O NARRADOR-PROTAGONISTA DE O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO:
a experiência urbana
Gínia Maria Gomes (UFRGS)
O romance O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho, tem início com a
pergunta “O senhor é escritor?” (CARVALHO, 2007:11), feita pela dona do restaurante
Seiyoken ao então cliente. Isso é essencial, posto transformá-lo em narrador da história que ela,
Michiyo, tem urgência em relatar. O seu relato é apenas aparentemente simples, pois, pouco a
pouco, a trama vai-se desdobrando e complexificando-se, com personagens que buscam o
reconhecimento identitário e que, por isso mesmo, se angustiam diante da consciência do não
pertencimento. Por isso mesmo, muitos deles sentem-se estrangeiros, desenraizados, “como um
trem em marcha, um avião em pleno ar, a própria transição que exclui a parada.” (KRISTEVA,
1994:15).
A um breve olhar, essa problemática logo se revela. Está presente em várias
personagens do relato do Michiyo, como Jokichi, que perdeu a sua própria identidade graças às
articulações paternas que, no intuito de salvá-lo, enviara para a guerra um dos seus empregados
“aquele que, por necessidade, se prest[ou] a assumir a identidade do filho, respondendo à
mobilização no lugar dele” (CARVALHO, 2007:45). Descoberta a impostura, Jokichi, já
oficialmente morto, trava uma luta para reconquistar a identidade que fora “emprestada” a
outro. Ao recuperá-la, é, no entanto, submetido à humilhação de ser tratado como desertor,
culpa da qual não consegue eximir-se, sob pena de manchar a memória do pai. O próprio nome
transformara-se em óbice para o convívio social. Nessa conjuntura, assumir outro nome é a
solução que se apresenta. Com esse intuito, compra documentos falsos, dos quais só vai
apropriar-se ao imigrar para o Brasil, depois de forjar o próprio suicídio, supostamente realizado
“na mata dos arredores de Kyosan” (CARVALHO, 2007:84).
E o que dizer do jovem que morreu na guerra com a identidade de Jokichi? Quais as
suas motivações para tal ato? Michiyo nada fala sobre ele no relato que faz ao narrador. É na
carta endereçada a Masukichi que ela reporta-se sobre a identidade do rapaz; nesta reflete sobre
a sua ascendência e faz ilações sobre os motivos que determinaram tal decisão. Oriundo de uma
família de párias, ele era um “burakumin” (CARVALHO, 2007:140, grifo do autor), excluído
da sociedade, visto ser considerado “gente impura, [...], simplesmente porque num passado
remoto os antepassados deles teriam feito o serviço „sujo‟, [...], teriam cuidado da carne e dos
mortos, matando os animais que nós comemos e executando os criminosos que nós mandamos à
morte.” (CARVALHO, 2007:141, grifo do autor). Ele é “aquele que não faz parte do grupo,
aquele que não „é dele‟, o outro.” (KRISTEVA, 1994:100, grifo do autor). Só a alguém assim
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estigmatizado, que crescera consciente de que “sua presença era intolerável” (CARVALHO,
2007:142), o pai de Jokichi teria coragem de fazer uma proposta tão ignominiosa: oferecer
dinheiro para que ele assumisse a identidade do filho – “Não foi à toa que procurou um homem
formado na humilhação” (CARVALHO, 2007:142). E só alguém nessas condições teria aceito
“lutar por uma nação que o havia proscrito” (CARVALHO, 2007:142). No entanto, não
consegue manter o silêncio sobre essa identidade, porque, na frente de batalha, “reconhecendo a
solidariedade onde no fundo ela não existia” (CARVALHO, 2007:142) − Seiji, este era o seu
verdadeiro nome −, revela ao amigo a farsa de sua identidade: “que tinha tomado o lugar de
outro para lutar por um país que o rejeitava.” (CARVALHO, 2007:142). A ruptura do silêncio é
sintomática do sentimento de integração e de pertença que estava experimentando, o qual era
novo para ele: “afinal pertencia a algum lugar, era reconhecido pela pátria, lutava pelo país.”
(CARVALHO, 2007:142). O pretenso amigo não consegue manter o segredo, e o fato chega aos
superiores. Um deles, primo do imperador, mata-o com o objetivo de apropriar-se de seu nome
em disponibilidade e assim fugir aos Tribunais, onde era acusado de inúmeros assassinatos de
guerra.
