INSTITUTO FEDERAL MINAS GERAIS – IFMG CAMPUS OURO PRETO DIRETORIA DE GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO COORDENADORIA DE GEOGRAFIA RÚBIA DE PAULA RÚBIO EM BUSCA DE SOMBRAS QUE NÃO OBSCURECEM UMA LUTA: NARRATIVAS DE VIDAS ESPACIAIS DOS ASSENTADOS E ASSENTAMENTO CAFUNDÃO, MARIANA-MG. OURO PRETO MINAS GERAIS - BRASIL 2012 i RÚBIA DE PAULA RÚBIO EM BUSCA DE SOMBRAS QUE NÃO OBSCURECEM UMA LUTA: NARRATIVAS DE VIDAS ESPACIAIS DOS ASSENTADOS E ASSENTAMENTO CAFUNDÃO, MARIANA-MG. Monografia apresentada ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Ouro Preto, como parte das exigências do Curso de Licenciatura em Geografia, para a obtenção do título de Licenciado. Orientador: Professor Ms. Patrício Pereira Alves de Sousa OURO PRETO MINAS GERAIS - BRASIL 2012 ii Rúbio, Rúbia de Paula R896e Em busca de sombras que não obscurecem uma luta: Narrativas de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão (Mariana – MG) [manuscrito] / Rúbia de Paula Rúbio. – 2012. 99 f. : il. Orientador: Prof. Patrício Pereira Alves de Sousa Monografia (Graduação) – Instituto Federal Minas Gerais, Campus Ouro Preto. Licenciatura em Geografia. 1. Assentamentos Humanos (Mariana – MG). – Monografia. 2. Questões Sociais e Culturais. – Monografia. 3. Memória Cultural. – Monografia. 4. Espaço (Geografia). – Monografia. 5. Lugar (Geografia). 6. Narrativas (Cultura) – Monografia. 7. Representações (Cultura). – Monografia. I. Sousa, Patrício Pereira Alves de. II. Instituto Federal Minas Gerais, Campus Ouro Preto. Licenciatura em Geografia. III. Título. CDU 304:711.3 Catalogação: Biblioteca Tarquínio J. B. de Oliveira - IFMG – Campus Ouro Preto iii RÚBIA DE PAULA RÚBIO EM BUSCA DE SOMBRAS QUE NÃO OBSCURECEM UMA LUTA: NARRATIVAS DE VIDAS ESPACIAIS DOS ASSENTADOS E ASSENTAMENTO CAFUNDÃO, MARIANA-MG. Monografia apresentada ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Ouro Preto, como parte das exigências do Curso de Licenciatura em Geografia, para a obtenção do título de Licenciado. APROVADA EM: 05 de novembro de 2012. __________________________________ Prof. Ms. Eduardo Henrique Modesto de Morais ___________________________________ Profa. Ms. Lidiane Nunes da Silveira ___________________________________ Prof. Ms. Patrício Pereira Alves de Sousa (Orientador) OURO PRETO MINAS GERAIS - BRASIL 2012 iv À Exú, Senhor dos Meus Caminhos. Acompanhe-me! v AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente a: Assentados do Cafundão, que se abriram de corpo, alma, pulsações e representações. Minha família: papai, mamãe e irmãos – cobrança e confiança silenciosas, consolo e aconchego. Professor Patrício Pereira Alves de Sousa, meu Oriente – sem dúvida, o maior dos encontros. Obrigada por todo o carinho, incentivo, inspiração e força. Professores Venilson, pela inquietação; Raquel, pela doçura e serenidade; Fernando, pelas ricas conversas e incentivo; Lidiane, por alimentar anseios; Fábio, pela busca tangente; Leonel, pelos risos em meio a dramas; Lucas, por toda atenção; Eduardo, pela leveza; Eliana, pela competência. Aos funcionários da Emater-MG , da Emater-Mariana e da Câmara Municipal de Mariana, pela atenção e contribuição. vi Com o perdão de uma não-rememoração no momento em que escrevo, mas nunca, jamais, de um esquecimento: Queridos Olguinha e Binho, pelo Trio. Péde, Renatinho, companhias amigáveis. Nathy, Sarinha, Rafinha, Thami, amizades sinceras Renatinha, alegria que contagia. Minhas lindas Ane Elize e Aninha Gabrielly, Vovós, e demais familiares. Anandita, Esiozinho, Rodrigão, Erivelton, Edir, loja J’adore, compuseram meu processo de busca. Tchutchucos-estudantes, colegas geografandos e demais professores, por toda atenção. À Cunha, pela reciprocidade. Amigos conquistados e amores vividos e interrompidos, obrigada por se tangenciarem a minha vida – pertencendo, não transitoriamente, ao meu drama! vii O avesso da memória. Esta história aconteceu de verdade. As personagens também não foram inventadas. Elas não disseram, muito provavelmente, aquilo que eu as fiz dizer. Não importa; como não sabemos exatamente o que disseram, podemos imaginar. Só assim pode-se contar, fazendo dialogar verdade e imaginação...”. (Nivaldo, O Amigo, em O avesso da memória) viii LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS: ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas ACAR Associação de Crédito e Extensão Rural ACC Associação Cooperativa de Cafundão CETEC Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais CLT Consolidação das Leis de Trabalho CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. CPI Comissão Parlamentar de Inquérito EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural EMATER-MG Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais ETR Estatuto do Trabalhador Rural IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFMG Instituto Federal Minas Gerais IFMG-OP Instituto Federal Minas Gerais, campus Ouro Preto INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MAB Movimento dos Atingidos por Barragens MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário MG Minas Gerais MST Movimento dos Sem-Terra NBR Norma Brasileira NEAD Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural PA Projeto de Assentamento PCB Partido Comunista Brasileiro SAF Secretaria de Agricultura Familiar, do MDA S/D Sem data SDT Secretaria de Desenvolvimento Territorial, do MDA SERFAL Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, do MDA SE Secretaria Executiva, do MDA SIPRA Sistema Institucional do Programa de Reforma Agrária 7 S/N Sem número SPOA Sub-Secretaria de Planejamento, Orçamento e Administração, do MDA SRA Secretaria de Reordenamento Agrário, do MDA TCC Trabalho de Conclusão de Curso 8 RESUMO RÚBIO, Rúbia de Paula. Em busca de sombras que não obscurecem uma luta: narrativas de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão, Mariana-MG. Licenciatura em Geografia. