O NARRADOR-PROTAGONISTA DE O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO: a experiência urbana Gínia Maria Gomes (UFRGS) O romance O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho, tem início com a pergunta “O senhor é escritor?” (CARVALHO, 2007:11), feita pela dona do restaurante Seiyoken ao então cliente. Isso é essencial, posto transformá-lo em narrador da história que ela, Michiyo, tem urgência em relatar. O seu relato é apenas aparentemente simples, pois, pouco a pouco, a trama vai-se desdobrando e complexificando-se, com personagens que buscam o reconhecimento identitário e que, por isso mesmo, se angustiam diante da consciência do não pertencimento. Por isso mesmo, muitos deles sentem-se estrangeiros, desenraizados, “como um trem em marcha, um avião em pleno ar, a própria transição que exclui a parada.” (KRISTEVA, 1994:15). A um breve olhar, essa problemática logo se revela. Está presente em várias personagens do relato do Michiyo, como Jokichi, que perdeu a sua própria identidade graças às articulações paternas que, no intuito de salvá-lo, enviara para a guerra um dos seus empregados “aquele que, por necessidade, se prest[ou] a assumir a identidade do filho, respondendo à mobilização no lugar dele” (CARVALHO, 2007:45). Descoberta a impostura, Jokichi, já oficialmente morto, trava uma luta para reconquistar a identidade que fora “emprestada” a outro. Ao recuperá-la, é, no entanto, submetido à humilhação de ser tratado como desertor, culpa da qual não consegue eximir-se, sob pena de manchar a memória do pai. O próprio nome transformara-se em óbice para o convívio social. Nessa conjuntura, assumir outro nome é a solução que se apresenta. Com esse intuito, compra documentos falsos, dos quais só vai apropriar-se ao imigrar para o Brasil, depois de forjar o próprio suicídio, supostamente realizado “na mata dos arredores de Kyosan” (CARVALHO, 2007:84). E o que dizer do jovem que morreu na guerra com a identidade de Jokichi? Quais as suas motivações para tal ato? Michiyo nada fala sobre ele no relato que faz ao narrador. É na carta endereçada a Masukichi que ela reporta-se sobre a identidade do rapaz; nesta reflete sobre a sua ascendência e faz ilações sobre os motivos que determinaram tal decisão. Oriundo de uma família de párias, ele era um “burakumin” (CARVALHO, 2007:140, grifo do autor), excluído da sociedade, visto ser considerado “gente impura, [...], simplesmente porque num passado remoto os antepassados deles teriam feito o serviço „sujo‟, [...], teriam cuidado da carne e dos mortos, matando os animais que nós comemos e executando os criminosos que nós mandamos à morte.” (CARVALHO, 2007:141, grifo do autor). Ele é “aquele que não faz parte do grupo, aquele que não „é dele‟, o outro.” (KRISTEVA, 1994:100, grifo do autor). Só a alguém assim 835 estigmatizado, que crescera consciente de que “sua presença era intolerável” (CARVALHO, 2007:142), o pai de Jokichi teria coragem de fazer uma proposta tão ignominiosa: oferecer dinheiro para que ele assumisse a identidade do filho – “Não foi à toa que procurou um homem formado na humilhação” (CARVALHO, 2007:142). E só alguém nessas condições teria aceito “lutar por uma nação que o havia proscrito” (CARVALHO, 2007:142). No entanto, não consegue manter o silêncio sobre essa identidade, porque, na frente de batalha, “reconhecendo a solidariedade onde no fundo ela não existia” (CARVALHO, 2007:142) − Seiji, este era o seu verdadeiro nome −, revela ao amigo a farsa de sua identidade: “que tinha tomado o lugar de outro para lutar por um país que o rejeitava.” (CARVALHO, 2007:142). A ruptura do silêncio é sintomática do sentimento de integração e de pertença que estava experimentando, o qual era novo para ele: “afinal pertencia a algum lugar, era reconhecido pela pátria, lutava pelo país.” (CARVALHO, 2007:142). O pretenso amigo não consegue manter o segredo, e o fato chega aos superiores. Um deles, primo do imperador, mata-o com o objetivo de apropriar-se de seu nome em disponibilidade e assim fugir aos Tribunais, onde era acusado de inúmeros assassinatos