Michiyo, a dona do restaurante, é também uma personagem que necessita assumir
outra identidade para contar a sua história. Ela apresenta-se para o narrador como Setsuko, uma
octogenária que deseja fazer o relato de uma história acontecida há mais de cinquenta anos, a
qual teria presenciado, como amiga e confidente de Michiyo, personagem central desta trama, e
depois como secretária. Essa identidade se mantém enquanto o seu relato perdura. Só é
descoberta pelo narrador no final do livro, quando lhe é revelado que se trata da mesma
personagem. Nela se apresentam três diferentes facetas: a de Michiyo, a octogenária dona de um
restaurante – o Seyoken; Michiyo, a jovem de vinte e três anos, obrigada a casar-se para saldar
as dívidas paternas; Setsuko, a jovem de dezenove anos, cuja família vive uma situação de
extrema precariedade financeira, pois perdera tudo durante a guerra, sendo, por isso, obrigada a
trabalhar. Essas três facetas são complementares, não se excluem; ao contrário, se justapõem. O
que interessa é apontar as razões que motivaram a assunção de outro nome. Acredita-se que isso
decorra da necessidade de distanciar-ser, pois, segundo a avaliação do narrador, “Não se sentia à
vontade para contar com seu próprio nome.” (CARVALHO, 2007:33).
Assim como essas personagens, o narrador-protagonista também busca estabelecer
uma relação de pertença com o mundo em que vive. A sua história se descobre na medida em
que ouve/narra o relato transmitido por Setsuko, sendo a sua condição similar à dessas
personagens: também ele revela-se um estrangeiro no mundo em que vive; também ele
extravasa a sua situação incômoda decorrente do sentimento de não pertença, seja ao mundo
japonês, que procura negar, seja ao brasileiro, no qual deseja inserir-se. É a sua trajetória que se
pretende percorrer neste artigo.
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Bisneto de japoneses imigrados para o Brasil no início do século XX, esse narrador
yonsei nega a cultura de seus ancestrais, sem, contudo, conseguir reprimi-la. O Japão construído
em terras estrangeiras, de cuja imagem obsedante ele deseja livrar-se, impõe-se em seu percurso
“como a própria imagem do inferno e dos [seus] pesadelos de infância” (CARVALHO,
2007:27). É uma sensação de estranhamento que aflora nas ocasiões em que ele se depara com a
reconstrução desses espaços japoneses. Isso ocorre ao divisar o “jardim japonês em miniatura”
da casa de Setsuko, quando deixa extravasar o seu impacto diante do que vê: “Eu não podia crer
nos meus olhos” (CARVALHO, 2007:27). Então as imagens da infância se sobrepõem e se
confundem para dar visibilidade ao país dos seus antepassados, perpetuada na memória: “Desde
pequeno guardei a imagem de um Japão de brincadeira, como um parque infantil, ao mesmo
tempo pobre e irreal, um mundo de canteiros caiados construídos por anões no interior de São
Paulo.” (CARVALHO, 2007:27). Ver esse mundo em miniatura desencadeia nele um forte
sentimento de não pertença, o que é expresso na “sensação de horror” e no temor de “não caber
neste mundo e de já não ter os meios, nem materiais nem imaginários, de escapar dele.”
(CARVALHO, 2007:28).
Sensação igualmente incômoda e impactante é expressa ao deparar-se com o
monumento japonês à saída/entrada de Promissão:
Num instante, me vi de novo diante do mundo em miniatura que me
perseguia desde a infância, os canteiros com as bordas de cimento caiado, os
bancos de cimento, um mundo hesitante entre o parque de diversões de
província e o cemitério. O aspecto fúnebre e macabro daquela pequena
encenação tão simples e tão pobre me fez querer sair dali às pressas,
sufocado, à procura de um pouco de ar. Entrei no carro e dei a partida.”
(CARVALHO, 2007:95).