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – Campus Ouro Preto, novembro de 2012. Orientador: Patrício Pereira Alves de Sousa. Esta pesquisa se propõe a tangenciar diferentes formas de representação da luta pela terra que culminou no assentamento Cafundão, localizado no município de Mariana, Minas Gerais. Foram consideradas as representações que os assentados possuem de sua luta, dialogando com outras que se tem sobre a luta e sobre os assentados. Ou seja, trata-se de uma textualização polifônica na medida em que se busca considerar as falas dos assentados atravessando-se com o que se fala dos assentados. Para tanto, inquiriu-se por registros documentais que manifestassem formas interpretativas dos contextos dos quais o Cafundão poderia fazer parte, bem como algumas formas de representação sobre os assentados e sobre a luta pelo assentamento. Foram consideradas as abordagens do Estado-Prefeitura, da Igreja Cristã da Arquidiocese de Mariana e um ponto de vista da mídia expressa no jornalismo local, que compõem uma das possibilidades existentes. Por esse motivo, foram visitados jornais e documentos que não expressam necessariamente a opinião da Instituição à qual se vinculam, sendo eles: os jornais O Arquidiocesano (1972-1983), O Monumento (1989-1991), O Liberal (1994 - 2004) e O Ruralista (1983-1993), as Atas de Reunião Ordinária e Extraordinária da Câmara Municipal de Mariana (1989 - 1998); e os artigos que foram escritos mencionando-se, em poucas linhas, o assentamento Cafundão. Esse tangenciamento polifônico se pautou em formas de representação que se dão também a partir de sua rememoração, seja se dando através de oralidade, seja através de documentação. Fala-se de memórias, memórias da luta: polifônicas, particulares e em movimento. Em razão disso, essa pesquisa se pautou na textualização de memória para a apreensão da espacialidade da luta, através da construção de narrativas de vidas espaciais, que serviu como orientação teórico-metodológica a essa pesquisa. Palavras-chave: Memória; lugar; espaço; Assentamento Cafundão; representação. 9 ABSTRACT RÚBIO, Rúbia de Paula. Em busca de sombras que não obscurecem uma luta: narrativas de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão, Mariana-MG. Licenciatura em Geografia. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – Campus Ouro Preto, novembro de 2012. Adviser: Patrício Pereira Alves de Sousa. This research proposes to approach different forms of representation of the struggle for land that culminated in the settlement Cafundão, located in the municipality of Mariana, state of Minas Gerais. The representations that the settlers have about their fight were considered, comparing to other representations about the struggle and the settlers. In other words, the research is a polyphonic textualization as it considers the speeches of the settlers crossing with what is talked about them. The documentary records evaluated were the ones that manifested interpretative forms of the contexts in which Cafundão could be a part of, as so as some representation forms about the settlers and the struggle for the settlement. The approaches put in agenda were the ones from the State-Hall, the traditional Christian Church of the Archdiocese of Mariana and the point of view of the media expressed through the local journalism, which composes one of the existent possibilities. For this reason, this analysis sought newspapers and documents that don’t necessarily express the opinion of the Institution which they were linked to, namely: O Arquidiocesiano (1972-1983), O Monumento (1989-1991), O Liberal (1994-2004) and O Ruralista (1983-1993), the Minutes of the Regular and Special Meeting of Mariana’s City Hall (1989-1998); and finally the articles written that mention in a few lines the settlement Cafundão. This polyphonic approach was based in forms of representation that were also constituted by their own recall through speech or documentation. Memories are risen, memories of the struggle: polyphonic, particular and moving. Thus, this research built its agenda on the textualization of memory to comprehend the spatiality of the struggle, through the construction of narratives of spatial lives (LINDÓN, 2008), that was useful as theoretical-methodological orientation for this study. Keywords: Memory, place, space, settlement Cafundão; representation. 10 SUMÁRIO Lista de Abreviaturas 07 Resumo 09 Abstract 10 INTRODUÇÃO 12 Sombras que não obscurecem: sombreamentos de uma luta I. PINGUELAS: a contextualização de uma metodologia. I.1 Elucidações II 16 16 I.2 Muletas Teóricas 17 I.3 Falas Plurais e pinguelas. I.4 Contextualização da metodologia de pesquisa: narrativas de vidas espaciais; I.4.1 Construção textual: etapas e procedimentos 27 II. TANGENCIAMENTOS: cenários e sociogênese. 