LIVRO DIDÁTICO: UM ALIADO (?) PARA PROBLEMATIZAR GÊNERO E HISTORIOGRAFIA NA SALA DE AULA Maria de Lourdes Lose Mestranda em História – Universidade Federal de Rio Grande (FURG) Julia Silveira Matos Universidade Federal de Rio Grande (FURG) Considerando que, mesmo com as novas tecnologias, com a diversidade de instrumentos que podem ser utilizados para enriquecer o ensino-aprendizagem, e também verdade, que muitas escolas não tem acesso a estes meios. Nessa perspectiva, o livro didático assume, ainda, papel fundamental no processo de ensino-aprendizagem estabelecido entre educadores e aprendentes. Compreende-se as críticas severas que a forma de elaboração dos livros recebe, desde a centralização da sua confecção, passando pela maneira de abordar os temas e, em muitos casos; como na questão da História das mulheres, a constatação de lacunas ou ausências Sobre Como elas participaram/participam da construção histórica. Constata-se, porém, que houve, a partir do Programa Nacional do Livro Didático -PNLD, criado em 1985 e em 1996 iniciou a ampla e gratuita distribuição dos livros didáticos para as escolas públicas de todo o Brasil, uma certa configuração dos modelos de apresentação dos conteúdos, assim como estendeu aos professores e professoras o direito de participação no processo de escolha dos manuais escolares. De acordo com Sonia Regina Miranda, a partir de 2005 ocorreu uma transformação na área de História “de um cenário marcado pelo predomínio de obras que veiculavam de modo explícito ou implícito, todo tipo de estereótipo e/ou preconceitos, para um quadro em que predominam cuidados evidentes, por parte de autores e editores” (2004: 127). Como discorreu a autora, embora com as ações políticas adotadas, mesmo reconhecendo que houve avanços importantes e correções de rumo na condução da elaboração dos 1ivros didáticos, observa-se ainda, ausências de abordagens de alguns temas e, que mesmo quando apresentam as mulheres através de ilustrações, estas não são citada nos textos e quando o são, é ainda reforçando uma construção social dos papeis reservados a homens e a mulheres. Ao considerar-se que existe insuficiência, ou até mesmo ausência, da apresentação do tema gênero, feminismo, mulher, igualdade de direitos entre mulheres e homens, seus papeis na sociedade, sob outra ótica, na construção da história. Propomos no presente artigo analisar o livro didático intitulado História: Rio Grande do Sul, que tem sido nos últimos editais do PNLD o único título aprovado para escolha e Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.388 distribuição para as escolas públicas no Rio Grande do Sul e portanto, o único manual que chega às mãos dos alunos na rede de educação básica de todo o estado. Esse dado nos instigou a refletir e analisar como nesse manual escolar, devido sua ampla veiculação, eram representados os papeis do gênero feminino, pois tal representação contribuiria para as apreensões e aprendizagem histórica sobre as funções sociais dos gêneros. Portanto, na presente análise partimos do entendimento de que os fatos históricos podem ser representados de maneiras diferenciadas nos livros didáticos e que, a reprodução social sem critica baseada em seus conteúdos, contribui para a manutenção do "status quo", deixando obscurecida uma importante discussão relacionada ao tema que é a questão do "poder", entendido na sua forma mais abrangente, ou seja, poder político institucional , poder econômico/social, poder no espaço público, e também no espaço privado, poder religioso. Nessa perspectiva, na presente analise sobre o poder, pensa-se ser indispensável que o conceito de gênero e suas nuances sejam estudados, porque não há neutralidade no tratamento diferenciado, reduzido, muitas vezes, com que as mulheres são retratadas. Segundo Rachel Soihet e Joana Maria Pedro (2007: 281-300), a trajetória da formação do campo historiográfico intitulado "História das Mulheres e das Relações de Gênero" no Brasil é muito recente. E reportam-se aos movimentos sociais, movimentos feministas como