de guerra. Michiyo, a dona do restaurante, é também uma personagem que necessita assumir outra identidade para contar a sua história. Ela apresenta-se para o narrador como Setsuko, uma octogenária que deseja fazer o relato de uma história acontecida há mais de cinquenta anos, a qual teria presenciado, como amiga e confidente de Michiyo, personagem central desta trama, e depois como secretária. Essa identidade se mantém enquanto o seu relato perdura. Só é descoberta pelo narrador no final do livro, quando lhe é revelado que se trata da mesma personagem. Nela se apresentam três diferentes facetas: a de Michiyo, a octogenária dona de um restaurante – o Seyoken; Michiyo, a jovem de vinte e três anos, obrigada a casar-se para saldar as dívidas paternas; Setsuko, a jovem de dezenove anos, cuja família vive uma situação de extrema precariedade financeira, pois perdera tudo durante a guerra, sendo, por isso, obrigada a trabalhar. Essas três facetas são complementares, não se excluem; ao contrário, se justapõem. O que interessa é apontar as razões que motivaram a assunção de outro nome. Acredita-se que isso decorra da necessidade de distanciar-ser, pois, segundo a avaliação do narrador, “Não se sentia à vontade para contar com seu próprio nome.” (CARVALHO, 2007:33). Assim como essas personagens, o narrador-protagonista também busca estabelecer uma relação de pertença com o mundo em que vive. A sua história se descobre na medida em que ouve/narra o relato transmitido por Setsuko, sendo a sua condição similar à dessas personagens: também ele revela-se um estrangeiro no mundo em que vive; também ele extravasa a sua situação incômoda decorrente do sentimento de não pertença, seja ao mundo japonês, que procura negar, seja ao brasileiro, no qual deseja inserir-se. É a sua trajetória que se pretende percorrer neste artigo. 836 Bisneto de japoneses imigrados para o Brasil no início do século XX, esse narrador yonsei nega a cultura de seus ancestrais, sem, contudo, conseguir reprimi-la. O Japão construído em terras estrangeiras, de cuja imagem obsedante ele deseja livrar-se, impõe-se em seu percurso “como a própria imagem do inferno e dos [seus] pesadelos de infância” (CARVALHO, 2007:27). É uma sensação de estranhamento que aflora nas ocasiões em que ele se depara com a reconstrução desses espaços japoneses. Isso ocorre ao divisar o “jardim japonês em miniatura” da casa de Setsuko, quando deixa extravasar o seu impacto diante do que vê: “Eu não podia crer nos meus olhos” (CARVALHO, 2007:27). Então as imagens da infância se sobrepõem e se confundem para dar visibilidade ao país dos seus antepassados, perpetuada na memória: “Desde pequeno guardei a imagem de um Japão de brincadeira, como um parque infantil, ao mesmo tempo pobre e irreal, um mundo de canteiros caiados construídos por anões no interior de São Paulo.” (CARVALHO, 2007:27). Ver esse mundo em miniatura desencadeia nele um forte sentimento de não pertença, o que é expresso na “sensação de horror” e no temor de “não caber neste mundo e de já não ter os meios, nem materiais nem imaginários, de escapar dele.” (CARVALHO, 2007:28). Sensação igualmente incômoda e impactante é expressa ao deparar-se com o monumento japonês à saída/entrada de Promissão: Num instante, me vi de novo diante do mundo em miniatura que me perseguia desde a infância, os canteiros com as bordas de cimento caiado, os bancos de cimento, um mundo hesitante entre o parque de diversões de província e o cemitério. O aspecto fúnebre e macabro daquela pequena encenação tão simples e tão pobre me fez querer sair dali às pressas, sufocado, à procura de um pouco de ar. Entrei no carro e dei a partida.” (CARVALHO, 2007:95). Repare-se nesse trecho a reprodução das mesmas imagens que se impuseram ao entrar na casa de Setsuko, as quais mostram o quanto esse “mundo em miniatura” o afeta, tanto que sente-se “sufocado”, o que determina a sua imediata partida de Promissão. Quando do seu retorno para São Paulo, prefere arriscar-se em uma “estrada [...] perigosa à noite” (CARVALHO, 2001:98) a passar novamente pelo local: “Não