A MURALHA MEDIEVAL E SUAS FUNÇÕES Luiz Augusto Oliveira Ribeiro (UEM) Jaime Estevão dos Reis (UEM) No Ocidente medieval, por volta do século X, os espaços urbanos recuperam-se e rompem com a estrutura de caráter eminentemente rural até então vigente. Fatores como retomada do comércio, aumento e mobilidade demográfica, e o reaparecimento do artesanato foram responsáveis pelo desenvolvimento das cidades medievais. A partir desse momento estrutura-se um dos seus principais aspectos físicos: as muralhas, construídas como sistema de segurança, e que identificam o cenário urbano. As muralhas e fortificações são os principais mecanismos de defesa da vida urbana no Ocidente medieval durante toda a Idade Média. Além de representar o papel unificador e organizador desse espaço, as grandes e dispendiosas construções do espaço urbano medieval possibilitaram um novo modelo de cidade, e com isso contribuiu para o processo de formação e estruturação do modelo de vida urbano. As muralhas desempenharam o papel militar, assim como o de controle do crescimento urbano, facilitando a sua administração e fiscalização. Entre os historiadores que têm discutido as cidades na Idade Média, destacamos: Jacques Le Goff, Henri Pirenne, Guy Fourquin, Thierry Dutour, Leonardo Benevolo, Patrick Boucheron, Denis Menjot, Emílio Mitre, Georges Jehel e Philippe Rancinet. Palavras-chave: Idade Média, Cidades, Muralhas. A MURALHA MEDIEVAL E SUAS FUNÇÕES Luiz Augusto Oliveira Ribeiro (UEM) Jaime Estevão dos Reis (UEM) Figura I: Nurenberg, 1493/ Hartmann Schedel – Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Nuernberg_schedel.JPG 18/07/2012. Acessado em: A muralha medieval assume em si um caráter militarista, mas também pressupõe unidade entre as pessoas, aos poucos se caracteriza enquanto essencial na formação das cidades medievais, colocando-se como primeiro passo para a fundação de uma cidade. A muralha se faz necessária e ganha cada vez mais seu espaço, garantindo, de certa forma, o controle do território e a cobrança dos impostos. (SETA, 1991, p.23) A presente pesquisa se apresenta como uma discussão bibliográfica, para tanto, visa relacionar e interpretar as diferentes visões historiográficas acerca do sistema de fortificação das cidades medievais e sua importância, com foco principal nas muralhas que foram de grande importância ao espaço urbano medieval. Autores como Jacques Le Goff, Henri Pirenne, Guy Fourquin, Thierry Dutour, Leonardo Benevolo, Patrick Boucheron, Denis Menjot, Emílio Mitre, Georges Jehel e Philippe Rancinet, dão base para a discussão proposta, pois, estes medievalistas discutem o processo de surgimento dessas estruturas urbanas que seriam caracterizadas a partir de suas muralhas, com seu tamanho imponente e sua função militar e social. Compreender o processo de surgimento e consequentemente as estruturas fortificadas, as muralhas, que aparecem como essenciais nesse espaço urbano são os principais objetivos da discussão bibliográfica. A reorganização das cidades medievais por volta do século X, foi impulsionada pelo ressurgimento do comércio, mobilidade demográfica, especialização do artesanato, entre outros fatores, que juntos permitiram a retomada do espaço urbano no Ocidente e, aos poucos, passam a constituir um cenário próprio: os rios, o espaço geográfico, os bairros e as outras estruturas que vão aparecendo, definem esse espaço urbano, espaço esse que será delimitado, organizado e estruturado pela muralha. A cidade medieval se estrutura e se organiza de forma particular, os bairros são organizados de forma única, diferenciando-os pelos ofícios, portanto, existia o que se podem chamar por bairros dos artesãos, bairros dos padeiros, e assim por diante. O campo profissional na cidade medieval de certa forma definia três grandes eixos dessa vida urbana: o trabalho, a vida e a convivência. “Indudablamente, la