A ALIMENTAÇÃO E A CULINÁRIA MEDIEVAL Óbidos 2 de Maio de 2010 Sara Seydak - TEMÁTICA 2 de Maio de 2010 - As influências na alimentação da Idade Média (teórico) 10:00 1. Religião – A trilogia do azeite, vinho e pão (alimentação Ibérica vs o resto da Europa) 2. Natureza – As Estações do ano e a agricultura (os alimentos frescos vs conservados) 3. Classes sociais – A carne e os legumes (Nobreza vs Povo) 4. Apresentação de várias receitas históricas (documentos de banquetes e receitas ricas; a evolução do paladar; como seria a alimentação no dia-a-dia?) e discussão dos alimentos que não existiam e os mais usados na Idade Média 12:00- A culinária na Idade Média (prático) Elaboração de uma ementa de acordo com o aprendido durante a parte teórica Nomeação da sopa e do prato principal Degustação do confeccionado EMENTA Sopa – Potage de legumes (nome ainda por dar) Prato principal – Massas frescas com carne (nome ainda por dar) Sobremesa – Bolachas de aveia Sara Seydak 2 AS INFLUÊNCIAS NA ALIMENTAÇÃO DA IDADE MÉDIA Em primeiro lugar devemos destruir o preconceito de que a Idade Média foi o período das trevas e que a alimentação era algo horrível, podre e gordurosa, ideia essa que nos foi deixada pelos historiadores do séc. XIX durante a época vitoriana. O que devemos considerar é que o paladar medieval era bem diferente do nosso e criar as nossas opiniões particulares a partir deste pressuposto. Muito influenciou a alimentação medieval: o sucesso de um cultivo, o acesso aos bens, a cultura de um país, a religião, as classes sociais, etc. Mas uma ideia fica desde já: Na Idade Média fazia-se uso de um grande número de especiarias. Algumas receitas chegavam a levar mais de 14 diferentes e nenhum prato era considerado como bom se não levasse no mínimo duas a quatro especiarias. Na Idade Média surgiram muitas inovações, principalmente após o século XI, onde a criação de um sistema agro-pecuário mais eficaz e generalizado que o dos romanos (alguns especialistas dizem que não) e a integração deste num sistema global de crenças religiosas trouxe prosperidade. Contudo, deparamo-nos com uma dificuldade: tudo o que se possa estudar sobre a alimentação na Idade Média provém unicamente dos poucos registos deixados desde esses tempos, receitas, folhas de pagamento de impostos, registos comerciais, balanços de vendas, vistorias às despensas, etc. Nesses registos encontram-se, principalmente, o que as pessoas de posse faziam e tinham. Os pobres não estão incluídos. E por mais que nós tentemos, nunca se irá saber na totalidade do que é que o povo se alimentava e quais as suas receitas. Não existem registos da prática alimentar camponesa, só da aristocrática, do Clero e da Burguesia. Quase todos os documentos sobre os quais se baseiam as pesquisas sobre a alimentação na Idade Média vêm dos escritos preservados nas ordens monásticas, porque essas eram as únicas que tinham tempo e conhecimento suficientes para as escrever. O que sabemos hoje é a partir destes registos e de algumas compilações de receitas. Tal como hoje, aprendia-se com as mães, as donas de casa, os profissionais. As receitas eram passadas oralmente até que, algum dia, alguém se lembrasse de as apontar e, com sorte, esse documento sobrevivesse até hoje. A maior parte da alimentação medieval era baseada em alimentos frescos, colhidos para o propósito. Assim, a Primavera e o Verão eram as estações do ano mais esperadas porque traziam consigo a qualidade e a quantidade que as outras duas estações não tinham. Os alimentos quando não consumidos frescos eram conservados através do fumeiro, da salga, do vinagre, da cristalização, secos ao sol, cozinhados em pastas, marmeladas e doces, colocados em mostarda e outras especiarias, em azeite; incluindo a fruta, os legumes, a carne, o peixe, os produtos lácteos, os ovos, as nozes. Estas técnicas