INSTITUTO FEDERAL MINAS GERAIS – IFMG
CAMPUS OURO PRETO
DIRETORIA DE GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
COORDENADORIA DE GEOGRAFIA
RÚBIA DE PAULA RÚBIO
EM BUSCA DE SOMBRAS QUE NÃO OBSCURECEM UMA LUTA:
NARRATIVAS DE VIDAS ESPACIAIS DOS ASSENTADOS E ASSENTAMENTO
CAFUNDÃO, MARIANA-MG.
OURO PRETO
MINAS GERAIS - BRASIL
2012
i
RÚBIA DE PAULA RÚBIO
EM BUSCA DE SOMBRAS QUE NÃO OBSCURECEM UMA LUTA:
NARRATIVAS DE VIDAS ESPACIAIS DOS ASSENTADOS E ASSENTAMENTO
CAFUNDÃO, MARIANA-MG.
Monografia apresentada ao Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais,
Campus Ouro Preto, como parte das exigências do
Curso de Licenciatura em Geografia, para a
obtenção do título de Licenciado.
Orientador:
Professor Ms. Patrício Pereira Alves de Sousa
OURO PRETO
MINAS GERAIS - BRASIL
2012
ii
Rúbio, Rúbia de Paula
R896e
Em busca de sombras que não obscurecem uma luta: Narrativas
de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão
(Mariana – MG) [manuscrito] / Rúbia de Paula Rúbio. – 2012.
99 f. : il.
Orientador: Prof. Patrício Pereira Alves de Sousa
Monografia (Graduação) – Instituto Federal Minas Gerais,
Campus Ouro Preto. Licenciatura em Geografia.
1. Assentamentos Humanos (Mariana – MG). – Monografia. 2.
Questões Sociais e Culturais. – Monografia. 3. Memória Cultural. –
Monografia. 4. Espaço (Geografia). – Monografia. 5. Lugar
(Geografia). 6. Narrativas (Cultura) – Monografia. 7.
Representações (Cultura). – Monografia. I. Sousa, Patrício Pereira
Alves de. II. Instituto Federal Minas Gerais, Campus Ouro Preto.
Licenciatura em Geografia. III. Título.
CDU 304:711.3
Catalogação: Biblioteca Tarquínio J. B. de Oliveira - IFMG – Campus Ouro Preto
iii
RÚBIA DE PAULA RÚBIO
EM BUSCA DE SOMBRAS QUE NÃO OBSCURECEM UMA LUTA:
NARRATIVAS DE VIDAS ESPACIAIS DOS ASSENTADOS E ASSENTAMENTO
CAFUNDÃO, MARIANA-MG.
Monografia apresentada ao Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais,
Campus Ouro Preto, como parte das exigências do
Curso de Licenciatura em Geografia, para a
obtenção do título de Licenciado.
APROVADA EM: 05 de novembro de 2012.
__________________________________
Prof. Ms. Eduardo Henrique Modesto de Morais
___________________________________
Profa. Ms. Lidiane Nunes da Silveira
___________________________________
Prof. Ms. Patrício Pereira Alves de Sousa
(Orientador)
OURO PRETO
MINAS GERAIS - BRASIL
2012
iv
À Exú, Senhor dos Meus Caminhos.
Acompanhe-me!
v
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente a:
Assentados do Cafundão, que se abriram de corpo, alma, pulsações e
representações.
Minha família: papai, mamãe e irmãos – cobrança e confiança silenciosas,
consolo e aconchego.
Professor Patrício Pereira Alves de Sousa, meu Oriente – sem dúvida, o maior dos encontros.
Obrigada por todo o carinho, incentivo, inspiração e força.
Professores
Venilson, pela inquietação;
Raquel, pela doçura e serenidade;
Fernando, pelas ricas conversas e incentivo;
Lidiane, por alimentar anseios;
Fábio, pela busca tangente;
Leonel, pelos risos em meio a dramas;
Lucas, por toda atenção;
Eduardo, pela leveza;
Eliana, pela competência.
Aos funcionários da Emater-MG , da Emater-Mariana e da Câmara Municipal de Mariana,
pela atenção e contribuição.
vi
Com o perdão de uma não-rememoração no momento em que escrevo,
mas nunca, jamais, de um esquecimento:
Queridos Olguinha e Binho, pelo Trio.
Péde, Renatinho, companhias amigáveis.
Nathy, Sarinha, Rafinha, Thami, amizades sinceras
Renatinha, alegria que contagia.
Minhas lindas Ane Elize e Aninha Gabrielly, Vovós, e demais familiares.
Anandita, Esiozinho, Rodrigão, Erivelton, Edir, loja J’adore,
compuseram meu processo de busca.
Tchutchucos-estudantes, colegas geografandos e demais professores,
por toda atenção.
À Cunha, pela reciprocidade.
Amigos conquistados e amores vividos e interrompidos, obrigada por se tangenciarem a
minha vida – pertencendo, não transitoriamente,
ao meu drama!
vii
O avesso da memória. Esta história aconteceu de
verdade.
As
personagens
também
não
foram
inventadas. Elas não disseram, muito provavelmente,
aquilo que eu as fiz dizer. Não importa; como não
sabemos exatamente o que disseram, podemos imaginar.
Só assim pode-se contar, fazendo dialogar verdade e
imaginação...”. (Nivaldo, O Amigo, em O avesso da
memória)
viii
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS:
ABNT
Associação Brasileira de Normas Técnicas
ACAR
Associação de Crédito e Extensão Rural
ACC
Associação Cooperativa de Cafundão
CETEC
Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais
CLT
Consolidação das Leis de Trabalho
CONTAG
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura.
CPI
Comissão Parlamentar de Inquérito
EMATER
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
EMATER-MG
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais
ETR
Estatuto do Trabalhador Rural
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFMG
Instituto Federal Minas Gerais
IFMG-OP
Instituto Federal Minas Gerais, campus Ouro Preto
INCRA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MAB
Movimento dos Atingidos por Barragens
MAPA
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
MDA
Ministério do Desenvolvimento Agrário
MG
Minas Gerais
MST
Movimento dos Sem-Terra
NBR
Norma Brasileira
NEAD
Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural
PA
Projeto de Assentamento
PCB
Partido Comunista Brasileiro
SAF
Secretaria de Agricultura Familiar, do MDA
S/D
Sem data
SDT
Secretaria de Desenvolvimento Territorial, do MDA
SERFAL
Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia
Legal, do MDA
SE
Secretaria Executiva, do MDA
SIPRA
Sistema Institucional do Programa de Reforma Agrária
7
S/N
Sem número
SPOA
Sub-Secretaria de Planejamento, Orçamento e Administração, do MDA
SRA
Secretaria de Reordenamento Agrário, do MDA
TCC
Trabalho de Conclusão de Curso
8
RESUMO
RÚBIO, Rúbia de Paula. Em busca de sombras que não obscurecem uma luta: narrativas
de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão, Mariana-MG. Licenciatura
em Geografia. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais –
Campus Ouro Preto, novembro de 2012. Orientador: Patrício Pereira Alves de Sousa.
Esta pesquisa se propõe a tangenciar diferentes formas de representação da luta pela
terra que culminou no assentamento Cafundão, localizado no município de Mariana, Minas
Gerais. Foram consideradas as representações que os assentados possuem de sua luta,
dialogando com outras que se tem sobre a luta e sobre os assentados. Ou seja, trata-se de uma
textualização polifônica na medida em que se busca considerar as falas dos assentados
atravessando-se com o que se fala dos assentados. Para tanto, inquiriu-se por registros
documentais que manifestassem formas interpretativas dos contextos dos quais o Cafundão
poderia fazer parte, bem como algumas formas de representação sobre os assentados e sobre a
luta pelo assentamento. Foram consideradas as abordagens do Estado-Prefeitura, da Igreja
Cristã da Arquidiocese de Mariana e um ponto de vista da mídia expressa no jornalismo local,
que compõem uma das possibilidades existentes. Por esse motivo, foram visitados jornais e
documentos que não expressam necessariamente a opinião da Instituição à qual se vinculam,
sendo eles: os jornais O Arquidiocesano (1972-1983), O Monumento (1989-1991), O Liberal
(1994 - 2004) e O Ruralista (1983-1993), as Atas de Reunião Ordinária e Extraordinária da
Câmara Municipal de Mariana (1989 - 1998); e os artigos que foram escritos mencionando-se,
em poucas linhas, o assentamento Cafundão. Esse tangenciamento polifônico se pautou em
formas de representação que se dão também a partir de sua rememoração, seja se dando
através de oralidade, seja através de documentação. Fala-se de memórias, memórias da luta:
polifônicas, particulares e em movimento. Em razão disso, essa pesquisa se pautou na
textualização de memória para a apreensão da espacialidade da luta, através da construção de
narrativas de vidas espaciais, que serviu como orientação teórico-metodológica a essa
pesquisa.
Palavras-chave: Memória; lugar; espaço; Assentamento Cafundão; representação.
9
ABSTRACT
RÚBIO, Rúbia de Paula. Em busca de sombras que não obscurecem uma luta: narrativas
de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão, Mariana-MG. Licenciatura
em Geografia. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais –
Campus Ouro Preto, novembro de 2012. Adviser: Patrício Pereira Alves de Sousa.
This research proposes to approach different forms of representation of the struggle for
land that culminated in the settlement Cafundão, located in the municipality of Mariana, state
of Minas Gerais. The representations that the settlers have about their fight were considered,
comparing to other representations about the struggle and the settlers. In other words, the
research is a polyphonic textualization as it considers the speeches of the settlers crossing
with what is talked about them. The documentary records evaluated were the ones that
manifested interpretative forms of the contexts in which Cafundão could be a part of, as so as
some representation forms about the settlers and the struggle for the settlement. The
approaches put in agenda were the ones from the State-Hall, the traditional Christian Church
of the Archdiocese of Mariana and the point of view of the media expressed through the local
journalism, which composes one of the existent possibilities. For this reason, this analysis
sought newspapers and documents that don’t necessarily express the opinion of the
Institution which they were linked to, namely: O Arquidiocesiano (1972-1983), O
Monumento (1989-1991), O Liberal (1994-2004) and O Ruralista (1983-1993), the Minutes
of the Regular and Special Meeting of Mariana’s City Hall (1989-1998); and finally the
articles written that mention in a few lines the settlement Cafundão. This polyphonic approach
was based in forms of representation that were also constituted by their own recall through
speech or documentation. Memories are risen, memories of the struggle: polyphonic,
particular and moving. Thus, this research built its agenda on the textualization of memory to
comprehend the spatiality of the struggle, through the construction of narratives of spatial
lives (LINDÓN, 2008), that was useful as theoretical-methodological orientation for this
study.
Keywords: Memory, place, space, settlement Cafundão; representation.
10
SUMÁRIO
Lista de Abreviaturas
07
Resumo
09
Abstract
10
INTRODUÇÃO
12
Sombras que não obscurecem: sombreamentos de uma luta
I.
PINGUELAS: a contextualização de uma metodologia.
I.1 Elucidações II
16
16
I.2 Muletas Teóricas
17
I.3 Falas Plurais e pinguelas.
I.4 Contextualização da metodologia de pesquisa: narrativas de
vidas espaciais;
I.4.1 Construção textual: etapas e procedimentos
27
II. TANGENCIAMENTOS: cenários e sociogênese.
32
37
42
II.1 Elucidações I
42
II.2 A historicidade da concentração de terras no Brasil: amplitudes
e tensões
43
II.3 Elementos embasadores da historicidade da concentração de
terras: agrário e agrícola em uma questão brasileira
II.4 O assentamento Cafundão e o inquérito por contextos
sociogênicos;
III.
12
NARRATIVAS DE VIDAS ESPACIAIS
49
55
60
III.1 Elucidações III
60
III.2 A Terra: questão de posse.
64
III.3 A Terra: tensões
74
III.4 A Terra: questão de pertencimento.
79
III.5 Os assentados e o assentamento Cafundão: o ser-assentado. ..
87
CONSIDERAÇÕES: Aberturas e leituras.
90
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
93
11
Introdução
“[...] as aparências das coisas mudam segundo os estados de
ânimo”.
(Jorge Luis Borges).
Sombras que não obscurecem: sombreamentos de uma luta.
Sombras são o seu movimento. São trânsitos, sendo também olhares particularizados.
Aparecem de forma dependente de onde se olha. Não são situações que se impõe ao olhar,
que impede o mirar devido à ausência de luz, ou o contrário, que revela obviedades a partir de
clareamentos. Sombras se criam através do olhar, pois é dependente de quem olha, como se
olha, de onde se olha, e o que se pretende ver a partir do olhar. Sombreamentos surgem no
exercício do olhar. Em uma investidura, há em si sombreamentos.
A ideia de sombra é inerente à particularização do olhar. Se são olhares específicos,
sua textualização também haveria de ser. Textualização é uma representação de
representações apreendidas por olhares. Textualização como voz revela polifonia. Múltiplos
olhares, incontáveis representações e diversas vozes. Busca-se, portanto, polifonias. São
polifonias de uma luta e, pois, sombreamentos. Sombreamentos de uma luta - como
expressão, sugere a absorção de particularidades. Mas, se trata de qual luta? Nessa pergunta,
há envolvidos. Busca-se por sombreamentos de uma luta pela criação do assentamento
Cafundão, localizado em Mariana, Minas Gerais.
Objetivo inquirir por representações que são feitas da luta pela terra que culminou no
assentamento Cafundão, a partir da investigação de representações que os assentados possuem
de sua própria luta, daquelas representações que se tem dessa luta e da investigação sobre
elementos contextuais que compõe a sociogênese do assentamento. Ou seja, a partir dessa
textualização, almejo tangenciar as representações apreendidas dos assentados, aquelas que
são sobre os assentados e as representações que se entrelaçam à construção do espaço do
assentamento. Dessa forma, na tentativa de investigar diferentes interpretações sobre a
sociogênese do assentamento Cafundão, foram consideradas a existência de várias vozes que
narram o mesmo tema, que aqui é o assentamento. Vozes que expressam representações.
Considera-se, de forma hipotética, que essas vozes que denunciam sociogênese se relacionam
12
às motivações e ao desenrolar da luta, às formas como essas estão expressas através de
memórias e, evidentemente, a como esses elementos são imaginados e expressos nos
discursos e também nos silêncios. Nesse sentido, buscou-se por escritos e autores que
contribuíssem a interpretações do contexto no qual o assentamento está inserido, que se
enveredou pela elucidação do sentido de ser da política de assentamento que emerge do painel
de desigualdade fundiária percebida na construção do espaço brasileiro. Inquiri por registros
documentais que manifestassem formas de representação sobre os assentados e o sobre a luta
pela terra, na consideração de abordagens do Estado-Prefeitura, da Igreja Cristã da
Arquidiocese de Mariana e um ponto de vista da mídia expressa no jornalismo local, que
compõem uma das possibilidades existentes. Por esse motivo, foram visitados jornais e
documentos que não expressam necessariamente a opinião da Instituição à qual se vinculam, e
que aqui compuserem as representações da luta. Indaguei, em idas ao assentamento, sobre a
luta, sobre o desenrolar dela, sobre suas motivações e outras perguntas que não seguiam um
roteiro estruturado, mas norteou-se pela investigação de representações da luta.
Contudo, evidencio que essa textualização – que é a monografia - não pretende ser a
História da luta, em seu sentido verídico e coeso. O anseio é outro. Pretende-se construir
narrativas da história de luta desses assentados, considerando que suas vidas se atravessam ao
espaço que os construiu e que também foi construído por eles. Narrativas construídas no
movimento desta pesquisa. Por isso, concebe-se como orientação teórico-metodológica a
construção de narrativas de vidas espaciais (LÍNDON, 2008) dos assentados, sobre os
assentados e do assentamento Cafundão. Essa orientação fornece os movimentos e os olhares
particulares que foram julgados necessários à apreensão de representações e, pois, à
construção dessa textualização como outra forma de representação.
Por se voltar à apreensão de representações, aqui será considerado que essas se movem
a partir do processo de rememoração. Em outras palavras, as representações carregam em si
memórias que as identificam, moldam, constroem. Fala-se de memórias, memórias da luta:
polifônicas, particulares e em movimento. Em razão disso, esta pesquisa se pautou na
textualização de memória à apreensão do espaço, compondo o que se chamou aqui de
narrativas de vidas espaciais.
Narrar vidas? Narrativas. Para além de o mero contar ou reproduzir, chamo à baila o
movimento que é possível a esse verbo. Narrativas sugerem construção, movimento, hibridez.
Podem ser desencaixadas e assimiladas por espaços-tempos diferentes. São particulares e
plurais. São tangenciamentos possíveis entre as formas de representação. Busca-se por
sombreamentos capazes de serem representados pelas narrativas.
13
O Cafundão guarda em si diversas representações. O meu olhar se voltou ao
assentamento Cafundão no momento em que fui posta ao seu encontro, numa visita de campo
através da disciplina Geografia Agrária. Mas, o meu olhar sobre ele já estava sendo
construído, a despeito de ainda não conhecê-lo. Como assentamento de reforma agrária, ele
guarda em si imagens e paisagens muitas vezes oriundas daquelas criadas em relação à
expressão reforma agrária. O assentamento, como resultante direto dessas noções reformistas,
guarda, inventa e tensiona em si e através de si diversas representações.
Esse assentamento foi resultado de uma luta pela terra que, aqueles que são hoje
assentados, já consideravam como suas. Uma luta por uma terra que já era também lugar.
Localizado no município de Mariana, Minas Gerais, as terras do Cafundão fizeram parte dos
tensionamentos inerentes à construção do espaço marianense. Resultante direto de uma
política geral de assentamentos de reforma agrária, o Cafundão oferece subsídios para se
pensar na maneira como tais políticas se expressam nos lugares e, nesse caso, no contorno que
ela assumiu perante a importância dessas terras para essas pessoas, que nela sempre viveram,
trabalharam, e imprimiram seus códigos culturais. A consideração polifônica e a construção
de narrativas almejam, justamente, compreender essas representações que são criadas em
torno da luta pela terra.
As aberturas eminentemente geográficas, e que não pressupõe serem exclusivas da
geografia, permitem o atravessamento de olhares. As visões de aberturas são visões de
sombreamentos e, por isso, dependentes de quem, como e de onde se vê. As lentes
geográficas, que foram aqui escolhidas, permitiram o trânsito entre a minha impressão e
representação, através dessa textualização. Os sombreamentos da luta foram buscados a partir
do olhar que os assentados possuem sobre si e sobre sua história, os olhares que se percebeu
sobre os assentados, e a espacialidade do Cafundão como mais uma forma de representação.
Busca-se, pois, o tangenciamento entre as formas interpretativas de verem essa história.
E, por isso mesmo, essa textualização haveria de considerar a construção de narrativas
espaciais concebendo-se, na polifonia do espaço, a voz dos assentados, a voz que se fala dos
assentados e a voz que se intersectam ao assentamento Cafundão. As terras do Cafundão,
muito além de terras concedidas aos beneficiários de uma política de assentamento de reforma
agrária, se configuram em terras que possuem memórias, paisagens, sentidos territoriais,
sentimentos de lugar – compondo sua expressão espacial. A narrativa espacial é uma forma
que permite perceber o entrelaçamento da vida ao espaço, tangenciando-os de tal forma que
torna difícil a separação. Esse entrelaçamento requer que se contextualize o sentido de ser
14
desse espaço, percebendo tensionamentos, por que são construtores de espaço. Por esse
motivo, a textualização foi construída da seguinte forma.
No Capítulo 1, Pinguelas: a contextualização de uma metodologia, se elucidará sobre
o papel da memória na construção do espaço e da espacialidade, justificando o porquê de se
debruçar sobre as representações da história da luta pelos assentados e através do que se fala
dos assentados, convergindo também com interpretações sobre o contexto espacial do
assentamento. Essas formas de investigação justificam a opção pela a apropriação e a
tentativa de construção de narrativas de vidas espaciais como orientação teóricometodológica.
Já no Capítulo 2: Tangenciamentos: cenários e sociogênese, dialogo a questão da terra
e as maneiras como esta é tratada ao longo da construção do espaço brasileiro. Por
consequência, poderá se perceber o sentido de ser da política de criação de assentamentos.
Como também, reside aí uma possibilidade de compreender o contexto no qual o
assentamento Cafundão está inserido, a partir do diálogo polifônico entre as vozes aqui
representadas. Essa contextualização também subsidia o sentido de ser de uma sociogênese,
conforme será discutido ao longo do texto.
Prossigo no Capítulo 3 Narrativas de vidas espaciais com a proposta desta pesquisa
que é o diálogo e o atravessamento entre as representações da luta pela terra dos assentados
do Cafundão, me incluindo como uma dessas formas. Busquei criar diálogos entre as
representações dos assentados, entre representações que se tem dos assentados e as
interpretações que se faz do assentamento. Atentei-me para não exaltar as representações da
luta das pessoas que são eixo desse meu estudo – os assentados do Cafundão -, como também
para não estabelecer entre as diferentes representações relações de veracidade e
inautenticidade.
Nas Considerações: aberturas e leituras são destacadas as ressalvas desta pesquisa e
também as aberturas de possibilidades de outros estudos ensejados por esse.
15
Capítulo I:
Pinguelas: orientação teórico-metodológica.
“Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu,
por instinto de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais
depressa ao entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi
chamado de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é:
uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu
problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em
"humildade" refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a
poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da
plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à
humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei
com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com técnica
é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela
não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não
deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é
pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai
como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme
desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à
vida, faz perder muito tempo” (Clarice Lispector, em Escrever,
Humildade, Técnica)
I.1 Elucidações I.
Na Introdução expus de forma geral qual foi o objetivo desta pesquisa, que nasceu da
abertura de pensamento proporcionada pelo curso que escolhi - geografia. Talvez se tivesse
optado por outra formação acadêmica, o meu olhar não estaria direcionado nesse sentido que
estou perfazendo. Há aqui, pois, uma pesquisa sendo textualizada através de lentes que foram
construídas ao longo do tempo de vida e experiência-de-mundo da pessoa que escreve, que
sou eu. Desse modo, faz-se necessário esse posicionamento do Eu para que o Outro seja
considerado: essa consideração da alteridade será mais adiante devidamente discutida.
16
Nesse capítulo, elucidarei sobre algumas muletas teóricas chamadas a auxiliar na
verbalização de significados que se pretende sistematizar e sobre as formas como esta
pesquisa será textualizada, ou seja, se discutirá sobre a escolha da orientação teóricometodológica, para então, se passar, nos próximos capítulos, ao que está sendo edificado aqui
como narrativas de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão, numa tentativa
de diálogo entre representações dessa história de vida, luta e construções espaciais.
I.2 Muletas teóricas.
Serão usadas, ao longo do texto, algumas palavras carregadas de significados que, por
serem, merecerão uma maior dedicação sobre os sentidos que se pretende delas extraírem. São
palavras-muletas, palavras que servem de apoio, sustentação, ancoragem à textualização.
Sublinho que me apropriei desse termo muleta no sentido dado por Roberto Cardoso de
Oliveira (1996) que o usa como metáfora para designar termos que ajudam no exercício de
investigação, na medida em que permite que com ele se “caminhe, ainda que tropegamente,
na estrada do conhecimento. A metáfora, propositadamente utilizada, permite lembrar que a
caminhada da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas” (OLIVEIRA, 1996, p. 18).
Tais palavras-muletas também podem ser chamadas de categorias, dada a capacidade
de agrupar significados. Entende-se que, nesse agrupamento, ao invés de delimitações que
impedem que o significado extrapole o limite da significação da categoria, abrem-se fronteiras
de diálogos no tensionamento de definições. As categorias ou palavras-muletas possuem,
portanto, sentidos que vão se movendo conforme o tensionamento é provocado. Não há
engessamentos, e sim aberturas de sentidos.
Muletas geográficas foram e serão chamadas aqui para contribuir com a construção
textual de impressões, inquietações e representações feitas ao longo desta pesquisa. Espaço,
região, território, paisagem e lugar servirão de apoio categórico. Essas categorias carregam
em si significados de mundo emergidos de interpretações e representações e, por isso mesmo,
desse texto farão parte. Os significados que justificam suas ocorrências serão, agora,
resumidamente apontados.
Espaço, região, território, paisagem, lugar... São concebidas como categorias
geográficas. São palavras-muletas que servem de apoio a alguma teorização que se pretende
pertencer à geografia ou que dela se emerge. Não pertencem exclusivamente à geografia e
nem foram por ela inventadas. Mas essa, a geografia, apoia-se nessas palavras-muletas para
conduzir ou alicerçar suas pretendidas teorizações.
17
Teorizar é exercício através do qual se pretende explicar o mundo. Teorizações são
explicações de mundo que, quando preocupadas com contextos, voltam-se para o mundo
tentando elucidá-lo: são teorizações contextuais, preenchidas de lugares ou deles insurgidas.
Se o mundo é movente e abstrato, as teorizações também serão. Funcionam como enunciadosmuletas, e por isso não haveria de se dar de forma engessada. Há aquelas teorizações que não
se preocupam tanto em voltar-se para o mundo, no sentido de se conceber o mundo como
aquele que se expressa nos lugares. Estas parecem conceber esse mundo de forma orgânica,
unificadora de lugares, união de tudo, o cosmos. Neste caminho de reflexões, vale indagar:
como teorizar sobre a união de partes que se movem? Como unir na palavra tudo o que não se
conhece ou não se apreende? O que é tudo? Estas teorizações que unem as partes se esvaziam
de sentido de mundo, na medida em que se prendem às teorizações-gerais, generalizações,
tendendo a distanciar-se de lugares e de particularidades. Particularidades requerem modos
moventes de apreendê-las. O geral enrijecido não abarca o lugar e, também, não apreende o
mundo. E esse mundo que se menciona não se transformou em palavra-muleta no sentido
categórico de ser.