queria rever o monumento japonês, um jardim de anões, ao mesmo tempo pobre e irreal, singelo e fúnebre. Procurava outra saída.” (CARVALHO, 2001:98). O seu temor, que motiva a escolha de outra rota, apesar dos perigos a ela inerentes, dá a dimensão do seu movimento de fuga. É significativa a frase “Procurava outra saída.”, que pode ser vista como a metáfora de seu momento. Consciente de que voltar-se para o mundo dos antepassados é o caminho que não deseja trilhar, ele estava em busca de um outro ainda não divisado em seu horizonte. Certamente este é um importante conflito da personagem: não sentir-se integrado à cultura japonesa, mas também não poder reprimi-la. Com esse intuito – o de manter-se afastado 837 – “tent[ava] fugir como o diabo da cruz de tudo o que fosse japonês” (CARVALHO, 2007:28). A partida da irmã para o Japão, cujo propósito era trabalhar em uma “fábrica de carros”, porque ganharia mais como operária “do que como professora universitária em São Carlos” (CARVALHO, 2007:29), lhe traz a consciência de que não obstante terem “perdido os costumes e a língua” (CARVALHO, 2007:29), o movimento de volta era uma realidade possível; no entanto, realizar esse percurso inverso ao dos bisavós seria reconhecer o fracasso e a humilhação, validando a frase pronunciada pela autoridade de Kobe – “mais valia se matar no país do desterro do que voltar como fracassados” (CARVALHO, 2007:29). A sua interpretação do fato de a irmã não permitir que ele a visite, vai justamente nesse sentido: “Não queria que eu visse como vivia – que confirmasse o meu pesadelo e a minha prognose de que viver no Japão, para nós dois pelo menos, seria pôr em marcha a engrenagem da qual fugiram os bisavós ao emigrar para o Brasil.” (CARVALHO, 2007:108). O caminho de volta realizado pela irmã confirma a ideia do fracasso, 1 perigo para o qual os bisavós foram alertados, ainda no porto, antes da partida. Contra todas as suas próprias precauções e também contra as advertência da irmã − “tentou me dissuadir de todas as maneiras quando lhe falei dos meus planos” (CARVALHO, 2007:104) −, ele decide viajar ao Japão, em busca de respostas para a história de Setsuko, deixada inacabada. Setsuko desaparece, a casa é destruída, o restaurante é fechado e ele, obcecado pela história, “da qual não podia mais [se] livrar” (CARVALHO, 2007:94), anseia pela sua continuidade: “Eu queria o resto, o fim.” (CARVALHO, 2007:94). Sem alternativa, segue a única pista que lhe dá o sushiman e vai para Promissão. Lá é tomado de perplexidade diante da revelação de que Setsuko, na realidade, era Michiyo, a principal personagem do relato. Em vez de respostas, novas perguntas se descobrem, como essa sobre a identidade de Setsuko/Michiyo. Volta ao restaurante com o objetivo de saber qual o verdadeiro nome da proprietária, e a descoberta feita em Promissão se confirma. O suschiman lhe entrega um envelope enviado a Kobe, cujo destinatário não havia sido encontrado; por isso a carta fora devolvida: este era Masukichi e o remetente, Michiyo. A viagem então se impõe, pois, na sua perspectiva, só Masukichi poderia lhe dar as respostas silenciadas por Michiyo. 1 As várias reiterações dessa idéia – associar o retorno ao Japão ao fracasso − mostram o seu temor de que a falta de oportunidades torne esse percurso inevitável: “Voltar ao Japão como operário (apesar de nunca ter posto os pés lá antes) seria perpetuar o fracasso e o erro, a fuga apenas nos afundava ainda mais no inferno.” (CARVALHO, 2007:20). No encontro com a irmã, em Osaka, ao observá-la e constatar as suas transformações, questiona o movimento realizado pelos bisavós: “O corpo dela havia ficado tão pequeno. Também ia desaparecer no escuro, como todos os outros, para mostrar aos bisavós que de nada tinha adiantado fugir para o outro lado do mundo, para viver debaixo do sol e de toda aquela claridade ofuscante. A sombra sempre estaria no nosso encalço.” (CARVALHO, 2007:113). 