foram desenvolvidas e usadas para garantir uma alimentação ao longo do ano e para dias de maior fome. Temos, também, que nos lembrar que os regionalismos também influenciavam enormemente a alimentação dos povos que habitavam as diferentes regiões da Europa. O que era comum para uns, era exótico para outros. Algumas dessas regiões aceitavam bem as influências exteriores, outras não. Normalmente eram os tempos de paz e, muitas vezes um monarca visionário, que determinavam o grau de inclusão de novas tradições ou de quebra de velhas. Um dos outros aspectos que influencia o estudo da alimentação é a separação entre o que é comido no mundo rural e o que é na urbe. No primeiro, os alimentos eram colhidos e preparados frescos, enquanto que nas cidades, a maior parte do que era consumido era importado do território nacional ou estrangeiro. Sara Seydak 3 Igualmente, o calendário medieval estava dividido em duas partes, a das obrigações religiosas e a dos festejos. Variava entre os dias magros e os excessos absurdos. Os dias religiosos ocupavam quase 2/3 do ano e costumavam obrigar as pessoas a dietas rigorosas sobre o que podia e não podia ser comido. Por outro lado, os festejos eram de elevada importância para a vida do Homem medieval, já que era considerado o período de comunicação por excelência. Eram períodos de distracção do mundano. Como podem observar, esta questão não é directa e tinha muitas características diferentes. Iremos mais à frente estudar alguns dos aspectos mais curiosos. Mas o mais importante, é que o dia-a-dia medieval era pouco diferente do que hoje temos e que muitos dos nossos hábitos alimentares provêm directamente deste período histórico. Sara Seydak 4 Religião – A trilogia do azeite, vinho e pão (alimentação Ibérica vs o resto da Europa) Na Idade média havia a uma preocupação constante por parte da Igreja em simbolizar o quotidiano e, por conseguinte, a alimentação também. Temos então, 3 alimentos que represenatavam para a religião cristã o símbolo perfeito da Santíssima Trindade: O pão, o vinho e o azeite. Para além destes 3, convém mencionar igualmente a enorme importância do porco. Os cristãos são a única religião que consome esta carne. Logo, o porco represenat o mundo cristão. O Pão O mais importante elemento alimentar da Santíssima Trindade. Este é o corpo de Cristo, aquele que Jesus partilhou com os seus discípulos no Monte das Oliveiras na sua última refeição. O pão era simplesmente feito a partir da fermentação natural da água com a farinha e à qual se vai acrescentando progressivamente mais água e mais farinha até se chegar à quantidade de massa desejada. É o denominado pão ázimo, ainda consumido hoje. Só em 1663 se inventou o fermento propriamente dito. Na sociedade medieval, os padeiros eram considerados “gente de valor para a sociedade”. Temo o exemplo na História portuguesa de valentes padeiras a defender a pátria, como a de Aljubarrota. Profissões como o padeiro, o moleiro e o forneiro eram profissões altamente valorizadas na sociedade medieval. Os seus instrumentos de trabalho, tais como os campos, os moinhos e os fornos eram taxados pela sua utilização e pertenciam quase sempre a um Senhor, para além dos fornos usados na produção caseira. Fazia-se pão em casa, no castelo, nas vilas, aldeias e cidades, nas tabernas e nos mosteiros. E as técnicas variavam: Nas cinzas, no forno, numa forma de barro, envolto em folhas de couve, frito numa frigideira, assado no espeto, etc. Mas o mais comum era a bucha, uma bola achatada na base. O comprado ao padeiro ou feito no forno comunitário levava uma marca para que pudesse ser reconhecido; era benzido, nunca tocava directamente a mesa, tendo sempre um pano a guardá-lo (referência ao pão sagrado da Bíblia) e não tinha sal por este ser caro. A ideia base era que o pão é Cristo e Cristo nos alimenta e, por