responsáveis pela inclusão deste tema nas pesquisas cientificas. A "pressão politica" que estes movimentos constituíram refletiu-se nos trabalhos na Academia. Ainda segundo as autoras, na década de 1980, na historiografia, inúmeras pesquisas partiam da categoria "mulheres". Nessa trilha muitas pesquisadoras e pesquisadores tem procurado destacar vivências comuns, os trabalhos, as lutas, as sobrevivências, as resistências das mulheres no passado. Esse debate historiográfico nos instiga a questionar: e as relações de gênero como tem sido trabalhadas na historiografia didática brasileira? Para responder a tal problema, primeiro faz-se necessário, identificar o significado desta palavra no contexto da sociedade. Buscando-se o significado do conceito de gênero no dicionário Aurélio encontra-se: "reunião de espécies que possuem vários caracteres comuns entre si; conjunto de seres que apresentam qualidades semelhantes". E na gramática: "propriedade que os substantivos possuem de indicar o sexos dos seres pela terminação ou pela significação” Na língua portuguesa não há termo neutro, assim, de acordo com Joana Maria Pedro: Em português, como na maioria das línguas, todos os seres animados e inanimados tem gênero. Entretanto, somente alguns seres vivos tem sexo. Nem todas as espécies se reproduzem de forma sexuada; mesmo assim, as palavras que as designam, na nossa língua, lhes atribuem um gênero. E era justamente pelo fato de que as palavras, na maioria das línguas tem gênero, mas não tem sexo, que os movimentos feministas e de mulheres, nos anos oitenta, passaram a usar esta palavra "gênero" no lugar de "sexo". Buscavam, desta forma, reforçar a ideia, de que as diferenças que só constatavam nos comportamentos de homens e de mulheres não eram dependentes do “sexo" como questão biológica, mas sim eram definidos pelo “gênero" e, portanto, ligadas a cultura. (PEDRO, 2005:77-98) Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.389 A representação construída sobre a vida das mulheres e dos homens resulta de suas relações de gênero. E como as relações sociais entre elas e eles se dão, e também como se dão as relações de poder. A partir desta compreensão, vê-se que há relações de poder entre homens e homens, mulheres e mulheres, homens e mulheres, e assim se constroem as relações sociais. Gênero tem sido desde a década de 1970, o termo usado para priorizar a questão da diferença sexual (2009: SINDPD-PR). De acordo com Andréa Gonçalves, entre as décadas de 1970-1980, a categoria gênero era empregada nas análises históricas para “revelar as diferenças sexuais e os papeis sociais a partir das significações históricas e socialmente construídas e designadas, de modo relacional, -por mulheres e homens (...)" (GONÇALVES, 2006, p. 73). Entretanto, o conceito foi resignificado e empregado não como forma de revelar as diferenças entre os sexos, mas para demonstrar que a relação entre os sexos é construída dentro de uma interação social, estabelecida em diferentes sociedades e momentos históricos. Portanto, para a autora, o conceito de Gênero transcende a condição explicativa e adentra a esfera do teórico, pois estabelece ao analisar uma dada maneira de olhar a realidade da vida (das mulheres e dos homens) para compreender que as relações sociais entre mu1heres e homens se constroem na esfera do poder. Assim, para compreendermos os gêneros, precisamos antes entender suas relações sociais, de poder e dominação. Gênero seria um conceito capaz de demonstrar as construções sociais, sobre os papeis definidos como próprios para mulheres e homens. E de como mulheres e homens assumem seus papeis em dada sociedade. Pode-se, portanto, identificar "gênero", como um conjunto de caraterísticas sociais, culturais, politicas, jurídicas, econômicas, psicológicas, atribuídas as pessoas de forma diferenciada de acordo com o sexo'' (2009:SINDPD-PR): A utilização da palavra "gênero" tem uma história que se funda a partir de movimentos sociais de mulheres, feministas, gays, lésbicas; transexuais, transgêneros. Sua