Não se pode afirmar a existência da categoria mundo. Entretanto, no
contexto das reflexões teóricas sobre o lugar, a ideia de mundo emerge como
um conceito importante, sem o qual a própria noção de lugar é destituída de
significado contemporâneo. A ideia de mundo, tão abstrata na dimensão das
vivências e dos cotidianos, adquire significado quando os olhos se voltam
para os lugares: recortes de mundo estão em todos os lugares; representações
de mundo estão presentes em todos os lugares (HISSA e CORGOSINHO,
2006, p. 8).
Mundo, portanto, se tangencia à ideia de lugar. Expressa também o hibridismo que dá
movimento às categorias e, por consequência, às teorizações. Estabelecem-se movimentos de
tensionamento e de tangenciamento entre as categorias e seus significados, por se
entrecruzarem, por se fundirem, por se confundirem. O apego às significâncias individuais de
cada uma das categorias torna-se desnecessário, dado seus movimentos. Destaco, contudo,
algumas singularidades responsáveis por tais categorias serem chamadas a movimentarem-se
nessa textualização.
Se o mundo é o movimento, construção abstrata de espaço, sua expressão se dá no
lugar. O lugar surge como cotidiano, onde o mundo se representa e se expressa. Onde o
mundo se recobre de realidade, dado a concretude da convivência e do cotidiano.
18
[...] mundo e lugar se constituem num par indissociável, tornando, no
entanto, o lugar como a categoria real, concreta. O lugar é também [...] o
espaço da existência e de coexistência. O lugar é o palpável, que recebe os
impactos do mundo. O lugar é controlado remotamente pelo mundo. No
lugar, portanto, reside a única possibilidade de resistência aos processos
perversos do mundo, dada a possibilidade real e efetiva da comunicação,
logo da troca de informação, logo da construção política. (SOUZA, 2005, p.
253)
A construção política se dá no lugar. Essa construção política poderia ser expressa
através do termo negociação política. Como será discutido, processos de negociação
constroem espaço. Quando se pretende exaltar a negociação, no sentido de priorizá-la em uma
análise, emerge a noção de território àquele espaço pelo qual se negocia. A noção de território
passa a coexistir com a ideia de lugar, pois no lugar também se negocia espaço. O espaço é
construído a partir dessa negociação, que lhe confere movimento e aparências
metamorfoseadas.
O território surge quando se coloca lentes que buscam apreender tais negociações, que
não existem fora do espaço. Território e territorialidade possuem, portanto, dimensão política,
se traduzindo como apropriações de espaço. Territorializar não é apropriar-se no sentido de
ter um espaço: é, por um momento, no processo de negociação incessante, concebê-lo como
conquistado, delimitá-lo simbolicamente ou traçar linhas e inventar jurisdições que
disponham sobre a defesa da existência da própria linha. Defesa de territórios. Demarcações.
Um território poderia também ser chamado de região, quando se traduz em um espaço
que se unifica e, de certa forma, se delimita sob um critério qualquer. União que reclama por
continuidade, inclusive territorial, por relações de vizinhança e por critérios que a embasam.
Região reclama por um critério que lhe seja como um objeto indireto: região de quê? Na
resposta, há o critério definidor de regiões. Há um critério pelo qual se regionaliza. Critérios
são formadores de região e são responsáveis por sua delimitação. Esse limite também é
movente, pois o critério pode mover-se e, mais ainda, aquilo que é criteriado1 move-se com o
mundo, pois dele faz parte.
Delimitações são criteriosas e moventes. A delimitação da região é arbitrária e
movente, tal qual a delimitação de um território. A delimitação do lugar se faz no sentimento
de pertencimento e no enquadramento do olhar. Pertencer também pode motivar o
1
Essa palavra recebe a marcação itálica por se tratar de um neologismo, que emergiu do significado que se
tentou dar ao resultante de um critério concebido como processo e não somente como produto. Em outras
palavras, assumindo o critério como processo, como algo que também se move, se metamorfoseia, cria-se o
processo de criteriação que dá origem a formas criteriadas.
19
territorializar, que pode estar contida ou conter regiões. Tangenciamentos. A despeito desses
entrelaçamentos, espaço não é tudo. Nem tudo é espaço. Se se admite movimentos que não se
cessam, o espaço não poderia abarcar aquilo que ainda não se moveu. O espaço sendo uma
teorização apreende aquilo percebido como movente, mas dimensões lhe escapam. Como o
espaço socialmente construído, há de se grafar nele dimensões que serão ainda inventadas ou
que escaparam à percepção, dimensões invisíveis (SANTOS, 1988). No sentido dado por
Milton Santos (1988), ele se resume a ser
[...] uma estrutura social dotada de um dinamismo próprio e revestida de
uma certa autonomia, na medida em que sua evolução se faz segundo leis
que lhe são próprias. Existe uma dialética entre forma e conteúdo, que é
responsável pela própria evolução do espaço. (SANTOS, 1988, p. 14)
A evolução do espaço se relaciona com sua contínua construção. Esse espaço, mais
especificamente chamado de espaço geográfico, tem sido destacado como objeto de estudo da
geografia. A geografia se propõe, portanto, a teorizar sobre ele se utilizando de palavrasmuletas e de muletas-enunciados para elucidá-lo.
Produzido e organizado de formas diversas pela sociedade, o espaço
estimula, também, portanto, diversos olhares e discursos sobre os seus
processos de estruturação. [...] A compreensão do espaço, concebido por um
imaginário social, demanda uma reflexão sobre suas dimensões simbólica,
ideológica, política e cultural. Estudar, portanto, as representações que os
homens estabelecem sobre o seu espaço, no discurso literário, é uma maneira
de constituir, reconstituir e compreender a cultura de um povo. Sobre o
caráter dos lugares, pode-se dizer que são espaços afetivamente vivenciados
ou compartilhados num tempo especifico: uma cidade, uma praça, uma rua,
uma esquina, uma fazenda, um rio, um bar, a beira da estrada onde se
encontram grupos sociais específicos ou, simplesmente, onde alguém
encontra parte da sua historia presente e passada, memória dos
acontecimentos ali vivenciados (MELO, 2006, p. 15)
Fala-se de olhares sobre o espaço e de teorizações que tendem a acompanhar as lentes
que foram escolhidas. Na geografia, a lente é geográfica. Mas, o que significa ser isso? Aqui,
resume-se a ser a escolha da abertura proporcionada pelo leque de significados ensejados por
uma ciência, por um saber ou por uma construção de mundo. A geografia, representação
escolhida, apoia-se em palavras-muletas para elucidar sobre o mundo, que se expressa no
lugar. Essas tais possuem, portanto, significâncias tangenciadas. As palavras-muletas
características da geografia se entrecruzam, pois.
20
Desse modo, tanto a paisagem, quanto o lugar, o território e a região são
feitos de formas, funções e fluxos em permanente mutação. Todas essas
categorias derivam de processos históricos, culturais, políticos, econômicos,
e, também, biológicos, físico-químicos que se atravessam, constituindo
mundos de caráter complexo e de difícil avaliação conceitual particular
(MELO, 2006, p. 59).
Essa abertura ao atravessamento, que é um tangenciamento, guarda o seu aspecto
movente que é o interesse desta pesquisa. Esse interesse surgiu no caminho de pesquisa,
quando o meu olhar estava preocupado em encaixar o que estava sendo percebido em
significações de categorias. As indagações sobre os significados das categorias se mostravam
desencaixadas quando estas se voltavam ao assentamento e aos assentados. O que é o lugar no
Cafundão? Ou onde está o lugar no Cafundão? E a paisagem? O espaço? A região? E todas as
outras categorias? As categorias eram forçosamente percebidas nas impressões absorvidas.
Um esforço que se inclinava à descaracterização das representações do Outro e sobre o Outro
e das minhas próprias impressões, na medida em que se tentava moldá-las ao escopo de uma
teoria. Por conta disso, assumi o sentido de concebê-las de forma tangenciada, com
atravessamentos de significações. As impressões pertenceriam ao que Homi BhaBha (1998)
denomina de entre-lugar, que reside na interseção ou no tangenciamento de significações.
Esse trânsito tornou possível o desenvolvimento da atividade de olhar, ouvir e textualizar
(OLIVEIRA, 1996) sobre os assentados e assentamento Cafundão.
Adianta-se, por exemplo, por que tais discussões serão feitas ao longo do texto, que o
lugar foi o grande invocador da noção territorial dessa luta. Essa luta se estabeleceu no e pelo
Cafundão envolvendo sentimentos de pertencimento e de reivindicações territoriais. Havia
uma noção, por parte dos assentados, de que a terra reivindicada haveria de ser deles, pois é
nela que vivem há gerações. Além disso, percebi que o saber pautado na produção de panelas
foi construído a partir da noção de lugar, pois é no lugar que vive, se convive e onde se
expressa e compartilha a cultura. Esse saber foi coinfluenciado pelas características daquilo
que se pode emergir como região, já que a ocorrência da rocha esteatito funciona como
critério que impõe limite a esses assentados. A reivindicação territorial se deu a partir da
consideração de que o lugar desses é no Cafundão, pois as paisagens memoriais contribuíram
ao sentimento de lugar e por o próprio saber estar pautado numa característica dessa região,
que é a presença de esteatito. Será preciso, portanto, percebê-las a partir da consideração do
tangenciamento entre elas, entre as categorias, entre as palavras-muletas.
21
As narrativas de vidas espaciais surgem como orientação teórico-metodológica desta
pesquisa, dado seu caráter movente por estar composta de híbridos mnemônicos, de
representações de mundo e de lugar. Cabe destacar, ainda que brevemente, a noção de
sociogênese ou contexto de sociogênese trabalhado por Norbert Elias, e que será aqui
apresentada a partir da interpretação que Tatiana Landini (2007) tivera. Isto por que, o sentido
dado à sociogênese revela-se consoante com a orientação teórico-metodológica aqui adotada,
pautada na consideração de narrativas de vidas espaciais. Segundo Landini (2007),
O termo sociogênese, utilizado constantemente por Elias, [...] se relaciona às
modificações específicas na maneira de ver a sociedade ao processo social
de configuração da própria abordagem científica que, por sua vez, é
entendido como parte das mudanças em processo na estrutura social. Dito de
outra forma, para o autor, o desenvolvimento da sociedade desempenhou
papel importante na construção de uma forma mais científica de concebê-la
(LANDINI, 2007, p. 171, grifos do autor).
Social e gênese, que formam a sociogênese, abarcam a ideia do espaço geográfico
socialmente construído. Ou seja, a noção de sociogênese leva em consideração as formas
sociais específicas de construção do espaço que carecem de mecanismos também específicos
de apreensão. Essa especificidade faz emergir a potencialidade e pertinência da consideração
de narrativas de vidas entrelaçadas à construção do espaço. Narrativas que devem considerar
as representações como expressões de espaços híbridos e particulares. As narrativas de vidas
espaciais buscam acompanhar o movimento de mundo através da particularidade de
significâncias. As categorias, por conta disso, são encaradas aqui como palavras-muletas,
dada a necessidade de também mover-se com o mundo.
Outras palavras, além das categorias geográficas, que funcionam como leques de
significados ou com significações imprecisas e moventes, foram e serão chamadas a também
contribuírem a esse enfoque: são elas, memória e identidade coletivas.
Fala-se também da memória na composição e estruturação de espaço. Memória que se
constrói no lugar onde o mundo se expressa. Ela possui papel significante e por isso será
também aqui resumidamente destacada. Antes, é preciso tangenciá-la à noção de paisagem,
pois essa muleta geográfica é também construída através de memória.
A paisagem que o escritor constrói é determinada pelo seu olhar e sua
experiência do espaço, assim como aquilo que o leitor apreende é, também,
resultado do seu olhar e de suas vivencias. Nenhum tipo de discurso está
isento das inscrições do olhar e das vivências do sujeito que o produz. Os
22
valores simbólicos e subjetivos são, portanto, imprescindíveis para a
compreensão do espaço, já que ele é a expressão do sentido que um
determinado grupo social confere ao seu meio. [...] Prática de descrição, a
partir da percepção de um determinado olhar, a representação de lugares e
paisagens, a representação do espaço e um exercício de produção de
sentidos. Mais do que a porção perceptível do espaço, a paisagem é
representação, a mediação entre o mundo das coisas e o mundo da
subjetividade humana, podendo assumir, portanto, diferentes formas e
significações, de acordo com o olhar, a emoção, o estado de espírito e a
cultura do observador e do interlocutor (MELO, 2006, p. 16)
As paisagens também são, portanto, representações, podendo ser construídas através
de memórias. Mas, a memória não se resume simplesmente a paisagem, e nem a paisagem é
construída somente através de memórias. A memória, e também a paisagem e outras
categorias, evocam outros significados que, inclusive, poderão se tangenciar às significações
de outras muletas teóricas.
Será preciso elucidar que quando se fala aqui de memória, não se pretende evocar
aquela que Maurice Halbwachs (1990) tivera que, brevemente, comentar em sua teorização
sobre memória coletiva. Esse autor comenta sobre a ideia de “intuição sensível” para indicar
aquela memória de natureza estritamente individual por designar a “base da lembrança”, que
se forma num “estado de consciência puramente individual”, para então, se passar à
teorização da construção coletiva de memória (HALBWACHS, 1990, p. 36). Essa memória
pautada na intuição sensível embasa a singularidade da memória de um sujeito em relação a
outro sujeito. Contribui, portanto, para que as memórias sejam particulares por mais parecidos
que possam ser os contextos formadores de memória, ou seja, as trajetórias por quais passam
e experienciam tais sujeitos. Ressalto que a leitura das intuições sensíveis de cada assentado,
que não é objetivo desta pesquisa, é uma proposta que merece ser desenvolvida, devido sua
pertinência. Um estudo com este viés conduziria a resultados que se somariam à proposta
desta pesquisa, mas que por escassez de tempo e por recortes investigativos se priorizará a
memória coletiva. Como também, por a memória coletiva construir representações a partir do
tensionamento inerente a sua qualidade de ser coletiva. Na história de luta dos assentados e do
assentamento Cafundão, essa noção coletiva e tensa de memória será fundamental à apreensão
de representações distintas e, pois, polifônicas.
Porquanto, a definição de memória coletiva perpassa o modo como se concebe sua
construção. Michael Pollak (1989) aponta alguns posicionamentos de autores que apresentam
possíveis significados. Ele remete a Durkheim a definição reificada de memória coletiva, ou
seja, a transformação em fato social que explica sua dimensão institucionalizada. Nesse caso,
23
a memória assume responsabilidade e a função de garantir durabilidade, continuidade e
estabilidade a um grupo, ou ao coletivo. Em outras palavras, é por a memória coletiva ser
institucional, que ela não é sobreposta pela complexidade de memórias individuais e
diversidade dos indivíduos que dela fazem parte e a constroem. Pollak (1989, p. 201) destaca
também a colocação de Halbwachs quando este defende que a formação de memórias
coletivas não ocorre por meio coercivo, e sim através de adesão afetiva, formando
“comunidades afetivas”. Ao pertencimento a essa comunidade, estabelece-se processos de
negociação entre as memórias coletivas e as individuais.
Tem-se, portanto, duas formas de abordagens em relação à construção de memória:
aquela adepta à coerção, e a outra à adesão afetiva. Michael Pollak (1989) defende a
necessidade de se conceber e permitir o diálogo entre essas duas, que se dão justamente a
partir de processos de negociação que entre elas se estabelecem. Por esse motivo, as
memórias dos assentados e outras apreendidas a partir das representações inquiridas, serão
entendidas como em processo de negociação, como pertencentes a disputas polifônicas e a
tensionamentos. Conflitos que criam territorializações de memórias. Percebe-se, portanto, que
a dedicação ao estudo de memórias coletivas poderia fornecer indícios sobre esse mencionado
processo de negociação que está no cerne da disputa por vozes e dos tensionamentos entre
memórias e representações - que se configuram como interesse desta pesquisa.
Sobre memórias em disputa, não se pretende estabelecer aqui relações de hierarquia
entre aquelas consideradas subterrâneas ou dominadas, e às outras condizentes com os
preceitos do discurso politicamente oficial2 (POLLAK, 1989). Até por que, em consonância
com Michel Pollak (1989) e Verena Alberti (1996), considera-se que alguns estudos que se
dedicam a estudar grupos dominados acentuam a característica e a força do dominador e, pois,
da própria dominação, por reduzirem as memórias a meros produtos de dominação. Além
disso, quando uma memória dominada é objeto de estudo à pretensão de reverter sua situação
de ser-dominada, essa passa a integrar o extremo oposto da dicotomia estabelecida: de
dominada, ela passa a ser dominadora frente a outras que não sofrerão a reversão, dando
2
Pollak (1989) comenta, em sua obra sobre memória, esquecimento e silêncio, que há um processo de
trabalhamento da memória, ou enquadramento, responsável pela produção de memória condizente com o
discurso que se quer que perdure no tempo. Quando se concebe, por exemplo, a memória nacional reside aí uma
pretensão de transformar o coletivo mnemônico em uma história que se encaixe em molduras oficiais –
compondo o que se tem como a História de um país. A despeito de sua hegemonia, Pollak destaca seus
problemas em relação à continuidade temporal frente às memórias alternativas que escapam a essa dimensão
institucional de memória: “o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e
também de sua organização. Para que emerja nos discursos políticos um fundo comum de referências que
possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a
simples ‘montagem’ ideológica, por definição precária e frágil” (POLLAK, 1989, p. 7).
24
continuidade às oposições binárias. “Aliás, acredito que as oposições binárias, das quais as
discussões
intelectuais
fazem
grande
uso
-
subjetivo/objetivo,
racional/irracional,
científico/religioso, [dominador/dominado] – só servem para fins de acusação ou de
autolegitimação” (POLLAK, 1989, p. 11).
Considerar, por exemplo, os assentados como grupo dominado, por insurgirem de um
contexto opressor pautado na desigualdade fundiária, e que, depois de conquistada a terra,
transforma sua condição de ser-dominado, é um tanto quanto perigoso e não condiz com os
significados de memória enquanto processo de negociação aqui assumidos. Não se pretende
conceder voz como se nessa atitude esses assentados fossem beneficiados pela tiragem de
amordaça que integra sua condição de ser dominado. A despeito de eles não terem mesmo
sido contemplados em escritos acadêmicos, considera-se que agora, por estar sendo, se
relaciona à conquista por voz. Essa conquista é oriunda da disputa que travaram a ponto de
despertar o meu olhar. Não dou aqui voz: há disputas por voz, memórias e representações.
Essa disputa será mais adiante discutida.
Os processos de negociação de memória, considerando o diálogo entre formas
coercivas e afetivas de se construí-la, abarcam a dimensão correspondente à microfísica das
disputas de poder: “o indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é
o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos, multiplicidades, movimentos,
desejo, forças”. (FOUCAULT, 1979, p.161-162). Isso significa que as memórias coletivas
“não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um
grupo” (POLLAK, 1992, p.205). Elas se constroem, se edificam na vivência simbiótica com o
mundo. A esse respeito, Maurice Halbwachs destaca que essa construção de memória
correlaciona à construção de espaço que se dá também através da memória. Em razão disso,
esta pesquisa se pautou na textualização de memória à apreensão do espaço, compondo o que
se chamou aqui de narrativas de vidas espaciais.
Assim, não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial.
Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma
à outra, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível compreender
que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito,
no meio material que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço –
aquele que ocupamos, por onde sempre passamos, ao qual sempre temos
acesso, e que em todo o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a
cada momento capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção; é
sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça esta ou
aquela categoria de lembranças (HALBWACHS, 1990, p. 143 ).
25
A memória é apresentada, portanto, como muleta teórica e também como viés que
pauta a adoção das narrativas de vidas espaciais como instrumento metodológico. Há o
interesse aqui, tal como o ímpeto pelos significados das categorias, pela memória chamada de
coletiva, preocupando-me em não estabelecer entre elas – a individual e a coletiva - relações
de oposições, pois essas também se fundem e se confundem, tais como as dimensões geral e
particular já expostas no texto. Interesso-me não pelo significado rígido da memória coletiva
ou pela delimitação empírica de sua coletividade. Em outras palavras, não se pretende
verificar – no sentido analítico do termo verificar – até onde a coletividade memorial do
assentamento e dos assentados está presente e a partir de onde esse limite-memória-coletiva já
não exerce o esforço de unicidade. Há, ao contrário, a pretensão de concebê-la também como
palavra-muleta, ou como conceito movente. Isso significa que pretendo me aproveitar da
mobilidade concernente a uma muleta, para entender justamente onde ela se esbarra, onde ela
estabelece relações de significâncias fronteiriças: trata-se de a memória coletiva já se esbarrar,
por excelência, em memórias individuais e particulares, na medida em que é difícil
estabelecer essa delimitação, bem como por criar narrativas que constroem espaços e são
construídos por ele.
Já a definição de identidade coletiva, a outra palavra-muleta chamada aqui para
auxiliar na textualização, é feita por Michael Pollak (1992) de forma tangenciada aos
significados de memória coletiva. Esse autor destaca alguns elementos que devem ser
considerados como constituintes da memória coletiva e, por consequência, da identidade
coletiva, a saber: 1. acontecimentos individuais que são singulares; 2. acontecimentos vividos
por tabela que não quer dizer que o indivíduo tenha, de fato, vivido, mas dele faz parte,
impregnando-se num processo de memória herdada; 3. pessoas e personagens, esses últimos
pressupondo um processo de identificação com pessoas que não necessariamente fizeram
parte da vivência individual, mas possuem significados que criam sentimento de
reconhecimento; 4. lugares que guardam em si mesmos a memória vivida e o significado de
se ter vivido; 5. datas fixadas em acontecimentos em que, a cronologia do tempo oficial
contato em dias, meses e anos se transfigura a fatos que ganham o poder de representar
temporalidades. Percebe-se que a identidade também possui uma pseudodelimitação sobre até
onde se estabelece a integridade da identidade individual e a partir de onde se institui a
unicidade da coletiva.
Podemos dizer portanto que a memória é um elemento constituinte do
sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que
26
ela é também um fator extremamente importante do sentimento de
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 205, grifos do autor).
Como também, Pollak (1992) destaca elementos que fazem parte da construção social
de identidade que se resumem à unidade física, que se refere ao sentimento de pertencimento
ao grupo; à continuidade temporal, ou seja, a resistência ao tempo; ao sentimento de coerência
que está na unificação de elementos que formam os indivíduos; e ao Outro.
Se assimilamos aqui a identidade social à imagem de si, para si e para os
outros, há um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao
indivíduo e, por extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o Outro.
Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de
negociação, de transformação em função dos outros. A construção da
identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em
referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de
credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros.
(POLLAK, 1992, p. 205)
É por considerar o Outro e a representação que se faz dele, que se entrecruza à
definição de identidade coletiva e, pois, de memória coletiva, que a textualização desta
pesquisa está se dando dessa forma. A preocupação com a alteridade norteou, inclusive, que
esta pesquisa se enveredasse por esse caminho percorrido. Foi a partir de sentimentos que
guardam em si certa angústia, sobre as formas como se investigaria as construções espaciais
através dos sujeitos, sobre os sujeitos e as representações percebidas no que concerne à
criação do assentamento Cafundão, que questionei-me: como inserir-me em uma realidade
espacial do Outro sem me confundir com o Outro ou sem deixar margens de interpretação que
levam à ideia de se pretender ser o próprio Outro? Ou o contrário, como conquistar certa
aproximação ultrapassando as barreiras colocadas entre o Eu e o Outro, justamente por não
ser o próprio Outro? Como textualizar as representações percebidas do Outro e sobre o Outro?
Como representar de forma ética e preocupando-se em não constranger o Outro a partir desta
pesquisa? Como realizar esta pesquisa?
I.3 Falas plurais e pinguelas.
A questão inicial a ser explicada será a escolha pela primeira pessoa para a escrita do
texto, quando o comum na academia, ou ao menos na ciência a qual eu me vinculo, seria
27
adotar a terceira pessoa, também como forma de reforçar certa impessoalidade no andamento
e nos resultados de uma pesquisa. No Regulamento do Trabalho de Conclusão de Curso, que
dispõe sobre a atividade do trabalho de conclusão de curso que é a monografia no curso de
Geografia do IFMG campus Ouro Preto, não há indicativos de que a escrita de uma
monografia teria que ocorrer obrigatoriamente por meio do uso da terceira pessoa, e nem
recomendações para que ela fosse adotada. Esse Regulamento prevê somente que a escrita se
dê em consonância com normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que
estejam vigentes e que contemplem temas que estejam em qualquer ramo ou caminho de
pesquisa científica, não necessariamente apreciando aqueles concebidos como geográficos, a
despeito das aberturas proporcionadas pela geografia. Conforme pode ser verificado no artigo
sétimo de seu Capítulo 3:
Art. 7º- O TCC deverá ser elaborado considerando-se:
I – na sua estrutura formal os critérios técnicos estabelecidos nas normas da
ABNT sobre documentação, no que forem aplicáveis;
II – no seu conteúdo, a vinculação direta do seu tema com um dos ramos do
conhecimento científico.
Parágrafo Único. A estrutura do TCC compõe-se, no mínimo, de folha de
rosto; folha de aprovação; resumo; abstract; sumário; introdução teóricometodológica; desenvolvimento; conclusão; bibliografia. (PROJETO
PEDAGÓGICO DO CURSO DE GEOGRAFIA, COLEGIADO DE
GEOGRAFIA, IFMG OURO PRETO)
Contudo, segundo a norma NBR 6028/2003 da ABNT3, “deve-se usar o verbo na voz
ativa e na terceira pessoa do singular” para confecção de resumos de trabalhos acadêmicos.