838 Essa viagem, cujas motivações são outras, completamente diferentes das da irmã, permite-lhe levar ao paroxismo a experiência da não pertença. Agora a questão não apenas é mostrada como sentimento interno, mas é desdobrada através do não reconhecimento dos habitantes locais, que o percebem como outro, como estrangeiro, e, como tal, o excluem. Em Osaka, logo de sua chegada, essa circunstância fica transparente. Sem saber onde fica o hotel, dirige-se às pessoas em inglês – lembre-se de que ele não falava japonês –, e, por isso, não consegue alguém que lhe informe onde se situa. Apesar de “o homem de terno” (CARVALHO, 2007:106) ser inicialmente receptivo, ao notar que se trata de um estrangeiro, afasta-se imediatamente: “fugiu de mim assim que percebeu que eu era estrangeiro” (CARVALHO, 2007:106). Certamente os traços físicos dos ancestrais ainda permanecem incólumes, posto o homem não ter distinguido imediatamente a sua condição. Nessa conjuntura, é a língua que o denuncia. As outras tentativas de abordagem foram catastróficas, provavelmente porque, ao falar em inglês, a sua identidade é logo revelada: Eu tentava me aproximar das pessoas, em inglês, e todas fugiam de mim. Desviavam-se, olhavam para o chão, fingiam que não me viam, que não me ouviam. Uma mulher chegou a apertar o passo, como se eu fosse um mendigo bêbado a importuná-la, enquanto eu a acompanhava, repetindo „por favor, por favor‟. Eu era a lepra. Comecei a rir sozinho na rua. Que é que eles tinham? Eu olhava para o alto, para deus, acho, e ria. As pessoas me evitavam. (CARVALHO, 2007:106). Ressalta-se do trecho que, para os japoneses, ele é o estrangeiro, circunstância que motiva a sua segregação. Sentir-se “a lepra” dá a medida da sua própria sensação de não pertencimento. A reação dos habitantes locais está em consonância com as reflexões de Zygmunt Bauman (2004:139), para quem a insegurança das grandes cidades desencadeia “sentimentos mixofóbicos [...] estimulados e alimentados por uma sensação de insegurança esmagadora”. A segregação a que o protagonista é submetido é de tal ordem que, mesmo encontrando-se próximo ao hotel, não há pessoa alguma a indicar-lhe o caminho, porque todas o evitavam, o que determina o prenúncio de um choro – “já estava pronto para chorar” (CARVALHO, 2007:107) −, o qual é sintomático de seu estado, motivado pela rejeição de que fora objeto. Se no Brasil ele se sente fora de lugar, no Japão, ele é visto como outro, como aquele que não é do lugar. Não obstante a negação da cultura japonesa, ele já a introjetou. Tanto é assim que, quando a sua obsessão pela história de Michiyo, deixada incompleta, o mobiliza para a viagem ao Japão, ele pensa nesse país como se já fosse conhecido. Nesse sentido, observe-se o quão significativa é esta sua frase: “Só me restava voltar para onde eu nunca tinha ido.” (CARVALHO, 2007:104). Uma sensação de conhecer o lugar lhe ocorre em Tóquio, ao passear pela cidade: “Era domingo, e havia pouca gente nas ruas. O ar frio batia no meu rosto. Embora 839 eu nunca tivesse pisado ali, tudo era reconhecimento, como se eu estivesse voltando para casa.” (CARVALHO, 2007:122). Com certeza, a reprodução dos monumentos e a tentativa de reconstrução de referências japonesas, feitas pelos imigrantes, contribuíram para essa sensação de “reconhecimento”. Apesar de seu movimento de fuga à cultura japonesa, ela permanece latente, para aflorar em situações específicas. Dessa dupla face – introjeção e fuga − decorre o ter-se transformado em alguém sem lugar − do que ele tem uma consciência aguçada. Em Osaka, com a irmã, as suas reflexões evidenciam tal problemática: “Eu ainda lembrava dos dias que passamos juntos nos ônibus a caminho de Bastos e das cidades em miniatura, recordações de gente que já não cabia em lugar nenhum, a condição que herdamos.” (CARVALHO, 2007:109). E esse não pertencer é tanto pela sua condição de “dességuis analfabetos” (CARVALHO, 2007:29), sem o domínio da língua e dos costumes; quanto por viver em São Paulo, sendo oriundo do interior. Nessa metrópole, a experiência do estranhamento, de sentir-se não integrado está em evidência, o que as suas palavras confirmam: “E, no entanto, é disso que as ruas de São Paulo tentam convencer quem passa