raiz vem das lutas por direitos humanos, civis, por igualdade e respeito. Nessa direção, de acordo com Andreza de Oliveira Andrade (2011), esses debates procuraram demonstrar que no processo de formação das práticas sociais não existiriam identidades puras, mas forjadas socialmente que delimitariam os corpos afetados pelas relações de poder inscritas nas identidades que definiriam os papeis a serem executados por homens e mulheres e portanto, naturalizados culturalmente. Dessa forma, devido às diferenças hierárquicas construídas nas relações entre homens e mulheres, às várias concepções a respeito da significação de mulher e de homem, surge a dificuldade de identificar a construção do sujeito "mulher". Para tal, faz-se necessário compreender a origem destas diferenças, sua construção e o compromisso de desconstruir este paradigma da superioridade hierárquica seja nas relações de poder institucional, como também nas relações pessoais, domésticas, no ambiente familiar, no espaço privado. De acordo com Michele Perrot, historicamente, dois estereótipos foram criados: o homens racionais e as mulheres emocionais, como se fossem duas espécies humanas. Essa premissa contribuiu para que se desenvolvesse a ideia de que as mulheres não poderiam estar à frente da política porque não agiriam de acordo com as necessidades da coletividade e sim pelos caprichos de sua emocionalidade (PERROT, 1988, p.179). Tais representaç5es dos gêneros naturalizadas socialmente e culturalmente por tanto tempo, como aponta a autora, diante da inserção das mulheres no mercado de trabalho já deveriam ter sido superadas, entretanto, conforme demonstraremos em nossa análise do livro didático "História: Rio Grande do Sul", esses estereótipos ainda se perpetuam no discurso historiográfico didático nos dias Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.390 atuais. Portanto, verifica-se que o espaço escolar não tem contribuído para superar as diferenças construídas socialmente, ha distinção entre meninas/meninos, mulheres/homens, entre outras, ainda presentes no âmbito da escola - há a delimitação de espaços utilizando-se símbolos, códigos e linguagem, como já referidos. Com as práticas mantidas tornam-se "naturais" as diferenças entre homens e mulheres, como se esta ordem não pudesse ser alterada. Qualquer rompimento com as “normas” estabelecidas logo vem a censura e a exigência do “enquadramento”. Isso porque na escola são produzidos e incorporados por meninas/meninos, mulheres/homens, os movimentos, os sentidos, as descobertas, estas construções sociais e as individuais, passam a fazer parte dos seus "costumes". Neste ambiente, é "ensinado" a ouvir, falar, calar. É "ensinado" a preferir a ter uma conduta "adequada" às normas de convivência social. Este "ensinamento" dá-se, de maneira, muitas vezes, sutil, de acordo com Dinis (2008: 477-492). O desafio posto as educadoras e aos educadores e utilizar o espaço escolar para- incluir as discussões sobre cidadania, direitos humanos, logo, a inclusão de grupos que eram relegados, grupos de gênero, de diversidade sexual. Para tanto, faz-se necessário incluir os estudos de gênero nos cursos de formação docente, que educadoras e educadores busquem realizar análise crítica de representações sexuais e de gênero produzidas pela mídia. E buscar novas formas de linguagem, a “linguagem inclusiva", a fim de "desconstruir as estruturas indenitárias binárias e excludentes, como homemmulher, heterossexual-homossexual, reproduzidas socialmente” (DINIS, 2008-: 477492). Na atualidade, na Academia, para a construção de artigos, de trabalhos científicos, não há “espaço” para a utilização de uma forma de linguagem que respeite e reconheça as diferenças, que não conserve, através desta manifestação escrita, uma forma excludente, que ainda continue utilizando a palavra "homem" para designar todos os seres humanos. Recentemente nosso Pais viveu um interessante debate sobre se a designação do termo presidente da república deveria passar para o feminino. E ainda nos dias atuais este