Repare-se nesse trecho a reprodução das mesmas imagens que se impuseram ao entrar
na casa de Setsuko, as quais mostram o quanto esse “mundo em miniatura” o afeta, tanto que
sente-se “sufocado”, o que determina a sua imediata partida de Promissão. Quando do seu
retorno para São Paulo, prefere arriscar-se em uma “estrada [...] perigosa à noite”
(CARVALHO, 2001:98) a passar novamente pelo local: “Não queria rever o monumento
japonês, um jardim de anões, ao mesmo tempo pobre e irreal, singelo e fúnebre. Procurava outra
saída.” (CARVALHO, 2001:98). O seu temor, que motiva a escolha de outra rota, apesar dos
perigos a ela inerentes, dá a dimensão do seu movimento de fuga. É significativa a frase
“Procurava outra saída.”, que pode ser vista como a metáfora de seu momento. Consciente de
que voltar-se para o mundo dos antepassados é o caminho que não deseja trilhar, ele estava em
busca de um outro ainda não divisado em seu horizonte.
Certamente este é um importante conflito da personagem: não sentir-se integrado à
cultura japonesa, mas também não poder reprimi-la. Com esse intuito – o de manter-se afastado
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– “tent[ava] fugir como o diabo da cruz de tudo o que fosse japonês” (CARVALHO, 2007:28).
A partida da irmã para o Japão, cujo propósito era trabalhar em uma “fábrica de carros”, porque
ganharia mais como operária “do que como professora universitária em São Carlos”
(CARVALHO, 2007:29), lhe traz a consciência de que não obstante terem “perdido os costumes
e a língua” (CARVALHO, 2007:29), o movimento de volta era uma realidade possível; no
entanto, realizar esse percurso inverso ao dos bisavós seria reconhecer o fracasso e a
humilhação, validando a frase pronunciada pela autoridade de Kobe – “mais valia se matar no
país do desterro do que voltar como fracassados” (CARVALHO, 2007:29). A sua interpretação
do fato de a irmã não permitir que ele a visite, vai justamente nesse sentido: “Não queria que eu
visse como vivia – que confirmasse o meu pesadelo e a minha prognose de que viver no Japão,
para nós dois pelo menos, seria pôr em marcha a engrenagem da qual fugiram os bisavós ao
emigrar para o Brasil.” (CARVALHO, 2007:108). O caminho de volta realizado pela irmã
confirma a ideia do fracasso, 1 perigo para o qual os bisavós foram alertados, ainda no porto,
antes da partida.
Contra todas as suas próprias precauções e também contra as advertência da irmã −
“tentou me dissuadir de todas as maneiras quando lhe falei dos meus planos” (CARVALHO,
2007:104) −, ele decide viajar ao Japão, em busca de respostas para a história de Setsuko,
deixada inacabada. Setsuko desaparece, a casa é destruída, o restaurante é fechado e ele,
obcecado pela história, “da qual não podia mais [se] livrar” (CARVALHO, 2007:94), anseia
pela sua continuidade: “Eu queria o resto, o fim.” (CARVALHO, 2007:94). Sem alternativa,
segue a única pista que lhe dá o sushiman e vai para Promissão. Lá é tomado de perplexidade
diante da revelação de que Setsuko, na realidade, era Michiyo, a principal personagem do relato.
Em vez de respostas, novas perguntas se descobrem, como essa sobre a identidade de
Setsuko/Michiyo. Volta ao restaurante com o objetivo de saber qual o verdadeiro nome da
proprietária, e a descoberta feita em Promissão se confirma. O suschiman lhe entrega um
envelope enviado a Kobe, cujo destinatário não havia sido encontrado; por isso a carta fora
devolvida: este era Masukichi e o remetente, Michiyo. A viagem então se impõe, pois, na sua
perspectiva, só Masukichi poderia lhe dar as respostas silenciadas por Michiyo.
1
As várias reiterações dessa idéia – associar o retorno ao Japão ao fracasso − mostram o seu temor de que
a falta de oportunidades torne esse percurso inevitável: “Voltar ao Japão como operário (apesar de nunca
ter posto os pés lá antes) seria perpetuar o fracasso e o erro, a fuga apenas nos afundava ainda mais no
inferno.” (CARVALHO, 2007:20). No encontro com a irmã, em Osaka, ao observá-la e constatar as
suas transformações, questiona o movimento realizado pelos bisavós: “O corpo dela havia ficado tão
pequeno. Também ia desaparecer no escuro, como todos os outros, para mostrar aos bisavós que de nada
tinha adiantado fugir para o outro lado do mundo, para viver debaixo do sol e de toda aquela claridade
ofuscante. A sombra sempre estaria no nosso encalço.” (CARVALHO, 2007:113).