32 37 42 II.1 Elucidações I 42 II.2 A historicidade da concentração de terras no Brasil: amplitudes e tensões 43 II.3 Elementos embasadores da historicidade da concentração de terras: agrário e agrícola em uma questão brasileira II.4 O assentamento Cafundão e o inquérito por contextos sociogênicos; III. 12 NARRATIVAS DE VIDAS ESPACIAIS 49 55 60 III.1 Elucidações III 60 III.2 A Terra: questão de posse. 64 III.3 A Terra: tensões 74 III.4 A Terra: questão de pertencimento. 79 III.5 Os assentados e o assentamento Cafundão: o ser-assentado. .. 87 CONSIDERAÇÕES: Aberturas e leituras. 90 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 93 11 Introdução “[...] as aparências das coisas mudam segundo os estados de ânimo”. (Jorge Luis Borges). Sombras que não obscurecem: sombreamentos de uma luta. Sombras são o seu movimento. São trânsitos, sendo também olhares particularizados. Aparecem de forma dependente de onde se olha. Não são situações que se impõe ao olhar, que impede o mirar devido à ausência de luz, ou o contrário, que revela obviedades a partir de clareamentos. Sombras se criam através do olhar, pois é dependente de quem olha, como se olha, de onde se olha, e o que se pretende ver a partir do olhar. Sombreamentos surgem no exercício do olhar. Em uma investidura, há em si sombreamentos. A ideia de sombra é inerente à particularização do olhar. Se são olhares específicos, sua textualização também haveria de ser. Textualização é uma representação de representações apreendidas por olhares. Textualização como voz revela polifonia. Múltiplos olhares, incontáveis representações e diversas vozes. Busca-se, portanto, polifonias. São polifonias de uma luta e, pois, sombreamentos. Sombreamentos de uma luta - como expressão, sugere a absorção de particularidades. Mas, se trata de qual luta? Nessa pergunta, há envolvidos. Busca-se por sombreamentos de uma luta pela criação do assentamento Cafundão, localizado em Mariana, Minas Gerais. Objetivo inquirir por representações que são feitas da luta pela terra que culminou no assentamento Cafundão, a partir da investigação de representações que os assentados possuem de sua própria luta, daquelas representações que se tem dessa luta e da investigação sobre elementos contextuais que compõe a sociogênese do assentamento. Ou seja, a partir dessa textualização, almejo tangenciar as representações apreendidas dos assentados, aquelas que são sobre os assentados e as representações que se entrelaçam à construção do espaço do assentamento. Dessa forma, na tentativa de investigar diferentes interpretações sobre a sociogênese do assentamento Cafundão, foram consideradas a existência de várias vozes que narram o mesmo tema, que aqui é o assentamento. Vozes que expressam representações. Considera-se, de forma hipotética, que essas vozes que denunciam sociogênese se relacionam 12 às motivações e ao desenrolar da luta, às formas como essas estão expressas através de memórias e, evidentemente, a como esses elementos são imaginados e expressos nos discursos e também nos silêncios. Nesse sentido, buscou-se por escritos e autores que contribuíssem a interpretações do contexto no qual o assentamento está inserido, que se enveredou pela elucidação do sentido de ser da política de assentamento que emerge do painel de desigualdade fundiária percebida na construção do espaço brasileiro. Inquiri por registros documentais que manifestassem formas de representação sobre os assentados e o sobre a luta pela terra, na consideração de abordagens do Estado-Prefeitura, da Igreja Cristã da Arquidiocese de Mariana e um ponto de vista da mídia expressa no jornalismo local, que compõem uma das possibilidades existentes. Por esse motivo, foram visitados jornais e documentos que não expressam necessariamente a opinião da Instituição à qual se vinculam, e que aqui compuserem as representações da luta. Indaguei, em idas ao assentamento, sobre a luta, sobre o desenrolar dela, sobre suas motivações e outras perguntas que não seguiam um roteiro estruturado, mas norteou-se pela investigação de representações da luta. Contudo, evidencio que essa textualização – que é a monografia - não pretende ser a História da luta, em seu sentido verídico e coeso. O anseio é outro. Pretende-se construir narrativas da história de luta desses assentados, considerando que suas vidas se atravessam ao espaço que os construiu e que também foi construído por eles. Narrativas construídas no movimento desta pesquisa. Por isso, concebe-se como orientação teórico-metodológica a construção de narrativas de vidas espaciais (LÍNDON, 2008) dos assentados, sobre os assentados e do assentamento Cafundão. Essa orientação fornece os movimentos e os olhares particulares que foram julgados necessários à apreensão de representações e, pois, à construção dessa textualização como outra forma de representação. Por se voltar à apreensão de representações, aqui será considerado que essas se movem a partir do processo de rememoração. Em outras palavras, as representações carregam em si memórias que as identificam, moldam, constroem. Fala-se de memórias, memórias da luta: polifônicas, particulares e em movimento. Em razão disso, esta pesquisa se pautou na textualização de memória à apreensão do espaço, compondo o que se chamou aqui de narrativas de vidas espaciais. Narrar vidas? Narrativas. Para além de o mero contar ou reproduzir, chamo à baila o movimento que é possível a esse verbo. Narrativas sugerem construção, movimento, hibridez. Podem ser desencaixadas e assimiladas por espaços-tempos diferentes. São particulares e plurais. São tangenciamentos possíveis entre as formas de representação. Busca-se por sombreamentos capazes de serem representados pelas narrativas. 