debate está presente em alguns veículos de comunicação, em algumas mídias que resistem no reconhecimento de que, por termos uma mulher na presidência da república, sua designação deve ser Presidenta. Que esta flexão é também uma forma de luta por garantia de direitos iguais. Há, embora as vezes inconsciente, uma reação ideológica. A necessidade e de fazer esta discussão com as várias áreas do conhecimento está cada vez mais evidente, principalmente quando se tem a clareza que a linguagem é também um veículo de manutenção do "status quo", que através dela mantemos as interpretações criadas. Até porque a língua está diretamente relacionada ao poder. Ha uma linguagem erudita, fruto da norma culta e a linguagem “popular". Observa-se que se um indivíduo das classes populares projeta-se socialmente e ainda não incorporou as falas cultas ao seu linguajar, logo e ridicularizado ao manifestar-se da maneira que lhe é usual. Segundo Carboni e Maestri, na maioria das línguas, o gênero feminino dissolve-se por detrás do masculino, expressando-se ideologicamente a ocultação patriarcal objetiva da mulher pelo homem. Assim naturalizado no uso costumeiro, o conceito linguístico, por meio do Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.391 caráter aparentemente abrangente, sintético e neutro do gênero masculino, impõe sua essência social, reforçando as relações de dominação patriarcal do mundo real (2003: 6). Como discorreram os autores, a permanência na linguagem de termos e expressões masculinas para designar e representar ambos os gêneros revela o conservadorismo próprio das estruturas de dominação patriarcal do passado ainda no presente. Romper com essa dominação que determina e estabelece as relações e poder entre os gêneros inclui também uma reflexão profunda sobre a linguagem enquanto expressão das identidades e da cultura. Dessa forma, ao final dessa breve discussão sobre o conceito de gênero e sua proposta teórica, passaremos nesse segundo momento a analisar o livro didático "História: Rio Grande do Sul", como forma de percebermos como se estruturam nesse livro as representações do feminino em relação ao masculino na historiografia didática regional. Gênero e representação no livro didático Compreendendo que o livro didático é, às vezes, a única fonte que educadores tem para utilizar em sala de aula. Busca-se, nesse segundo momento relacionar as categorias "gênero", "mulher" e identificar sua presença e ausência no livro didático que ora é analisado "História: Rio Grande do Sul. Tal abordagem faz-se necessária pela compreensão que este tema transversal deve ser devidamente explicitado na historiografia - História das mulheres, feminismo, gênero. Acrescenta-se o objetivo de trabalhar uma história local, dando ênfase as categorias já citadas. Entende-se que a ausência deste enfoque no livro didático, oferece oportunidades para a inclusão do tema na sala de aula justamente propondo analisar o processo de silenciamento ou apagamento das representações do gênero feminino no manual escolar aqui analisado. Para tanto, realizou-se uma análise no livro História: Rio Grande do Sul, cujo autor é Felipe Piletti, aprovado e incluído no Guia do Plano Nacional do Livro Didático PNLD, para os anos 2010, 2011, 2012, direcionado ao 4° ou 5° ano do Ensino Fundamental. Na apresentação o autor expõe que o livro sobre a história do Rio Grande do Sul vai oferecer a oportunidade de conhecer os diferentes povos que construíram o estado e os acontecimentos importantes que marcaram a história gaúcha. Mas a História não é feita apenas desses acontecimentos. Ela é construída no dia-a-dia, e cada uma de nossas ações contribui para essa construção...por meio deste livro você poderá pensar sobre a relação entre o nosso passado e o nosso presente. Assim, vai se sentir mais integrado no mundo em que vivemos e vai poder contribuir para torná-lo melhor. (PILETTI, 2010:03) Esta apresentação demonstra uma visão sobre a História que não tem por base exclusivamente os “grandes vultos”, reafirma que cada uma das pessoas