conseguinte, os padeiros alimentavam o povo e daí serem os primeiros desta classe que não tiveram Senhor e nem podiam ser escravizados. Na Península Ibérica, o trigo prosperava devido ao clima ameno, mas em regiões mais frias, como o Norte da Europa, o cultivo era feito à base da cevada e do centeio e mesmo do sorgo (da família da milho comum ou milhete). Na Península Ibérica também se fazia farinha das castanhas e das alfarrobas. O nosso clima permitia um cultivo grande e fácil de uma panóplia de alimentos, havendo pouca escassez, comparativamente com o resto da Europa, e trazendo prosperidade. Segundo alguns textos, em média cada pessoa comia quase meio quilo de pão por dia e isto somente para os menos abastados. Imagine-se o que as classes superiores não ingeriam! Podemos, então, dizer que na Idade Média se comia muito pão. O pão (pão ázimo) era o alimento-rei. Todo o resto que se comia era praticamente um acompanhamento. Na Idade Média não havia substituto alimentar para o pão. Como diz Iria Gonçalves: “ Sem ele, e ainda que outros víveres não escasseassem, era a fome.” Como se vê, grande parte do esforço do Homem medieval ia para a produção dos cereais que não só serviam para o alimentar, através da farinha e do pão, mas também para alimentar o gado bovino e suíno. Toda a economia medieval volvia à volta dos campos cultivados com cereais. Sara Seydak 5 O Vinho Para entendermos o vinho temos que entender a água. A água sempre foi um objecto de desconfiança antes e durante a Idade Média, já que esta transmitia doenças, podendo inclusive causar morte se usada com frequência na higiene pessoal, por exemplo, ou na lavagem dos pratos, que para isso eram limpos com areia. Por isso, o Homem “inventou” outros meios para saciar a sua sede. Obviamente, o aumento e desenvolvimento do cultivo e uso da vinha deu-se de acordo coma as suspeições antigas sobre a água e até as crianças eram alimentadas a vinho. O vinho representa o sangue de Cristo, aquele que Ele derramou para nos salvar e portanto, a sua presença na mesa medieval não podia faltar. É o segundo elemento da Santíssima Trindade. O vinho era a bebida-rei, tal como o pão era o alimento-rei. Nenhum destes dois alguma vez faltava numa casa medieval, por mais simples que fosse. E mesmo com as invasões bárbaras, depois da queda do Império Romano, a viticultura foi mantida e até desenvolvida, principalmente pelos mosteiros; a sua tecnologia quase se manteve inalterada até ao século XIX. Haviam, já na Idade Média os mesmos géneros que hoje em dia: Tinto, branco, rosés, maduros, verdes, etc. E nem sempre era bebido puro; podia, e maioritariamente o era, cortado com água (meados ou terçados). Noutras partes da Europa, era a cerveja e as bebidas destiladas que substituíam o vinho, devido às condições climatéricas e, também, devido a particularidades culturais. Mas isto demonstra, mais uma vez, as facilidades de cultivo que a Península Ibérica tinha e tem. O Azeite O azeite é o último dos elementos da Santíssima Trindade, com qual luz se reconhece o caminho de Cristo e com o qual se unge aqueles que mais o merecem. Aliás, o nome Cristo vem do antigo grego e significa O Ungido. O uso do azeite para a iluminação tem uma explicação fácil, pois sofria de uma lógica puramente religiosa: a iluminação a azeite representa a presença do Espírito Santo e o afastar dos demónios. As superstições faziam com que sobre a cama das pessoas havia sempre uma lamparina acesa à noite. O azeite existia em abundância no Sul da Europa e em venda nos países que o importavam. A sua extracção dependia, obviamente, do cultivo da oliveira, que é uma árvore que só subsiste em solos de clima quente, e a sua exportação implicava uma perda da sua qualidade, chegando a países mais longe que a França de maneira rançosa, incolor e excessivamente caro. Os povos do Sul