13 O Cafundão guarda em si diversas representações. O meu olhar se voltou ao assentamento Cafundão no momento em que fui posta ao seu encontro, numa visita de campo através da disciplina Geografia Agrária. Mas, o meu olhar sobre ele já estava sendo construído, a despeito de ainda não conhecê-lo. Como assentamento de reforma agrária, ele guarda em si imagens e paisagens muitas vezes oriundas daquelas criadas em relação à expressão reforma agrária. O assentamento, como resultante direto dessas noções reformistas, guarda, inventa e tensiona em si e através de si diversas representações. Esse assentamento foi resultado de uma luta pela terra que, aqueles que são hoje assentados, já consideravam como suas. Uma luta por uma terra que já era também lugar. Localizado no município de Mariana, Minas Gerais, as terras do Cafundão fizeram parte dos tensionamentos inerentes à construção do espaço marianense. Resultante direto de uma política geral de assentamentos de reforma agrária, o Cafundão oferece subsídios para se pensar na maneira como tais políticas se expressam nos lugares e, nesse caso, no contorno que ela assumiu perante a importância dessas terras para essas pessoas, que nela sempre viveram, trabalharam, e imprimiram seus códigos culturais. A consideração polifônica e a construção de narrativas almejam, justamente, compreender essas representações que são criadas em torno da luta pela terra. As aberturas eminentemente geográficas, e que não pressupõe serem exclusivas da geografia, permitem o atravessamento de olhares. As visões de aberturas são visões de sombreamentos e, por isso, dependentes de quem, como e de onde se vê. As lentes geográficas, que foram aqui escolhidas, permitiram o trânsito entre a minha impressão e representação, através dessa textualização. Os sombreamentos da luta foram buscados a partir do olhar que os assentados possuem sobre si e sobre sua história, os olhares que se percebeu sobre os assentados, e a espacialidade do Cafundão como mais uma forma de representação. Busca-se, pois, o tangenciamento entre as formas interpretativas de verem essa história. E, por isso mesmo, essa textualização haveria de considerar a construção de narrativas espaciais concebendo-se, na polifonia do espaço, a voz dos assentados, a voz que se fala dos assentados e a voz que se intersectam ao assentamento Cafundão. As terras do Cafundão, muito além de terras concedidas aos beneficiários de uma política de assentamento de reforma agrária, se configuram em terras que possuem memórias, paisagens, sentidos territoriais, sentimentos de lugar – compondo sua expressão espacial. A narrativa espacial é uma forma que permite perceber o entrelaçamento da vida ao espaço, tangenciando-os de tal forma que torna difícil a separação. Esse entrelaçamento requer que se contextualize o sentido de ser 14 desse espaço, percebendo tensionamentos, por que são construtores de espaço. Por esse motivo, a textualização foi construída da seguinte forma. No Capítulo 1, Pinguelas: a contextualização de uma metodologia, se elucidará sobre o papel da memória na construção do espaço e da espacialidade, justificando o porquê de se debruçar sobre as representações da história da luta pelos assentados e através do que se fala dos assentados, convergindo também com interpretações sobre o contexto espacial do assentamento. Essas formas de investigação justificam a opção pela a apropriação e a tentativa de construção de narrativas de vidas espaciais como orientação teóricometodológica. Já no Capítulo 2: Tangenciamentos: cenários e sociogênese, dialogo a questão da terra e as maneiras como esta é tratada ao longo da construção do espaço brasileiro. Por consequência, poderá se perceber o sentido de ser da política de criação de assentamentos. Como também, reside aí uma possibilidade de compreender o contexto no qual o assentamento Cafundão está inserido, a partir do diálogo polifônico entre as vozes aqui representadas. Essa contextualização também subsidia o sentido de ser de uma sociogênese, conforme será discutido ao longo do texto. Prossigo no Capítulo 3 Narrativas de vidas espaciais com a proposta desta pesquisa que é o diálogo e o atravessamento entre as representações da luta pela terra dos assentados do Cafundão, me incluindo como uma dessas formas. Busquei criar diálogos entre as representações dos assentados, entre representações que se tem dos assentados e as interpretações que se faz do assentamento. Atentei-me para não exaltar as representações da luta das pessoas que são eixo desse meu estudo – os assentados do Cafundão -, como também para não estabelecer entre as diferentes representações relações de veracidade e inautenticidade. Nas Considerações: aberturas e leituras são destacadas as ressalvas desta pesquisa e também as aberturas de possibilidades