que ocuparam/ocupam espaço no espectro social, na sua abrangência, é integrante do fazer histórico. Nesse sentido, no decorrer da sua leitura foram encontradas situações Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.392 que expressam a manutenção do, há muito tempo definido, conteúdo a ser apresentado. As temáticas são apresentadas com muitas ilustrações como recurso didático, há a preocupação com a elaboração de textos pelos alunos, inclusive na página 7 a proposta é que o/a aluno/a escreva a sua própria história e divida com colegas a leitura do seu texto e escute a história pessoal dos demais. Logo no início de nossa análise, observou-se que na sugestão de tarefas para alunas/os o autor utilizou sempre o feminino para referir-se à educadora/or que esteja na sala de aula, exemplo:...”com a ajuda da professora...”, “... se necessário peçam ajuda à professora". Assim, avalia-se que para este professor, autor do livro em questão, o ensino nos anos iniciais é ocupado pela imagem da professora . Através dessa indicação, o autor acabou por reafirmar através da sua linguagem, que ha espaços masculinos e espaços femininos. Após essa primeira análise construímos através da “análise de conteúdo” uma tabela analítica, formada pela categoria Mulher e por unidades de referência que davam qualidade à mesma, como forma de percebermos que tipo de representação o autor conferiu ao gênero feminino na construção da História do Rio Grande do Sul. Trechos do livro Categoria MULHER Mulher em luta Mulher frágil Mulheres no trabalho Mulheres nas expressões culturais Capítulo sobre “os primeiros habitantes do X Rio Grande” (p.14) Um texto sobre a relação dos Guarani com a terra (p.17) X Um breve relato sobre Anita Garibaldi e X Giuseppe, com a ilustração da figura de ambos encontra-se na (p.68), ela é apresentada como a companheira de luta. Há uma ilustração sobre uma fábrica de chocolates e doces em Porto Alegre onde somente mulheres aparecem (p. 95); X Na abordagem feita no capítulo sobre a X Nova República, sob o tema cidadania, há uma foto de meninas brancas, adolescentes, “caras-pintadas”, no movimento Fora Collor, a legenda da foto identifica que a manifestação ocorreu em Porto Alegre (p. 170) Ainda sobre a Nova República, sob o tema cidadania, como atividades sobre o contexto histórico, há a reprodução do artigo 227 da Constituição Federal que trata dos direitos das crianças e adolescentes, há uma ilustração que representa meninas e meninos aproximando-se de um grande livro, as crianças são todas brancas (p171) X Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.393 A seguir encontra-se uma figura de X mulheres negras, a legenda diz “mulheres protestando contra o alto preço dos alimentos em Dacar, no Senegal, em 2007 (p. 172) O texto do capítulo “A História não para”- X embora a legenda da foto seja explícita sobre mulheres, quando fala em manifestações populares não há referência aos movimentos de mulheres que existem, seja no estado, seja no país ou internacionalmente (p.172) No capítulo sobre cultura gaúcha, referente à música está presente Elis Regina (p. 179) X No capítulo 19 - a História não para, vê-se a figura de Daiane dos Santos a ginasta (p. 182) X 5 Total 1 1 3 10 No capítulo sobre “os primeiros habitantes do Rio Grande" (p.14), observe-se que é mantida a confusão entre o nome da cidade do Rio Grande e o estado do Rio Grande do Sul. Estes habitantes são os indígenas, há uma ilustração deles participando de manifestação por terras em Porto Alegre, nesta foto aparecem em primeiro plano várias mulheres, mas não há nenhuma referência textual sobre isto. Se houver a percepção do/a educador/a em chamar a atenção para este fato, de que mulheres ali estavam em luta, supera- se a ausência do texto no livro, e poderá oportunizar a solicitação aos alunos de outras fotos, outras manifestações ou não, que apresentem mulheres e homens numa caminhada conjunta. Encontra-se na página 17 um texto sobre a relação dos Guarani com a terra, segundo o autor, uma adaptação de Carlos Urbim. Ali