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Essa viagem, cujas motivações são outras, completamente diferentes das da irmã,
permite-lhe levar ao paroxismo a experiência da não pertença. Agora a questão não apenas é
mostrada como sentimento interno, mas é desdobrada através do não reconhecimento dos
habitantes locais, que o percebem como outro, como estrangeiro, e, como tal, o excluem. Em
Osaka, logo de sua chegada, essa circunstância fica transparente. Sem saber onde fica o hotel,
dirige-se às pessoas em inglês – lembre-se de que ele não falava japonês –, e, por isso, não
consegue alguém que lhe informe onde se situa. Apesar de “o homem de terno” (CARVALHO,
2007:106) ser inicialmente receptivo, ao notar que se trata de um estrangeiro, afasta-se
imediatamente: “fugiu de mim assim que percebeu que eu era estrangeiro” (CARVALHO,
2007:106). Certamente os traços físicos dos ancestrais ainda permanecem incólumes, posto o
homem não ter distinguido imediatamente a sua condição. Nessa conjuntura, é a língua que o
denuncia. As outras tentativas de abordagem foram catastróficas, provavelmente porque, ao
falar em inglês, a sua identidade é logo revelada:
Eu tentava me aproximar das pessoas, em inglês, e todas fugiam de mim.
Desviavam-se, olhavam para o chão, fingiam que não me viam, que não me
ouviam. Uma mulher chegou a apertar o passo, como se eu fosse um
mendigo bêbado a importuná-la, enquanto eu a acompanhava, repetindo „por
favor, por favor‟. Eu era a lepra. Comecei a rir sozinho na rua. Que é que eles
tinham? Eu olhava para o alto, para deus, acho, e ria. As pessoas me
evitavam. (CARVALHO, 2007:106).
Ressalta-se do trecho que, para os japoneses, ele é o estrangeiro, circunstância que
motiva a sua segregação. Sentir-se “a lepra” dá a medida da sua própria sensação de não
pertencimento. A reação dos habitantes locais está em consonância com as reflexões de
Zygmunt Bauman (2004:139), para quem a insegurança das grandes cidades desencadeia
“sentimentos mixofóbicos [...] estimulados e alimentados por uma sensação de insegurança
esmagadora”. A segregação a que o protagonista é submetido é de tal ordem que, mesmo
encontrando-se próximo ao hotel, não há pessoa alguma a indicar-lhe o caminho, porque todas o
evitavam, o que determina o prenúncio de um choro – “já estava pronto para chorar”
(CARVALHO, 2007:107) −, o qual é sintomático de seu estado, motivado pela rejeição de que
fora objeto. Se no Brasil ele se sente fora de lugar, no Japão, ele é visto como outro, como
aquele que não é do lugar.
Não obstante a negação da cultura japonesa, ele já a introjetou. Tanto é assim que,
quando a sua obsessão pela história de Michiyo, deixada incompleta, o mobiliza para a viagem
ao Japão, ele pensa nesse país como se já fosse conhecido. Nesse sentido, observe-se o quão
significativa é esta sua frase: “Só me restava voltar para onde eu nunca tinha ido.”
(CARVALHO, 2007:104). Uma sensação de conhecer o lugar lhe ocorre em Tóquio, ao passear
pela cidade: “Era domingo, e havia pouca gente nas ruas. O ar frio batia no meu rosto. Embora
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eu nunca tivesse pisado ali, tudo era reconhecimento, como se eu estivesse voltando para casa.”
(CARVALHO, 2007:122). Com certeza, a reprodução dos monumentos e a tentativa de
reconstrução de referências japonesas, feitas pelos imigrantes, contribuíram para essa sensação
de “reconhecimento”. Apesar de seu movimento de fuga à cultura japonesa, ela permanece
latente, para aflorar em situações específicas.
Dessa dupla face – introjeção e fuga − decorre o ter-se transformado em alguém sem
lugar − do que ele tem uma consciência aguçada. Em Osaka, com a irmã, as suas reflexões
evidenciam tal problemática: “Eu ainda lembrava dos dias que passamos juntos nos ônibus a
caminho de Bastos e das cidades em miniatura, recordações de gente que já não cabia em lugar
nenhum, a condição que herdamos.” (CARVALHO, 2007:109). E esse não pertencer é tanto
pela sua condição de “dességuis analfabetos” (CARVALHO, 2007:29), sem o domínio da
língua e dos costumes; quanto por viver em São Paulo, sendo oriundo do interior. Nessa
metrópole, a experiência do estranhamento, de sentir-se não integrado está em evidência, o que
as suas palavras confirmam: “E, no entanto, é disso que as ruas de São Paulo tentam convencer
quem passa por elas: que está em outro lugar, num esforço inútil de aliviar a tensão incômoda
de estar aqui, o mal-estar de viver no presente e de ser o que se é.” (CARVALHO, 2007:14-15).