Outros indicativos sobre a forma como se deve escrever os resumos dispõem sobre sua
necessidade de ser objetivo, incisivo, conciso e informativo. A recomendação da terceira
pessoa seria, portanto, uma forma de isso se garantir.
Esta orientação sobre o uso da terceira pessoa é bastante recorrente.
Impossível esquecer as lições aprendidas nas disciplinas de metodologia
científica da graduação quanto ao uso do pronome ‘eu’ em atividades de
pesquisa. Quase que como uma ordem nos era informado que este pronome
deve ser guardado para pesquisadores e pesquisadoras que já possuem maior
trajetória, que possuem mais autonomia e conhecimento sobre o que dizem.
3
NBR ABNT 6028/2003. Disponível em: http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&s
ource=web&cd=1&cad=rja&ved=0CCIQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.sigaa.ufrn.br%2Fsigaa%2FverProd
ucao%3FidProducao%3D927051%26key%3Dbd45a252e4d81320f8d209ab7cc4de7e&ei=GgR7ULPJN4jq9ATf
_4HICA&usg=AFQjCNGshBrcor9EFE2Uz0JGxQJVFUObSg&sig2=DHOBamNQaRJvOcAITg3XMw. Acesso
em: 14 de outubro de 2012.
28
Ou então que o pronome ‘eu’ só deve ser utilizado por aqueles que fazem
pesquisas sobre os âmbitos locais, em que a fala do pesquisador não tem
nenhuma intenção de generalizações (SOUSA, 2011, p. 191).
De forma tabelar, há a recomendação da adoção da terceira pessoa, em detrimento da
primeira, em textos acadêmicos, ainda assim não se configura como uma regra que tem que
ser seguida obrigatoriamente. A despeito dessas pretensiosas recomendações, nem sempre
trazidas por uma regulamento-oficial, incitem o uso da terceira pessoa, também como forma
de firmar distanciamento preciso à objetividade de uma pesquisa científica; optou-se, e
assume-se o risco de tal opção, por utilizar a primeira pessoa do singular em vários momentos
do texto. Mas, essa escolha não reside, evidentemente, na simples permissão ao uso.
Escolheu-se por alguns motivos que serão agora explicados.
A escolha pela primeira pessoa do singular, colocando-me em vários momentos do
texto, tem haver, primeiro, com a familiaridade que isso permitiria na textualização de
impressões que obtive das idas ao assentamento, dos diálogos com pessoas que se
relacionavam de alguma forma com o histórico de luta dos assentados e das leituras de
documentos, jornais e outros escritos ao longo de todo o desenvolvimento desta pesquisa.
Familiaridade que reside nas condições que essa escolha me permitiria, sobretudo, no
processo de transformação em texto. A representação aqui feita não se trataria de tradução,
nem transcrição e nem reprodução que guardam em si certa pretensão à objetividade. Não se
trata, pois, de simplesmente relatar o que foi ouvido. A representação se daria por meio do
registro de construção de paisagens que evocariam uma transcriação (DELGADO, 2006) das
representações absorvidas por mim: uma representação das representações absorvidas, e uma
admissão de que pertenço sim à objetivação do Outro e sobre o Outro. Desta forma, a
Caderneta de Pesquisa se mostrou crucial à convergência de minhas impressões e para
auxiliar na textualização, na medida em que absorveu tais paisagens e fundamentou as
impressões delas decorrentes. Ou seja, acompanhou os movimentos desta pesquisa e a
construção da alteridade a partir da apreensão de representações do Outro e sobre o Outro.
Configura-se no momento em que o Eu dizia para si mesmo aquilo que viu no Outro e aquilo
que percebeu se esbarrar no Outro: em cada página reside uma representação como essa e a
releitura de todas elas pautou essa textualização.
É importante aqui destacar que as expressões e/ou frases que forem utilizadas entre
aspas e tiverem a indicação de corresponder à transcriação de falas de assentados, será dessa
forma destacado por representar expressões que passaram pelo processo de transcrição,
29
textualização e transcriação, em consonância com Meihy (2009, p.195). Optou-se por essa
forma de destaque, tal como se faz com os autores os mais diversos, por que todos eles são
chamados ao debate. Esse debate almeja considerar as representações que os assentados
possuem sobre eles mesmos e sobre a sua luta, bem como essas outras representações que
inventam impressões e paisagens acerca do assentamento, dos assentados e da luta pela
criação do assentamento. Portanto, trata-se de um texto que é sobre o Outro e sobre as formas
de representação desse Outro, preenchendo o sentido que se pretende dar à pluralidade da
composição de narrativas de vidas espaciais.
Nesse sentido, o uso por si só do Eu no texto não inventaria formas de demonstrar
aproximações para com o objeto de estudo desta pesquisa. Ainda que se use Eu por diversas
vezes no texto, pode ser que a textualização se desse mais distante do que se se optasse,
predominantemente, por que ele é chamado em momentos do texto, pelo uso da voz passiva
ou de pronomes reflexivos que servem à impessoalidade. Porquanto, toma-se de empréstimo o
entendimento que Sousa (2011) tivera da proposta de Denise Jodelet sobre a alteridade, pois
ela fornece os subsídios teóricos que servirão à justificação do Eu usado e, por extensão, da
forma como se pretendeu encarar a questão do Outro nessa textualização.
Para avançarmos neste caminho de reflexões temos, entretanto, que indagar
sobre os processos que convertem as diferenças em processos de alteridade.
De acordo com Jodelet (1998), a alteridade é um processo de construção do
outro a partir de sua oposição ao quadro de um ‘nós’. Neste processo,
buscamos tipificar, desvalorizar ou estereotipar as práticas do outro a partir
da tentativa de proteção e asseguramento de nossa identidade. É, desta
maneira, um processo de num contexto de pluralidade marcar e identificar os
sujeitos que fazem parte de nossas práticas e de distanciar (em termos de
identificação) aqueles tidos como diferentes. Este processo de construção da
alteridade se dá, de acordo com a autora, a partir de elementos da
representação social, que se apóia em processos simbólicos que configuram
em aproximação ou em marginalização a determinados sujeitos ou grupos.
Mas distintamente da diferenciação, que busca marcar o outro como distinto
e esvaziado de significado identitário, quando se fala em alteridade busca-se
marcar a diferença entre o ‘nós’ e os ‘outros’ a partir justamente de seu
caráter identitário. A alteridade explica, pois, porque somos diferentes dos
outros, e não somente que somos diferentes do outro (SOUSA, 2011, p.
128).
Esse esforço de diferenciação entre questões de alteridade, ligado à identidade, e
questões de diferenciação, como marca pejorativa de delimitar o outro, por não corresponder à
base comum do signo cultural, baliza uma possível reflexão sobre o uso do Eu em um texto
30
que é sobre o Outro percebido pelo Eu, percebido a partir de representações que o Outro faz
de si próprio e percebido através daquelas representações que lhe são conferidas. A opção por
se usar Eu não reside na anulação ou na diminuição do Outro, e nem na exaltação de se se
tratar de um trabalho no qual o Eu poder-se-ia corresponder ao Eu-autor. De acordo com
James Clliford,
Todo uso do pronome eu pressupõe um você, e cada instância do discurso é
imediatamente ligada a uma situação específica, compartilhada; assim, não
há nenhum significado discursivo sem interlocução e contexto. A relevância
desta ênfase para a etnografia é evidente. O trabalho de campo é
significativamente composto de eventos de linguagem; mas a linguagem, nas
palavras de Bakhtin, ‘repousa nas margens entre o eu e o outro. Metade de
uma palavra, na linguagem, pertence a outra pessoa (CLLIFORD apud
SOUSA, 2011, p. 179).
Ou seja, todo o Eu carrega em si a ideia e a ratificação do Outro. De outra forma,
quando é dito Eu, há o reforço concomitante do Outro que dá sentido de existência ao próprio
Eu. Portanto, o uso até constante do Eu como forma de posicionamento não ocorre em
detrimento do Outro e nem carrega em si, por si só, a familiaridade desejável em um texto
sobre representações de representações. Trata-se de uma opção: pretensiosa, arriscada, mas é
uma opção. Porém, essa foi feita de forma angustiada, compartilhando de muitos sentimentos
e receios apontados por Patrício Sousa (2011) em sua dissertação:
Escrever esta dissertação utilizando da primeira pessoa do singular
constituiu-se, nesta medida, num desafio. Foi inevitável que inseguranças
surgissem a partir da escolha do tipo de narrativa que elegi para construção
da dissertação. Mesmo com todos os cuidados teóricos e metodológicos, o
fantasma da tênue fronteira entre um tom de posicionamento de sujeito e um
outro de arrogância na construção de uma “auto-ciência” me assombrou na
elaboração de cada frase do texto. Temi por diversas vezes que minha atitude
pudesse ser confundida com uma postura reacionária em que eu acabasse ou
por falar demasiadamente de mim, como se eu me considerasse um
indivíduo para além da vida ordinária, ou por que eu atuasse na construção
de exóticos ou reiteração de sujeitos, a partir dos apontamentos lançados
pelo meu olhar centrado num raciocínio ainda moderno e muitas vezes
positivista sobre as realidades que problematizo. Somente com caminhar do
texto é que fui adquirindo segurança para escrever desta maneira e também
para alcançar o entendimento de que forma e conteúdo são elementos de fato
inseparáveis em uma atividade de pesquisa. Só com esta segurança pude ter
tranquilidade para conceber também que tão importante quanto as
categorias, escalas, metodologias e questões que adotamos em uma pesquisa
é a escolha da maneira que elegemos para comunicá-la. Minha escolha foi
exatamente a de buscar esta possibilidade de comunicação. Ao dizer ‘eu’ por
31
diversas vezes, minha intenção não foi a de transformar minhas falas em
dizeres subjetivos ou circunscrevê-las à minha experiência (SOUSA, 2011,
p. 179).
Por isso tudo, é que essa direção metodológica, preenchida de sentidos teóricos,
constituindo o que chamo de orientação teórico-metodológica, se manifesta como pinguela. O
esforço interpretativo de se conceber narrativas de vidas espaciais, que está no cerne dessa
orientação teórico-metodológica, se revela metaforicamente como uma pinguela. A pinguela
permite um trânsito entre o pensar e o como proceder. Isto por que, ao mesmo tempo em que
serve de ponte para se chegar ao outro lado do rio, pinguela também nomeia a madeira com
que se faz arapuca ou armadilha para se pegar animais que se arriscam instintivamente. Em
outras palavras, compreende-se que aqui está se assumindo certo risco, por se tratar de um
método-andaime atípico aos padrões cientificistas que poderiam oferecer certo respaldo ao
desenvolvimento e à defesa da própria pesquisa. Essa associação metafórica guarda em si um
misto de se conceber tais narrativas espaciais como muleta teórico-metodológica: há a ponte
teórica que contribui à diminuição do risco metodológico. Vislumbra-se, portanto, que essa
pinguela, a partir da consideração das narrativas de vidas espaciais, forneça as aberturas
necessárias à apreensão das travessias da pesquisa: abre-se, pois, “uma possibilidade não de
objetividade, mas de objetivação, que leva em conta a pluralidade das realidades” (POLLAK,
1992, p.210).
I.4 Contextualização da metodologia de pesquisa: narrativas de vidas espaciais;
Isto posto, ressalto que o Outro será representado aqui através de suas memórias,
como “instrumento privilegiado para avaliar os momentos de mudança, os momentos de
transformação” (POLLAK, 1989, p. 12), como também, através das memórias e
representações que sobre o Outro são feitas. Há, pois, o diálogo entre essas memórias que
guardam em si o tangenciamento entre suas fisionomias individuais e coletivas, que se
expressam de forma tangenciada, mista, transversal.
A memória está imbuída de vastidão de possibilidades, que a tornam
infinitamente rica em suas manifestações. É um instrumento valioso para
construção de narrativas, que registram modos de frequentar o mundo,
fazendo a trama da vida existir como drama ou comédia (GROSSI apud
DELGADO, 2006, s/n).
32
A metodologia desta pesquisa se debruça, deste modo, sobre memórias que interferem
na e edificam a visão, construção e interpretação de mundo pertencentes a uma narrativa.
Narrativa é, senão, o modo discursivo de apreensão de expressões espaciais e de histórias de
vidas estritamente ligadas à construção de espaço, o que Sousa (2011) concebe como
biografia espacial. As narrativas são, portanto,
tais quais os lugares da memória, instrumentos importantes de preservação e
transmissão de heranças identitárias e tradições. São, de acordo com Costa e
Botelho (2002), modos de traduzir o social. [...] Têm na natureza dinâmica e,
como gênero específico do discurso, integram a cultura de diferentes
comunidades. São peculiares, incorporam dimensões materiais, sociais,
simbólicas e imaginárias. Plenas de dimensão temporal, têm na experiência
sua principal fonte, “pois ao narrar as pessoas estão sempre fazendo
referências ao passado e projetando imagens, numa relação imbricada com a
consciência de si mesmas, ou daquilo que elas próprias aspiram ser na
realidade social”. Trata-se de imaginar a narrativa como esta linha que
caminha para frente, mas que é capaz de aceitar reviravolta e interrupções.
Uma linha que pode se desdobrar em três, quatro, dez quadros. Quadros com
um desenvolvimento relativamente autônomo. Quadros que podem parar,
recuar em relação a linha fundamental, e que se relacionam entre si,
formando uma espécie de teia, capaz de enredar a narrativa (DELGADO,
2006, s/n)
Destarte, a narrativa oferece subsídios à apreensão de espaço. Porém, não se busca
recompô-lo em sua integridade, mas sim de compreendê-lo em suas particularidades, através
de “análise dos fragmentos, resíduos, objetos biográficos e diferentes tipos de documentação e
fontes” (DELGADO, 2006, s/n). A ideia de se debruçar sobre narrativas de vidas
entrelaçadas, resultantes e criadoras de espaço sobrevém da teorização feita por Alícia Lindon
(2008). Essa orientação teórico-metodológica, chamada de narrativas de vidas espaciais, se
pauta numa forma metodológica qualitativa de investigação, que se atenta para interpretações
e representações de espaço abrindo-se às maneiras múltiplas como ele pode ser concebido,
percebido e, pois, construído. Essa autora destaca que essa orientação se configura como
desafio, dado a importância que as correntes teórico-metodológicas mais presas à
objetividade, em seu sentido positivita, tiveram ao longo da construção do pensamento
geográfico. Essa orientação, segundo Lindón (2008), se mostra alternativa, não-hegemônica, e
particularizada.
Cuando las prácticas espaciales son narradas o relatadas por el sujetohabitante que las ha realizado, el relato incluye una riqueza adicional a la
33
caracterización de los acontecimientos, que siempre estarán más o menos
distorsionados en relación con los hechos que le dieron origen. Esa riqueza
adicional consiste en que los acontecimientos (la componente fáctica) se va
articulando en la narrativa con retazos de uma trama de sentido que para el
sujeto tiene valor, y constituye parte de los cristales a través de los cuales ve
y evalúa el mundo, y actúa en él. Entonces, si el tercer camino metodológico
del discurso sobre lãs prácticas y su espacialidad es una apuesta legítima y
de gran potencial para la investigación geográfica cualitativa, dentro de todas
las formas de discursividad, las narrativas de vida constituyen uno de los
núcleos de mayor riqueza, y dentro de ellas las que denominamos narrativas
de vida espaciales (LINDÓN, 2008, p.10).
De maneira geral, segundo Lindón (2008), as narrativas de vidas espaciais seriam
construídas a partir de formas de captação alternativas e abrangentes. A entrevista, sendo uma
dessas formas, poderia ser usada desde que com roteiros não enrijecidos e não manipuladores
da ordem do discurso que se pretende ouvir. Teriam que se dar como conversas pautadas em
diálogo, no qual se admite interferência do Eu sobre o Outro, mas preocupando-se,
principalmente, em ouvi-lo. Alícia Lindón (2008) destaca que as narrativas de vidas espaciais
tem que ser concebidas para além de entrevistas, a despeito de requererem as situações de
entrevistas. São abordagens discursivas complexas que abarcam dimensões simbólicas e
culturais, que não se prendem àquilo que foi dito: os silêncios, o esquecimento e o não-dito
também dialogam como representações (POLLAK, 1989) . Admite-se representações que não
se verbalizam. Admite-se representações que escapam ao entendimento sendo entendidas por
quem as inventou. Construir narrativas é abrir-se à complexidade interpretativa.
Esta forma de acercamiento a la realidad se funda en lo que Jerôme Bruner
(1984; 1986) denomina “pensamiento narrativo”. Esta forma de pensamiento
–muy antigua en la historia de la humanidad- consiste en contarnos a
nosotros mismos, o a los otros, historias. La particularidad de reconocer que
en esta vieja práctica opera un tipo de pensamiento responde a que, al contar
esas historias, vamos construyendo lós significados de nuestras experiencias.
Así, la construcción del significado surge de la narración. En cuanto a la
forma de producción de la narrativa de vida es importante empezar por
reconocer que en su construcción operan simultáneamente dos dimensiones:
Una es la interaccional, y la otra son los juegos por los que la memoria se
desliza entre el recuerdo y el olvido. En relación a lo interaccional, el
investigador debe tener muy presente que ese discurso lo construye el sujeto,
el narrador (el entrevistado), desplazándose espontáneamente (y sin ser
consiente de ello) entre tres niveles de interacción, pasando del uno al otro y
del otro al uno de manera natural y no buscada (LINDÓN, 2008, p.11).
34
A construção de narrativas de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão
haveria de considerar, portanto, as representações apreendidas para além das situações de
entrevistas. Essas impressões foram registradas ao longo da construção da pesquisa em uma
Caderneta de Pesquisa. As conversas, os diálogos, as reações perante algumas perguntas e
questionamentos transformaram-se em anotações impressas na Caderneta de Pesquisa.
Interpretações foram feitas tentando-se ir além do contexto territorial do Cafundão. E por esse
motivo, algumas leituras de textos acadêmicos e de documentos municipais ou sobre o
assentamento foram feitas. A história dos assentados e do assentamento Cafundão se
confunde com a história do próprio município, bem como se contextualiza ao pano de fundo
nacional pautado na desigualdade fundiária. Esse tangenciamento entre as representações dos
assentados e aquelas representações apreendidas sobre o assentamento compôs o
atravessamento sobre o qual se pautou esta pesquisa. Esse debruçar-se justamente sobre os
atravessamentos, tal qual se chamou à baila os significados tangentes das muletas, será mais
adiante discutido, pois se configura no caminho pelo qual se enveredou esta pesquisa.
É preciso ressaltar que é pretendido, através dessa construção monográfica, contribuir
para que o Cafundão deixe de ser mero exemplo em textos acadêmicos. Isto por que, o
conhecimento da luta pela terra que culminou no assentamento Cafundão se revelou, ao longo
da pesquisa, restrito a poucas pessoas que se relacionaram de alguma forma com essa luta e
também registrado por poucos autores. Não foram encontrados escritos bibliográficos sobre o
Cafundão. E aqueles poucos encontrados que o mencionam em poucas linhas, concebem esse
assentamento como objeto de comparação com outros situados em Minas Gerais. É percebido,
pois, que esse assentamento tem composto tão somente os quadros e tabelas comparativas de
indicadores sociais ou de análises socioeconômicas de assentamentos de reforma agrária. Tais
estudos não são subestimados, por que é inegável a validade e a importância destes. Porém,
ratifico a necessidade de se conhecer o Cafundão para além de seu aspecto comparativo: esse
assentamento foi resultado de contextos peculiares e é preciso captá-los e, assim, compará-los
ou discuti-los tendo em vista outros particulares históricos de luta pela terra.
Porquanto, essa monografia possui a relevância de construir narrativas dos assentados,
sobre os assentados e sobre o assentamento Cafundão, que ainda não foram feitas por estudos
acadêmicos. Essas narrativas se perfazem no registro de memórias polifônicas, memórias que
se expressam através de múltiplas vozes, que mudaram, mudam e mudarão constantemente,
num “perpétuo deslocamento” (POLLAK, 1989, p.09). Se essas memórias não se configuram
como prontas e acabadas, não se deve entender que essa monografia almeja trazer a História
35
do assentamento Cafundão, no sentido de se pretender ser a versão verídica e coesa dele. E
sim, trarei à baila as representações discursivas de espaço com que me deparei na pesquisa.
Há de se evidenciar que a textualização aqui empreendida não é de modo algum
neutra. Não é pretendido defender que as representações de espaço apreendidas do Outro e
sobre o Outro conferem fidedignidade ao que realmente lhe representam. São leituras, em
grande medida, influenciadas pelas lentes moldadas no contato com as aberturas geográficas e
também com as minhas próprias experiências de mundo. Se as narrativas aqui construídas se
pautam em memórias e representações de espaço, compreende-se que “[...] não há
neutralidade em qualquer forma de abordagem do passado. Cada um escolhe seu passado e
essa escolha nunca é inocente” (DELGADO, 2006, s/n). E por isso mesmo, as narrativas serão
concebidas como uma construção discursiva: possibilidade de representação e interpretação.
Destaca-se, também, que esta pesquisa se volta à busca por sombras no sentido de se
trabalhar com “pluralidades da história, das realidades e, logo, das cronologias historicamente
admissíveis” (POLLAK, 1989). Portanto, busca-se sombras não num sentido de descobrir
algo medonho e revelador de uma história obscurecida e negada pela academia, e sim almejase dar relevo a contornos de história, dessa história, a partir do investimento de voltar-se a
eles: de olhá-los, de ouvi-los, de textualizá-los (OLIVEIRA, 1996). Porquanto, dedica-se à
construção de um enfoque pautado na construção de narrativas espaciais, a partir da
consideração da coexistência de formas interpretativas de se encarar o assentamento
Cafundão.
Ressalta-se também, que esta pesquisa emerge justamente do processo de disputa por
voz: não se pretende narrar essa história no sentido de oferecê-la como produto de
contemplação. Seu desenvolvimento se deu entrecruzando com o Eu, que ao invés de dar voz
através da escrita daquilo que ouvi, tensionei voz com os assentados e com várias outras
pessoas pertencentes a instituições que, por exemplo, possuíam material de meu interesse em
seus arquivos institucionais. Essa disputa também se expressa na maneira como me
receberam, da forma como absorviam as perguntas, das respostas que obtive nem sempre se
reduzindo ou se relacionando às perguntas, dos silêncios que exigiam contextualizada
interpretação, dos códigos absorvidos e dos outros tantos que passaram despercebidos ou não
foram entendidos. Em consonância com Halbwachs,
Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre
ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser
36
reconstruída sobre uma base comum. (HALBWACHS apud POLLAK, 1989,
p.05)
Essa tensão por voz se deu, sobretudo, no processo de escrita dessa monografia, que
reclamou pela textualização das diversas representações da luta que foram percebidas no
discurso social. A necessidade de se considerar relações fronteiriças e de tensionamento ao
interpretar o contexto do qual se emergiu a sociogênese do assentamento Cafundão, requereu
que se tivesse como baliza teorias e métodos que se pautassem em aberturas ao dinâmico, ao
complexo, ao movente: essa se constitui como contribuição primaz que pude extrair da
adoção às narrativas de vidas espaciais.
I.4.1 Construção textual: etapas e procedimentos
Na tentativa de investigar diferentes
interpretações
que fazem
parte da
contextualização desse Projeto de Assentamento (PA) Cafundão, foram consideradas a
existência de várias vozes que narram o mesmo tema, que aqui é o assentamento. Vozes que
expressam representações. Considera-se, de forma hipotética, que essas vozes que denunciam
sociogênese se relacionam às motivações e ao desenrolar da luta, às formas como essas estão
expressas através de memórias e, evidentemente, a como esses elementos são imaginados e
expressos nos discursos e também nos silêncios.
Dessa forma, realizou-se leituras que demonstrassem o contexto da política de criação
do assentamento de reforma agrária. Nesse momento, esbarrou-se com teorizações que
tenderam a explicar as desigualdades de distribuição de terras percebidas hoje, contendo
raízes na construção do espaço brasileiro. Essas leituras se pautaram em textos os mais
diversos que compõem as referências bibliográficas de pesquisa e em uma publicação
governamental que visava a uma revisão das jurisdições que dispõem sobre a questão de
terras no Brasil, a mencionada Coletânea de Legislação e Jurisprudência Agrária e Correlata
(BRASIL/MDA, 2007). Essas leituras e a textualização das impressões delas oriundas
compuseram o contexto da política de assentamento, que foram expostos no capítulo 1.
Busquei por registros documentais que manifestassem formas interpretativas dos
contextos dos quais o Cafundão poderia fazer parte, bem como algumas formas de
representação sobre os assentados e o Cafundão. Considerei as abordagens do EstadoPrefeitura, da Igreja Cristã da Arquidiocese de Mariana e um ponto de vista da mídia expressa
no jornalismo local, que compõem uma das possibilidades existentes. Por esse motivo, foram
37
visitados jornais e documentos que não expressam necessariamente a opinião da Instituição à
qual se vinculam4, sendo eles: O Arquidiocesano (1972-1983) sendo a Arquidiocese de
Mariana responsável por sua publicação; O Monumento (1989-1991) expedido pela Prefeitura
de Mariana; e O Liberal (1994 - 2004) jornal local que abarca os municípios de Mariana,
Ouro Preto e Itabirito; as Atas de Reunião Ordinária e Extraordinária da Câmara Municipal de
Mariana nos períodos de 1989 a 1998; o jornal O Ruralista arquivado no órgão Emater-MG
(1983-1993) e os poucos artigos que foram escritos mencionando-se, em poucas linhas, o
Cafundão, tais como Alves Filho et al (2007; 2010; s/d), Agência Brasil (2011), INCRA
(2008), CETEC (2006), Rita Santos (2009), Gustavo Silva (2006).
