sem residência, para que, quando estiver apertado [de dinheiro], ele vá fazer um bico num posto [de saúde]. No Brasil, quase todo o especialista tem um emprego como generalista em posto de saúde, UTI ou emergência. Essas três áreas são as mais confusas e as que deveriam ter os médicos mais bem formados porque são os serviços que as pessoas mais usam. Só que os especialistas que comandam a categoria médica – como as sociedades brasileiras e os conselhos de medicina, que são os endocrinologistas, os cardiologistas, os que são donos de uma partezinha do corpo – não deixam isso vingar para que eles possam ter essas áreas [posto de saúde, emergência, UTI] como bico. CASSI – Qual a proporção mais adequada de especialistas para generalistas, tendo em vista o melhor atendimento à população? Gustavo – Em geral, nos países desenvolvidos, como na Inglaterra, 40% dos que se formam fazem medicina de família e 60% fazem o restante das especialidades todas. No Brasil nem 5% fazem medicina de família. CASSI – Há perspectiva de mudança? Gustavo – “A mudança depende da sociedade. Se ela continuar dizendo que vai primeiro a um especialista, que prefere assim, vira um círculo vicioso”. Os médicos estão satisfeitos, mas entre aspas, porque uma parte fica satisfeita já que ganha muito dinheiro vendendo uma ilusão. Outra parte faz plantão em posto de saúde. A maioria não quer ser generalista. Entrou na faculdade pensando em ser urologista, endocrinologista, fazer cirurgia plástica e quer continuar fazendo isso, mesmo que tenha de continuar, numa parte do tempo, fazendo um plantãozinho num pronto-socorro ou num posto de saúde para complementar o dinheiro. Então é uma decisão da sociedade. A holandesa e a sueca não querem isso. O rei da Suécia vai a um médico de família. CASSI – Os médicos generalistas costumam pedir menos exames do que os demais especialistas? Gustavo – A gente pede exames e exagera também. Até demais. A única diferença é que avaliamos os riscos individualmente. Não saímos fazendo um pacote de coisas para todo mundo. Esse pacote de coisas é gigantesco. O cardiologista vai dizer que tem de fazer eletro, o urologista vai dizer que tem de fazer PSA. Só que se for fazer tudo o que o especialista diz para todo mundo... Inclusive existem estudos demonstrando que a taxa de radiação que as pessoas recebem é absurda, por conta de exames. CASSI – Como se conseguirá mudar esse quadro se não há médicos de família em número suficiente no Brasil? Gustavo – Para haver mudança, todos os médicos teriam de fazer residência. Seriam 15 mil vagas, para 15 mil médicos, sendo 6 mil para medicina de família. Assim, quem não entrar na oftalmologia, por exemplo, teria de fazer medicina de família e não poderia fazer bico no posto de saúde [sem residência em saúde da família]. É assim que funciona no Canadá. Um recém-formado que desejar fazer oftalmologia concorreria por 30 vagas. Se não conseguisse, teria de fazer outra especialidade, em medicina de família. E não poderia trabalhar se não fizesse. Posto de saúde e emergência não podem ser bico. No Brasil são 54 especialidades. Na Europa, tem 30, 40, no máximo, e justamente UTI e emergência são as áreas em que se exige especialização [como generalista] para atuar. Aqui não se exige residência para essa áreas, pelo contrário. O generalista precisa ser bem formado. “No Brasil, se você tiver um derrame e for para a UTI, pode ser tratado por um urologista”. CASSI – A CASSI, nos seus serviços próprios, encaminha primeiramente o paciente para um generalista. Isso contribui para essa mudança? Gustavo – Sim, porque é uma das únicas a criar mercado. Foi o que o PSF fez (Programa Saúde da Família, do Ministério da Saúde): criou mercado para médico de família, que não existia. Se hoje esse profissional representa 5%, não era nem 0,5% há 15 anos. Hoje, pelo menos, são 80 residências, o que não é nada para o tamanho do Brasil. A CASSI fazendo isso já muda, de alguma forma, e tenta convencer seus usuários de que isso é bem melhor para ele do que a medicina comercial. CASSI – Os países nos quais a porta de entrada é um médico generalista têm taxas maiores de longevidade e índice de envelhecimento com maior qualidade de vida? Gustavo – Em países como Inglaterra, Holanda e Dinamarca, a expectativa de vida das pessoas é muito maior. A gente costuma brincar que o governo canadense diz: “Você está reclamando que não te dou a cirurgia plástica, o dermatologista ou o urologista na hora que você quer, mas eu te garanto que você vai morrer com 85 anos e bem. Não é isso que vocês querem? ”. A medicina comercial não ajuda nisso: não melhora a expectativa nem a qualidade de vida, muito pelo contrário. Nos EUA, há estudos mostrando que os estados com mais especialistas são aqueles nos quais há menor expectativa de vida e menor qualidade de assistência. Os poucos estados americanos que têm ao menos um médico de família são os que apresentam os melhores indicadores. CASSI – A ideia de que o especialista resolve mais rapidamente o problema, como todo mundo deseja, atrapalha uma mudança de hábito? Gustavo – É muito difícil encontrar pessoas que pensam iguais a nós [médicos de família] e que mantêm consultórios particulares no Brasil. Os consultórios deles estão fechando. Você faz a melhor consulta que pode fazer, gasta uma hora com o paciente, entende todos os seus medos e expectativas, não digo nem fazer o diagnóstico perfeito, mas compreende a pessoa, a família, identifica o que ele quer e quais os seus medos, exagera nos exames, pede hemograma, mas, se não pedir a ressonância que o paciente quer, ele não volta ao seu consultório. Você pede 10 exames. O profissional de saúde ao qual ele foi no ano passado pediu 30. O paciente não volta. Ele quer o comércio. É uma deseducação completa em termos de uso do sistema de saúde. CASSI – Exames e tecnologias não garantem melhor saúde? Gustavo – Não. O que garante melhor saúde são atividade física, alimentação adequada e hábitos saudáveis, como não fumar e não usar drogas. Ter emprego, família, saneamento e ambiente saudável é importante também. Com isso, a chance de viver até os 80 anos é enorme, mesmo que não tenha um médico na cidade. CASSI – O excesso de preocupação com a saúde virou doença? Gustavo – Vivemos na ilusão de que isso fará as pessoas viverem mais. Vi entrevista com geriatra na TV e a primeira pergunta foi “já se pode dizer que as pessoas viverão até os 150 anos?”. Qual a vantagem de se viver até os 150 anos? Não pode viver até os 80, mas bem? Essa ilusão da vida eterna, como se o dinheiro pudesse comprar isso, está muito presente no imaginário das pessoas. Todo mundo vai morrer. É importante os médicos dizerem isso na televisão. O que a gente pode fazer é a pessoa viver o máximo possível feliz. É muito simples a vida. Há algum problema de morrer aos 85 anos de câncer de mama? Aumentaram os índices de câncer de mama. Ótimo, porque as pessoas estão vivendo mais, não estão mais morrendo de tiro, de acidente de carro. Nos países ricos, o número de infarto e câncer de mama é altíssimo. CASSI – O paciente deve enfrentar o médico, questionar a quantidade de exames que ele está pedindo? Gustavo – O que você tem de exigir do seu plano é que ele tenha bons generalistas, o que em geral não tem. Não adianta o plano ter um cardiologista que atende como clínico geral. Para atender como um bom clínico geral, tem de ser um bom generalista. Fonte: Jornal CASSI Família Mais informações visite nosso site: www.brbsaude.com.br ANS – Nº: 41431.0