Esse “mal-estar” vivido pelo protagonista está em sintonia com as observações de Walter
Benjamin (1985:99) que, em “A Paris do Segundo Império em Baudelaire”, aponta para a
complexidade da cidade moderna, avessa à realização do indivíduo: “Os obstáculos que a
modernidade contrapõe ao elã produtivo natural do ser humano encontram-se em desproporção
às forças dele.”
O sentimento de não pertencimento do protagonista apresenta-se com extrema
contundência, visto ser movido por forças diferentes que, porém, estão justapostas: não cabe no
“mundo [japonês] em miniatura” e não se integra à cidade. Nesta ele não consegue inserir-se, de
um lado, por ser-lhe impossível despojar-se da carga cultural que lhe foi imposta e, de outro, por
não encontrar na metrópole o abrigo que buscam os oriundos de outros lugares.
O seu desencontro passa pela escolha profissional, que não fora motivada pelo seu
próprio desejo; porém, pela sedução da proposta paterna: “Veio do meu pai a ideia de que eu
devia ser publicitário para tocar os negócios que ele iniciara e criar os textos aos quais as
lâmpadas dariam visibilidade, corpo e movimento.” (CARVALHO, 2007:15). Além disso, ele
encontrava-se desempregado. A questão não é muito comentada, mas as observações esparsas
não deixam dúvidas de que se sentia um fracassado: “depois de me foder por nada, trabalhando
como redator de comerciais de uma agência de publicidade” (CARVALHO, 2007:10).
Certamente o seu malogro pode ser atribuído à escolha errônea, alheia aos anseios pessoais.
Aliada a sua derrota profissional está a ruptura do casamento, que ocorreu um ano antes, quando
a mulher o deixou para “viver com um cara desprezível mas bem-sucedido.” (CARVALHO,
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2007:19). É significativo que, nas poucas vezes em que se refere a essas circunstâncias, ele as
coloque lado a lado. A sua situação, quando é interpelado pela dona do restaurante, é de extrema
precariedade, sobretudo, por terem-se rompido os laços identitários que construíra na cidade: o
do trabalho e o da família. Essa desconstrução é sintomática da fluidez identitária, sobre a qual
reflete Bauman (2005:32, grifo do autor): “Buscamos, construímos e mantemos referências
comunais de nossas identidades em movimento – lutando para nos juntarmos aos grupos
igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um
momento, mas não por muito tempo.” A ruptura desses laços não lhe permite divisar outros
caminhos, o que se pode inferir desta sua observação: “eu me via desempregado e sem nenhuma
outra perspectiva” (CARVALHO, 2007:12). Mais adiante ele faz uma ressalva similar: “A
minha obsessão cresceu conforme todas as outras perspectivas foram por água abaixo.”
(CARVALHO, 2007:19).
Pode-se, agora, entender a sua reação intempestiva à pergunta de Michiyo que abre o
romance. Sob o efeito do impacto, ele mesmo reconhece que os seus gestos certamente foram
contundentes, pois levaram-na a desculpar-se − “Devo ter arregalado os olhos de um jeito que
costumava afligir minha mulher, tanto que ela logo se explicou, como se pedisse desculpas,
referindo-se a um garçom: „O rapaz me disse que o senhor é escritor‟” (CARVALHO, 2007:11).
Percebe-se o impacto dessa interpelação ao considerar-se a derrocada de sua vida pessoal e
profissional, aliada à falta de perspectivas. Nessa conjuntura, essa pergunta desperta um sonho
acalentado na juventude − “uma fantasia que [ele] achava ter enterrado” (CARVALHO,
2007:12), daí a sua reação imediata − “Pela primeira vez, senti[ndo-se] mal de estar ali”
(CARVALHO, 2007:12) − e a subsequente partida, que demonstram o quanto esses sonhos
ainda eram presentes e continuavam a ser acalentados, como confessa na continuidade da sua
reflexão: “entendi que não tinha vencido os sonhos de adolescente, como chegara a acreditar,
porque ainda nutria aquela fantasia infernal, só que agora em silêncio, só para mim.”