de outros estudos ensejados por esse. 15 Capítulo I: Pinguelas: orientação teórico-metodológica. “Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi chamado de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em "humildade" refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à vida, faz perder muito tempo” (Clarice Lispector, em Escrever, Humildade, Técnica) I.1 Elucidações I. Na Introdução expus de forma geral qual foi o objetivo desta pesquisa, que nasceu da abertura de pensamento proporcionada pelo curso que escolhi - geografia. Talvez se tivesse optado por outra formação acadêmica, o meu olhar não estaria direcionado nesse sentido que estou perfazendo. Há aqui, pois, uma pesquisa sendo textualizada através de lentes que foram construídas ao longo do tempo de vida e experiência-de-mundo da pessoa que escreve, que sou eu. Desse modo, faz-se necessário esse posicionamento do Eu para que o Outro seja considerado: essa consideração da alteridade será mais adiante devidamente discutida. 16 Nesse capítulo, elucidarei sobre algumas muletas teóricas chamadas a auxiliar na verbalização de significados que se pretende sistematizar e sobre as formas como esta pesquisa será textualizada, ou seja, se discutirá sobre a escolha da orientação teóricometodológica, para então, se passar, nos próximos capítulos, ao que está sendo edificado aqui como narrativas de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão, numa tentativa de diálogo entre representações dessa história de vida, luta e construções espaciais. I.2 Muletas teóricas. Serão usadas, ao longo do texto, algumas palavras carregadas de significados que, por serem, merecerão uma maior dedicação sobre os sentidos que se pretende delas extraírem. São palavras-muletas, palavras que servem de apoio, sustentação, ancoragem à textualização. Sublinho que me apropriei desse termo muleta no sentido dado por Roberto Cardoso de Oliveira (1996) que o usa como metáfora para designar termos que ajudam no exercício de investigação, na medida em que permite que com ele se “caminhe, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimento. A metáfora, propositadamente utilizada, permite lembrar que a caminhada da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas” (OLIVEIRA, 1996, p. 18). Tais palavras-muletas também podem ser chamadas de categorias, dada a capacidade de agrupar significados. Entende-se que, nesse agrupamento, ao invés de delimitações que impedem que o significado extrapole o limite da significação da categoria, abrem-se fronteiras de diálogos no tensionamento de definições. As categorias ou palavras-muletas possuem, portanto, sentidos que vão se movendo conforme o tensionamento é provocado. Não há engessamentos, e sim aberturas de sentidos. Muletas geográficas foram e serão chamadas aqui para contribuir com a construção textual de impressões, inquietações e representações feitas ao longo desta pesquisa. Espaço, região, território, paisagem e lugar servirão de apoio categórico. Essas categorias carregam em si significados de mundo emergidos de interpretações e representações e, por isso mesmo, desse texto farão parte. Os significados que justificam suas ocorrências serão, agora, resumidamente apontados. Espaço, região, território, paisagem, lugar... São concebidas como categorias geográficas. São palavras-muletas que servem de apoio a alguma teorização que se pretende pertencer à geografia ou que dela se emerge. Não pertencem exclusivamente à geografia e nem foram por ela inventadas. Mas essa, a geografia, apoia-se nessas palavras-muletas para conduzir ou alicerçar suas pretendidas teorizações. 17 Teorizar é exercício através do qual se pretende explicar o mundo. Teorizações são explicações de mundo que, quando preocupadas com contextos, voltam-se para o mundo tentando elucidá-lo: são teorizações contextuais, preenchidas de lugares ou deles insurgidas. Se o mundo é movente e abstrato, as teorizações também serão. Funcionam como enunciadosmuletas, e por isso não haveria de se dar de forma engessada. Há aquelas teorizações que não se preocupam tanto em voltar-se para o mundo, no sentido de se conceber o mundo como aquele que se expressa nos lugares. Estas parecem conceber esse mundo de forma orgânica, unificadora de lugares, união de tudo, o cosmos. Neste caminho de reflexões, vale indagar: como teorizar sobre a união de partes que se movem? Como unir na palavra tudo o que não se conhece ou não se apreende? O que é tudo? Estas teorizações que unem as partes se esvaziam de sentido de mundo, na medida em que se prendem às teorizações-gerais, generalizações, tendendo a distanciar-se de lugares e de particularidades. Particularidades requerem modos moventes de apreendê-las. O geral enrijecido não abarca o lugar e, também, não apreende o mundo. E esse mundo que se menciona não se transformou em palavra-muleta no sentido categórico de ser. Não se pode afirmar a existência da categoria mundo. Entretanto, no contexto das reflexões teóricas sobre o lugar, a ideia de mundo emerge como um conceito importante, sem o qual a própria noção de lugar é destituída de significado contemporâneo. A ideia de mundo, tão abstrata na dimensão das vivências e dos cotidianos, adquire significado quando os olhos se voltam para os lugares: recortes de mundo estão em todos os