por elas: que está em outro lugar, num esforço inútil de aliviar a tensão incômoda de estar aqui, o mal-estar de viver no presente e de ser o que se é.” (CARVALHO, 2007:14-15). Esse “mal-estar” vivido pelo protagonista está em sintonia com as observações de Walter Benjamin (1985:99) que, em “A Paris do Segundo Império em Baudelaire”, aponta para a complexidade da cidade moderna, avessa à realização do indivíduo: “Os obstáculos que a modernidade contrapõe ao elã produtivo natural do ser humano encontram-se em desproporção às forças dele.” O sentimento de não pertencimento do protagonista apresenta-se com extrema contundência, visto ser movido por forças diferentes que, porém, estão justapostas: não cabe no “mundo [japonês] em miniatura” e não se integra à cidade. Nesta ele não consegue inserir-se, de um lado, por ser-lhe impossível despojar-se da carga cultural que lhe foi imposta e, de outro, por não encontrar na metrópole o abrigo que buscam os oriundos de outros lugares. O seu desencontro passa pela escolha profissional, que não fora motivada pelo seu próprio desejo; porém, pela sedução da proposta paterna: “Veio do meu pai a ideia de que eu devia ser publicitário para tocar os negócios que ele iniciara e criar os textos aos quais as lâmpadas dariam visibilidade, corpo e movimento.” (CARVALHO, 2007:15). Além disso, ele encontrava-se desempregado. A questão não é muito comentada, mas as observações esparsas não deixam dúvidas de que se sentia um fracassado: “depois de me foder por nada, trabalhando como redator de comerciais de uma agência de publicidade” (CARVALHO, 2007:10). Certamente o seu malogro pode ser atribuído à escolha errônea, alheia aos anseios pessoais. Aliada a sua derrota profissional está a ruptura do casamento, que ocorreu um ano antes, quando a mulher o deixou para “viver com um cara desprezível mas bem-sucedido.” (CARVALHO, 840 2007:19). É significativo que, nas poucas vezes em que se refere a essas circunstâncias, ele as coloque lado a lado. A sua situação, quando é interpelado pela dona do restaurante, é de extrema precariedade, sobretudo, por terem-se rompido os laços identitários que construíra na cidade: o do trabalho e o da família. Essa desconstrução é sintomática da fluidez identitária, sobre a qual reflete Bauman (2005:32, grifo do autor): “Buscamos, construímos e mantemos referências comunais de nossas identidades em movimento – lutando para nos juntarmos aos grupos igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo.” A ruptura desses laços não lhe permite divisar outros caminhos, o que se pode inferir desta sua observação: “eu me via desempregado e sem nenhuma outra perspectiva” (CARVALHO, 2007:12). Mais adiante ele faz uma ressalva similar: “A minha obsessão cresceu conforme todas as outras perspectivas foram por água abaixo.” (CARVALHO, 2007:19). Pode-se, agora, entender a sua reação intempestiva à pergunta de Michiyo que abre o romance. Sob o efeito do impacto, ele mesmo reconhece que os seus gestos certamente foram contundentes, pois levaram-na a desculpar-se − “Devo ter arregalado os olhos de um jeito que costumava afligir minha mulher, tanto que ela logo se explicou, como se pedisse desculpas, referindo-se a um garçom: „O rapaz me disse que o senhor é escritor‟” (CARVALHO, 2007:11). Percebe-se o impacto dessa interpelação ao considerar-se a derrocada de sua vida pessoal e profissional, aliada à falta de perspectivas. Nessa conjuntura, essa pergunta desperta um sonho acalentado na juventude − “uma fantasia que [ele] achava ter enterrado” (CARVALHO, 2007:12), daí a sua reação imediata − “Pela primeira vez, senti[ndo-se] mal de estar ali” (CARVALHO, 2007:12) − e a subsequente partida, que demonstram o quanto esses sonhos ainda eram presentes e continuavam a ser acalentados, como confessa na continuidade da sua reflexão: “entendi que não tinha vencido os sonhos de adolescente, como chegara a acreditar, porque ainda nutria aquela fantasia infernal, só que agora em silêncio, só para mim.” (CARVALHO, 2007:12). A escrita, para ele, não era mero diletantismo, mas apresenta-se como