Explica-se que os exemplares do jornal O Monumento e O Liberal foram consultados
na Biblioteca Pública Municipal do município de Mariana, MG. As matérias foram
digitalizadas por meio de fotografias tiradas de celular, e algumas impressões foram escritas
na Caderneta de Pesquisa. Já os exemplares do jornal O Arquidiocesano estavam disponíveis
na Hemeroteca Histórica da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, situada na cidade de
Belo Horizonte, MG. Nessa Hemeroteca, há um sistema de consulta das matérias de forma
digital e, aquelas que despertaram interesse, foram selecionadas e copiadas em CD-R,
mediante pagamento efetuado por página de jornal. As Atas de Reunião Ordinária e
Extraordinária da Câmara Municipal de Mariana estavam arquivadas na própria Câmara. O
jornal O Ruralista estava disponível na Emater-MG, com sede em Belo Horizonte, MG. Os
outros escritos foram encontrados mediante consultas em sites de busca na internet,
colocando-se como palavra-chave de consulta o termo cafundão. É importante destacar que a
Emater-Mariana possui uma pasta de arquivamento de informações sobre o assentamento
Cafundão, e a consulta a esta também foi permitida, se dando na própria Instituição.
Inquiri, também, sobre o papel da memória na construção de espaço e de
espacialidade, fundamentando a metodologia de se conceber narrativas de vidas espaciais.
Deparei-me com essa forma metodológica narrativas de vidas espaciais através da mexicana
Alícia Lindón (2008). Essa autora chama atenção para a necessidade de a geografia
acompanhar as particularidades inerentes à produção de espaço, através de lentes com cunho
qualitativo de pesquisa. Conceber narrativas requereu que se debruçasse sobre a memória
como teoria e também como metodologia, compondo uma orientação teórico-metodológica –
e que está sendo exposto nesse capítulo. Para então, indagar sobre os processos de negociação
4
Mas, há de se ressaltar que, no caso dos jornais, por mais que não exprimam opiniões daqueles responsáveis
pela sua circulação, a autorização para a impressão de seus exemplares, de certa forma, transforma-os em voz da
Instituição ao qual se vincula. Traduzem-se, portanto, em voz da Instituição.
38
política e de disputa de poder nesse e desse assentamento que, hipoteticamente, fizeram
emergir de seus contextos espaciais a sociogênese do Cafundão. Esse inquérito é parte
inerente à própria construção da textualização, através da consideração de narrativas de vidas
espaciais.
As idas ao assentamento, as conversas com os assentados, a busca por contextos e
representações de pessoas que se relacionaram de alguma forma com a luta pela terra,
geraram impressões que foram transcritas na Caderneta de Pesquisa. Essas impressões se
entrelaçam de certa forma com as visões de mundo que cada qual possui e que acaba
interferindo na forma como expressam o seu passado e admitem as suas lembranças. “O
passado espelhado no presente reproduz, através de narrativas, a dinâmica da vida pessoal em
conexão com processos coletivos” Isto por que, “a reconstituição dessa dinâmica, pelo
processo de recordação, que inclui ênfases, lapsos, esquecimentos, omissões, contribui para a
reconstituição do que passou segundo o olhar de cada depoente” (DELGADO, 2006, s/n).
Dessa forma, essa Caderneta é um caderno onde inscrevi as minhas percepções oriundas de
cada conversa, de cada olhar, de cada situação que consegui ver, ouvir e, pois, absorver. É
evidente que a Caderneta não representa o olhar fidedigno com as situações a mim conferidas.
São impressões que obtive e que, por serem impressões, fazem parte das representações de
espaço apreendidas.
Na etapa de textualização, quando se produz esse texto, é que se preocupou, de fato,
com o diálogo entre as representações. Na Caderneta os elementos respeitam uma certa ordem
estabelecida pela própria página. A textualização será empreendida aqui tentando-se
dinamizar as representações, conferindo-lhes movimento. Essas representações foram
oriundas de caminhos de pesquisa que foram escolhidos.
Ressalto que não foi realizada uma observação participante para apreensão do Outro,
como recomendariam os teóricos clássicos das ciências sociais. Estes teóricos, tal como
Bronislaw Malinowski (1976), associam a imersão ao grupo que se pretende estudar, como
forma de entendê-lo em sua integridade. Dessa forma, quanto mais tempo se passa no
cotidiano do grupo estudado, melhor se entenderia o seu mundo. Revelo aqui que possuo tais
pretensões de empreender outros estudos que levem em conta o entendimento do Outro a
partir de sua dinamização, de sua construção identitária e de seu cotidiano no sentido
profundo e concreto de vida. Porém, nesta pesquisa que aqui está se textualizando, o
entendimento do Outro se deu a partir dele próprio, do entendimento de seu contexto e da
apreensão de representações que fazem sobre ele, sobre o Outro. E aí que reside a polifonia
desta pesquisa e a pluralidade na construção de narrativas de vidas espaciais, que se dão a
39
partir da investigação de sombreamentos que revelem formas interpretativas da história de
luta desses assentados e da constituição do assentamento Cafundão.
Contudo, embora eu não tenha realizado, de fato, essa recomendada observação
participante e imersão, utilizei-me de procedimentos de pesquisa a fim de apreender o Outro,
e também sobre o Outro, em seu contexto espacial. Os procedimentos aqui adotados foram
construídos em consonância com a proposta de Clifford Geertz (1989), para quem as técnicas
de pesquisa devem ser contextualizadas conforme o objeto de estudo, e devem almejar a uma
descrição densa que leve em conta à noção interpretativa de cultura. Dessa forma, os
procedimentos se pautam no estabelecimento de relações com os assentados e com outros
envolvidos na luta, incluindo autores que sobre ela escreveram. Como também, na seleção de
informantes, na transcrição e transcriação de textos, no levantamento de genealogias, na
apreensão contextual e, pois, espacial e no mantimento de uma Caderneta de Pesquisa
(GEERTZ, 1989). Todo esse processo levou em conta a seriedade e a importância do olhar,
do ouvir e do escrever (OLIVEIRA, 1996), que podem ser subestimadas pelo seu caráter
corriqueiro. Roberto Cardoso de Oliveira (1996) destaca a importância de problematizar esse
conjunto de procedimento – olhar, ouvir e escrever -, pois é a partir da problematização que se
ressalta a importância a esse conjunto conferida.
Desejo, assim, chamar a atenção para as três maneiras – melhor diria, três
etapas – de apreensão dos fenômenos sociais, tematizando-as – o que
significa dizer: questionando-as – como algo merecedor de nossa reflexão no
exercício da pesquisa e da produção do conhecimento. Tentarei mostrar
como o olhar o ouvir e o escrever podem ser questionados em si mesmos,
embora, em um primeiro momento, possam nos parecer tão familiares e, por
isso, tão triviais (OLIVEIRA 1996, p. 18).
Para esse autor, esse processo do olhar, ouvir e escrever, quando problematizado e
quando se respeita os limites que existem entre o Eu e o Outro, considerando também
corresponder a uma forma de representação do Outro, possui abertura interpretativa à
textualização do Outro. “Os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de
observação muito peculiar” que podem revelar potencialidades tão efetivas, quanto a
reconhecida observação participante (OLIVEIRA, 1996, p. 34). Além disso, a rememoração
que compreende a etapa da releitura das escritas que são feitas ao longo da pesquisa, revela-se
crucial à textualização. Conforme o autor,
40
[...] os dados contidos no diário e nas cadernetas de campo ganham em
inteligibilidade sempre que rememorados pelo pesquisador; o que equivale a
dizer que a memória constitui provavelmente o elemento mais rico na
redação de um texto, contendo ela mesma uma massa de dados cuja
significação é melhor alcançável quando o pesquisador a traz do passado,
tornando-a presente no ato de escrever. Seria uma espécie de presentificação
do passado, com tudo que isso possa implicar do ponto de vista
hermenêutico [...]” (OLIVEIRA, 1996, p. 34).
Há de se ressaltar, antes de se passar ao próximo capítulo, que os nomes dos
assentados não serão destacados, e sim sua diferenciação de gênero e a nomenclatura Sr. e
Sra. para destacar que se trata de um adulto. Isso por que, sendo um estudo sobre conflitos e
tensionamentos, há a preocupação de que este não se torne voz que se volte contra eles
mesmos, ainda que a permissão em divulgar tais nomes tenha sido a mim concedida. Ao
mesmo tempo, não se almeja, com esse posicionamento, calar vozes ou ofuscar identidades:
se se prioriza as memórias coletivas, o ser-assentado será alvo desta pesquisa, considerando
que a identidade individual estará nesse ser-assentado também impressa.
Porquanto, no próximo capítulo, explanarei sobre a historicidade da desigualdade
fundiária que serve como cenário ao entendimento do contexto que compreende o meu objeto
de estudo, que são os assentados e o assentamento Cafundão.
41
Capítulo II:
Tangenciamentos: cenários e sociogênese.
“Aquilo que revelo / e o mais que segue oculto / em vítreos
alçapões / são notícias humanas, / simples estar no mundo, / e
brincos de palavra, / um não-estar-estando, / mas de tal jeito
urdidos / o jogo e a confissão / que nem distingo eu mesmo / o
vivido e o inventado.” (Carlos Drummond de Andrade, Poema orelha).
II.1 Elucidações II
Há uma proposta de construção de tangenciamentos na textualização dessa monografia
e que se evidenciará nesse Capítulo. Trata-se da tentativa de passar e passear pelas amplas
acepções que concebem a questão da terra pautada em explicações histórico-estruturais de
construção do espaço, conjuntamente com as formas delas se realizarem nos lugares. Em
outras palavras, propus uma conversação que expõe sobre a historicidade da questão da terra a
algumas maneiras dela se expressar no espaço, sendo percebida no lugar. Isto por que, “a vida
é feita dos lugares, plenos do ser, tal como o mundo é realizado nos lugares. Eles são a
vivência cotidiana nesses pequenos universos que, cada qual com a sua particularidade,
carregam um pedaço de mundo” (HISSA e CORGOSINHO, 2006, p. 1, grifos do autor).
Elucido que esse diálogo não está pautado numa conversação entre geral e particular,
no sentido de que o particular é entendido como parcial, enquanto que ao geral estaria
designada a união de todas as partes. Geral e particular se fundem e se confundem. Ao invés
de parcial, considera-se aqui se tratar de conversações particulares no sentido de serem
particularizadas, híbridas, plurais (FOUCAULT, 1992). Conversações tais como requerem as
expressões de espaço que são múltiplas, vividas no cotidiano e percebidas no recorte para o
qual se olha - que é lugar desta pesquisa.
Os lugares, desse ponto de vista, podem ser vistos como um intermédio entre
o Mundo e o Indivíduo [...]. Esta é uma realidade tensa, um dinamismo que
se está recriando a cada momento, uma relação permanentemente instável, e
onde globalização e localização, globalização e fragmentação são termos de
42
uma dialética que se refaz com frequência. [Portanto], cada lugar é, à sua
maneira, o mundo. Ou como afirma M. A. de Souza (1995, p.65), “todos os
lugares são virtualmente mundiais”. Mas, também, cada lugar,
irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se
exponencialmente diferente das demais”. [...] Para apreender essa nova
realidade do lugar, não basta adotar um tratamento localista, já que o mundo
se encontra em toda parte. Também devemos evitar o “risco de nos perder
em uma simplificação cega”, a partir de uma noção de particularidade que
apenas leve em conta “os fenômenos gerais dominados pelas forças sociais
globais” (SANTOS, 2008, p. 314).
Milton Santos (2008) sugere, portanto, que não se deve adotar o que ele denomina por
posição localista, que se fundamenta em uma oposição binária entre particular e geral, a parte
e o todo. Essa relação localista e de contraposição são sobrepostas pelas possibilidades
comunicativas que se estabelecem entre palavras que, ao contrário de oposições binárias,
abrem-se ao diálogo, à comunicação, ao trânsito de significações. As expressões de mundo
são percebidas nos lugares, e estes lugares, em comunhão com o mundo, expressa-o.
Deste modo, da historicidade da concentração, serão discutidas as políticas de
assentamento de reforma agrária como medidas mitigadoras dos mal-estares oriundos desse
painel de desigualdade fundiária e social. Já os assentamentos, como concretizações dessas
políticas, sugerem ser mais que ajustamento fundiário. Entendê-los pressupõe a necessidade
de se compreender a historicidade da desigualdade agrária e, pois, das tensões dela oriundas.
Assim, essa iniciativa de pesquisa se pauta na tentativa de se encarar de forma contextualizada
o histórico de luta dos assentados do Cafundão, dando margem para a consideração de
contextos, de interpretações e de representações polifônicas de espaço.
A abertura à polifonia, às múltiplas vozes, à pluralidade e à multiplicidade de
representações espaciais se dará através da construção de narrativas de vidas espaciais
(LINDÓN, 2008), evidenciadas no próximo capítulo.
II.2 A historicidade da concentração de terras no Brasil: amplitudes e tensões.
A amplitude da questão da terra, incluindo sua distribuição, acesso e uso tem sido alvo
de muito escritos, não só acadêmicos, por se configurar numa tensão exímia à construção do
espaço brasileiro5. O histórico de desigualdade fundiária parece se confundir com a própria
5
A distribuição de terras no Brasil, bem como elementos como a má distribuição e o acesso desigual, têm sido
denunciados por diversos autores, tais como Vinhas (1972); Prado Jr (1981); Martins (2006); Veiga (2003).
43
história da formação territorial do país. Para Gerd Sparoveck (2003, p. 05), “a concentração
da posse da terra no Brasil tem suas origens na época do descobrimento6” e, por isso, “o
incrível desequilíbrio da estrutura fundiária em favor do latifúndio não constitui escândalo”
(ALMEIDA, 2000, p. 30). Essa historicidade pode embasar a permanência da concentração
ainda hoje, o que não quer dizer que seja a única responsável por ela.
Moisés Vinhas (1972) defende a necessidade de ampliar o escopo de discussões sobre
a distribuição de terras, por ela estar atrelada a e por interferir direta e fundamentalmente em
outros elementos sociais, assim como assinala para a emergência de se reformular a estrutura
agrária sobre a qual vem se construindo o país, começando pela discussão de tudo aquilo que
deveria preencher a expressão reforma agrária.
A reforma agrária tornou-se uma necessidade engendrada pelo processo real,
à sociedade brasileira. As transformações ocorridas no País estão todas
estreitamente vinculadas com as diversas estruturas agrárias: no momento
presente, a economia nacional, a evolução social e política estão
indissoluvelmente ligadas a ela e essa questão envolve o Congresso
Nacional, os governos, os partidos, a própria Igreja, as Forças armadas e em
especial as massas trabalhadoras rurais e urbanas. (VINHAS, 1972, p. 202)
A expressão reforma agrária certamente figura entre os conceitos e/ou temas7 que
demandam maiores reflexões, sendo formada a partir da junção de duas palavras - reforma e
agrária - que têm adquirido significados para além das definições individuais de cada léxica. É
também uma expressão que denota uma carga social oriunda ora do desejo, ora da resistência
a promover o conjunto de ações e transformações nela embutidas.
Saliento que a definição de reforma agrária é dada pela Lei 601 do ano 18508,
conhecida como Lei de Terras, sendo utilizada ainda hoje pelos órgãos governamentais. A
definição seguinte foi encontrada na página oficial de internet do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e é o parágrafo 1 do artigo primeiro da respectiva
Lei: “reforma agrária é o conjunto de medidas para promover a melhor distribuição da terra,
6
Menciono o momento em que se iniciou o processo de colonialidade específico sobre a qual se inventou o
território e o povo brasileiro, qual seja a tensão criada entre as etnias locais empacotadas sob o rótulo de “índio”
e aqueles de fora, que não eram originalmente pertencentes a essas terras, mas compuserem a sua matriz
formadora: tais como aqueles de origem europeia e africana.
7
A expressão reforma agrária é um conceito ou um tema? Não haveria de ser somente um conceito por que tal
expressão denota uma carga social que vai além de definição construída no interior da ciência. Inclina-se a
concebê-la como temática por poder ser apropriada por diversas formas de representação, inclusive as
científicas.
8
Pode ser lida na íntegra no seguinte endereço eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Lei s/L06011850.htm . Acesso em: 03/06/2012.
44
mediante modificações no regime de posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça
social, desenvolvimento rural sustentável e aumento de produção.”
9
Este conjunto de
transformações conflita justamente com os elementos que dão historicidade à concentração de
terras: essa historicidade será, agora e brevemente, analisada à luz da jurisdição brasileira,
para então se passar à reflexão de alguns elementos que a embasam.
Uma maneira de se compreender como a questão de terras vem sendo tratada no
Brasil, na tentativa de apreender o que está sendo chamado aqui de historicidade da
concentração de terras, é a partir da análise do corpo jurídico de leis que rege tal país,
considerando suas transformações, inovações e supressões. A Constituição do país, de certa
forma, traduz a sua identidade, lhe dá substância, delineia o Estado de Direito. A Coletânea
de Legislação e Jurisprudência Agrária e Correlata10 reúne uma série de leis, decretos,
resoluções, medidas provisórias, alvarás e cartas régias que dispõe sobre aspectos
constitucionais referentes ao acesso, à posse e à administração de terras pertencentes ao
território brasileiro. Tal Coletânea é resultado de um trabalho conjunto entre estruturas do
Ministério do Desenvolvimento Agrário, tais como o Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural (NEAD), a Assessoria Parlamentar, a Consultoria Jurídica, e a
Procuradoria Federal Especializada do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA). Dividida em três Tomos, essa coletânea reúne uma série de leis que dispõe sobre as
políticas agrárias brasileiras, desde aquelas influenciadas pela Lei de 26 de junho de 1375
quando visivelmente a Coroa Portuguesa obriga às cidades ou vilas do Reino a cultivarem as
suas terras, também como forma de povoá-la (BRASIL/MDA, 2007).
Não se almeja prolongar-se nessa discussão sobre as criações e formatações das leis
agrárias ao longo da história de formação do território brasileiro. Ressalto, porém, que essa
análise se mostra importante ao entendimento de como a questão da terra vem sendo
edificada. O tratamento dado pelo Estado, ou melhor, por aqueles que estão e que estiveram
na sua linha de frente, inclusive quando ainda não se tratava de um Estado Democrático; é
fundamental para se apreender o que se percebe hoje: é como se o olhar sobre a legislação e a
jurisprudência permitisse entender, ou ao menos sugerir, o sentido e o embasamento teórico,
político e ideológico que sustenta o corpo jurídico de leis, no que concerne também ao seu
aspecto agrário.
9
Disponível em: http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria-2/questao-agraria/reforma-agraria Acesso
em: 08 de agosto de 2012.
10
(Brasil/MDA, 2007)
45
A Lei de 26 de junho de 1375, anteriormente mencionada, culminou na Carta Régia de
27 de dezembro de 1695 que permitia o regime que foi chamado de sesmarias, regulamentada
pelo alvará de 03 de março de 1770.
A aplicação dessa lei na Colônia ensejou o aparecimento de extensas
propriedades territoriais e alta concentração fundiária que, acrescidas as
dificuldades enfrentadas pelas repartições públicas e a incongruência da
legislação sobre as sesmarias baixada posteriormente pelos responsáveis
pelos assuntos do além-mar, estimulava a ocupação simples de parcelas de
terra mediante precário cultivo e moradia. (NOZOE, 2006, p. 596)
Evidencio que Nelson Nozoe (2006) se refere por além-mar à coroa portuguesa,
enfatizando que por séculos as decisões políticas, econômicas e até ideológicas tomadas no
Brasil respeitavam sempre ao domínio ou poderio português; majoritariamente, quando ainda
era preciso importar as leis construídas no além-mar para que regesse aqui, em território
brasileiro, a partir de seu achamento em 1500.
Foi possível perceber, desde já, a tendência à concentração fundiária e ao mantimento
de extensas propriedades, que talvez pudessem estar fundamentados, ao longo da história
colonial brasileira, na necessidade de se povoar e de se cultivar as suas terras visando,
inclusive, à defesa desse extenso território. A repartição de lotes e as divisões administrativas
desses, longe de pressupor posse, garantiriam à coroa possuir certo controle através das
ordenações do Reino. Nesse momento, segundo Nozoe (2006), coabitava em terras brasileiras
dois tipos de domínios que acabaram se tornando paralelos: “os maninhos descobertos no
Brasil constituíam propriedade da Coroa portuguesa, ainda que sobre seus beneficiários
recaísse a obrigatoriedade do pagamento de dízimos à Ordem de Cristo” (NOZOE, 2006,
p.590). Abrindo parênteses, destaco ser interessante atentar para esse paralelismo de poder na
história colonial, entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Cristã, para perceber que, posteriormente
a independência, as ordenações do Reino foram substituídas por outras criadas na simbiose
das relações de poder que aqui se estabeleceram, tanto no Império quanto no Estado Ditatorial
e no Democrático. Esse assunto será retomado mais a frente.
O regime de concessão de sesmarias perdurou até 1822 quando, segundo Emmanuel
Freitas (2007), o sistema de posse imperou como principal via de acesso a terra. A partir daí,
coabitaram sesmeiros11, que haviam recebido a terra mediante seu cultivo e ocupação, e
11
O beneficiário da sesmaria.
46
os posseiros12 que haviam se apropriado das terras de forma diferente da concessão ou da
compra. A já mencionada Lei nº601 de 18 de setembro de 1850, ou como ficou conhecida a
Lei de Terras, desmanchou esse regime de posses e instituiu a compra como principal meio de
se adquirir terras no Brasil, como pode ser verificado em seu artigo primeiro.
Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo
que não seja o de compra. Exceptuam-se as terras situadas nos limites do
Imperio com paizes estrangeiros em uma zona de 10 leguas, as quaes
poderão ser concedidas gratuitamente. (BRASIL, 1850)
Além disso, essa Lei estabelece condenação àqueles que se apossarem das terras
chamadas de devolutas, que eram definidas da seguinte maneira:
Art. 3º: São terras devolutas:
§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional,
provincial, ou municipal;
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo
legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo
Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento
das condições de medição, confirmação e cultura;
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do
Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta
Lei;
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se
fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei. (BRASIL, 1850)
Essa mesma Lei de Terras propõe que se revalide as sesmarias que estiverem sendo
cultivadas ou com princípio de cultivo; legitima a terra adquirida através da posse desde que
se prove que há recursos para se cultivá-la; obriga tais posseiros a registrarem suas terras; dá
preferência aos possuidores de terras na aquisição e compra de outras novas; e permite que
estrangeiro também adquira gleba desde que com recursos para nela se estabelecer. Poderia
ser percebido que aqueles que já possuíam subsídios ao cultivo da terra e à criação de animais
foram grandemente beneficiados por essa Lei, por que além de terem suas terras legitimadas,
se encontravam agora numa posição confortável à aquisição e ao aumento de sua propriedade
fundiária.
Benedito Prezia e Eduardo Hoornaert (2000) expõem justamente as consequências
dessa Lei de Terras para a construção do espaço brasileiro. Apontam o seu caráter excludente,
na medida em que inibe o estabelecimento de pequenos agricultores e proprietários de terra e
12
Aqueles que se apropriaram de terras mediante sua tomada, sua ocupação.
47
beneficia os grandes possuidores de recursos. Esses autores denunciam também, o reforço da
estratificação agrária, o vigor com que surgem grandes latifúndios nem sempre cultivados, e,
inclusive, o momento em que uma massa de excluídos impedidos de na terra viverem e da
terra se estabelecerem, caminhe em direção aos centros urbanos ou permaneça na ilegalidade
e/ou trabalhadores das terras-de-outros (PREZIA E HOORNAERT, 2000). Ou seja, impedia
O acesso a terra para a grande maioria do povo brasileiro, que sem opção
migrou para os centros urbanos ou tornou-se bóia-fria. Outros continuaram
no campo como posseiros, numa situação de ilegalidade, sem direito ao
título de propriedade (PREZIA E HOORNAERT, 2000, s/n).
É evidente que todo esse impeditivo tenha gerado pressão social naquilo que se
chamaria de campo brasileiro. Posteriormente a essa Lei, na qual fica evidente a permanência
da desigualdade fundiária, medidas estatais foram sendo tomadas na tentativa de amenizar os
mal-estares, mas não se inclinavam a reformular a estrutura agrária. Segundo Gervásio Castro
de Rezende (2005, p.15, grifos meus),
Esse “sistema do colonato”, assim como todas as demais relações sociais de
produção que vigoravam no campo brasileiro no início da década de 1960,
fazia parte também de um sistema de poder que ficou conhecido como o
“Pacto Populista”, surgido com a Revolução de 1930 e que durou até a crise
desse “pacto”, a partir da segunda metade da década de 1950. Nos termos
desse pacto, em troca do apoio político dos fazendeiros, as relações de
trabalho no setor agrícola ficavam imunes à interferência estatal, que
paulatinamente aumentou com a subida de Getúlio ao poder, em 1930,
através da regulamentação trabalhista, até redundar na CLT.
CLT representa as siglas para Consolidação das Leis de Trabalho13 que foram,
segundo Rezende (2005, p. 3), estendidas ao campo somente na década de 1960, sendo um
desdobramento do Estatuto do Trabalhador Rural14 - ETR. Ainda segundo Rezende (2005),
houve algum avanço na política fundiária brasileira através do Estatuto da Terra 15 de 1964,
sendo que suas diretrizes se mantêm ainda hoje. Esse Estatuto se pautou em dois princípios
que se mostraram inéditos: o primeiro residia na “necessidade de estrita regulamentação do
mercado de aluguel de terra [para] proteger parceiros e arrendatários da ‘exploração’ por parte
dos proprietários de terra”; e o segundo, na “resolução do problema fundiário através da
13
Refere-se à Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943
Refere-se à Lei nº 4.214, de 02 de março de 1963, publicada no Diário Oficial da União de 22/3/1963;
revogado pela Lei nº 5889, de 08 de junho de 1973.
15
Refere-se à Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964.