tinham a assim a possibilidade de se alimentarem mais saudavelmente. Porém, o azeite era, maioritariamente, usado para a iluminação e só aqueles com mais posses o podiam comprar regularmente para uso na culinária. Era a banha a gordura mais usada na confecção dos alimentos. Esta era acessível a todos, visto ser facilmente retirada das gorduras do porco que era um animal muito criado e muito consumido e tinha a vantagem de ser menos susceptível de se estragar tão rapidamente. Por motivos financeiros, climatéricos e de acesso à produção que no Norte da Europa era a manteiga a que era mais usada, tal como a banha, deixando de fora o azeite e a sua importância simbólica. Em conclusão, somente o pão tinha igual importância religiosa por toda a Europa. Mesmo que o vinho fosse de igual simbolismo, não era produzido no Norte e, por conseguinte, pouco consumido. Assim, a religiosidade destes 3 alimentos só funcionava na totalidade no Sul da Euorpa. Sara Seydak 6 Natureza – As Estações do ano e a agricultura (os alimentos frescos vs conservados) Como já havíamos mencionado anteriormente, na Idade Média dava-se preferência aos alimentos frescos, mas como o frigorífico ainda não havia sido inventado, o ser Humano teve que encontrar formas de guardar os alimentos durante longos períodos de tempo. Abaixo encontramos descritos os principais grupos de alimentos que eram preservados e o que era usado para os preservar. A Carne Quando não fresca, era salgada, seca ou fumada. Um porco morto no início do Inverno garantia carne para o resto do ano: fresca no inicio e o resto conservada nos conhecidos chouriços e salsichas. O porco estava associado ao Inverno por ser fácil a sua conservação, o borrego à Primavera (Páscoa) por causa dos nascimentos das reses nesta altura do ano e as restantes carnes para as restantes estações. Caçava-se muito e comiam-se muitas aves que não de criação. Os animais que hoje consumimos tinham grande valor na Idade Média porque davam a lã, os ovos, o leite e puxavam arados e carroças. Daí ser pouco o seu consumo. O Peixe O peixe era transportado em grandes tanques cheios de água em carroças, do mar e rios, para o interior. Também já existiam viveiros artificiais para a criação de peixe e para a existência deste sempre fresco nas mesas dos mais abastados. Também havia poços de grande envergadura, com gelo ou enterrados no subsolo, para manter o peixe fresco. Mas, muitas vezes o peixe chegava em más condições aos mercados longe das zonas de pesca e como já não era fresco, era visto com grande suspeita. O peixe fresco era muito caro e muitas das regiões do interior nem sequer tinham peixe no Verão, fazendo com que as regras religiosas parecessem sem sentido. Trabalhava-se este alimento de todas as maneiras possíveis para eliminar o seu sabor, principalmente quando não fresco: salgados, fumados, em escabeche, em vinagrete, etc. E, por conseguinte, os mais pequenos eram os mais apreciados. A salga e o fumeiro eram formas eficazes para a conservação deste alimento e fazendo com que certos tipos de peixe (o arenque, o salmão, o atum e o bacalhau) fossem muito apreciados. Enquanto que o bacalhau se associava ao Natal, o arenque era o alimento que simbolizava a quaresma. As Farinhas À parte das farinhas frescas, quando o pão estava seco era ralado. E a mistura das farinhas também não era prática incomum. Outras das técnicas para consumo de papas e farinha era a forma mal moída dos cereais (milhete, arroz ou trigo) que originava a sêmola (ou cuscuz para os árabes) ou colher a cevada quando verde e secá-la no forno. Esta última técnica permitia a utilização deste cereal quando não havia indícios que o seu cultivo iria ter sucesso e, por isso, era colhido cedo. Método normalmente usado pelos mais pobres e cujos vestígios ainda hoje se encontram em pratos confeccionados no Sul