agente de salvação: “No fundo ainda achava que pudesse escrever – e um dia me salvar não sabia bem de quê.” (CARVALHO, 2007:12). A escrita, da qual ele havia desistido sem fazer nenhuma tentativa, assoma como um caminho que se abra para ele, para quem “todas as perspectivas foram por água abaixo.” (CARVALHO, 2007:19). Passado o impacto inicial, escrever assume outros significados, que vão sendo agregados à ideia de salvação. Nesse convite de fazer o relato, ele descobre um sinal, vendo-o como “sua grande chance” (CARVALHO, 2007:17), desejoso de acreditar que “aquela mulher tinha o poder de me transformar em um escritor.” (CARVALHO, 2007:17). Escrever a história que Michiyo tinha urgência em contar era, portanto, a chance de “transformar[-se] em escritor”. E o que isso significava para ele? Significava a possibilidade de integrar-se, de pertencer ao país 841 onde nascera. Tendo malogrado nas outras tentativas de inserção, a apropriação da escrita através da imersão na literatura era afastar-se do “risco de algum dia ter que pisar o Japão, por necessidade” (CARVALHO, 2007:20). A escrita é de fundamental importância para o seu sentimento de pertença. Quando isso acontece, o livro acaba. Então, finalmente teria ele conseguido a tão ambicionada integração? Possivelmente! O término do livro, com o relato de Michiyo transformado em romance pronto, aponta para isso. No entanto, para que pudesse realizar-se, foi necessário ir ao Japão e mergulhar nas suas origens, enfrentando, dessa forma, o seu medo de permanecer na terra dos antepassados por falta de perspectiva. E note-se que, para a viagem, ele se despojou de seu carro, o seu último bem material, o que aumentava o risco de fazer o percurso inverso àquele realizado pelos bisavós, e isso o atemorizava sobremaneira. Mesmo assim fez a viagem, e, ao confrontar o mundo dos ancestrais, ele se revigorou, o que lhe deu condições de seguir o próprio sonho de incursionar pela literatura. Escrever o romance certamente é o passaporte para inserir-se na cidade, perceber-se integrado e pertencente ao país onde nasceu, consciente dos percalços dessa trajetória: A literatura podia ser a minha miragem, mas pelo menos era uma forma de abraçar o inferno como pátria. No fundo, era nisso que eu acreditava. Escrever em português era para mim uma forma de romper com a ilusão de imigrantes dos bisavós (que era possível escapar ou voltar atrás) e reconhecer de uma vez por todas que estamos todos amaldiçoados, onde quer que seja. Sempre. E que o Céu é aqui mesmo.” (CARVALHO, 2007:19-20). Sim, a crer nas palavras desse narrador, essa é uma possibilidade de leitura. Mas o que dizer de suas reflexões no final do romance, quando, em uma breve síntese sobre as personagens, ressalta o não pertencimento que as caracteriza, e, na continuidade, ele mesmo identifica em si essa condição? As suas palavras são eloquentes: Uma história de párias, como eu, e os meus, gente que não pode pertencer ao lugar onde está, onde quer que esteja, e sonha com outro lugar, que só pode existir na imaginação em nome da qual ela me contou uma história que pergunta sem parar a quem a ouve como é possível ser outra coisa além de si mesmo. (CARVALHO, 2007: 163-164). A identificação com personagens que não se enquadram em seus respectivos contextos permite a percepção da arguta consciência do narrador-protagonista, que reconhece o seu não lugar no mundo, porque, como Michiyo, que afirma “sentir[-se] amputada desde que saíra do Japão, como uma perna ou um braço que não pertencessem a lugar algum” (CARVALHO, 2007:124), e os outros seres do seu relato, também ele vive a angústia do não pertencimento. São personagens que vivenciam a condição de estrangeiros, a qual, muitas vezes, apresenta-se 842 internalizada: “o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia.” (KRISTEVA,1994:9). REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BENJAMIN, W. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. In: Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. p. 44-122. CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 843