são apresentadas as atividades que eram desempenhadas por homens e por mulheres "homens faziam as armas, protegiam o grupo, caçavam, pescavam, mulheres plantavam , colhiam, cozinhavam e moldavam objetos de cerâmica, as crianças brincavam e aprendiam a viver". Uma ilustração sobre os Carijó reflete o conteúdo do texto. Os homens viris com suas atividades fortes, as mulheres sensíveis e suas atividades artísticas. (Um breve relato sobre Anita Garibaldi e Giuseppe com a ilustração da figura de ambos encontra-se na página 68). De acordo com o autor, Anita era casada com um sapateiro, apaixona-se por Garibaldi e resolve acompanhá-lo nas lutas, revelando-se “uma companheira destemida”, participando de combates tanto no Brasil como na Itália, recebendo o título de “heroína de dois mundos”. Sobre a imigração alemã, na página 95 há uma ilustração sobre uma fábrica de chocolates e doces em Porto Alegre/RS onde somente mulheres aparecem; não há em todo o texto sobre a “formação das indústrias” qualquer referência às mulheres. Ainda que elas apareçam em outras fotos sobre a cultura (alimentos, danças...) não são nunca referenciadas. O autor trata neste capítulo do início da industrialização, do êxodo das áreas Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.394 rurais para os centros urbanos. Observa-se a ausência da referência sobre a mão de obra feminina no trabalho fabril tanto na indústria da alimentação, como nos demais setores. Sabe-se que as mulheres, tanto no campo como na cidade, tiveram papel preponderante nos processos de industrialização. A mulher no mundo do trabalho não aparece nesta obra. A abordagem feita no capítulo sobre a Nova República, sob o tema cidadania, há uma foto de meninas brancas, adolescentes, “caras-pintadas”, no movimento Fora Collor, a legenda da foto identifica que a manifestação ocorreu em Porto Alegre (pag. 170). Fala do impeachment e propõe como atividade: “forme uma dupla com um colega e, com base nas discussões da turma, elaborem no caderno uma nova legenda para a foto acima”. Essa atividade aparece como uma oportunidade rica para estabelecer um debate acerca do momento político de forma geral, mas também, utilizando a foto onde, majoritariamente, aparecem mulheres, aproveitar para discutir o corte de gênero, sempre adequando á idade de alunas e alunos. Inclusive questionar sobre a formação de dupla com um colega, mesmo em se tratando de crianças é possível fazer questionamento do porque somente com um colega deve ser a dupla. Alguém poderá manifestar que não há orientação de ser com “o” colega, já que a palavra destina-se a ambos os sexos, então possibilita que se chame a atenção sobre a necessidade de explicitar as diferenças entre a generalização, que entendemos deseduca, e a diferenciação que estabelecerá, no mínimo, a provocação sobre o assunto. Ainda sobre a Nova República, sob o tema cidadania, como atividades sobre o contexto histórico, há a reprodução do artigo 227 da Constituição Federal que trata dos direitos das crianças e adolescentes, há uma ilustração que representa meninas e meninos aproximando-se de um grande livro, as crianças são todas brancas. Uma oportunidade estabelecer diálogo sobre a ausência de crianças negras ou indígenas, por exemplo. Neste capítulo pode-se refletir sobre a representação dos direitos de crianças e adolescentes, percebe-se que as crianças/jovens representadas estão bem vestidas, calçadas, indo em busca de informação. Pode-se perguntar por que não há a representação de crianças em condições econômico-sociais menos favorecidas? Estes direitos apregoados estão realmente ao alcance de todas? A seguir encontra-se na página 172 uma figura de mulheres negras, a legenda diz "mulheres protestando contra o alto preço dos alimentos em Dacar, no Senegal, em 2007. No mundo há sempre pessoas lutando por seus direitos": Apresenta as mulheres em luta, mas não reafirma que no mundo há sempre mulheres lutando por seus direitos, fala em pessoas... O texto do capitulo "A História não para" enfatiza a importância da