48
14
redistribuição da terra, via desapropriação das propriedades improdutivas e sua distribuição na
forma de pequenos lotes, dentro dos assentamentos de reforma agrária” (REZENDE, 2005, p.
22). Nesse momento, a função social da terra16, que estava atrelada diretamente à produção de
alimentos, passa a ser considerada e serve de fundamento ao desenvolvimento das políticas de
assentamento. (REZENDE, 2005)
Porém, as políticas de assentamento - que são as novidades sociais trazidas por esse
Estatuto, adotadas ainda hoje, que em suma consiste na redistribuição via desapropriação de
terras - não se mostram como soluções ao problema agrário. Ao contrário, as políticas de
assentamentos ainda possuem alcance limitado e distante de se configurarem como reforma
agrária, de fato (MARIN et al, 2009; MESQUITA, 2008; SANTOS, R., 2011; FERNANDES,
s/n). Tal distanciamento para com a efetiva resolução da desigualdade de terras possui sua
raiz na abordagem e no tratamento que se tem feito, historicamente, da questão fundiária
brasileira. Essencialmente, a questão agrária recebe tratamento reduzido e, algumas vezes, até
sobreposto se comparado à importância dada para a questão agrícola.
A divisão da questão da terra nessas duas subquestões - agrária e agrícola -, que será
discutida posteriormente, extravasou os fins analíticos e tem se incrustado na sociedade como
se realmente existisse, demonstrando que a abordagem de uma questão tão ampla como a da
terra se expressa no espaço brasileiro de forma complexa.
II.3 Elementos embasadores da historicidade da concentração de terras: agrário e
agrícola em uma questão brasileira.
Graziano da Silva (2001) separa, para fins analíticos, a questão agrária da questão
agrícola brasileira. A questão agrícola faz referência à dinâmica da produção apenas,
incluindo a otimização dos processos, ampliação dos rendimentos, logística de distribuição, o
que e como se produz. Por outro lado, a questão agrária seria mais ampla, relacionada às
condições de vida no campo, à estrutura social que dá suporte para a produção, ao nível de
renda e emprego dos trabalhadores, às mudanças nas tecnologias e ao impacto que isso traz às
comunidades. Considerando estarem “internamente relacionadas” e de ocorrerem “muitas
16
Nesse momento, a função social estava atrelada à produção de alimentos; mais tarde, a Constituição Federal de
1988 dispõe sobre: “Art. 186 da Constituição Federal. A função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I)
aproveitamento racional e adequado; II) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente; III) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV) exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_
03/constituicao/constitui%C3% A7ao.htm Acesso em: 03/06/2012.
49
vezes simultaneamente”, separar tais questões fornece subsídios para se entender de que
forma “muitas vezes a maneira pela qual se resolve a questão agrícola pode servir para
agravar a questão agrária” (SILVA, 2001, p. 11).
Contudo, ressalto que essa separação foi criada por Silva (2001) com o intuito de
explicitar o porquê de existência de determinados paradoxos na sociedade brasileira, de
complexidades. À luz da separação, foi a maneira que esse autor encontrou para chamar
atenção para as decisões tomadas tendendo à resolução de uma questão agrícola estar se
dando em detrimento da ampla questão agrária. Tomarei essa separação de empréstimo para
demonstrar diferentes tratamentos dados a essas questões, como se realmente fossem duas, a
fim de embasar uma das possíveis explicações da historicidade da concentração de terras. A
partir dela, é possível compreender certas características paradoxais presentes na estrutura do
país oriundas desse assimétrico tratamento, por exemplo: a capitalização do campo sendo
empreendida à custa da massa de trabalhadores do campo; ou o fato de o país se destacar no
cenário mundial como grande fornecedor de alguns poucos produtos específicos 17, ao mesmo
tempo em que possui internamente carências alimentares, no que concerne à qualidade e à
variedade do que se produz para a alimentação do brasileiro (CASTRO, 2001). A esse
respeito, Josué de Castro (2001), em Geografia da Fome - o dilema brasileiro: pão ou aço,
fornece subsídios para se entender as razões de existência de carências alimentares que se
espacializaram pelo território nacional e que guardam profunda relação com o embate entre as
questões agrária e agrícola brasileiras.
Chamo
atenção para
a importância brasileira como
potencial
fornecedor
agroexportador possuindo raízes cristalizadas na construção de seu espaço, sendo marcada
pela incorporação de capitais e de inovações tecnológicas a fim de manter-se soberana. Sobre
essa dedicação do Brasil aos produtos agropecuários que figuram em seu rol de exportação,
Graziano da Silva (2001) disserta sobre a exigência de a agricultura acompanhar, pois, o
desenvolvimento, transformando a sua aparência atrasada que significava ser “empecilho ao
desenvolvimento econômico, entendido como sinônimo da industrialização do país”. (SILVA,
2001, p.11-12). Dessa forma,
17
No Caderno Economia & Negócios da versão online do jornal Estadão, há uma matéria divulgada no mês de
março de 2012 que retrata que seis produtos são responsáveis por 47% de toda a exportação de produtos
brasileiros, são eles: minério de ferro, petróleo bruto, complexo de soja e carne, açúcar e café - representaram
47,1% do valor exportado. Sendo que, ainda segundo essa matéria, em 2006 esses produtos representavam
28,4% de participação total nas exportações. Esta matéria está disponível no seguinte endereço eletrônico:
http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,seis-produtos-sao-responsaveis-por-metade-das-exportacoesbrasileiras,105640,0.htm Acesso em: 06/08/2012.
50
Com o desenvolvimento da produção capitalista na agricultura (ou seja, nas
transformações que o capital provoca na atividade agropecuária), tende a
haver um maior uso de adubos, de inseticidas, de máquinas, de maior
utilização de trabalho assalariado, o cultivo mais intensivo da terra, etc.
[...]
Essa industrialização na agricultura é exatamente o que se chama
comumente de “penetração” ou “desenvolvimento do capitalismo no campo”
(SILVA, 2001, p.13-14).
Esse processo ficou conhecido também como Revolução Verde ou Modernização
Conservadora. Para Rodrigo Martins,
[...] a expansão [dos capitais] sobre as áreas rurais deu-se, no mais das vezes,
mediante conciliação dos interesses da grande propriedade agrícola com
aqueles da manutenção das circunstâncias locais de domínio e desigualdades
sociais, constituindo assim o que convencionou-se chamar de modernização
conservadora das áreas rurais (MARTINS, 2006, p.167).
O conservadorismo dessa modernização diz respeito à preocupação de a agricultura
acompanhar os progressos técnicos a fim de manter-se em voga e, de forma concomitante, as
circunstâncias locais serem mantidas ou agravadas, constituindo o grande paradoxo sobre o
qual tem sido construído o espaço brasileiro. Em outras palavras, preocupou-se com
elementos ligados à dinâmica da produção ao abastecimento do mercado externo, a fim de
aumentá-la, pois isso significaria aumento de lucro; ao mesmo tempo em que estruturalmente
o painel agrário de desigualdade fundiária permanecia o mesmo. Poucas mudanças ocorreram,
então, com o intuito de transformar essa estrutura desigual 18, dando historicidade à
concentração de terras. Ao contrário, houve certa inclinação a apoiar a conservação e a
reprodução das relações de poder entre quem emprega – detentores da força de produção – e
quem é empregado – os trabalhadores, traduzindo-se como diferenças sociais latentes no
processo de modernização da agricultura do Brasil (MARTINS, 2006).
Os grandes proprietários e fazendeiros, lavradores embora, são antes de tudo
homens de negócio para quem a utilização da terra constitui um negócio
como outro qualquer [...] do outro lado, para os trabalhadores rurais, para a
massa camponesa de proprietários ou não, a terra e as atividades que nela se
18
“O instantâneo tirado em 1995/6 mostrou que 785 mil estabelecimentos patronais do ‘setor principal’
ocupavam 63% da área total e dispunham de quatro milhões de trabalhadores. O ‘setor secundário’ era formado
pela diminuta parte desses empregados que ainda residiam em fazendas, mais 13 milhões de pessoas que viviam
em 4 milhões de pequenos e médios estabelecimentos, amontoando-se nos restantes 37% da área total” (VEIGA,
2003, p.119).
51
exercem constituem a única fonte de subsistência para eles acessível.
Confundindo na análise da questão agrária situações tão distintas, não se
pode evidentemente ir muito longe (PRADO JR, 1981, p. 22).
Assumir que há diferenças de tratamento para essas questões contribui ao
entendimento de que elas têm sido concebidas de forma separada extrapolando os fins
analíticos, se arraigando na sociedade brasileira. Para citar um exemplo, Ângela Mendes de
Almeida (2000) trata da preferência do governo brasileiro pela grande propriedade, optando
pela manutenção da desigualdade agrária, já que os latifúndios seriam mais adequados às
pretensões ligadas à mecanização e à modernização agrícolas voltadas para a exportação.
[...] A pequena propriedade seria coisa do passado, ultrapassada, sendo que a
incrível desigualdade da estrutura fundiária constituiria um pré-requisito
importante que o Brasil já teria para entrar na modernidade agrícola. Nesse
aspecto, ao contrário de outros em que o neoliberalismo argumentava ter que
superar obstáculos e entraves à modernidade, o país já estaria - subentendese, desde sempre, desde a instalação dos portugueses - preparado para
receber a grande propriedade agrícola mecanizada. (ALMEIDA, 2000, p. 30)
A autora também chama atenção para o posicionamento do governo brasileiro
apontando, como exemplo, a existência de dois Ministérios que, de certa forma, representam o
diferencial tratamento dado à questão agrária e agrícola do Brasil. A saber, o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério da Agricultura. Esse último, desde 2001
recebe o nome de Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Segundo a
referida autora, “a dualidade de intenções do governo em relação ao tratamento da política
agrícola está expressa na existência de dois Ministérios” (ALMEIDA, 2000, p.29-30),
ressaltando que as questões, digamos, mais sociais estão ancoradas no MDA, enquanto que o
MAPA assumiria atribuições ligadas ao agronegócio ou Complexo Agroindústria - CAI19.
Essa diferença está expressa nas páginas oficiais de internet sustentada pelos setores de
comunicação desses dois órgãos. A missão que orienta o MAPA se resume à “promover o
desenvolvimento sustentável e a competitividade do agronegócio em benefício da sociedade
brasileira.20 Além disso, em sua página oficial”21, consta o histórico de competências desse
19
20
Termo aqui utilizado a partir do uso e da apropriação que Martins (2006) faz desta ideia.
Missão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Fonte: site oficial do MDA. Disponível
em: http://www.agricultura.gov.br/ministerio/missao. Acesso em: 31/05/2012.
21
Disponível em: http://www.agricultura.gov.br
52
Ministério onde percebi que o que se chama por reforma agrária vem sido retirada da pauta de
pretensões desse órgão, que já existe desde 1860. Já as competências do MDA, criado em
1999 através da medida provisória 1.911-1222, estão diretamente ligadas aos nomes de suas
secretarias, quais sejam: Secretaria Executiva (SE); Sub-Secretaria de Planejamento,
Orçamento e Administração (SPOA); Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na
Amazônia Legal (SERFAL); Secretaria de Agricultura Familiar (SAF); Secretaria de
Desenvolvimento Territorial (SDT); e a Secretaria de Reordenamento Agrário (SRA).
Essa organização ministerial mostra que a separação entre a questão agrária e a
agrícola está internalizada nos pressupostos que orientam o planejamento e as intervenções no
campo brasileiro. As estratégias de desenvolvimento econômico, ampliação da produção,
aumento da competitividade e lucratividade do setor agrícola encontram-se desconectadas,
ideológica e fisicamente, das estratégias de promoção de qualidade de vida, dignidade e
cidadania para a população que vive no campo. Temas como a reforma agrária e a agricultura
familiar surgem como anexos do sistema agrícola brasileiro, não figurando entre as formas de
organização que comandariam o processo de desenvolvimento. Esse tratamento diferenciado
certamente encontra-se no cerne das tão graves desigualdades hoje percebidas no campo.
A partir dessas leituras que almejam compreender a questão da terra em seu sentido
amplo, deparou-se com movimentos, que ocorreram ao longo da história recente do país, que
denunciam o despertar de consciência ou certo incômodo em relação ao mencionado
panorama de concentração de terras. As Ligas Camponesas, por exemplo, marcaram a década
de 1940 com a organização de trabalhadores rurais na tentativa de reclamar por reforma
agrária, e também reivindicar direitos sociais e trabalhistas ao campo. Destaco que o cenário
de pós-ditadura, logo redemocratização do país, no pós-1945, colaborou para a organização
rural que foi amparada pelo então recém-legalizado Partido Comunista Brasileiro – PCB,
angariando adeptos por todo o território nacional. Porém, segundo Lúcia Gaspar (2012), a
proscrição do PCB contribuiu para que nenhum item da pauta de reivindicações fosse
aprovado pelo Congresso, o que ocasionou considerável perca de forças. A partir daí, de
organização, as Ligas Camponesas passaram a representar o movimento agrário, denunciando
que a luta pela terra deixa de se dar de forma prioritariamente partidária, se dando agora
alternativamente a partir da pressão social (GASPAR, 2012).
Ainda segundo Gaspar (2012), o movimento pró-reforma agrária volta a se intensificar
a partir de 1961, com a chegada de João Goulart ao poder com sua promessa de reforma de
22
Nessa ocasião, possuía o nome de Ministério de Política Agrícola e Desenvolvimento Agrário, mudando para
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2003 através do decreto 3338. (FAVARETO, 2010, p.83)
53
base como carro-chefe da pauta de pretensões. No ano seguinte, é criada a Superintendência
de Política Agrária, para então se chegar, somente em 1963, ao mencionado ETR, que
regulamenta as leis trabalhistas e serve de pano de fundo à criação da CLT.
Percebi que, já nessa época, a reforma agrária aglutinava tensão e pressão social, dada
sua pertinência e sua justificação de existência. E também por esse motivo, depois de
reconhecida capacidade de organização entre os pares que compartilhavam das mesmas
insatisfações, esse termo – reforma agrária - passou a ganhar vulto no cenário político,
compondo políticas e pautas de pretensões de diversos governos. Como já expus no texto,
falar em reforma agrária denotava certo compromisso com a sociedade e um suposto
reconhecimento de uma estrutura que carecia de reformulação.
O ano de 1964 além de ser lembrado por nele ter sido dado o golpe militar, foi
marcado também pela criação do Estatuto da Terra. Esse Estatuto traz à baila a consideração
da política de assentamento de reforma agrária como remediação ao incômodo gerado pelo
painel de desigualdade fundiária, assim como revela também certo interesse de que esses
assentamentos se dediquem à função social da terra, que é o seu cultivo. Porém, segundo
Gaspar (2012), tentativas de desapropriação de terras, conforme permitia esse novo Estatuto,
foram coagidas, gerando certa pressão para que as Ligas de novo se institucionalizassem:
dessa vez, de movimento passam a atuar como Sindicato de Trabalhadores Rurais.
Ao longo da construção do espaço brasileiro, a distribuição fundiária foi sendo
parcialmente empreendida quando estavam implícitas as pretensões e os interesses de pessoas
representativas no cenário político e econômico do país – e raramente contra esses. Por
exemplo, os grandes projetos de desenvolvimento regional, característicos da segunda
ditadura do país (1964-1985), se pautaram na tentativa de descentralizar industrialmente o
território, criando novos polígonos potencialmente econômicos e densamente habitacionais.
Glebas foram postas à compra ou à distribuição para que se garantisse o sucesso desses
projetos. (GASPAR, 2012). Destarte, a política de assentamento passou a ser executada a
passos lentos, desde que interesses maiores e primazes não fossem prejudicados.
[...] o Estado apenas distribuía a terra e destinava poucos recursos para que
os agricultores viabilizassem economicamente suas propriedades, o que
levou ao fracasso de diversos assentamentos. Além disso, as terras
distribuídas estavam localizadas em áreas marginais e de solo pobre. O
modelo de assentamento adotado atualmente no Brasil conta com estímulos
à produção de alimentos e métodos sustentáveis na produção. Para melhorar
a qualidade de vida do assentamento e estimular os agricultores a não
abandonar as próprias propriedades, as políticas públicas no campo passaram
54
a incluir também obras de infraestrutura, como a implantação de redes de
água e energia elétrica e a melhoria e construção de estrada [...]. Há ainda o
acompanhamento e orientação produtiva, social e ambiental nos
assentamentos [...] (BRASIL).23
Essa mudança na maneira de se encarar os assentamentos de reforma agrária, diz
respeito ao entendimento de que é preciso ir além do acesso a terra, passando a incluir a
necessidade de esses assentados conseguirem permanecer na terra, viver dela e nela. Os
programas de reforma agrária pensados pelo Estado, e por seus órgãos federais, passaram a
ser ajustados em nível local e até contextualizados através do serviço de assistência ao
assentado. Para tanto, foram criadas instituições específicas e dedicadas a essa questão: a
criação do INCRA, em 1970, e dos serviços de extensão rural a partir de 1948, se configuram
em grandes exemplos. A primeira instituição é, em suma, incumbida da concretização do
assentamento: administrar as políticas, avaliar os potenciais beneficiários e as glebas
reivindicadas e/ou a eles postas à compra. Enquanto que os serviços de extensão rural, no caso
do Estado de Minas Gerais, se iniciaram com a criação da Associação de Créditos e Extensão
Rural (ACAR) em 1948 e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATERMG) em 1976. Esse tipo de serviço se responsabiliza pela assistência ao beneficiário, de
forma a contribuir para sua permanência e sobrevivência na terra.
Essas instituições possuem papel importante na reforma agrária, ainda que ela esteja
sendo empreendida de forma tímida e pautada em mitigação de pressão e reivindicação social,
e não de forma estrutural. No caso do assentamento Cafundão, houve a consideração de
particularidades, que ainda não se sabe se foi proposital, mas que interferiu diretamente para
constituição do assentamento. Percebi que a terra reivindicada por tais assentados, e que se
verá mais adiante ter pertencido juridicamente à Igreja, possuía em si, na terra, elementos que
construíram noções de lugar para esses e desses assentados. Outra terra se fosse a eles
destinada, talvez não expressasse a importância de se ter a gleba. Para se entender a
importância da terra, e que será construída ao longo de toda a textualização, revela-se
necessário, antes, o entendimento da mencionada importância das instituições INCRA e
EMATER.
II.4 O assentamento Cafundão e o inquérito por contextos de sociogênese
23
Disponível em: http://www.brasil.gov.br/sobre/cidadania/brasil-rural/reforma-agraria/print.
55
As importâncias das Instituições INCRA e Emater foram confirmadas nas falas dos
assentados do Cafundão que exaltam e designam a elas parte substantiva da conquista de serassentado. Ao INCRA, é destinado o papel de ter desapropriado as terras e,
consequentemente, de ter posto fim ao conflito, conforme pode ser verificado nesse fragmento
que faz parte de uma lauda que eles próprios escreveram e me entregaram como forma de
contar sua história e apresentarem-se:
A determinação dos posseiros como Geraldo Pintado, Zé de Regina,
dona Graciete, Neném Barriga, Adriano e Adão e todos os outros,
conseguimos resistir bravamente desta forma com muita luta. Foi
conquistada a desapropriação daquelas terras pelo INCRA sendo
Fazenda Cafundão entregue para os posseiros que estão na luta pela
construção da Cooperativa da Fábrica de Panela de pedra sabão pelo
INCRA. A luta da fazenda cafundão é um exemplo de vida do povo
pobre e trabalhador unido e mobilizado pode conquistar seus direitos e
avançar na construção de uma vida melhor (LAUDA CONSTRUÍDA
POR ASSENTADOS)24.
24
Essa lauda foi escrita pelos assentados e traz a história de luta desses contada sob o titulo Cafundão: uma
história de vida. Nela há uma construção pautada na ordem dos acontecimentos, sendo que a cronologia se
mostra presa aos próprios acontecimentos. Essas impressões serão discutidas mais adiante no texto. Ressalta-se
que essa lauda foi a mim entregue pelos assentados como forma de apresentarem-se. Pediram para que eu lesse e
contasse essa história, pois ela já estava pronta. Essa lauda, que é uma forma de sistematização da história,
serviu, num primeiro momento, como forma de justificativa de que não precisariam aprofundar sobre eles
mesmos, não precisaria de mais perguntas, pois tudo já estava escrito e ensaiado. Eles se expressaram para além
do que estava escrito mediante alguns comentários meus que fugiam da cronologia e dos acontecimentos postos
nessa lauda. Isso também será discutido, mais adiante.
56
Figura 1: História do assentamento Cafundão em uma lauda escrita pelos próprios assentados. O título
dessa é “Cafundão, uma história de vida” (Arquivo pessoal).
Percebe-se que a terra denominada de Fazenda Cafundão é entendida como direito
inerente a eles próprios, por que nela sempre trabalharam. Percebe-se também que os nomes
dos assentados que foram à luta, no sentido de ir em busca daqueles potencialmente capazes
de contribuir para ela – tais como a Prefeitura Municipal de Mariana, o INCRA e Sindicatos
de Trabalhadores Rurais -, são destacados. Mas, a dimensão coletiva dessa luta não é
diminuída ou subestimada em delineamento de sub-papéis. O papel do coletivo, daqueles
outros nessa história não mencionados, foi resistir à espera da resolução do conflito que foi
trazida pelo INCRA. E, por esse motivo, essa Instituição apareceu nessa história escrita por
esses assentados. Mas, adianta-se, que a relação que eles possuem para com o INCRA se
relaciona estritamente ao papel relegado a ele em seu quadro de competências: “o de ter vindo
de algum lugar, resolvido o nosso problema e depois ouvi falar poucas vezes” (FALA DE
ASSENTADO, TRANSCRIAÇÃO DE ANOTAÇÕES DA CADERNETA).
Há de se destacar que a mencionada Cooperativa da Fábrica de Panela de pedra-sabão
tem importância considerável e se entrelaça com a própria narrativa de vida e trabalho dessas
pessoas. O assentamento Cafundão está situado numa área de ocorrência da rocha
metamórfica denominada esteatito, mais comumente conhecida como pedra-sabão. Suas
57
propriedades de retenção de calor, somada às propriedades que permitem seu manuseio
artesanal, são aproveitadas na confecção de panelas. Essa atividade se constitui como a
principal fonte de renda das famílias do assentamento Cafundão e também do subdistrito ao
qual ele pertence, que é Cachoeira do Brumado. Esse assentamento retira, pois, da venda de
panelas de pedra o seu sustento e a possibilidade de se obter utensílios, serviços e alimentos
que o cultivo da terra não é capaz de oferecer. Explico.
O assentamento Cafundão é composto por doze famílias de assentados: essa
delimitação da família em doze se refere ao número de lotes em que foi dividida essa terra, e
não a laços consanguíneos. Até mesmo por que, todos eles possuem alguma forma de
parentesco, seja na forma de ser consanguínea, seja por apadrinhamento de descendentes.
Cada família possui, pois, seu lote devidamente demarcado, inclusive fisicamente através de
cercas. Em cada lote, e isso se reproduz em todas as doze famílias, há a casa, a horta e alguns
animais soltos pelo terreiro, tais como galinhas, porcos, animais domésticos, patos, algumas
unidades de vacas e peixes. Esses lotes estão numa topografia tão íngreme que dificulta a
criação de animais que poderiam, a partir da venda, agregar renda às famílias. Estão situados
também em uma região denominada por eles próprios como rica de água, por se localizar na
sub-bacia do Ribeirão Cachoeira do Brumado (SOBREIRA et al, 2005). As terras de cada lote
são insuficientes para se investir em grandes colheitas, tendo-se em vista que o território do
lote já é disputado pela casa, pelos poucos animais, pela horta, e pelas áreas de passagem de
um lote a outro. Há o plantio de milho fora do assentamento, em terras vizinhas, mas que,
segundo um assentado, tende a não mais ocorrer devido à ausência de alguém que dedique
atenção a esse plantio.
A confecção de panelas de pedra sabão se constitui como o trabalho que torna possível
a reprodução desses que são hoje assentados. É aí que reside a grande importância concedida
à Emater, especificamente à seção regional situada na sede do município de Mariana. Essa
Instituição contribui de algumas formas para a venda de panelas quando busca dar certa
visibilidade ao trabalho feito pelos assentados, em feiras de artesanato na região. Inclusive, e
tudo isso será melhor discutido ao longo do texto, a Emater-Mariana se mostra corresponsável
pelo recente despertar de consciência desses assentados na lapidação de sua própria imagem
de ser-assentado aos de fora, aproveitando-a à singularidade e à inserção de seus produtos no
mercado da região.
O fazer panelas se configura como atividade essencialmente de homens, tanto no
assentamento quanto no restante da área do distrito, enquanto que as mulheres são
responsáveis pelas crianças, pela horta, pelas atividades artesanais, tais como a confecção de
58
tapetes. Salvo alguns casos de completude na divisão do trabalho, que caminha para uma
ressignificação. Fazer panelas de pedra sabão é uma atividade de longa-data, que já ocorre
antes mesmo da criação do assentamento. Quando indagados sobre há quanto tempo
trabalham na confecção dessas panelas, a explicação remete a tempos anteriores ao que
conseguem lembrar: “meu avô, o pai do meu avô, o avô do meu avô já mexia com isso”
(FALA DE ASSENTADO TRANSCRIADA A PARTIR DA CADERNETA DE
PESQUISA). Percebe-se, portanto, que fazer panela de pedra sabão não se resume àquilo que
Schneider (2003) chama de pluriatividade, quando se quer referenciar outras formas de
produção para além do cultivo da terra, às quais denomina de atividades não-agrícolas, como
forma de na terra permanecer. No caso dos assentados, esses possuem o saber que está
diretamente ligado ao território em que sempre se encontraram: fazer panelas de pedra está
para além de ser mero ofício ou alternativa de trabalho, se circunscrevendo em algo identitário
e com raízes literalmente no solo do Cafundão.