lugares; representações de mundo estão presentes em todos os lugares (HISSA e CORGOSINHO, 2006, p. 8). Mundo, portanto, se tangencia à ideia de lugar. Expressa também o hibridismo que dá movimento às categorias e, por consequência, às teorizações. Estabelecem-se movimentos de tensionamento e de tangenciamento entre as categorias e seus significados, por se entrecruzarem, por se fundirem, por se confundirem. O apego às significâncias individuais de cada uma das categorias torna-se desnecessário, dado seus movimentos. Destaco, contudo, algumas singularidades responsáveis por tais categorias serem chamadas a movimentarem-se nessa textualização. Se o mundo é o movimento, construção abstrata de espaço, sua expressão se dá no lugar. O lugar surge como cotidiano, onde o mundo se representa e se expressa. Onde o mundo se recobre de realidade, dado a concretude da convivência e do cotidiano. 18 [...] mundo e lugar se constituem num par indissociável, tornando, no entanto, o lugar como a categoria real, concreta. O lugar é também [...] o espaço da existência e de coexistência. O lugar é o palpável, que recebe os impactos do mundo. O lugar é controlado remotamente pelo mundo. No lugar, portanto, reside a única possibilidade de resistência aos processos perversos do mundo, dada a possibilidade real e efetiva da comunicação, logo da troca de informação, logo da construção política. (SOUZA, 2005, p. 253) A construção política se dá no lugar. Essa construção política poderia ser expressa através do termo negociação política. Como será discutido, processos de negociação constroem espaço. Quando se pretende exaltar a negociação, no sentido de priorizá-la em uma análise, emerge a noção de território àquele espaço pelo qual se negocia. A noção de território passa a coexistir com a ideia de lugar, pois no lugar também se negocia espaço. O espaço é construído a partir dessa negociação, que lhe confere movimento e aparências metamorfoseadas. O território surge quando se coloca lentes que buscam apreender tais negociações, que não existem fora do espaço. Território e territorialidade possuem, portanto, dimensão política, se traduzindo como apropriações de espaço. Territorializar não é apropriar-se no sentido de ter um espaço: é, por um momento, no processo de negociação incessante, concebê-lo como conquistado, delimitá-lo simbolicamente ou traçar linhas e inventar jurisdições que disponham sobre a defesa da existência da própria linha. Defesa de territórios. Demarcações. Um território poderia também ser chamado de região, quando se traduz em um espaço que se unifica e, de certa forma, se delimita sob um critério qualquer. União que reclama por continuidade, inclusive territorial, por relações de vizinhança e por critérios que a embasam. Região reclama por um critério que lhe seja como um objeto indireto: região de quê? Na resposta, há o critério definidor de regiões. Há um critério pelo qual se regionaliza. Critérios são formadores de região e são responsáveis por sua delimitação. Esse limite também é movente, pois o critério pode mover-se e, mais ainda, aquilo que é criteriado1 move-se com o mundo, pois dele faz parte. Delimitações são criteriosas e moventes. A delimitação da região é arbitrária e movente, tal qual a delimitação de um território. A delimitação do lugar se faz no sentimento de pertencimento e no enquadramento do olhar. Pertencer também pode motivar o 1 Essa palavra recebe a marcação itálica por se tratar de um neologismo, que emergiu do significado que se tentou dar ao resultante de um critério concebido como processo e não somente como produto. Em outras palavras, assumindo o critério como processo, como algo que também se move, se metamorfoseia, cria-se o processo de criteriação que dá origem a formas criteriadas. 19 territorializar, que pode estar contida ou conter regiões. Tangenciamentos. A despeito desses entrelaçamentos, espaço não é tudo. Nem tudo é espaço. Se se admite movimentos que não se cessam, o espaço não poderia abarcar aquilo que ainda não se moveu. O espaço sendo uma teorização apreende aquilo percebido como movente, mas dimensões lhe escapam. Como o espaço socialmente construído, há de se grafar nele dimensões que serão ainda inventadas ou que escaparam à percepção, dimensões invisíveis (SANTOS, 1988). No sentido dado por Milton Santos (1988), ele se resume a ser [...] uma estrutura social dotada de um dinamismo próprio e revestida de uma certa autonomia, na medida em que sua evolução se faz segundo leis que lhe são próprias. Existe uma dialética entre forma e conteúdo, que é responsável pela própria evolução do espaço. (SANTOS, 1988, p. 14) A evolução do espaço se relaciona com sua contínua construção. Esse espaço, mais especificamente chamado de espaço geográfico, tem sido destacado como objeto de estudo da geografia. A geografia se propõe, portanto, a teorizar sobre ele se utilizando de palavrasmuletas e de muletas-enunciados para elucidá-lo. Produzido e organizado de formas diversas pela sociedade, o espaço estimula, também, portanto, diversos olhares e discursos sobre os seus processos de estruturação. [...] A compreensão do espaço, concebido por um imaginário social, demanda uma reflexão sobre suas dimensões simbólica, ideológica, política e cultural. Estudar, portanto, as representações que os homens