luta contra a ditadura e no processo de redemocratização. Como atividade sugere que alunos formem grupos e procurem em jornais revistas, imagens que mostrem manifestações populares (protestos, passeatas, etc.) no Rio Grande do Sul, em outros estados do Brasil e em outros países do mundo. Embora a legenda da foto seja explicita sobre mulheres, quando fala em manifestações populares não há referência aos movimentos de mulheres que existem, seja no estado, seja no país ou internacionalmente. Parece um bom mote para estabelecer uma discussão mais dirigida. Avalia-se positivamente o incentivo à discussão deste tema, considerando que os movimentos populares são fundamentais para fortalecer a democracia. A Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.395 compreensão que cada pessoa na sua atividade profissional, escolar, de lazer, na sua rua, enfim, nos espaços em que convive, deve exigir que sua participação seja oportunizada por governos, por instituições de ensino, sindicatos de trabalhadoras/es com a compreensão de que este é um direito seu. Somente quando todas as pessoas tenham seus direitos respeitados poder-se-á falar em democracia, ainda que seja representativa. Quando o tema e cultura o livro aborda música, literatura, artes-plásticas, dança. Fala de folclore e tradicionalismo relatando o nascimento do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), e registra que este “lembra, muitas vezes, apenas a vida do rico estancieiro da fazenda". O autor reforça a predominância masculina no contexto histórico do RS, fala do MTG sem qualquer referência a participação das mulheres nem mesmo quando fala das danças e das vestimentas. Um texto que demonstra criticidade quanto a alguns fatos históricos, dos mais arraigados deste estado, como seja o tratamento que era dado pelos estancieiros aos peões, cita que os mesmos vestiam-se com roupas gastas, também mantém a supremacia masculina no contexto social, eis que torna invisível a participação da mulher. Na música, faz referência a muitos nomes de destaque mas coloca como representantes: Radamés Gnattali, Lupicínio Rodrigues, Teixeirinha e Elis Regina. A foto de Elis Regina ilustra o texto que lhe apresenta como uma das maiores cantoras brasileiras. Indiscutível que ela foi reconhecida nacional e internacionalmente, a representação também se dá por este fato, sem desconsiderar, absolutamente, toda a genialidade de Elis, mais uma vez "o grande vulto" salientado. Sabe-se que muitas outras mulheres gaúchas, com qualidades também indiscutíveis como intérpretes, instrumentistas, compositoras, ainda não tiveram seus nomes levados até os bancos escolares através do livro didático. Continua apresentando a diversidade cultural do estado, fala de suas festas populares, do cinema, onde os artistas gaúchos se destacam. E nos esportes, é apresentada uma foto da ginasta Daiane dos Santos. Outra representante do estado do Rio Grande do Sul reconhecida nacional e internacionalmente, o texto refere que o estado conta com grandes atletas e o autor sugere como atividade pesquisar em jornais e revistas e levar para a classe "fotos de alguns deles". Então, mesmo demonstrando a ginasta como representante no esporte, na pesquisa o autor sugere as fotos dos atletas, podemos pensar, porque mais uma vez a linguagem utilizada reflete o masculino. Mais uma oportunidade para estabelecer um diálogo sobre a forma de utilização das palavras. Pode-se considerar que o livro apresenta mudanças quanto a alguns aspectos da historiografia. Ha textos críticos sobre temas até então considerados definitivos, ou seja, sobre eles não havia mais discussão. Mas entende-se que mesmo com estes avanços e considerando as propostas de políticas oriundas do Ministério da Educação, que orientam a utilização do espaço escolar para a formação de indivíduos capazes de conviver com as diferenças e respeitá-las; que os temas diversidade, gênero, étnicoracia1, devem ser contemplados, inclusive havendo leis que os regulam , nas salas de aula, nos espaços escolares, com formação