Adianta-se que essas raízes emergem como importantes fatores a serem considerados
na sociogênese e constituição do próprio assentamento e, por extensão, nessa textualização.
No próximo capítulo, se construirá as narrativas de vidas espaciais em seu sentido plural e
polifônico. Isto por que, se colocará em diálogo as construções espaciais com as
representações absorvidas dos assentados, sobre os assentados e sobre o assentamento
Cafundão. Há, pois, diálogos entre estas representações, que não deverão ser interpretados de
forma escalonada e sim tangenciada.
59
Capítulo III:
Narrativas de vidas espaciais.
”Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram.
Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas de fazer balancê,
de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se
guarda em trechos diversos; uns com os outros acho que nem se
misturam [...]. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas
de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais
perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é
uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a
infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma
coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe
dá sentido, principio, meio e fim, mas como um álbum de retratos,
cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro.
Talvez seja esse o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória
se encontram as coisas eternas, que permanecem…” (João
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas).
III.1 Elucidações III
Um caminho foi percorrido até aqui. Primeiro, Primeiro, foi proposta uma conversação
que pretendeu servir de alicerce teórico-metodológico a esta pesquisa. A teoria foi construída
a partir da contribuição de muletas teóricas, que são palavras chamadas a auxiliar na
textualização de representações. Apoiou-se sobre muletas concebidas como geográficas –
região, território, paisagem, lugar e espaço – e sobre outras duas fundamentais ao
desenvolvimento desta pesquisa, a saber memória e identidade coletivas, sendo que essa
última foi brevemente abordada se relacionando à primeira. Essas muletas possuem
significados individuais que as justificam no sentido de serem e de servirem como muletas.
Todavia, preocupou-se muito mais com os tangenciamentos que são atravessamentos de
significados que revelam correspondências, pontos em que se intersectam, se esbarram, se
fundem e se confundem. Preocupou-se com tangenciamentos que auxiliassem na
textualização de impressões e, pois, de representações.
60
Posteriormente, abordei algumas questões que compõem o que se chama de questão da
terra que acaba criando um contexto ou um sentido de existência da política de assentamento
de reforma agrária. Percebi que tal política serve, de certa forma, como medida mitigadora de
mal-estares sociais oriundos dos cenários de desigualdade social e de acesso a terra. Essa
política sugere mitigar o tratamento diferenciado dado à questão da terra, ao longo da história
de construção do espaço brasileiro. A despeito de leis como a da política de assentamento,
jurisdições foram brevemente analisadas percebendo-se certa ratificação desse desigual
tratamento, inclusive com a diferenciação entre duas subquestões, quais sejam agrária e
agrícola. Esse tratamento desigual também preenche imaginários sobre o que seja um
assentamento de reforma agrária, que recebe o nome de uma expressão – reforma agrária –
que denota carga social que lhe dá significâncias para além dos significados de cada uma
dessas duas léxicas.
Contudo, almejou-se inquirir por representações de espaço dos assentados, sobre os
assentados e sobre o assentamento Cafundão. Esse inquérito por representações se deu a partir
da consideração de narrativas de vidas espaciais que, como já discutido, se pauta em uma
orientação teórico-metodológica que leva em conta as particularidades e os movimentos
necessários à apreensão de espaço, que é movente. Esse capítulo se propõe, portanto, a
textualizar tais representações, compondo o que se chama aqui de narrativas de vidas
espaciais dos assentados e assentamento Cafundão.
Ressalto que irei textualizar as representações absorvidas tal qual as percebi. Não me
proporei a escalonar memórias e nem a estabelecer entre elas relações de veracidade. Há uma
proposta de textualizar as representações que fiz do Outro, que apreendi como sendo
representações que o Outro possui dele próprio e aquelas outras representações absorvidas
como sendo acerca do Outro, considerando o contexto apreendido. Proporei o diálogo entre as
representações que estará pautado na consideração do tensionamento como construtor de
espaço e de hibridez espacial. Deste modo, essa textualização não haveria de possuir tom
conclusivo ou estabelecimento factual entre as situações absorvidas. Há tensionamentos entre
representações que, quando olhadas hoje, são passíveis de diálogo, entrecruzamento,
correspondência. Sendo que, o “hoje [...] é o presente que assume todo o espaço e se dá como
representação global no tempo [...] que se substitui à profundidade da duração” (SUE apud
SANTOS, 2008, p.329).
Contudo, considero importante destacar, como já mencionado, que esta pesquisa não é
um estudo sobre o Outro, no sentido de conhecê-lo profundamente, no que concerne também
aos seus signos culturais, às suas identidades e às suas visões de mundo. É uma pesquisa que
61
nasceu da inquietação em relação aos sombreamentos encontrados na história de luta pela
terra chamada de Cafundão. A busca por esses sombreamentos está pautada na consideração
das diversas formas de representar a luta. Para tanto, considerei o tangenciamento entre as
representações do Outro sobre ele mesmo, as representações sobre o Outro e as formas de
apropriação e interpretação das terras que se transformaram em assentamento. Esta pesquisa
se enveredou, portanto, por caminhos tangentes na consideração da polifonia do espaço.
Essa textualização, portanto, possui movimento em grande medida baseado pelo
movimento de mundo, percebido no tempo em que se dá a pesquisa. O movimento
acompanha também a atividade construtora de texto que é a rememoração. Essa escrita do
texto se deu através da atividade de rememoração (OLIVEIRA, 1996), proporcionada a partir
da releitura da Caderneta de Pesquisa. Ao longo desta pesquisa, de cujo começo é difícil
precisar, mas remete, talvez, há tempos correspondentes ao início da graduação, tudo aquilo
com que me esbarrei trazia em si a pretensão de poder se relacionar de alguma forma com o
Cafundão. Passei a prestar a atenção a informações as mais diversas que comunicavam
mensagens que se relacionavam a assentamentos, assentados, conflitos por terra,
pluriatividade, distrito de Cachoeira do Brumado, desigualdade fundiária. Ao longo desta
pesquisa, percebi que eu me perdi em informações. Por isso, passei a adotar, no final do ano
de 2011, a Caderneta de Pesquisa para convergir e organizar essas tais. E só depois
compreendi ser a Caderneta uma etapa crucial da textualização de representações (GEERTZ,
1989). Nesse momento, essa Caderneta correspondia a uma pasta, com folhas plastificadas,
onde eu encaixava os documentos xerocados, os textos impressos, as notícias recolhidas, as
entrevistas transcritas. Depois, passei a convergi-las para um documento digital, com certa
lapidação estética. Mantenho, portanto, duas Cadernetas que se somam na Caderneta de
Pesquisa. Esse capítulo se dedica, portanto, a lê-la, textualizando-a em seu processo de
construção.
A construção desse capítulo se deu a partir da consideração de que há tensionamentos
inerentes à construção do espaço brasileiro, e que se expressam no Cafundão. O conflito por
terras, se misturando à impunidade, violência, apropriações espaciais as mais diversas. O
atravessamento de religiosidades foi percebido como cenários de tensões que extrapolam os
domínios das crenças. As disputas por poder, materializado também no anseio pela
governança, expressam divergências nem sempre relacionadas às propostas, indo de encontro
a interesses pessoais, políticos e econômicos postos ao confronto. Percebeu-se também
tensionamentos relacionados à concorrência, por exemplo, de produtos, de produção e de ser
contemplado por políticas governamentais. Essas questões tiveram que fazer parte da
62
narrativa do assentamento Cafundão por compor sua sociogênese, que se pauta sobre o
diálogo entre essas e outras várias tensões. As narrativas dos assentados tiveram que, por
consequência, ser construídas de forma entrelaçada ao espaço que eles próprios contribuíram
para a construírem e que foi responsável pela construção deles próprios – numa dialética
espacial. Ressalto que essa dialética não deve fechar-se em si mesmo como dois espelhos
postos frente a frente, num atravessamento unidirecional de reflexos que constroem e são
construídos mutuamente. A história do Cafundão, dos assentados, sobre os assentados e do
assentamento deve ser concebida como possibilidade de abertura polifônica, abrindo-se a
outras formas de representação. A construção do espaço hoje, sendo resultado daquilo
construído ao longo do tempo, converge materialidade e formas invisíveis que não são
passíveis de apreensão. Aqui estarão expostas aquelas que eu absorvi e, pois, representei
através dessa textualização.
Figura 2: Capa da Caderneta de Pesquisa, que no processo de rememoração à textualização, passou
também por um processo de lapidação estética.
63
III.2 A Terra: questão de posse.
De quem era a terra, antes de ser assentamento? Escolhi essa indagação para iniciar
esse capítulo. A questão da posse da terra ou do direito de nela viver constitui o grande cerne
da história de luta dos assentados e da criação do assentamento Cafundão. Os conflitos
ocorridos nessas terras, ou por causa delas, foram responsáveis pela criação do assentamento,
pela criação da identidade de ser-assentado e pela confluência na construção desse espaço.
Em relação ao espaço, além de ter sido construído a partir dos tensionamentos, também
construiu a gênese dos conflitos. Tais tensionamentos foram construídos pela sociogênese, ao
mesmo tempo em que a construiu. Ou seja, são oriundos da questão de posse das terras que
correspondiam à Fazenda Cafundão e abrangem elementos que se relacionam às motivações
dos conflitos, aos envolvidos e às maneiras como o espaço construiu e foi construído por tais
conflitos.
Como já mencionado, o assentamento de reforma agrária Cafundão se localiza em
uma terra que era chamada de Fazenda Cafundão. Aliás, o assentamento corresponde a
somente parte dessa Fazenda, que pertencia em sua totalidade à Paróquia da Nossa Senhora da
Cachoeira do Brumado. A área vendida ao INCRA corresponde a 48 (quarenta e oito)
hectares, cerca de trinta por cento (30%) da dimensão da Fazenda Cafundão que possuía
amplitude de 158 (cento e cinquenta e oito) hectares, conforme vistoria e avaliação de imóvel
rural solicitada pelo INCRA através da Portaria de 12 de março de 199225. Posteriormente a
essa vistoria, no ano seguinte, através da Portaria número 9 de 21 de janeiro de 199326, foi
manifestado o interesse dessa autarquia em adquirir as terras vistoriadas no ano anterior e que
viriam a ser as terras correspondentes ao assentamento Cafundão. Tal interesse reside no fato
de que essas já estavam direcionadas para fins de reforma agrária.
CONSIDERANDO que no imóvel objeto da aquisição deverão ser
assentadas treze famílias de agricultores, que já o ocupam;
CONSIDERANDO o disposto nos arts. 17, alíneas "o", e 31, inciso III, da
Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, e no art. 10, 65 Decreto :IQ 433,
de 24 de janeiro de 1992, bem como a autorização do Conselho de Diretores
do INCRA, expressa na Resolução nO 123, de 09 de julho de 1992, resolve:
25
Publicada no Diário Oficial da União de 18 de março de 1992, seção 01, quarta-feira, página 1674.
Portaria publicada no Diário da União de 27 de janeiro de 1993, quarta-feira, número 18, seção 01, página
1180.
64
26
I - DETERMINAR a adoção das providências necessárias à aquisição de
parte do imóvel rural denominado "FAZENDA CAFUNDÃO", com área de
48,4110 hectares, localizado no Município de Mariana, no Estado de Minas
Gerais, de propriedade da Paróquia de Nossa Senhora da Cachoeira do
Brumado, mediante o pagamento da quantia de Cr$ 42.424.003,64,
correspondente a 101 Títulos da Dívida Agrária, a serem emitidos com prazo
de dez (10) anos, resgatáveis em parcelas iguais, do segundo ao décimo ano.
II - DETERMINAR à DF, à DA e à PJ a adoção das providências
pertinentes, com vistas ao empenho dos valores, lançamento dos Títulos da
Divida Agrária e elaboração da minuta de escritura pública, a qual devera
atender aos requisitos do art. 10, parágrafos 24 e 34, do Decreto n4 433, de
24 de janeiro de 1992 (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1993, p. 1180).
Nessa Portaria, é expresso o número do cadastro da Fazenda Cafundão como imóvel
rural devidamente regulamentado nessa mesma autarquia, tendo como proprietária a Paróquia
desse distrito. Consta também a concordância da Paróquia em vender os 48 hectares
requisitados para fins de reforma agrária. Nesse mesmo ano, foi solicitada à Superintendência
do INCRA no Estado de Minas Gerais, escritura pública de compra e venda relativa à área em
questão. Essa solicitação ocorreu através da Portaria 344 de 24 de junho de 1993, publicada
no Diário Oficial da União27 desse mesmo ano. O encaminhamento para a criação, de fato, do
assentamento se deu a partir da Portaria publicada em 1995, que solicitou a criação e os
ajustes necessários ao reconhecimento dessas terras como assentamento de reforma agrária,
bem como o seu pertencimento à unidade denominada de SR-062 que corresponde à seção do
INCRA do Estado de Minas Gerais.
[...] Comarca de Mariana, Minas Gerais, sob a Matricula n° 7.393, Livro 2AA, Folhas 253 em 20 de setembro de 1993, e que prevê a criação de 12
(doze) unidades agrícolas familiares e a implantação de infraestrutura física
necessária ao desenvolvimento da comunidade rural, de conformidade com o
Plano Preliminar, elaborado na SR-062;
II - Criar o Projeto de Assentamento CAFUNDÃO a ser implantado e
desenvolvido por esta Superintendência Regional, em articulação com a
Diretoria de Assentamento;
III - Autorizar a Divisão de Assentamento desta SR-(06) a promover as
modificações e adaptações que, no curso da execução, se fizerem necessárias
para a consecução dos objetivos do Projeto;
IV - Determinar à Divisão de Assentamento da SR-(06) que encaminhe
cópia deste ato, ora aprovado, para a Diretoria de Assentamento, para fins de
registro, controle e publicação do mesmo no Diário Oficial da União;
V - Determinar à Divisão de Assentamento da SR-(06) que participe aos
órgãos de Meio Ambiente, Federal e Estadual, o Projeto ora criado.
(DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1995, p. 2078).
27
Publicada no Diário Oficial da União de 25 de junho de 1993, seção 02, sexta-feira, página 3482.
65
O intervalo ocorrido entre a vistoria do imóvel rural Fazenda Cafundão e o
encaminhamento para a criação do assentamento foi de aproximadamente três anos. Esse
pequeno intervalo poderia ofuscar todo um confuso processo inerente a essa petição de
criação de assentamento.
O assentamento Cafundão foi criado a partir do que chamam de forma de obtenção de
terras por compra e venda. Segundo o Relatório 0227 de 18 de agosto de 2011 do Sistema
Institucional do Programa de Reforma Agrária (SIPRA), da Diretoria de Obtenção e
Implantação de Projetos de Assentamento, existem onze formas de obtenção de terras e de
implantação de projetos de assentamento, são elas: desapropriação, reconhecimento, compra e
venda,
doação,
arrecadação,
discriminação,
incorporação,
transferência,
confisco,
adjudicação, cessão e aquelas que ainda estão em fase de obtenção. A diferenciação dessas
formas de obtenção se relaciona às maneiras como se deu ou está se dando a criação de um
assentamento. É importante destacar que esse Relatório é uma atualização dos dados
referentes à reforma agrária, trazendo os nomes, os municípios, as áreas, as formas de
obtenção e a situação de todos os assentamentos criados desde o ano de 1900, totalizando
8.790 projetos (MDA/SIPRA, 2011).
Saliento que esse Relatório denomina cada assentamento como Projeto de
Assentamento ou simplesmente a sigla PA. Não será adotada essa forma de nomear o
assentamento Cafundão, chamando-o de PA Cafundão, pois não foi notada certa assimilação
dessa expressão pelos assentados. Ao contrário, quando se falou PA Cafundão, eles não
entenderam se tratar do próprio assentamento. Além disso, eles possuem uma inclinação a
sempre evidenciar que moram em um assentamento e não somente no Cafundão, pois essa
última nomenclatura também serve aos arredores que não abrange terras de fins de reforma
agrária, ou seja, os outros 70% (setenta por cento) de terras da Fazenda Cafundão. Por esse
motivo, está se adotando aqui sempre a denominação de assentamento Cafundão.
Indaguei a uma assentada, que veio de São Paulo para casar-se com um
assentado, sobre a forma como ela percebe a visão que outras pessoas
possuem do assentamento e deles, dos assentados.
Tratam igual. Assim, nem sabem que é assentamento e perguntam se tem
assentamento lá. Nós temos que falar assentamento cafundão. Por que até a
conta de luz vinha errado, vinha cafundão, vila cafundão. Aí explica, esse é o
assentamento cafundão. Mas tem essa separação por que lá em cima não é
assentamento e lá embaixo também não é assentamento... Até uma parte
desse morro descendo é o assentamento, mas ai depois já não é mais. O
cafundão de baixo é Vargem Alegre, né? É, mas lá esse Vargem Alegre não
foi aprovado pela prefeitura. Não aprovou por que o povo já conhece como
66
Cafundão (FALA DE SRA. ASSENTADA TRANSCRIADA A PARTIR
DE ENTREVISTA GRAVADA).
O assentamento Cafundão foi criado, então, a partir do processo de compra e venda de
terras. Isso pressupõe que, a Paróquia da Nossa Senhora da Cachoeira do Brumado era
realmente proprietária legal do imóvel rural e que concordou com a venda para o INCRA de
parte de sua Fazenda.
Indaguei sobre a forma como efetuam o pagamento da terra e se eles sabem
para quem estão pagando esse valor.
Nós paga ela todo final de ano. Eu não sei pra onde o dinheiro vai, só sei que
vai. Nós colocamos no nome do INCRA. É, no nome do INCRA. A gente
deposita o dinheiro lá, né? Por que vem o papel deles e a gente paga aquele
papel lá. Acho que vai pro INCRA. Cada um tem seu lote. Aí, cada um paga
sua quantia.
[...]
Perguntei se havia prazos para o pagamento.
Tem um prazo. Vem agora. Esse final de ano agora, eu termino de pagar
meu lote. Aí quando ele veio pra mim pagar no ano passado, eu não tive mil
e pouco pra pagar tudo. Aí, então, esse ano eu espero ter... Mas eu vou ter!
(FALA DE SRA. ASSENTADA TRANSCRIADA A PARTIR DE
ENTREVISTA GRAVADA).
Aos assentados, caberia a compra por meio de políticas específicas ao assentado, que
reside nas condições específicas de pagamento, em prestações que são cobradas em forma de
boleto ao final de cada ano, no tempo necessário à concessão de titulo de posse, além das
políticas de apoio, destacadas por Francisco Albuquerque (et al, 2004), que reside em “uma
política de crédito própria, através do INCRA, que financia a implantação dos lotes, com
recursos para a construção da moradia, da manutenção da família no primeiro ano, além de
financiar o custeio da produção e disponibilizar crédito para investimento, com prazos e
carências” (ALBUQUERQUE et al., 2004, p. 82).
Algo poderia ser, então, problematizado: dentre as formas de obtenção de terras, por
que o Cafundão foi criado a partir da compra e venda? Depois de quanto tempo de
reivindicação a Igreja decidiu vender? Por que não houve doação dessas terras por parte da
Igreja? E por que a Igreja haveria de doar? Essas perguntas guardam em si questões
complexas que estão muito além de respostas meramente prontas, como aquela que poderia
remeter à ideia de que terra corresponde a dinheiro e a poder. Fala-se da associação da Igreja
às riquezas e ao poder, como se essa Instituição fosse una, única e sem contradições internas.
67
A Paróquia da Nossa Senhora da Cachoeira do Brumado é hoje denominada de
Paróquia da Nossa Senhora da Conceição, que é o nome de sua igreja matriz. Ela foi criada
coincidentemente, ou não, no ano de criação da Lei de Terras que é 1850. Essa Paróquia
abrange comunidades situadas em distritos do município de Mariana, diferentemente de
outras, tais como a Paróquia da Nossa Senhora da Assunção e a Paróquia Sagrado Coração de
Jesus, que englobam comunidades situadas na sede do município.
Rosemeire Nakashima (et al 2006) fizeram um estudo convergindo situações
socioeconômicas com a distribuição populacional, de renda e de atividades desenvolvidas em
cada área do município. Nesse artigo, há um quadro contendo informações importantes acerca
da distribuição de renda que se dá de forma concentrada na cidade-sede que é Mariana e de
forma periférica nos distritos, sendo aqui exposto:
Tabela 1: Domicílios particulares permanentes, por classes de rendimento nominal mensal da pessoa
responsável pelo domicílio (%) Município de Mariana, seus Distritos e Minas Gerais 2000. Extraído de
Nakashima (et al. 2006, p.03).
Dentre outras possíveis apreensões, destaco que Cachoeira do Brumado, que é o
distrito onde o assentamento se localiza, possui metade de sua população recebendo cerca de
até um salário mínimo. Aliás, a distribuição de renda é feita de forma concentrada na cidadesede, em detrimento de suas periferias que são os seus distritos. Por extensão, essa relação
centro-periferia poderia se repercutir no público de uma Paróquia, ou seja, àqueles nela
cadastrados ou que são os seus frequentadores. Mas, não há estudos que demonstrem que a
renda é diretamente proporcional àquilo oferecido como dízimo, por exemplo. Aliás, os
devotos mais afincos costumam ser justamente aqueles que necessitam de fé como
incentivador e gratificador de vida. Porém, toma-se de empréstimo essa relação como forma
de conversação entre a concentração de renda e a supervalorização de Paróquias centrais em
68
detrimento daquelas periféricas, e tanto uma como a outra possuem historicidade, ou seja, se
fazem presentes na construção desse espaço.
Sabe-se que o dízimo é um importante mecanismo de atuação da igreja, pois concede a
ela também poder de intervenção sobre as comunidades, sobre o mantimento das tradições
festivas e sobre a sustentação de seu pessoal, como padres, párocos, bispos, etc. Destaco que,
a despeito de essa Paróquia estar subordinada à Arquidiocese de Mariana, seu trabalho de
evangelização e de intervenção social se dá em nível local de organização. Isso poderia
significar que, apesar de a Arquidiocese ostentar valores exuberantes, inclusive, por meio de
imóveis a ela doados, em testamentos de devotos ou por meio de recolhimento de dízimos, a
Paróquia da Conceição possui seu recolhimento de certa forma abreviado àquilo ofertado por
membros de suas comunidades.
Deste modo, a Arquidiocese de Mariana é conhecida por sua tradição no sentido de
defender a ortodoxia dos ideais e por sua amplitude de interferência. Fabrício Oliveira e
Reinaldo Schiavo (2008) retrataram a forma como essa Igreja ortodoxa se comportou frente
ao advento dos ideais da chamada Teologia da Libertação.
Essa ala Católica chamada de conservadora é aquela concentrada na idéia de
manter a tradição, a autoridade hierárquica e a doutrina ortodoxa. Ela é
formada por um grupo que acredita no papel moral e espiritual da Igreja
católica e na concepção de que as idéias progressistas, comumente
associadas ao marxismo, são perigosas e, muitas vezes, incompatíveis com
os ideais do cristianismo (LÖWY, 1995). Esses clérigos são, portanto,
mantenedores de uma tradição católica ultramontana em contraposição ao
novo jeito de ser Igreja, proposto pela Teologia da Libertação. Dom Oscar
de Oliveira, arcebispo da Arquidiocese de Mariana-MG entre 1960 e 1988,
foi considerado um desses conservadores por impor resistências às propostas
da Teologia da Libertação em defesa da face tradicional que essa
arquidiocese assumiu historicamente ao longo de sua existência (OLIVEIRA
E SCHIAVO, 2008, p. 208).
Na década de 1970, por exemplo, em sua publicação jornalesca chamada O
Arquidiocesano (1972, p.02), a própria Igreja destaca a magnitude de sua população. As
informações que se pautam em um recenseamento feito na década de 1970, trazem que a
população dessa Arquidiocese é de 835.871 pessoas. Para se comparar, a população
arquidiocesana situada somente na sede marianense era de 24.832 pessoas, nesse mesmo
censo. E a população total desse município hoje, segundo o censo de 2010, é de 54.179
habitantes (IBGE, 2010). Nessa contagem feita pela própria Arquidiocese, destacam-se os
69
municípios, e suas respectivas populações, com os pesos populacionais mais importantes,
dispostos na tabela abaixo:
Tabela 2: População da Arquidiocese de Mariana em 1970,
segundo os dados do jornal O Arquidiocesano de (1972, nº 658, p.02).
POPULAÇÃO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA EM 1970.
MUNICÍPIO
POPULAÇÃO
Barbacena
73.905
Conselheiro Lafaiete
50.919
Ouro Preto
46.166
Ponte nova
45.782
Viçosa
25.784
Mariana
24.832
Itabirito
22.508
Raul Soares
20.990
Congonhas
20.399
Abre Campo
19.970
Rio Casca
18.315
Jequeri
18.151
Piranga
16.603
Santa Bárbara
16.282
Alto Rio Doce
15.449
Percebe-se, portanto, que o somatório populacional da cidade de Mariana faz dela
somente a sexta cidade com maior número de habitantes que compõem a Arquidiocese de
Mariana. Porém, sua interferência e seu poder decisório sobre as demais foram notados por
Fabrício Oliveira e Reinaldo Schiavo (2008). Esses autores confirmam a importância da
cidade de Mariana, também por ter sido a sede do bispado português no Brasil. Como
também, destacam que, a despeito da ortodoxia dessa Arquidiocese e da abrangência de
adeptos, foram surgindo manifestações e movimentos populares, em meio à pressão, que
demonstravam abrir-se a questionamentos e debates sociais, como é o caso do advento das
chamadas Comunidades Eclesiais de Base em cidades brasileiras, tomando como exemplo a
cidade Porto Firme, MG.