diferenciación de los Barrios es perceptible em la arquitectura y disposición de los ofícios oficiales, religiosos o civiles, que contribuyen a caracterizar el espacio. Las funciones económicas influyen también en la identidad de los lugares. Un monastério o un mercado, um matadero o un taller de tenería bastan para imprimir en um sector na connotación atractiva o repulsiva que le da su ambiente particular.” (JEHEL/RACINET, 1999, p.231). A formação do espaço urbano medieval é lenta e gradual, aos poucos as instituições se formam, as estruturas se solidificam e passam a modelar esse espaço, um espaço que passa a ser portador de novos valores: “La urbanización de la Alta Edad Media se produce con pequeños progresos entrecortados por pausas y retrocesos. Da lugar a la función de aglomeraciones diversas y complejas en el tiempo y el espacio” (BOUCHERON/ MENJOT, 2010, p. 22). Na Idade Média, o espaço urbano era delimitado pela muralha, com sua função protetora e sua constante ampliação, as muralhas medievais se legitimaram dentre os outros elementos que constituiriam a maior força militar urbana. De certa maneira as muralhas passam a constituir a cidade, e foi durante muito tempo no Ocidente o modelo urbano mais comum, tomando para si caráter mais do que material, um sentido social e de uma imagem. (LE GOFF, 1991, p.14) A cidade medieval assumiu para si uma imagem própria e cada vez mais buscou legitimar-se enquanto essencial frente aos povos, aos poucos assume seu papel e importância militar: “É ainda um sistema de organização de um, espaço fechado com muralhas, onde se penetra por portas e se caminha por ruas e praças, e que é guarnecido por torres.” (ROSSIAUD apud LE GOFF, 2006, p.223). A muralha e a cidade medieval, segundo Le Goff, representam juntas uma tríplice função: “Las murallas definen un espacio de poder y de derecho concreto, un espacio también religioso, pues incluso son un monumento consagrado. Su papel militar se remonta a los Orígenes, y sus puertas constituyen uma via fundamental para el intercambio económico, como podemos ver en el Buen Gobierno de Siena.” (LE GOFF, 1991, p.17) Nesse sentido, a cidade medieval e sua muralha consagraram um espaço do sagrado, um espaço militar e econômico, essa relação entre elas é que possibilitou o desenvolvimento de uma nova estrutura ao espaço urbano, e caracterizou a importância da muralha. Para Le Goff (1991) a construção de uma muralha é o primeiro passo da fundação de uma cidade, para ele o surgimento dessas estruturas é extremamente importante ao espaço urbano medieval e estão intrinsecamente ligados e completam-se quando diz respeito ao surgimento e afirmação do espaço urbano. Não se pode esquecer que grande parte da inspiração para a construção dessa grandiosa estrutura partiu também de exemplos da antiguidade, assim como afirma Le Goff: “Embora seja provável que motivos militares tenham estado na origem da construção das muralhas, nem por isso estas deixaram de construir – inspiradas no modelo dos muros, antigos ou lendários, que definem um espaço sagrado da cidade – o elemento essencial para a tomada de consciência urbana na Idade Média.” (LE GOFF, 1992, p.15) As muralhas medievais possuem grande importância nas cidades que estavam se formando, aos poucos ela vai tomando forma e passa a ser de grande importância para a população, assim “[...] a muralha foi o elemento mais importante da realidade física e simbólica das cidades medievais.” (LE GOFF, 1992, p.15). De certa maneira a muralha representa a divisão entre o campo e o espaço urbano, delimita a dialética interior e exterior, garantindo assim a proteção àqueles que residem dentro desse espaço, mas também àqueles que estão no campo (camponeses) que em períodos de guerra adentram os grandes portões e passam a ter a responsabilidade de vigiar os portões de acesso à cidade. “Vemos, assim, os laços estreitos