da actual Alemanha. Todos os frutos secos e as leguminosas eram muito utilizados como complementos alimentares no Inverno e em tempos de fome. Quando as produções de cereais não eram certas, fazendo oscilar os preços, ou quando o acesso a farinhas brancas não era igual para todos, eram as destes frutos secos que garantiam a feitura de pão. Para isso temos: Bolotas, alfarroba, pistachios, castanhas, pinhões, nozes, amêndoas, avelãs, figos, grão de bico, ervilhas, favas, sorgo, feijão (um certo tipo proveniente da época romana, talvez o carolino), etc. Sara Seydak 7 Os Lacticínios Dos animais, como as vacas, ovelhas e cabras, vinha a maior produção de leite e seus derivados, mais especificamente o queijo, quer fresco, quer curado, quer fumado, e a manteiga. Mas também se retirava leite da burra ou da porca e no Norte e Leste europeu do veado e do alce (ainda consumido hoje em dia em países como a Rússia e a Suécia). O leite quase que não teve sucesso no consumo diário medieval geral. O leite não era facilmente conservado e, logo, exposto ao ambiente azedando e podendo causar doenças. Ou era consumido na hora (principalmente o soro de leite e o leitelho ainda consumidos nalgumas regiões), ou, então, era substituído por leite de amêndoas para a culinária, ou era usado para outros fins. No Norte da Europa onde o clima era mais frio o leite e a manteiga eram mais consumidos, por permanecerem inalterados durante mais tempo. São esses outros fins que mais interessavam às pessoas na Idade Média: Os queijos. Estes mantinham-se inalterados durante longuíssimos períodos de tempo, havendo mesmo laguns que quanto mais pousavam, mais maturavam. Temos registo dos primeiros “profissionais do queijo” uma guilda na França no século XIII. O Açúcar, o Mel, as Especiarias e o Sal O açúcar (de cana) já vinha sendo usado desde os tempos da ocupação muçulmana na Europa. Cultivada em África, existem registos de que os romanos também utilizavam este condimento. Pensa-se que foi trazida para o Ocidente por um cruzado que se alimentou de um pedaço de cana durante um cerco. Mas para os cristãos sempre foi considerado um ingrediente de alto luxo. Por seu lado, o mel era um produto que se obtinha facilmente, quer em estado selvagem, quer através da apicultura e, para muitos, era a única fonte adoçante, tal como as regiões no Norte europeu que não tinham tantas facilidades de importação do açúcar. Foi usado na culinária até ser substituído pelo açúcar. Estas duas formas não só serviam para o desenvolvimento da doçaria, mas também para conservação de alguns alimentos, como a fruta. Consumiam-se compotas, marmeladas (que vem da palavra portuguesa marmelos muito comido no período medieval) e a fruta cristalizada ou conservada em água adocicada fervente, com especiarias. As especiarias que também eram conhecidas na Idade Média como cheiros ou aromas estão divididas em duas categorias: as indígenas, aquelas que chamamos ervas aromáticas, como o endro, o louro e outra ervas típicas de cada região (os jardins eram uma parte obrigatória de cada cozinha medieval), e as exóticas, que ainda hoje designamos como especiarias e provinham dos mais longínquos lugares, como a pimenta preta, pimenta longa, o açafrão, a canela, etc. e serviam, Igualmente, para preservar os alimentos. Sal que também era conhecido como “ouro branco” na Idade Média e era catalogado como especiaria. Tinha duas origens: ou vinha do mar (ou lagos salgados) ou do subsolo. Era usado, principalmente, como fonte de conservação permitindo que o ser humano não dependesse dos alimentos frescos e tivesse acesso aos mais variados bens alimentares ao longo do ano. Em conclusão, os alimentos que mais sofriam com a falta de técnicas de preservação eram os legumes, fora alguns que eram preservados em vinagrete. Também a fruta seguia esta linha, mas vimos que