70
Não são raros os casos em que as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)
tornaram-se espaço de debates e articulações políticas entre leigos católicos
no Brasil. São muitos os exemplos de partidos políticos, sindicatos, ONGs,
movimentos e pastorais sociais que se organizaram sobre os alicerces de
várias CEBs em diversos cantos do país. Todavia, essa “politização” nas
bases da Igreja católica não se deu de forma homogênea nas diversas
arquidioceses brasileiras. Nas jurisdições eclesiásticas mais “abertas” às
idéias da Teologia da Libertação, a formação dessas Comunidades Eclesiais
aconteceu com maior intensidade, ao contrário do ocorrido onde o clero, por
diversas razões, postou-se de maneira cética diante das orientações ditas
progressistas dessa vertente teológica. Na Arquidiocese de Mariana - MG,
durante o arcebispado de Dom Oscar de Oliveira (1960-88), a organização
das CEBs bem como a articulação política dos leigos sofreram resistências
por parte do governo arquiepiscopal, receoso quanto ao perfil contestatório e
ao discurso “revolucionário” adotados por muitas dessas comunidades.
Porém, as objeções desse arcebispo não foram suficientes para conter a
proliferação desse referido modelo de catolicismo na sua Instituição, uma
vez que influências externas ultrapassaram seu crivo, fomentando o germinar
das Comunidades Eclesiais de Base nesta Arquidiocese, como aconteceu na
paróquia de Nossa Senhora da Conceição em Porto Firme - MG (OLIVEIRA
E SCHIAVO, 2008, p.01-02).
Os ideais tradicionais que pregavam os pertencentes à Igreja Católica em seu viés mais
ortodoxo, foram coabitando com manifestações diferentes que se inclinavam às reivindicações
sociais. A força desses ideais, sejam ortodoxos, sejam digamos revolucionários, se relacionam
estritamente com o contexto de sociogênese no qual estavam inseridos. As ordens religiosas
tradicionais que pregavam ideais de ordem e moral convinham para fins ditatoriais que
serviam, amplamente, ao controle da nação e de devotos. Há, inclusive, defesa pública da
forma de governo ditatorial por parte da Igreja Católica, como pode ser verificado em
publicações de O Arquidiocesano (1972, 1973, 1983). Há notícias que elencavam datas
comemorativas de apoio à ditadura, como o aniversário da ditadura. Havia, deste modo, uma
pretensiosa aliança entre a Igreja e o Estado Ditatorial, conforme verificaram Fabrício
Oliveira e Franklin Rothman (2008),
Intrigante é o fato de que, enquanto muitas dioceses brasileiras atuavam
apoiando movimentos populares nas décadas de 1970 e 1980, a Arquidiocese
de Mariana legitimava a ditadura militar e não apoiava manifestações
populares contestatórias das ordens econômicas, sociais e políticas vigentes.
(OLIVEIRA E ROTHMAN, 2008, p.02).
71
Os ideais sustentadores da Igreja Católica tornaram-se ainda mais complexos com o
advento das propostas mais compromissadas com intervenções sociais que ficaram
conhecidas como Teologia da Libertação. O surgimento dessas ideias na área compreendida
como pertencente à Arquidiocese de Mariana causou estranhamento a ponto de haver ataques
contra os pertencentes da própria Igreja e que pregavam tais ideias. Houve, notadamente,
através também das páginas do jornal O Arquidiocesano (1983), recomendações para que se
tivesse cuidados em relação a essa forma de pensar, que já estava angariando adeptos por toda
a Arquidiocese. Cristãos passaram a se envolver em movimentos sociais, tais como o
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Sem-Terra (MST)
(OLIVEIRA E ROTHMAN, 2008).
A Arquidiocese pregava nessa época, que correspondia às décadas de 1970 e 1980,
que a Teologia da Libertação possuía fundamentação comunista e por isso haveria de ser
banida. Essa mesma Igreja sobrepôs o discurso a partir da redemocratização do país, com um
outro mais atencioso às carências societárias, tais como a fome, as desigualdades, as
injustiças, a defesa de recursos humanos e, mais recentemente, os discursos ambientais e de
sustentabilidade. Essa ressignificação de discursos não anulou aquele que ainda se manifesta
em sua face mais tradicional, dentro da Arquidiocese e para além dela.
Por isso, convido a pensar em uma hipótese que carece de investigação: a Teologia da
Libertação, que denota o compromisso social da Igreja Católica, abrange ideal de luta que se
dá de forma entrincheirada por não corresponder ao discurso-oficial dessa Igreja ortodoxa.
Tal discurso-oficial se mostrava consoante com o modelo ditatorial que estava na linha de
frente desse país, estabelecendo uma associação que não subestimava nenhum dos dois
poderes, que ao contrário se somavam. Um exemplo de compatibilidade de poder está nessa
passagem retirada de O Arquidiocesano: “antigamente as divisas das Dioceses entendiam
antes aos acidentes geográficos que aos limites civis. A criação de novos municípios ou
distritos, não tem em si força para alterar os limites eclesiásticos das Dioceses bem como os
da Paróquia” (1972, p. 02). Em outras palavras, nem o Estado que possui o poder de gerir
limites civis poderia interferir sobre os limites da Arquidiocese, e estes estavam pautados em
delimitações chamadas de geográficas. Portanto, a Igreja dispunha sobre si própria, não
precisando respeitar, por exemplo, limites civis impostos pelo Estado.
Com a redemocratização do Brasil, os discursos foram se metamorfoseando. Os ideais
dessa Teologia são incorporados às pregações e homilias dessa Igreja que pareceu se
remodelar de forma mais condizente ao contexto social. Isso se deu por que a Teologia da
Libertação contribuiu, de fato, para que a carga de intervenção social da Igreja se fizesse mais
72
presente, ou houve uma adaptação dessa Igreja aos discursos em voga a fim de manter-se
soberana?
Essa discussão não é o intuito desta pesquisa, a despeito de apoiá-la amplamente. Para
se investigar quais são as pretensões da Igreja teria que, antes, se assumir que ela é construída
de forma heterogênea e complexa no espaço brasileiro. Além disso, são pessoas que
constroem a Igreja e ostentam toda a tradição que lhe dá substância e importância. Na cidade
de Mariana, onde a Arquidiocese se faz profundamente presente, inclusive sobre as tradições
culturais, há o surgimento de diversas outras Igrejas e religiões. Os assentados do Cafundão,
por exemplo, se reconhecem como Evangélicos. Essa relação se revela coinfluente para a
forma como representam a questão de posse das terras da Fazenda Cafundão. No trecho que
se segue, pode ser percebida essa influência da religiosidade, como também, a forma como
percebem a ausência desse tipo de conflito no cafundão-de-baixo.
Indaguei sobre a existência de conflitos no Cafundão-de-baixo.
Já moravam ali, mas aquela parte lá nunca teve problema com a Igreja
Católica e nem nada. Aqui que a Fazenda era muito grande.
[...]
Indaguei sobre a possível solicitação da saída dos assentados das terras em
que moravam e os motivos disso ter acontecido.
Aí a igreja falou que era deles e que queria a terra. Não queria [que eles
ficassem por lá] de jeito nenhum. Nossa, era guerra.
[...]
Indaguei sobre os motivos disso ter acontecido.
Por que era da igreja católica. Que tinha documentação, né? Mas, o pessoal
antigo aqui também tem documentação. Igual a gente tem uma pasta que tem
essas documentações, no cartório também tem, ai não sei o que o INCRA
resolveu. Eu tenho pra mim que o INCRA deve ter negociado com a Igreja
Católica pra não arrumar confusão... Por que essa terra não foi de graça pra
nós (FALA DE SRA. ASSENTADA TRANSCRIADA A PARTIR DE
ENTREVISTA GRAVADA).
É no mínimo interessante o fator de os assentados se reconhecerem em outra religião,
que é diferente daquela predominante nesses domínios regionais e que, ainda, era detentora
das terras que eles estavam reivindicando. Algumas interpretações poderiam ser feitas a partir
disso, tal como, o intervalo de tempo entre a avaliação das terras e a criação do assentamento
durou, como já mencionado, três anos. Esse intervalo ofusca a temporalidade do conflito que
se estendeu por anos, se tornando mais intenso no final da década de 1980 e começo da
década de 1990, e que viera a se tornar mais comedido a partir da intervenção do INCRA.
Nesse tempo, poderia ter havido empecilhos postos pela Igreja no que concerne à aceitação
73
em vender tais terras. Não estabelecendo uma relação contrária e sim de completude, esse
conflito, ou o prolongamento dele, poderia ter sido subestimado pela Prefeitura de Mariana ou
pela polícia local, que contiveram em intervir de alguma forma, ou simplesmente porque os
assentados não eram vistos e nem se faziam vistos.
III.3 A Terra: tensões.
A cidade de Mariana, e por extensão sua Prefeitura, é marcada, historicamente, por
características que preenchem de sentido toda efervescência e paixão que são percebidas na
disputa pela sua linha de frente, pela Prefeitura. Há um sentido festivo e também de
tensionamento entre candidatos, e que carece de maiores estudos. Na disputa pela Prefeitura,
onde a eleição corresponde somente à teatralidade de tensões mais profundas, é percebido um
conflito que está para além da administração do município. Não se exclui que isso aconteça
em outras cidades, mas na cidade de Mariana os candidatos são como padrinhos, o pai
escolhido, aquele com quem se identifica de alguma forma. Essa identificação talvez não se
relacione a ideias ou a propostas de governanças, e sim ao que Michelle Brandão (2009, p. 01)
chamou de “fiéis vassalos de sua majestade” quando referenciou as relações de poder entre
elites locais e a Coroa Portuguesa, e que poderiam se reproduzir nesse contexto espacial.
É importante destacar essa característica, pois ela está pautada também na distribuição
de terras do município. Há grandes fazendeiros e que, não por acaso, já foram Prefeitos dessa
cidade. Na história contada por alguns assentados, a despeito de ela parecer um tanto quanto
confusa, há o apontamento de ter havido outras pessoas na tensão da luta pela terra, ao mesmo
tempo em que reforçam o caráter culpabilístico da Igreja pelos conflitos.
Perguntei a Sra., que é original do Estado de São Paulo, e que casou-se com
Sr. Assentado, se ela sabia o que era o assentamento de reforma agrária.
Não. Eu imaginava que era lugar de guerra mesmo, por que o povo fugia pra
mata. E o meu sogro estava sempre preso. O pai dele estava sempre no
hospital. E a dona Cecília que teve depressão pós-parto, é uma pessoa assim,
doente, né? Por conta de sempre fugir pra mata na hora do parto. Olha só! Aí
ela teve problema de parto e hoje ela tem problema. É, como que chama...
Problema, assim, mental mesmo. E o outro que foi baleado!? Essas coisas
assim. Era guerra mesmo.
[...]
Perguntei entre quem era essa guerra.
Entre o povo da igreja católica e os assentados. Por conta, que eles queriam
guerra. Aí mandavam fazer as brigas, arrancar cerca, aquelas coisas... Tiro!
74
Todo esse negócio, né? Aí aqui, nós temos ali [aponta] só que tá bem
pequenininho a história do assentamento [a mencionada lauda a mim
entregue]. Nem a polícia quis ajudar.
[...]
Indaguei sobre quem conseguiu ajudá-los a criar o assentamento.
Um senhor [membro da CPI da Câmara] pegou meu sogro e levou pro
INCRA. Aí o INCRA veio pra negociar com a Igreja católica e, depois, ficou
pertencendo ao INCRA, aí quando ficou pertencendo ao INCRA, o INCRA
foi e aceitou o povo (FALA DE SRA. ASSENTADA TRANSCRIADA A
PARTIR DE ENTREVISTA GRAVADA).
Fazendeiros, grileiros e posseiros também foram apontados como aqueles responsáveis
pela remoção de cercas, agressões morais, físicas e até conflitos armados. É aí que reside a
característica coronelista, por estar pautada num misto de aproveitamento da posição social,
oriunda da detenção de terras, ao autoritarismo, à coerção e à impunidade. Impunidade
concernente aos envolvidos e aos responsáveis pelo conflito, como também ao órgão que seria
responsável pela cessão e controle de tal, como pode ser verificado na Ata da Câmara que
pede o afastamento do então Delegado de Polícia por compactuar-se e omitir-se da questão.
Às dezenove horas do dia 12 de novembro de 1990, com todos os senhores
vereadores presentes, reuniu-se mais uma vez a edilidade marianense para
tratar dos assuntos de interesse do município. (...) Enquanto se aguardava o
Parecer da Comissão de Finanças, do referido Projeto, o Sr. Presidente abriu
um parêntese na sessão para ouvir a reclamação do pessoal do local
denominado Cafundão, no Distrito de Cachoeira do Brumado, a respeito de
uma questão de terreno. Usou da palavra em nome do pessoal de Cafundão,
o Sr. Valcir Pereira Viana, vice-presidente do Partido de Trabalhadores deste
município que falou do Marcus Vinicius, que vem ameaçando os moradores
do local, estando armado e o povo já está com suas terras prontas para o
plantio. Esperando que a Câmara Municipal já requereu a desapropriação de
terreno para sanar esta situação, embora Marcus Vinicius continua
ameaçando o povo. Usou da palavra o Dr. Derly Pedro da Silva que disse
que as Constituições Federal e Estadual não entra em vigor em Mariana
e que a polícia não toma conhecimento dos fatos degradantes que estão
ocorrendo nesta cidade e nos distritos. O Exmo. Sr. Presidente,
reconhecendo que esta situação era bastante delicada e perigosa, resolveu
criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar os fatos
alegados em conexão no terreno de Cafundão, que se formou com os
seguintes vereadores: José Antônio Cota e Souza; Jesus Geraldo da Silva e
Sebastião Evangelista Fernandes. Usaram ainda da palavra sobre o assunto
os vereadores Geraldo Ramos Magalhães, Sebastião Evangelista Fernandes e
Mário Ramos Eleutério onde cada um dos edis sustentaram as suas alegações
em favor dos posseiros de Cafundão que ali residem há mais de cem anos.
[...] Não havendo mais nada a tratar, o Sr. Presidente colocou a palavra
franca. No uso da mesma, o vereador Geraldo Ramos Magalhães voltou a
falar do Cafundão, acusando Marcus Vinicius, que é o principal causador do
tumulto criado lá em Cachoeira do Brumado (Cafundão). [...] Em seguida,
75
foi apresentada um requerimento assinado por todos os senhores vereadores,
solicitando a remoção do Dr. Delegado de Polícia, em virtude do tumultuado
caso de Cafundão. Foi criado também pelo Sr. Presidente, uma comissão de
Direitos Humanos, composta pelos vereadores José Boaventura de Oliveira,
Geraldo Ramos Magalhães e Mário Ramos Eleutério, para acompanhar
amanhã na Delegacia de Polícia os depoimentos das pessoas residentes em
Cafundão. Do que se passou, lavrei a presente ata que se for aprovada será
assinada (CÂMARA MUNICIPAL DE MARIANA, 1990, p. s/n, grifos
meus)
Verificou-se, portanto, omissão de autoridades nos conflitos que ocorriam na Fazenda
Cafundão. Por esse motivo, foi eleita uma comissão composta por vereadores que tiveram a
função de ir até o local, verificar a situação do conflito e trazer, de volta à Câmara, possíveis
soluções. Não encontrei nos arquivos da Câmara as informações que deveriam estar
sistematizadas em um Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que foi criada.
Porém, a leitura das Atas ao longo desse ano de 1990 até o ano de 1994 demonstrou que,
posteriormente a criação da CPI, os trâmites legais no que concerne à compra e venda de
terras para fins de reforma agrária deram prosseguimento, se convergindo ao intervalo de
tempo de três anos para efetivação da compra.
Foi mencionada nessa Ata, e também pelos assentados, a presença do Sr. Marcus
Vinicius como o responsável pelos conflitos armados. Há de ressaltar que, a despeito de sua
presença em ambos os discursos, não se encontrou escritos ou correspondências que revelem
quem é, de fato, essa pessoa. Surgiram falas de que ele recebeu dinheiro do INCRA, por
corresponder ao dono das terras, e depois mudou-se para outro Estado onde se transformou
num grande e importante fazendeiro. Como também, há falas que denunciam que ele atuou à
mando de alguém, que sempre esteve nas sombras das ações e que, depois de sua atuação, foise embora ser um grande fazendeiro num outro Estado.
Na esteira dessas discussões, convido ao diálogo a circunstância de que, segundo
reportagem publicada no jornal O Liberal (1995), um ex-prefeito da cidade de Mariana seria
responsável por inúmeros conflitos e até mortes encomendadas. É importante destacar que
não se encontrou confirmações de tais notícias, e nem que esses assentados mencionaram o
nome desse ex-prefeito. Porém, toma-se de empréstimo a discussão em torno da impunidade
acusada de ser inerente à construção do espaço marianense. Aliás, há uma específica
reportagem que sugere que tal ex-prefeito se envolveu em disputas por terras no município de
Mariana, sendo aqui destacada: “O atrabiliário e violento [nome do ex-prefeito], mais uma
76
vez enfeita o noticiário policial com os seus desmandos ao tentar matar os ex-correligionário e
hoje desafeto [nome] por disputas de terras e pontos comerciais” (O LIBERAL, 1995. p. 08).
Contudo, há de se ressaltar que há três fatores que devem ser destacados, que poderia
relacionar esse ex-prefeito à sociogênese do assentamento Cafundão. Saliento, antes, que essa
relação nem precisa se resumir diretamente na pessoa ex-prefeito, por que conforme já
apontado, estabelece-se um sentido grupal em torno dessas figuras-políticas chaves. O
primeiro fator é concernente ao tensionamento entre religiões. Sendo assim, já foi discutida a
importância da Arquidiocese de Mariana não só para a cidade de mesmo nome, mas para toda
a população que a ela pertence. Porquanto, esse ex-prefeito era assumidamente frequentador
da Igreja Universal, e essa Igreja corresponde ser a mesma seguida pelos assentados. Em
reportagem de O Liberal (1996), tal ex-prefeito, que nessa época era prefeito, é acusado de
possuir pacto com forças ocultas por ser adepto dessa Igreja e por, supostamente, ter escrito
uma carta de repúdio a Nossa Senhora Aparecida. Essa carta parece ter confirmado uma
insatisfação, que se fazia presente, em relação a esse prefeito. Destaca-se, também, que a
reação desse jornal revelou certa inclinação ao catolicismo, dada a paixão na escrita da
matéria. Portanto, esse fator das religiões poderia ter aproximado os assentados ao, então,
prefeito do município, e, por tabela, os primeiros podem ter adentrado um tensionamento que
não necessariamente lhe correspondia.
O segundo fator que será destacado é justamente o conflito que envolvia as
alternâncias de poder na prefeitura. Em matéria publicada no O Monumento (1990), que é a
voz jornalesca da prefeitura, destaca-se o caráter de emergência dado por um prefeito, que é
opositor daquele outro, à questão das terras do Cafundão. Ao assumir a prefeitura, através da
vitória em eleição, é publicada uma matéria que quase serviu de bandeira de governo. Foi
destacado que esse tal daria solução ao conflito que se prolongou e se atingiu seu “ponto
crítico” nesse momento (O MONUMENTO, 1990, p. 03). Essa bandeira poderia representar
uma afronta ao opositor, ex-prefeito, por meio de uma questão que será trazida no terceiro
fator, ou uma forma ultrajada de realizar a desapropriação de terras em favor de pessoas que
possuem certa correspondência religiosa com o ex-prefeito, ou ainda o compromisso que
possuía, de fato, esse mencionado prefeito junto a questões sociais, humanas e também
fundiárias.
O terceiro fator reside na noção da localidade ou de território, dependendo da tipologia
de representação escolhida. O ex-prefeito, aquele acusado de matanças e de disputa armada
por terras, é originário do mesmo distrito onde se situa o assentamento Cafundão, ou seja,
Cachoeira do Brumado e era reconhecidamente detentor de grande quantidade de terra por
77
toda a área. Reside ai uma grande questão paradoxal: poderia esse ex-prefeito ser um dos
interessados pelas terras do Cafundão, já que se estabeleceria certa continuidade regional,
fazendo-se dessa região algo territorial e fundiariamente apropriado. E, dessa forma, o
Cafundão emerge como localidade, como mais um ponto que deveria ser agregado ao
montante propriedade-de-terras. Ou, por as terras pertencer à Igreja católica, que não é
assimilada nem pelo ex-prefeito e nem pelos assentados, essa luta passa a ser a luta desse exprefeito que, ao invés de agir através da intervenção política e institucionalizada, conspirou
para o processo de construção da imagem do inimigo-Igreja, junto aos assentados e às pessoas
desse mesmo lugar. E, por isso, o reconhecimento do território-Cafundão.
Ressalta-se que todos esses três fatores não excluem a possibilidade de haver outras
interpretações e/ou que tais representações feitas nada tem haver com os sentidos de luta
dados no tempo em que ela se deu. Contudo, esses três fatores aqui trazidos à baila almejaram
destacar questões concernentes à política, em seu escopo institucional através da prefeitura,
em relação ao tratamento dado para as terras do Cafundão.
Todavia, há de se criar aqui um quarto fator que, não necessariamente corresponde a
posturas da prefeitura, mas a ausência de postura talvez se configure nela mesma num
posicionamento. Fala-se de conflitos que poderiam ter suas origens em interesses de
fazendeiros e posseiros que lutaram por essas terras, também de forma armada. Considerando
que o contexto de Mariana também é meu contexto de vivência, pude perceber que as terras
que não se conhece exatamente quem sejam os seus proprietários, são acusadas popularmente
de serem da Igreja ou de empresas mineradoras. Essa acusação reside no fato de que, essas
tais realmente detêm somas significativas. Parte dessas terras é ocupada por moradores ou por
imigrantes, até por corresponder a terras com usos subestimados, improdutivos e inabitáveis.
Essas terras, que se transformam em terras-de-ninguém, atraem olhares e querências no
sentido de ocupá-las, viver nelas ou transformá-las em retorno financeiro, vendendo-as. Esses
interessados podem ter reivindicado tais terras, podendo ter sido corresponsáveis pela
intensificação da tensão. O que gerou, por consequência, a impulsão ao fazer-se visto, por
parte dos assentados, no sentido de buscar a resolução do conflito.
O fazer-se visto é que dá sentido à disputa e à tensão por voz. Percebi que tais
assentados se inseriram em discussões políticas em torno da distribuição de terras e no direito
ao acesso a terra, quando souberam da forma institucionalizada de reivindicação de terras para
fins de reforma agrária. A reforma agrária passou a fazer parte de seu contexto quando ainda
se tratava de querência: o querer ser beneficiado por ela, através da política de assentamento.
Foi nesse momento que souberam da existência de movimentos sociais e de sindicados de
78
trabalhadores rurais, tais como o MST e a CONTAG – Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura, permitindo possíveis conselhos acerca da forma como
comportar-se nesse cenário político.
Essa forma de inserção no discurso político inventou a visibilidade que se mostrou
necessária para que, as situações que já estavam há tempos em processo de tensionamento,
fossem de fato consideradas como merecedoras de atenção por aqueles que poderiam
potencialmente contribuir para cessão de conflitos. O trecho seguinte de O Monumento
(1990) pode ser interpretado de duas formas, dentre outras possíveis.
Diante de todos estes fatos, o Prefeito [nome] ressalta a importância de que o
comportamento dos moradores do Cafundão se mantenha pacífico,
aguardando as decisões que estão sendo tomadas pela justiça e,
principalmente, a legalização do uso de terras” (O MONUMENTO, 1990,
p.03)
A palavra pacífico pode carregar dois grupos de significados. O primeiro reside na
ideia de esses assentados continuarem a não representar reação armada, frente às ameaças,
permanecendo na defensiva dos conflitos, esquivando-se. E o segundo grupo abarca uma ideia
de concebê-los como amorfos, aqueles que devem continuar esperando por uma ação de
outrem, capaz de resolver por eles o conflito. E esse outrem emerge pretensiosamente como o
outro-prefeitura, o outro-prefeito. O primeiro grupo de significados que remete à ideia da
reação não-armada, de certa forma legitima a reivindicação por terra, ainda que se tenha a
proprietária legal dessas. Já o segundo grupo, concebe-os como grupo-dominado, que espera
por ação governamental. Em relação a essa composição de identidade coletiva dominada, já se
discutiu possuir problema por coabitar com as oposições binárias que só servem para fins de
autolegitimação.
A legitimidade da reivindicação é a grande questão do histórico de luta pela terra
desses assentados e da construção do assentamento Cafundão, por levar em conta as noções
de propriedade jurídica da Igreja se relacionando aos sentidos e às vidas que acontecem nos
lugares.
III.4 A Terra: questão de pertencimento.
De quem era a terra, antes de ser assentamento? Rememoro essa indagação. Elucidei
sobre a propriedade jurídica pertencendo à Igreja. Reforcei que essa Igreja possui
79
propriedades por todo o território que compreende a Arquidiocese de Mariana. Não pretendo,
com esse reforço, tentar justificar as apropriações de terras e de espaço feitas forçosamente,
passando-se por cima do sentido legal dado ao direito ao mantimento de propriedade. Possuo
a pretensão, ao contrário, de levantar a questão em torno da necessidade de fazer valer a
função social da terra, seja essa terra pertencida aos grandes fazendeiros, seja à Igreja e a
outros proprietários. Somado a tudo isso, emerge uma noção de estimável importância que se
arrola aos significados que essa terra possui a esses que são hoje assentados.
Os assentados e assentamento Cafundão se envolvem em uma atividade que além de
manter suas sobrevivências, foi a responsável por eles serem considerados como
assentamento consolidado, no sentido dado pelo INCRA de conseguir se autossustentar e de
não-depender vitalmente de políticas governamentais (SIPRA, 2011; DOU, 2002). Essa
atividade se traduz como saber local e que pertence a esses assentados há gerações. Trata-se
da produção de panelas de pedra sabão, feitas a partir do torneamento da rocha esteatito. Os
assentados vendem as panelas para a população do município de Mariana, e têm se inserido
no comércio que se estabelece a partir do turismo.