que unem cidade e campo, uma cidade que penetra e domina o campo mas que também está aberta às suas influencias” (LE GOFF, 1992, p.27) Dentro das muralhas se fez necessário proteger e defender a paz, a ordem interna, nesse sentido, diversos são os materiais que garantem a unidade entre campo e cidade, uma constante troca de atividades industriais e agrícolas, mantendo um sentimento único e próprio. (SETA, 1991, p. 60-61). Algumas generalizações de historiadores que buscaram definir as cidades medievais relacionam diretamente a existência delas à construção das muralhas. “La ciudad medieval empieza con la construcción de la primeira muralla y desaparece con la construcción de la última” (RENOUARD apud BOUCHERON/ MENJOT, s. d. p.13). Questões sociais levaram a construção daquela que seria o maior símbolo das cidades medievais, foram fatores como: guerras; invasões; falta de mantimentos e a cristianização que permitiram a organização dessa estrutura interna (BOUCHERON/ MENJOT, 2010). Para Le Goff, “Quaisquer que tenham sido para a tomada de consciência dos habitantes as conseqüências da construção e da existência de uma ou várias muralhas, a importância de seu papel militar é evidente.” (LE GOFF, 1992, p.17) Pensar a muralha em seu aspecto físico pressupõe algumas considerações, assim como é possível percebermos na imagem abaixo a muralha constituiu-se, na maioria das vezes, em um formato circular, ou semi-circular, dessa forma facilitava a proteção dos espaços. Outro aspecto importante a salientar é a forma como se dava a construção dessas grandiosas muralhas, por vezes, se fez necessário modificar os planos originais de construção devido a condição topográfica da região na qual seria construída, necessitando alguns ajustes e modificações. Figura II: Mapa de Oviedo de 1869 e o desenho das diversas muralhas da cidade (ADÁM ALVAREZ, 1996). Em toda a Europa os espaços urbanos eram envoltos por muralhas, que cresciam de forma sempre a englobar a maior quantidade de gente possível, dessa forma é comum ver em uma única cidade duas, três ou mais muralhas, uma dentro da outra, isso mostra o crescimento e ampliação da cidade. O papel militar que as muralhas passam a desempenhar é evidente, pois, com essa nova função as fortificações das cidades por vezes se tornavam insuficientes, exigindo ampliações, como é possível perceber na iconografia acima, identificadas pelos números 1, 2, 3 e 4. A movimentação demográfica no inicio da formação dessas cidades eram intensas, o que fez com que pessoas se aglomerassem em volta das muralhas existentes, e, posteriormente, novas estruturas fossem erguidas, cada vez ampliando mais o espaço urbano. “A cidade fortificada da Alta Idade Média, designada habitualmente por burgo, não é suficiente para os albergar; às portas das cidades, formam-se outros aglomerados populacionais – os subúrbios – que depressa se podem comparar com o núcleo originário e exigem a construção de muralhas cada vez maiores.” (BENEVOLO, 1995, p. 56 – 57) Nesse sentido a muralha caracteriza-se enquanto a obra pública mais dispendiosa, e que só recebe ampliação no momento em que não há mais espaço interno livre, o que fazia da cidade um espaço restrito, fechado e privilegiado (BENEVOLO, 1995). Todavia, segundo Jacques Le Goff: “Nem todas as cidades medievais foram cercadas por muralhas; muitas só o foram inteiramente após 1340, sob o efeito da Guerra dos Cem Anos. Ao contrário numerosas aldeias foram fortificadas.” (LE GOFF, 1992, p.14) No Ocidente Medieval as cidades muradas variam de região para região, ganhando essa função de protetora ao passo que existe a insegurança, e por esse motivo as pessoas se aproximam das muralhas construídas, formando grande número de aglomerações (BOUCHERON/ MENJOT, 2010). Além do papel de proteção, a muralha tem outras funções e é percebida a partir de outros olhares, como no excerto