alguma era conservada em compotas ou então cristalizada. Podemos então dizer que a conservação dos alimentos era uma das preocupações centrais do Homem medievo. Sara Seydak 8 Classes sociais – A carne e os legumes (Nobreza vs Povo) A Carne Era também um produto caro, difícil de produzir que provinha de animais considerados úteis e, mesmo assim, era o produto mais consumido depois do pão. O facto de estar associada a imagens de sangue, da presa e do caçador, do jogo e, por conseguinte, à guerra, era o alimento maioritariamente preferido e usado em acampamentos militares, principalmente a fresca, assada directamente sobre o fogo porque estava intimamente associada à classe nobre e detentora de poder, especificamente a classe nobre combatente (belatores), enquanto que a carne salgada era para se cozer e, por conseguinte, usada por aqueles que não tinham acesso à carne fresca todos os dias, usada em tempos em que a caça ou a criação não eram abundantes e igualmente usada pela nobreza campestre. Privar um guerreiro de carne vermelha era humilhá-lo e submetê-lo ao castigo. A verdade é que mesmo sendo amplamente consumida, o acesso à carne era difícil para quem não tinha recursos. Os legumes eram mais consumidos pelos humildes. E à medida que a produção de cereais foi aumentando deixou de haver pastagens suficientes para a criação de gado bovino, fazendo com que o acesso à carne fosse ainda mais estrita e que fosse praticamente só consumida na urbe e pelos ricos. Sabemos que nesta altura se preferia a caça à criação, já que os animais criados tinham outras funções pois davam o leite, os ovos, a lã e permitiam o seu uso para as tarefas pesadas. O povo usava os bois para animal de tracção, para as carruagens e para o campo, e não podia usufruir do luxo de matar as suas reses para alimento. Tal só acontecia quando o animal estava velho ou doente de mais para trabalhar. Por isso, as pessoas utilisavam os bosques, as matas e os rios para a sua sobrevivência, pois destes se retiravam a madeira, o peixe, os animais silvestres, as plantas, as bagas e os cogumelos. Daí a alimentação do homem comum ser maioritariamente à base de vegetais (também devido ao cultivo da hortaliça ser mais fácil). Já pelo contrário, a carne de porco era incluída num bem diferente sistema de crenças. Embora a carne de vaca fosse a mais apreciada, era a de porco que era mais consumida porque era de fácil produção e de grande rentabilidade. E todo o camponês tinha pelo menos um a rondar a casa. Mesmo na cidade havia quem tivesse um porco. Os Legumes Os legumes sempre tiveram reputação fraca. Não eram considerados alimentos vigorosos na opinião medieval e às vezes eram culpados por doenças. Por isso, eram sempre cozinhados, mesmo a alface. Comummente foram vistos, durante muito tempo, como indigestos e até perigosos podendo provocar a morte com os seus possíveis venenos. Este era o pensamento herdado pelas gerações passadas que desconheciam os benefícios, quer nutritivos, quer medicinais, das plantas em geral. Contudo, depois dos cereais, eram o segundo acompanhamento às carnes e eram vistos pela Igreja cristã como o exemplo da modéstia à mesa. Mas isso não contribuiu para o facto das mesas fartas deixarem de ser representadas pela carne. Os legumes estavam classificados em dois grupos: os que eram destinados às classes mais privilegiadas (todos os frutos e legumes que cresciam longe do solo) e os que deviam ser consumidos pelas classes mais baixas (os que cresciam principalmente do solo). Podemos dizer que a classificação era da árvore à cebola. Eram de mais fácil acesso que a carne, quer pelo facto de serem cultivados nos arredores da casa e algumas verduras poderem ser apanhadas nos bosques, quer por terem maior produtividade no seu cultivo, quer pelo facto das carnes serem um símbolo da classe nobre. E eram estas