Perguntei sobre como está a produção de panelas depois da criação da
Associação.
Eu acho que agora, como nós estamos vendendo fora, e também a gente
nunca usou a panela de cobre, é a primeira vez, têm uns dois meses que
estamos usando o cobre, agora a gente está tendo mais resultado. E os
tapetes, como estamos vendendo fora, está bem melhor. Bem melhor agora.
Por que antes nós vendíamos por aqui. Aí, a gente tinha um tapete assim,
[aponta] nós vendíamos por 20 reais. Só que a mão de obra e os negócios
que foram gastos, nós não pusemos. E aí pra receber era dois, três meses.
Nós pegávamos cheque e não tinha fundo. Aí tinha que esperar mais um
tempo, né? Aí, esses negócios. Aí agora, com associação, nós pomos o preço
e só vendemos por esse preço. E como também, nós temos lugar pra entregar
fora, então a gente fica com aquele dinheiro, dá pra segurar a mercadoria.
Mas quando a gente vivia na mão dos pessoal lá fora [do atravessador e do
comerciante], até pra fazer a compra, nós compravámos no armazém deles.
Por que abatia tudo nas contas, né? E nós nunca pegávamos no dinheiro. Ah,
não, era ruim demais! Aí não, agora que está melhor. Agora se precisa de
uma coisa na loja, paga com dinheiro (FALA DE SR. ASSENTADO
TRANSCRIADA A PARTIR DE ENTREVISTA GRAVADA).
É mantida, contudo, uma horta que contribui para diversificação e qualidade da
alimentação. Os alimentos básicos, tais como o arroz, o feijão, o óleo e outros, são adquiridos
a partir da renda obtida da venda de panelas. A produção de panelas é feita por boa parte dos
80
assentados, que estão organizados em uma Associação, sendo que os outros trabalham em
outras atividades, inclusive em mineradoras, no município. Essa Associação funciona através
do compartilhamento de máquinas e de materiais, relativizando-se a distribuição de lucros e o
gasto com matérias-primas – tais como, o bloco de rocha esteatito e alças de cobre – a partir
do volume da produção.
É importante destacar que essa atividade garante aos assentados um poder de
negociação de seus produtos, tendo-se em vista que eles lidam com concorrência direta
oriunda da produção dos mesmos produtos que são característicos do distrito em que estão
inseridos. No Relatório elaborado pela Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais CETEC (2006), de Avaliação das Condições Existentes para a Estruturação do
Desenvolvimento Regional Auto Sustentado, são expostas as condições verificadas pelos
representantes desse órgão e que revelam profundas distinções do grau tecnológico e
financeiro investido na atividade de produção de panelas de pedra sabão. Peço licença para
expor tais descrições das características que, apesar de apresentar-se aqui como uma extensa
citação, fez-se necessário como mais uma forma de representação do olhar que se teve sobre o
assentamento Cafundão e, também, sobre a principal Empresa do distrito de Cachoeira do
Brumado, que converge à tipologia da produção.
Localidade: Cafundão Empresa: Associação Cooperativa de Cafundão:
Fomos atendidos pelo presidente da ACC [...]. As instalações são todas da
ACC e reclamou varias vezes da falta de matéria prima, que as empresas
grandes estão bloqueando tudo. Estão especializados na produção de
panelas, sendo que alguns cooperados trabalham nas lavras, já desbastando
os blocos para o formato mais apropriado uso nos tornos manuais. Outros
trabalham na área de produção, onde havia 3 ou 4 tornos. A produção de
panelas, tal como é feita hoje, gera enorme quantidade de pó e desperdiça
muita matéria prima. Mostrou estar extremamente interessado em testar o
torno descrito pela Sra. Ceres, que permitira que o mesmo bloco suporte a
fabricação de 2 ou 3 panelas de tamanho diferente, enquanto hoje só se
consegue fazer uma. Toda a venda é feita através de “atravessadores”, já que
não tem nenhuma estrutura formal de vendas. Uma panela que ele vende por
R$ 12 é vendida no mercado por R$ 40, no mínimo. A Cooperativa tem 12
sócios e está em operação há 6 anos. A EMATER foi muito importante na
fase inicial, tendo ajudado muito. A Prefeitura também tem ajudado no
transporte de matéria prima, usando caminhões da Prefeitura. Atualmente a
ACC faz cerca de 40 panelas por dia e cerca de 1.000 por mês. Se tiver
matéria prima, poderia chegar a 70 panelas por dia. Vende também panelas
semi acabadas, que outras pessoas terminam e colocam as cintas de cobre e
alças.
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Localidade: Cachoeira do Brumado Empresa: xx: Fomos recebidos pelo
Sr. Mário, que está há 60 anos no ramo. È um grande líder local, já tendo
sido vereador durante 14 anos e ter feito um projeto de plantação de pita para
substituir o sisal que vem importado da Bahia, já que a região fabrica
também tapetes de sisal, artesanais. Também reclamou da falta de pedras e
da qualidade que tem encontrado, pois as grandes empresas compram tudo.
Tem usina própria para gerar energia para sua fabrica, tem pousadas em
Cachoeira do Brumado e tem um filho dedicado às vendas, enquanto ele
gerencia a produção, tendo 10 empregados na fabrica e mais 10 nas lavras.
Informou que a cidade pode produzir 2.000 panelas por dia (sua empresa é
especializada neste produto também), e que há cerca de 500 a 600 pessoas
trabalhando neste ramo de negócios. Que a região tem 250 tornos, sendo que
normalmente, existem uns 50 parados para manutenção ou por falta de
material. Existe uma Associação de Artesãos, mas gostaria de criar uma
Cooperativa, para beneficiar mais os produtores. Cachoeira do Brumado
tem, além de artesanato em pedra sabão e tapetes de sisal, alguns artistas que
trabalham com madeira, fazendo esculturas de muito boa qualidade.
Segundo ele, não há ricos, mas ninguém esta desempregado. Mas externou a
preocupação com a falta de apoio local, seu projeto plantação de pita,
mesmo distribuindo de graça as mudas, não teve sucesso, A compra de sisal
na Bahia custa R$ 30 mil para uma carreta com 15 toneladas. Tentou
exportar para os Estados Unidos, mas teve problemas com a alça de cobre
que foi barrada pela alfândega e os produtos chegaram todos quebrados.
Indicou que precisa de maquinas para recompor as lavras após a extração de
pedras, mas que os artesãos não tem recursos para isto. Conseguiu que
fossem feitas 90 fossas sépticas acima da Cachoeira do Brumado, um ponto
turístico interessante próximo à sua fábrica e agora a água está limpa
(CETEC, 2006, p. 30-32).
A despeito dessas diferenças nos níveis tecnológicos, chamou-me a atenção a maneira
como os assentados representam essa concorrência direta, e em grande medida
desproporcional, por qual passam cotidianamente. A visão que possuem do Cafundão-debaixo, os 70% das terras que não são assentamento, em relação a eles próprios é o conflito que
surge a partir dos privilégios que possuem no que concerne às políticas específicas enquanto
assentamento de reforma agrária. Cafundão-de-baixo é uma terminologia usada e apropriada
no município para designar a parte inferior, no sentido topográfico, das terras. E, a partir das
falas, parecem representar o baixo como nível que tenta aspirar a estar em cima, a estar em
terras de assentamento, em terras conquistadas.
Além disso, essa concorrência é de certa forma amenizada a partir do importante papel
desempenhado pela Emater-Mariana na divulgação do trabalho que os assentados
desenvolvem durante todo o ano. Principalmente, quando o Projeto Lumiar foi extinto. Esse
82
projeto tinha amplitude nacional e se pautava numa assistência a assentamentos, de forma a
inseri-los em dinâmicas espaciais na realidade em que estão inseridos.
[...] os últimos anos, foi implementado o Projeto Lumiar, que deixou de
funcionar ao final do ano de 1999. Esse projeto objetivou fornecer
assistência técnica aos assentados, pois esta era uma das suas reivindicações
históricas. Tinha por finalidade maior: o desenvolvimento das famílias
assentadas; a consolidação dos projetos de assentamento e sua inserção no
Município ou região como unidade de produção competitiva, geradora de
renda e emprego; suprir a necessidade de assistência técnica e a capacitação
das famílias assentadas, no que diz respeito à implantação e
desenvolvimento de culturas e pastagens, armazenamento e comercialização,
criação de animais e introduzir novas tecnologias e ações de estímulo à
organização dos assentados (ALBUQUERQUE et al., 2004, p. 82).
Esse papel foi, de alguma maneira, assumido pela Emater em sua seção local de
Mariana. Tal Instituição coloca os assentados em contato com potenciais compradores, além
de viabilizar a participação desses em feiras de artesanato. A partir do Relatório da CETEC
(2006), pode-se perceber o subsídio tecnológico usado no desenvolvimento do trabalho, que
se dá de forma ainda bem manual e sem utilizar de muitos apetrechos tecnológicos. Essa
forma de trabalhar acaba acompanhando o ritmo de ocorrências dessas feiras e também a
frequência de vendas locais que estabelecem. A partir desse Relatório, uma equipe da CETEC
detectou que esses assentados precisariam de tornos para conseguir continuar a produção,
fazendo frente à concorrência por qual passam no próprio distrito onde estão localizados.
Dessa forma, tornos foram fabricados e enviados ao assentamento, que também ganhou um
curso de algumas horas para aprender a operacionalizá-los.
83
Figura 3: Galpão da Associação dos Assentados do Cafundão, onde se fabricam as panelas de pedra
sabão. Ao fundo, o torno doado pela CETEC. No chão, algumas panelas em processo de feitura. Pelo chão,
o pó de esteatito que utilizam como fertilizante, devido ao teor de calcário (arquivo pessoal).
Porém, tais tornos estão hoje subutilizados, sendo usados somente para a confecção de
tampas de panelas. Primeiro, de acordo com os assentados, esses tornos utilizam água para
funcionar e, por esse motivo, fazem “muita bagunça”, como também “acaba demorando mais
pra fazer”. Mas, o motivo percebido e que se destacou perante a minha indagação resume-se
ao fato de que o fazer-panelas está para além da substância ou do volume da produção.
Configura-se num trabalho no qual “trabalho para mim mesmo, não tenho dono”. Um trabalho
que acompanha o próprio tempo de vida desses assentados. Estão atentos ao fazer-panelas
como forma de angariar renda à família, mas há resistência na forma de trabalhar muito para
ganhar mais. “Trabalhar não está com nada não. Aqui eu trabalho, ouço rádio, vejo o dia
passar, janto e vou dormir”. “Quando eu quero, eu trabalho, quando eu não quero, mexo na
horta e cuido das criações” (FALA DE ASSENTADO TRANSCRIADA A PARTIR DA
CADERNETA DE PESQUISA).
A atividade de torneamento da rocha esteatito, fazendo-se panelas ou outros produtos
artesanais, se dá pela sua ocorrência exuberante nessa região. Como pode ser percebido no
mapa a seguir, o assentamento Cafundão está localizado em meio a um campo de mineração.
Essa localização, em meio ao campo de mineração, permite o próprio desenvolvimento da
84
atividade. Há pedreiras, que as concessões de lavra não lhes pertencem, bem perto do
assentamento. Eles compram o bloco rochoso através da Associação e trabalham durante dois
a três meses. O curioso é que, quando indagados sobre quanto conseguem obter da venda de
panelas, eles mencionam um valor sem extrair os custos da produção. Ou seja, falam que
conseguem até dois mil reais, sem considerar que gastam no bloco rochoso, a cada dois
meses, cerca de dois terços desse valor. E isso por percebido através da mudança da forma
como se fazia as perguntas.
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Mapa 1: Área do assentamento Cafundão e campo de mineração. Elaborado por mim.
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Essa localização, além de favorecer o desenvolvimento, poderia ter sido também
causador de conflitos. Esses assentados já se utilizavam de pedreiras dessa região, muito antes
da reivindicação oficial de terras, ou seja, patenteado junto ao INCRA. Aliás, estes
mencionam o conflito na extração de esteatito ainda hoje, revelando uma noção de território
nem sempre associada à permissão jurídica ao uso, ou seja, obtida através da concessão de
lavra. Parece haver mineradoras que se apropriam da pedreira e nem sempre visam à extração
do próprio esteatito.
III.5 Os assentados e o assentamento Cafundão: o ser-assentado.
Contudo, o fazer panelas se configura em algo para além de ser mero ofício, se
circunscrevendo em ponto central da história de luta desses assentados. Configura-se como
saber local, pois “o meu pai já mexia com isso, o meu avô já mexia...” e gerações inteiras
estão, de alguma forma, relacionadas a essa atividade (FALA DE ASSENTADO
TRANSCRIADA A PARTIR DA CADERNETA DE PESQUISA). O fazer panelas revela-se
como forma de vida, como trabalho, como cultura. Essa atividade preenche de sentido o
cotidiano que se constrói em torno dela. Esses assentados estão presos a terra, e é
especificamente a essa terra. Suas vidas se confundem com a história desse espaço: a panela, a
mineração, a horta, o cotidiano. Vidas que parecem se justificar no solo do Cafundão, dada a
forma como concebem essa atividade.
Esse sentimento preso ao solo do Cafundão, como pertencimento e também como
preenchimento de sentido de ser do cotidiano, parece ter motivado a própria luta. Aliás, ela já
se dava e ainda se dá no cotidiano, na vivência, no entrecruzamento de espaços-tempos.
Contudo, fala-se da luta pelo fazer-se visto, fazer-se notado, aquela que empreenderam na
tentativa conquistar a visibilidade necessária ao cessar do conflito, principalmente armado,
que ameaçavam suas vidas. A luta cotidiana desses que são hoje assentados conquistou
evidência quando o discurso institucionalizado foi apropriado visando problematizar um outro
discurso também institucionalizado. Fala-se de a política de reforma agrária servir para
atender a uma reivindicação que aparentemente ia contra a noção jurídica de propriedade
Entende-se, a partir desse tensionamento, um entrecruzamento de noções que se fazem
necessárias à contextualização e ao preenchimento de sentido das políticas de assentamento
que são pensadas num plano geral. Isto posto, vale indagar: se fossem oferecidas outras terras
que não fossem essas, como haveria de ser construída a vida e o espaço desses assentados,
que sempre viveram no Cafundão? Como iria se dar a efetivação de uma política de
87
assentamento, se as características desses que são hoje assentados não fossem consideradas?
Qual o significado que outra terra teria se a eles fossem postas a compra?
As palavras-muletas da geografia podem oferecer subsídios a possíveis interpretações
da história de luta espacial desses assentados e serão aqui chamadas. A noção de lugar pôde
preencher de sentido o território concedido através da política de assentamento. Esse lugar foi
construído no entrecruzamento das características regionais, expressas principalmente através
da ocorrência da rocha esteatito. Como também, paisagens mnemônicas construíram o saber
local e é responsável por sua apropriação que vai se ressignificando com a construção do
espaço-tempo desses assentados. A inserção política no discurso da política de assentamento
propiciou que tais assentados despertassem para o fazer-se visto, reivindicando
territorialmente o seu próprio lugar. É por isso mesmo que a conquista por voz possui papel
significante, por convergir o anseio pelo ser-assentado em terras que já são os seus lugares. A
luta, através da inserção política e do fazer-se visto, foi também a responsável pela invenção
do ser-assentado a essas pessoas que já possuíam em si a noção de pertencimento ao
Cafundão. O ser-assentado emerge como uma identidade ressignificada, na medida em que se
pauta naquela já construída, de forma atravessada a construção de espaço, sendo lapidada
pelas novas condições que conquistaram. O ser-assentado carrega em si a luta por qual
empreenderam, indo além de ser mera designação ao beneficiário da política de assentamento.
Percebi que há o despertar em vários sentidos – político, econômico, social – para a
abertura de possibilidades de ressignificações sobre eles mesmos, lhes trazendo ou angariando
melhores condições de vida. Esses assentados, por exemplo, têm diversificado a tipologia de
sua produção, estendendo o fazer-panelas para a confecção de formas de pizza, panelas de
pressão, vasilhames, e aparato para fondue. Como também, estão deixando de depender de
atravessadores e vendendo seus produtos diretamente ao consumidor final e em feiras de
artesanato. Possuem, para tanto, um cartão de identificação que fazem questão de apresentar
como se fosse uma verdadeira carteira de identidade à apresentação do ser-assentado.
Nesse sentido, o ser-assentado parece se configurar numa noção identitária presa ao
lugar-Cafundão, que agora passa a ser o lugar-assentamento-Cafundão. Esse território do
assentamento parece funcionar como limite criado por eles. Quando estão fora do
assentamento se sentem desprotegidos, vulneráveis. Os territórios que se compreendem no
exterior do assentamento são concebidos como mundo que é perigoso e desconhecido, por
não possuir a identidade conhecida do Cafundão. O lugar surge como ponto de encontro e de
reconhecimento identitário. A história de luta no Cafundão inscreveu uma força a eles
inerente, mas que parece estar presa na terra. Com as mudanças que vem ocorrendo, com o
88
contato deles com os-de-fora, incentivado pela Emater, a partir, por exemplo, da inserção na
rede de turismo, tem contribuído para ressignificação deles próprios. Essa recriação de si vem
transformando os limites do assentamento em fronteiras, onde o lugar permanece forte, mas
os limites para além do assentamento tem se hibridizado.
O ser-assentado vem se ressignificando com o movimento que o próprio assentamento
tem conquistado. Estudos mais aprofundados que revelem dinâmicas, identidades, relações de
vizinhança e contradições internas do assentamento, e isso tudo surgindo ou se
ressignificando a partir do próprio movimento do assentamento e dos assentados, configuramse pertinentes e poderiam tangenciarem-se a esse próprio estudo, com viés de apreensão
espacial. Contudo, destaco um movimento percebido. Refere-se a uma assentada, nascida
alguns anos antes da criação do assentamento, que conquistou no final do ano de 2011 a
possibilidade de estudar na Universidade Federal de Minas Gerais fazendo o curso de
licenciatura para a educação no campo. Movida pelo sonho de poder trazer ao assentamento a
possibilidade de letramento, suas idas à capital - que se dá em intervalos de 15 em 15 dias - é
tarefa coletiva de auxílio. Eles se ajudam para conseguir o dinheiro necessário à compra de
passagens rodoviárias, alimentação e demais materiais que são precisos, tais como fotocópias,
livros, etc.
O ser-assentado foi percebido como orgulho, como mudança de uma vida para outra,
como conquista de seu próprio lugar. A luta, com conflitos armados cessados, continua
cotidianamente, na sobrevivência, no trabalho, no movimento tenso de construção do espaço.
Para apreender as representações dos assentados, eu tive que abrir-me ao diálogo com outras e
distintas formas de representação, e isso não se dando de forma escalonada. É por esse motivo
que as narrativas, essas narrativas, tiveram que ser construídas considerando as representações
de espaço dos assentados, as representações que se têm dos assentados e as interpretações e
apropriações espaciais do assentamento Cafundão. Narrativas que se entrecruzam, se
tangenciam, relevam-se mutuamente como sociogêneses. Narrativas que se somam dando
sentido à dimensão da luta e a conquista por voz. Essas narrativas configuram-se como
polifonias que se expressaram através de mim e por mim. Polifonias buscadas a partir de
olhares que viam sobreamentos, sombreamentos de uma luta.
89
Considerações:
aberturas e leituras.
“Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti: que – só
de um jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair –
do fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para
frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes.
Tremeluzi. Dei cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.
E, me parece, o mundo se acabou. Ao menos, o daquela noite.”
(Guimarães Rosa).
Esta pesquisa possui movimento. Não há produtos no sentido de poderem ser
apropriados com tons conclusivos. O produto desta pesquisa, que se configura como a sua
principal contribuição, é a percepção de que as representações dessa luta que culminou no
assentamento Cafundão estão pautadas justamente no tensionamento entre elas. As diferentes
representações apreendidas ao longo desta pesquisa se conflitam umas com as outras. O olhar
dos assentados sobre eles mesmos, os olhares que se têm dos assentados e as visões
construídas acerca da luta pelo assentamento Cafundão se atravessam, dialogam-se, e vão se
ressignificando a partir do próprio tensionamento e da sua rememoração.
Essa textualização se configura como uma versão criada no tangenciamento das
percebidas representações. Aquele diálogo proposto entre as formas gerais e as formas
particulares de construção do espaço pautou o sentido de se conceber tais representações
como formas particularizadas de representação de mundo e de luta. Geral e particular, se
expressando como mundo e lugar, se atravessam, se imbricam, se dialetizam. De tal forma
que foi possível perceber como a noção de lugar conflitou-se com o sentido geral da política
de assentamento que, nesse caso, se pautou mesmo na consideração das particularidades do
lugar. Fala-se da importância que essas terras possuem para esses assentados preenchendo de
sentido a política de assentamento que, se fosse feita de outra forma, em outras terras, o serassentado talvez não estivesse entrecruzado ao lugar, ao pertencimento, às paisagens
mnemônicas que reconhecem territorialmente esse lugar como seu.
90
As narrativas de vidas espaciais foram construídas a partir do atravessamento entre
expressões coletivas e individuais da luta. Coletivo e individual se fundiram e se
confundiram, através de representações apreendidas. Construí essa versão da história de luta
do assentamento na consideração não somente do que falam os assentados acerca de sua
própria luta. Houve a abertura em considerar o que se fala dessa luta e, por esse motivo,
olhares diferentes compuseram a construção dessas narrativas. Portanto, esta pesquisa se
debruçou justamente onde esse debate ou embate de representações é provocado. O embate se
coloca no tangenciamento entre as formas interpretativas de se encarar essa luta e o sentido de
tê-la empreendido.
Por esse motivo, essa representação textualizada não pressupõe ser a versão conhecida
ou clara de luta. Não se trata de uma composição da História do Cafundão, em seu sentido
verídico e coeso. Busquei por sombreamentos que emergem do conflito entre representações.
Sombreamentos que são como olhares particulares e que se entrecruzam com o que se quer ou
se consegue ver. Sombreamentos que guardam em si o tensionamento entre as memórias da
luta, que se expressam em rememorações espaciais, orais, documentais e também através de
códigos culturais ou de expressões mnemônicas nem sempre passíveis de verbalização.
O tangenciamento talvez não tivesse sido construído se não houvesse a orientação
teórico-metodológica de conceber as narrativas de vidas espaciais. Essa metodologia,
conhecida através de Alícia Lindón (2008), embasou a consideração de olhares diferentes
sobre um mesmo tema que aqui é o assentamento Cafundão. Assim como, norteou a própria
orientação teórica desta pesquisa, na medida em que se concebe a memória como construtora
de espaço e de espacialidade. Além disso, permitiu, em alguma medida, o trânsito entre
autores que elucidam sobre elementos que compõem o contexto que justifica uma política de
assentamento, com a apreensão de representações que são feitas sobre a luta que trazem esses
elementos na simbiose da invenção de outros construídos no lugar.
Nesse sentido, esta pesquisa se assenta num terreno de instabilidades por estar
debruçada sobre tangenciamentos. A despeito de conferi-la o desejável movimento, as
narrativas foram construídas sem a propriedade discursiva inerente a estudos aprofundados.
O olhar dos assentados sobre eles próprios foram apreendidos na consideração de seu
tangenciamento com as representações espaciais. Dito de outra forma, o ser-assentado foi
considerado nas fronteiras – ou no trânsito - em que se esbarra com as noções espaciais
apreendidas. Ratifico que a proposta desta pesquisa não foi mesmo a construção da História
do Cafundão, mas elementos sobre a construção da identidade do ser-assentado poderia
91
revelar ricas interpretações discursivas sobre eles mesmos e sobre seu atravessamento à
construção de espaço.
Destarte, essa instabilidade, ao contrário de impor-se como limite desta pesquisa, se
perfaz como convite ao prolongamento das representações da luta. Isto porque, configura-se
numa representação que, por isso mesmo, se tangenciará às outras formas de apreensão da
luta. Aqui, reside o investimento de se ter voltado aos assentados e à historicidade de
construção do assentamento, que ainda não havia sido contemplado pela academia. No
entrecruzamento da história de luta e de espaço do Cafundão, essa monografia traz elementos
que estão presentes na construção do espaço do próprio município e que, por isso, poderão
servir de contribuição para a discussão acerca de sua governança se dando de forma
entrelaçada a questões como religiosidade e conflitos fundiários. Como também, as narrativas
que revelam tensões inerentes à criação do assentamento podem contribuir como uma forma
de registro ou voz dessas tensões, tendo-se em vista que elementos que compuseram a
sociogênese do assentamento ainda se fazem presentes na construção do espaço marianense,
ainda que a ausência de gritos possa sugerir o silenciamento de vozes.
É importante ressaltar, como abertura proporcionada por essa monografia, que há
elementos que compõe a dinâmica do próprio assentamento, mas que aqui não se empreendeu
uma análise de discursos a partir daquilo que poderia ser apreendido através de observação
participante. Cito, por exemplo, a repartição dos lotes de forma diferente e conforme também
as características do terreno, o que interferiu nos valores pagos por eles, e a forma como isso
se reflete na dinâmica e nas contradições internas do assentamento. Como também, várias
outras possibilidades discursivas ligadas a questões de gênero, divisões do trabalho, disputas
internas ligadas à produção ou à liderança, já que são poucos aqueles que fazem as viagens
referentes à exposição de produtos ou à apresentação do próprio assentamento como grupo
social beneficiário de política pública.
Essa textualização se pautou, portanto, na busca por polifonias, que foram sendo
descobertas a partir dos sombreamentos percebidos pelo meu olhar. E esse texto se
transformou ele mesmo em mais uma forma polifônica de expressão de sombreamentos –
sombreamentos de uma luta dos assentados e assentamento Cafundão. Não há luz nesta
pesquisa, e sim sombreamentos.
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