abaixo: “La muralla condiciona la creación de una fiscalidad y contribuye al desarrollo de una administración municipal, ya que su construcción es una empresa costosa y de larga duración, y su mantimiento y defensa (torres de guardia y atalayas) requieren una financiación importante y regular y exigen una organización” (BOUCHERON/ MENJOT, 2010, p.147). Partindo do pressuposto de que a muralha medieval contribuiu para o controle e a fiscalização da administração pode-se perceber que suas influências foram além daquelas até então citadas, as muralhas medievais desempenharam e influenciaram diretamente a economia, a política e a organização social da sociedade medieval. Faz-se necessário pontuar não somente as muralhas, mas também as torres, os castelos, os sinos, as portas, os rios, entre outros, todos os componentes daquele que seria um grande sistema de fortificação, desenvolvido e pensado exclusivamente para esse período. A cidade medieval possuía de certa maneira a preocupação com sua organização e consequentemente com a imagem que se tem desse espaço, dessa forma: “O urbanismo medieval, que caminha lentamente, segue em quatro direções: a limpeza, a segurança, a regularidade e a beleza.” (LE GOFF, 1992, p. 214). As muralhas medievais se encaixam na segurança, mas também pode ser colocada nos fatores regularidade e beleza, claro que não são esses os fatores primordiais, mas foram também eminentes durante a existência dessas grandiosas estruturas. As muralhas desempenharam seu papel econômico, político e social e se mantiveram ao longo do tempo, mais que uma história de documentos, há a possibilidade de ver essas magníficas construções, como é o caso das cidades Oviedo, Ávila e Carcassone, que mantém suas construções ainda hoje. Muralhas que representaram a força, a proteção e garantiram local de refúgio, são as mesmas que influenciaram diretamente na formação de um sentimento comum entre as pessoas que em seu interior habitavam. Elas possibilitaram uma tomada de consciência urbana, um sentimento de pertencer àquele espaço murado. Por fim as cidades medievais não podem ser resumidas apenas a sua estrutura física, caracterizada apenas por aquele sistema fechado, mas deve ser analisado a partir da relação de estruturas físicas com seus aspectos culturais e sociais: o imaginário urbano, o conhecimento dos diferentes níveis de ensino (do primário ao superior), a arte gótica, a produção de um urbanismo único; fatores que também levaram ao desenvolvimento e legitimação do espaço urbano (LE GOFF, 1992). Toda a estrutura medieval é de grande importância à sociedade ocidental, as bases lançadas durante esse período deixaram um grande legado às sociedades posteriores, são questões físicas, culturais e sociais, que se completam entre si e fazem da Idade Média um período de grandes avanços, descobertas e ensinamento. REFERENCIAS BENEVOLO, Leonardo. A Cidade na História da Europa. Lisboa: Presença, 1995. FORQUIN, Guy. História Económica do Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1991. LE GOFF, J; SCHMITT, J-C. (Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC/ São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2006. LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MUNUERA NAVARRO, David. Las Murallas de la Edad Media. IN: MARTÍNEZ LÓPEZ, José Antonio y INIESTA SANMARTÍN, Angel (coord.) Estudio y Caltalogación de las Defensas de Cartagena y su Bahía (2004). Disponível em: http://www.patrimur.com/archivos/monografias/defensaspdfs/2murallasedadmedia.pdf Acessado em 13/07/2012. PIRENNE, Henri. As Cidades da Idade Média. Mem Martins: Publicações EuropaAmérica, s. d. PINOL, Jean-Luc (dir.). BOUCHERON, Patrick. MENJOT, Denis. Historia de la Europa Urbana. Universitat de València, 2010. SETA, Cesare de e LE GOFF, Jacques (dir.). La ciudad y las murallas. Madrid: Ediciones Cátedra, 1991, p. 11 – 66.