estabelecem sobre o seu espaço, no discurso literário, é uma maneira de constituir, reconstituir e compreender a cultura de um povo. Sobre o caráter dos lugares, pode-se dizer que são espaços afetivamente vivenciados ou compartilhados num tempo especifico: uma cidade, uma praça, uma rua, uma esquina, uma fazenda, um rio, um bar, a beira da estrada onde se encontram grupos sociais específicos ou, simplesmente, onde alguém encontra parte da sua historia presente e passada, memória dos acontecimentos ali vivenciados (MELO, 2006, p. 15) Fala-se de olhares sobre o espaço e de teorizações que tendem a acompanhar as lentes que foram escolhidas. Na geografia, a lente é geográfica. Mas, o que significa ser isso? Aqui, resume-se a ser a escolha da abertura proporcionada pelo leque de significados ensejados por uma ciência, por um saber ou por uma construção de mundo. A geografia, representação escolhida, apoia-se em palavras-muletas para elucidar sobre o mundo, que se expressa no lugar. Essas tais possuem, portanto, significâncias tangenciadas. As palavras-muletas características da geografia se entrecruzam, pois. 20 Desse modo, tanto a paisagem, quanto o lugar, o território e a região são feitos de formas, funções e fluxos em permanente mutação. Todas essas categorias derivam de processos históricos, culturais, políticos, econômicos, e, também, biológicos, físico-químicos que se atravessam, constituindo mundos de caráter complexo e de difícil avaliação conceitual particular (MELO, 2006, p. 59). Essa abertura ao atravessamento, que é um tangenciamento, guarda o seu aspecto movente que é o interesse desta pesquisa. Esse interesse surgiu no caminho de pesquisa, quando o meu olhar estava preocupado em encaixar o que estava sendo percebido em significações de categorias. As indagações sobre os significados das categorias se mostravam desencaixadas quando estas se voltavam ao assentamento e aos assentados. O que é o lugar no Cafundão? Ou onde está o lugar no Cafundão? E a paisagem? O espaço? A região? E todas as outras categorias? As categorias eram forçosamente percebidas nas impressões absorvidas. Um esforço que se inclinava à descaracterização das representações do Outro e sobre o Outro e das minhas próprias impressões, na medida em que se tentava moldá-las ao escopo de uma teoria. Por conta disso, assumi o sentido de concebê-las de forma tangenciada, com atravessamentos de significações. As impressões pertenceriam ao que Homi BhaBha (1998) denomina de entre-lugar, que reside na interseção ou no tangenciamento de significações. Esse trânsito tornou possível o desenvolvimento da atividade de olhar, ouvir e textualizar (OLIVEIRA, 1996) sobre os assentados e assentamento Cafundão. Adianta-se, por exemplo, por que tais discussões serão feitas ao longo do texto, que o lugar foi o grande invocador da noção territorial dessa luta. Essa luta se estabeleceu no e pelo Cafundão envolvendo sentimentos de pertencimento e de reivindicações territoriais. Havia uma noção, por parte dos assentados, de que a terra reivindicada haveria de ser deles, pois é nela que vivem há gerações. Além disso, percebi que o saber pautado na produção de panelas foi construído a partir da noção de lugar, pois é no lugar que vive, se convive e onde se expressa e compartilha a cultura. Esse saber foi coinfluenciado pelas características daquilo que se pode emergir como região, já que a ocorrência da rocha esteatito funciona como critério que impõe limite a esses assentados. A reivindicação territorial se deu a partir da consideração de que o lugar desses é no Cafundão, pois as paisagens memoriais contribuíram ao sentimento de lugar e por o próprio saber estar pautado numa característica dessa região, que é a presença de esteatito. Será preciso, portanto, percebê-las a partir da consideração do tangenciamento entre elas, entre as categorias, entre as palavras-muletas. 21 As narrativas de vidas espaciais surgem como orientação teórico-metodológica desta pesquisa, dado seu caráter movente por estar composta de híbridos mnemônicos, de representações de mundo e de lugar. Cabe destacar, ainda que brevemente, a noção de sociogênese ou contexto de sociogênese trabalhado por Norbert Elias, e que será aqui apresentada a partir da interpretação que Tatiana Landini (2007) tivera. Isto por que, o sentido dado à sociogênese revela-se consoante com a orientação teórico-metodológica aqui adotada, pautada na consideração de narrativas de vidas espaciais. Segundo Landini (2007), O termo sociogênese, utilizado constantemente por Elias, [...] se relaciona às modificações específicas na maneira de ver a sociedade ao processo social de configuração da própria abordagem científica que, por sua vez, é entendido como parte das mudanças em processo na estrutura social. Dito de outra forma, para o autor, o desenvolvimento da sociedade desempenhou papel importante na construção de uma forma mais científica de concebê-la (LANDINI, 2007, p. 171, grifos do autor). Social e gênese, que formam a sociogênese, abarcam a ideia do espaço geográfico socialmente construído. Ou seja, a noção de sociogênese leva em consideração as formas sociais específicas de construção do espaço que carecem de mecanismos também específicos de apreensão. Essa especificidade faz emergir a potencialidade e pertinência da