as razões principais por serem a base da alimentação dos Sara Seydak 9 menos ricos que, na maior parte das vezes, tinham as verduras e os legumes como prato principal e não a carne e o peixe. Os legumes eram directamente opostos à carne, da mesma maneira que os incultos eram aos cultos, o povo à nobreza, o Sul ao Norte, os pagãos à Igreja. Toda uma simbologia social europeia revolvia à volta dos legumes e verduras: Aqueles que viviam rodeados por bosques e que não cultivavam o solo eram, por conseguinte, incultos; aqueles que só caçavam e tinham um animal como seu símbolo máximo eram sanguinários e, como tal, pagãos; os que somente tinham acesso aos legumes eram pobres ou deficientes; os que passavam a vida atrás de um arado eram diferentes dos que passavam a vida atrás de uma espada. Não havia um consenso generalizado: Pecava-se por consumir e por não consumir legumes. Quem deteve o papel unificador foi, mais uma vez, a igreja cristã, principalmente os monges que apregoavam uma vida baseada na simplicidade e frugalidade. Com os seus jardins e hortas, as ordens religiosas mantiveram, até ao dia de hoje, a variedade genética destes alimentos, manipulando e cultivando novas espécies. Haviam certos legumes que detinham o primeiro lugar na alimentação básica medieval, principalmente os farináceos e as leguminosas. Está-se a falar da fava, das ervilhas, do grão-de-bico e da lentilha, talvez por terem a capacidade de encherem mais a barriga ou de engrossarem mais o caldo. Embora também fossem consumidos frescas, estas leguminosas eram apreciadas pela sua capacidade de se conservarem secas. Temos, então, exemplos mais que lógicos do consumo de legumes na Idade Média. Mesmo que sofressem de largas contradições, os legumes nunca foram descurados na alimentação medieval. Sara Seydak 10 Em cima à esquerda, a recolha de favas (Tacuinum Sanitatis, 1385). Ao lado, mulher a fazer manteiga (Facsimile de uma miniatura da Abadia de Solignae, França, séc. XIV). Em baixo à esquerda, imagens de couve, cânhamo e cardo (Le Livre des Simples Médecines, 1480). Ao lado, a recolha da pimenta (Le livre des merveilles de Marco Polo, séc XV). Sara Seydak 12 Em cima à esquerda, mulheres a fazerem massas (Tacuinum Sanitatis, 1385). Ao lado, imagem de gengibre (Le Livre des Simples Médecines, 1480). Em baixo, familia a preparar queijo (Tacuinum Sanitatis, 1385). *Imagem da capa, iluminura do séc. XIII revelando um monge a roubar e beber vinho da adega. Sara Seydak 13 INGREDIENTES E RECEITAS DA IDADE MÉDIA O que havia na Idade Média* O que não Havia na Idade Média* Leite e produtos lácteos Rúcula Uvas Batatas Ovos Alface Melões Pimentos Arroz Nabos Óleo de linhaça e outros óleos Pepinos Leite de amêndoas Rabanetes Açúcar Espinafre Rebentos de abóboara Courgettes Abóbora Menina Grande maioria das abóboras Chila Tomate Feijão (carolino, Feijão rocha,) Todo o tipo de bivalves Acelgas e crústáceos Girassol Truta Agriões Milho-miúdo/ Milho-Maíz Milhete/Sorgo Atum (Mediterraneo) Râbano Enguias Couves (galega, lombarda, etc) Salmonetes Lentilhas Baleias Ervilhas Rodovalho Alcachofras Figos Polvo Aipo Romãs Sardinhas Cenouras Ameixas Peixe-agulha Alho-porro Alperces Douradas Favas Pêsssegos de roer Cação Grão-de-bico Cerejas Bacalhau Espargos Limão Espadarte Cebolas Laranjas Sabogas Beringelas Arenques Alho Esturjão Cogumelos Moreias Trufas Solhas Porco Sável Perdiz Bananas Morango silvestres Morangos (China) Piri-piris que vinham Alguns tipos de de África piri-piri que vinham das Américas Frutos silvestres Kiwis Amendoins Safio Galinha Pescadinhas Borrego e cabrito Salmão Vitela * Relativamente aos produtos que eram consumidos na Idade Média, devem-se considerar todos os que existiam cá antes das Descobertas. A entrada de novos produtos deu-se com a descoberta dos “Novos Mundos” e, mesmo, assim, levou alguns