continuada para professoras e professores, a fim de oportunizar um crescimento qualitativo para todas as pessoas que convivem na escola, para a comunidade escolar, aqui incluem-se familiares de alunos. Esta formulação de políticas não está devidamente contemplada na feitura deste livro. Quanto ao espaço dedicado à cidade do Rio Grande, avalia-se que é diminuto e Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.396 superficial. Sobre a história do município do Rio Grande, na eventualidade de propor estudos dirigidos, constata-se que as informações deverão ser buscadas em outras fontes. Ha vários trabalhos acadêmicos já realizados por alunas/os e seus professores/as, no âmbito das universidades. Especificamente na Universidade Federal do Rio Grande -FURG, muito tem sido produzido sobre o município, nas mais variadas áreas do conhecimento. O desafio que está posto é transferir este conhecimento para o sistema de ensino local. Para que pessoas comuns, juntamente com os "vultos" sejam reconhecidos/as como partícipes da construção da história da cidade. Algumas considerações Considerando-se que o livro didático é, ainda, um fundamental aliado de educadoras/es para a atuação na sala de aula, mas que se evidencia nestes livros a manutenção da concepção sobre a história das mulheres como coadjuvantes da História, na maioria das vezes obscurecida, quando aparece refere-se a "grandes vultos". As temáticas gênero, diversidade, étnico-racial, não tem recebido, por parte de autores, uma proposta de discussão sobre os ternas relacionando-os com a realidade das salas de aula, da escola, da comunidade escolar, quando apresentados como temas transversais, estão distantes, é como se a discussão se desse sobre algo fora do ambiente, como se não fizessem parte do dia-a-dia. Há políticas públicas constituídas para tentar superar estes problemas, percebe-se, porém, que muitas vezes os entraves burocráticos somados à resistência de grupos em aceitar mudanças faz com que permaneçam os tratamentos desiguais, discriminatórios e injustos. Verifica-se também que com relação a História local, História da cidade do Rio Grande, no livro ora analisado, é superficial e insuficiente. Reafirma-se a que a Universidade do Rio Grande tem vasta contribuição a dar e que o desafio é fazer com que chegue no sistema de ensino estadual e municipal. Enfim, a riqueza da História do município do Rio Grande era também na trajetória das mulheres que contribuíram para a sua ascensão. Desde as que estiveram “na planície", anônimas - as lavadeiras, as benzedeiras, as amas de leite, .... Aquelas que dividiram seus dias nas fábricas com as tarefas domésticas; as que foram escravizadas, juntamente com as que ascenderam a cargos políticos, as pioneiras em atividades cujo “status" as levou ao reconhecimento, como médica, juíza. E aquelas que nos tempos atuais também contribuem, nos mais diferentes espaços sociais, para a construção da história da cidade. Ainda assim, a maioria continua desconhecida na/da cidade que ajudou/a a construir. Através da compreensão de pertencimento ao lugar, na sua forma mais ampla, é que as populações poderão, efetivamente, defender sua história, sua cultura, sua identidade, seu patrimônio (material e imaterial), seus direitos, seu espaço de manifestação, sua participação na gestão da cidade, enfim sua dignidade. Referências: ANDRADE, Andreza de Oliveira. Gênero e História das Mulheres: diálogos conceituais Disponível em: http://www.anpuhpb.org(anais_xiii_eeph/textos/S1'°/o2009%20 - %20Andreza%20 de %200liveira%20Andrade.pdf. Acesso 24/03/2011as15:41 BRUNELLO, Eduardo Tadeu. A instituição escolar e a reprodução das desigualdades Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.397 de gênero. Graduando em Ciências Sociais. Universidade Estadual de Londrina (UEL). [email protected]. CARBONI, Florence, MAESTRI, Mario. A Linguagem Escravizada. Língua, história poder e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2003. DINIS, Nilson Fernandes. 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