(CARVALHO, 2007:12). A escrita, para ele, não era mero diletantismo, mas apresenta-se como
agente de salvação: “No fundo ainda achava que pudesse escrever – e um dia me salvar não
sabia bem de quê.” (CARVALHO, 2007:12). A escrita, da qual ele havia desistido sem fazer
nenhuma tentativa, assoma como um caminho que se abra para ele, para quem “todas as
perspectivas foram por água abaixo.” (CARVALHO, 2007:19).
Passado o impacto inicial, escrever assume outros significados, que vão sendo
agregados à ideia de salvação. Nesse convite de fazer o relato, ele descobre um sinal, vendo-o
como “sua grande chance” (CARVALHO, 2007:17), desejoso de acreditar que “aquela mulher
tinha o poder de me transformar em um escritor.” (CARVALHO, 2007:17). Escrever a história
que Michiyo tinha urgência em contar era, portanto, a chance de “transformar[-se] em escritor”.
E o que isso significava para ele? Significava a possibilidade de integrar-se, de pertencer ao país
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onde nascera. Tendo malogrado nas outras tentativas de inserção, a apropriação da escrita
através da imersão na literatura era afastar-se do “risco de algum dia ter que pisar o Japão, por
necessidade” (CARVALHO, 2007:20).
A escrita é de fundamental importância para o seu sentimento de pertença. Quando
isso acontece, o livro acaba. Então, finalmente teria ele conseguido a tão ambicionada
integração? Possivelmente! O término do livro, com o relato de Michiyo transformado em
romance pronto, aponta para isso. No entanto, para que pudesse realizar-se, foi necessário ir ao
Japão e mergulhar nas suas origens, enfrentando, dessa forma, o seu medo de permanecer na
terra dos antepassados por falta de perspectiva. E note-se que, para a viagem, ele se despojou de
seu carro, o seu último bem material, o que aumentava o risco de fazer o percurso inverso
àquele realizado pelos bisavós, e isso o atemorizava sobremaneira. Mesmo assim fez a viagem,
e, ao confrontar o mundo dos ancestrais, ele se revigorou, o que lhe deu condições de seguir o
próprio sonho de incursionar pela literatura. Escrever o romance certamente é o passaporte para
inserir-se na cidade, perceber-se integrado e pertencente ao país onde nasceu, consciente dos
percalços dessa trajetória:
A literatura podia ser a minha miragem, mas pelo menos era uma forma de
abraçar o inferno como pátria. No fundo, era nisso que eu acreditava.
Escrever em português era para mim uma forma de romper com a ilusão de
imigrantes dos bisavós (que era possível escapar ou voltar atrás) e reconhecer
de uma vez por todas que estamos todos amaldiçoados, onde quer que seja.
Sempre. E que o Céu é aqui mesmo.” (CARVALHO, 2007:19-20).
Sim, a crer nas palavras desse narrador, essa é uma possibilidade de leitura. Mas o que
dizer de suas reflexões no final do romance, quando, em uma breve síntese sobre as
personagens, ressalta o não pertencimento que as caracteriza, e, na continuidade, ele mesmo
identifica em si essa condição? As suas palavras são eloquentes:
Uma história de párias, como eu, e os meus, gente que não pode pertencer ao
lugar onde está, onde quer que esteja, e sonha com outro lugar, que só pode
existir na imaginação em nome da qual ela me contou uma história que
pergunta sem parar a quem a ouve como é possível ser outra coisa além de si
mesmo. (CARVALHO, 2007: 163-164).
A identificação com personagens que não se enquadram em seus respectivos contextos
permite a percepção da arguta consciência do narrador-protagonista, que reconhece o seu não
lugar no mundo, porque, como Michiyo, que afirma “sentir[-se] amputada desde que saíra do
Japão, como uma perna ou um braço que não pertencessem a lugar algum” (CARVALHO,
2007:124), e os outros seres do seu relato, também ele vive a angústia do não pertencimento.
São personagens que vivenciam a condição de estrangeiros, a qual, muitas vezes, apresenta-se
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internalizada: “o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que
arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia.”
(KRISTEVA,1994:9).
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
BENJAMIN, W. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. In: Walter Benjamin. São Paulo:
Ática, 1985. p. 44-122.
CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
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