séculos para que começassem a ser consumidos. Ou seja, em Portugal consumia-se tudo o que os romanos e os muçulmanos para cá trouxeram e tudo o que naturalmente cá crescia. Algumas receitas como o massapão (massa feita de amêndoa ralada misturada com açucar ou com mel), maremlada, bolo-rei (bolo feito na Roma Antiga nas festas dedicadas ao deus saturno), empadas, tempura (receita associada ao Japão, mas que já era feita muito antes cá passando carnes, peixes e verduras por uma massa fina de farinha e água e depois fritando-os), etc, já eram feitas na Idade Média e nunca deixaram de fazer parte da nossa tradição. Abaixo alguns peomas e canções que fazem referência a comida, cantados na Idade Média: “Eu te untarei as minhas obras com toucinho Para que não as mordas, Gongorilla, Cão dos Engenhos de Castilla, Douto em pulhices, qual vadio do caminho.” Poema maldozo dedicado a um judeu chamado Luiz de Góngora, escrito por Francisco de Quevedo, fazendo referência ao facto dos judeus não comerem carne de porco. “Se as favas tivessem cornos, aravam.” “As favas fazem as mulheres bravas.” Partes de cantigas de taberna que reflectiam a quantidade de favas consumidas na Idade Média e as suas capacidades de produzir flatulência. “Nisso, deasforada como uma cara de sexta-feira, que pudesse ser acelgas, entre lentilhas e arenques.” Mais um poema de Francisco de Quevedo relatando o facto de se consumir lentilhas às sextas-feiras, por ser proíbição cristã consumir carne neste dia. Sara Seydak 15 BIBLIOGRAFIA Aguilera, César; “A história da Alimentação Mediterrânica”; Tradução: Nogueira Gil, Joaquim A. ; ed. Terramar; 1997 Dembinska, Maria; “Food and drink in medieval Poland – rediscovering a cuisine of the past”; Tradução: Thomas, Magdalena; University of Pennsylvania Press; 1999 Flandrin, Jean-Louis; Montanari, Massimo; “História da alimentação, Tradução: Maria Graça Pinhão; Vols. I, II”; ed. Terramar; 1998 Garcia, L. Jacinto; “Comer como Deus manda”; Tradução Luis Filipe Sarmento; Noticias editorial; 1999 Gies, Joseph & Frances; “Life in a Medieval Castle”; Perennial; 2002 Gonçalves, Iria; “Estudos Medievais – Entre a abundância e a miséria: Práticas alimentares na Idade Média portuguesa”; Livros Horizonte; Lisboa; 2004 Jacob, Heinrich Eduard; “6000 Anos de Pão”; Tradução: José Justo; Antígona/ Frenasi; 2003 Kanka, Mascha; “Brot und Brötchen aus der eigenen Backstube”; Weltbild; 1997 Laurioux, Bruno; “A Idade Média à mesa”; tradução P.E.A.; publicações Europa América; 1989 Mattoso, António G. ; “Compêndio de História Universal – 4º ano”; Lisboa; 1951 Rocha, Rui; “A Viagem dos Sabores – século IX – XIX”; edições Inapa; 1998 “Libro de Sent Soví”; Barcelona; Tradução: Maurici Vives; MC ediciones, 2008 “Receitas Medievais”; publicação comemorativa da Feira Medieval de santa Maria da Feira de 2008 http://recipes.medievalcookery.com/ http://www.godecookery.com/godeboke/godeboke.htm http://www.daviddfriedman.com/Medieval/Cookbooks/Menagier/Menagier.html#Com m http://expositions.bnf.fr/gastro/enimages/salle2/index.htm Sara Seydak 16 Sara Seydak 17 Sara Seydak 18 Sara Seydak 19 Sara Seydak 20 Sara Seydak 21 Sara Seydak 22 Sara Seydak 23 Sara Seydak 24 HIPPOCRAS 1L de vinho tinto doce 2 chávenas de chá de mel 1 colher se sopa de (ralado ou em pó): canela cardamomo gengibre pimenta branca noz moscada cravinho erva-doce Ferver o vinho com o mel. Retirar a espuma. Retirar do lume. Colocar as especiarias. Deixar descançar durante 24 horas. Durante este tempo via-se formar uma camada densa de especiarias no fundo do tacho que não deve ser misturada com o vinho. Ao engarrafar, deve-se passar o vinho por um coador e várias camadas de pano e ter atenção para que o fundo não passe também. Preparar o Hippocras com pelo menos 1 mês de antecedência. Quanto mais tempo tiver para amadurecer, melhor. Sara Seydak 25