consideração de narrativas de vidas entrelaçadas à construção do espaço. Narrativas que devem considerar as representações como expressões de espaços híbridos e particulares. As narrativas de vidas espaciais buscam acompanhar o movimento de mundo através da particularidade de significâncias. As categorias, por conta disso, são encaradas aqui como palavras-muletas, dada a necessidade de também mover-se com o mundo. Outras palavras, além das categorias geográficas, que funcionam como leques de significados ou com significações imprecisas e moventes, foram e serão chamadas a também contribuírem a esse enfoque: são elas, memória e identidade coletivas. Fala-se também da memória na composição e estruturação de espaço. Memória que se constrói no lugar onde o mundo se expressa. Ela possui papel significante e por isso será também aqui resumidamente destacada. Antes, é preciso tangenciá-la à noção de paisagem, pois essa muleta geográfica é também construída através de memória. A paisagem que o escritor constrói é determinada pelo seu olhar e sua experiência do espaço, assim como aquilo que o leitor apreende é, também, resultado do seu olhar e de suas vivencias. Nenhum tipo de discurso está isento das inscrições do olhar e das vivências do sujeito que o produz. Os 22 valores simbólicos e subjetivos são, portanto, imprescindíveis para a compreensão do espaço, já que ele é a expressão do sentido que um determinado grupo social confere ao seu meio. [...] Prática de descrição, a partir da percepção de um determinado olhar, a representação de lugares e paisagens, a representação do espaço e um exercício de produção de sentidos. Mais do que a porção perceptível do espaço, a paisagem é representação, a mediação entre o mundo das coisas e o mundo da subjetividade humana, podendo assumir, portanto, diferentes formas e significações, de acordo com o olhar, a emoção, o estado de espírito e a cultura do observador e do interlocutor (MELO, 2006, p. 16) As paisagens também são, portanto, representações, podendo ser construídas através de memórias. Mas, a memória não se resume simplesmente a paisagem, e nem a paisagem é construída somente através de memórias. A memória, e também a paisagem e outras categorias, evocam outros significados que, inclusive, poderão se tangenciar às significações de outras muletas teóricas. Será preciso elucidar que quando se fala aqui de memória, não se pretende evocar aquela que Maurice Halbwachs (1990) tivera que, brevemente, comentar em sua teorização sobre memória coletiva. Esse autor comenta sobre a ideia de “intuição sensível” para indicar aquela memória de natureza estritamente individual por designar a “base da lembrança”, que se forma num “estado de consciência puramente individual”, para então, se passar à teorização da construção coletiva de memória (HALBWACHS, 1990, p. 36). Essa memória pautada na intuição sensível embasa a singularidade da memória de um sujeito em relação a outro sujeito. Contribui, portanto, para que as memórias sejam particulares por mais parecidos que possam ser os contextos formadores de memória, ou seja, as trajetórias por quais passam e experienciam tais sujeitos. Ressalto que a leitura das intuições sensíveis de cada assentado, que não é objetivo desta pesquisa, é uma proposta que merece ser desenvolvida, devido sua pertinência. Um estudo com este viés conduziria a resultados que se somariam à proposta desta pesquisa, mas que por escassez de tempo e por recortes investigativos se priorizará a memória coletiva. Como também, por a memória coletiva construir representações a partir do tensionamento inerente a sua qualidade de ser coletiva. Na história de luta dos assentados e do assentamento Cafundão, essa noção coletiva e tensa de memória será fundamental à apreensão de representações distintas e, pois, polifônicas. Porquanto, a definição de memória coletiva perpassa o modo como se concebe sua construção. Michael Pollak (1989) aponta alguns posicionamentos de autores que apresentam possíveis significados. Ele remete a Durkheim a definição reificada de memória coletiva, ou seja, a transformação em fato social que explica sua dimensão institucionalizada. Nesse caso, 23 a memória assume responsabilidade e a função de garantir durabilidade, continuidade e estabilidade a um grupo, ou ao coletivo. Em outras palavras, é por a memória coletiva ser institucional, que ela não é sobreposta pela complexidade de memórias individuais e diversidade dos indivíduos que dela fazem parte e a constroem. Pollak (1989, p. 201) destaca também a colocação de Halbwachs quando este defende que a formação de memórias coletivas não ocorre por meio coercivo, e sim através de adesão afetiva, formando “comunidades afetivas”. Ao pertencimento a essa comunidade, estabelece-se processos de negociação entre as memórias coletivas e as individuais. Tem-se, portanto, duas formas de abordagens em relação à construção de memória: aquela adepta à coerção, e a outra à adesão afetiva. Michael Pollak (1989) defende a necessidade de se conceber e permitir o diálogo entre essas duas, que se dão justamente a partir de processos de negociação que entre elas se estabelecem. Por esse motivo, as memórias dos assentados e outras apreendidas a partir das representações inquiridas, serão entendidas como em processo de negociação, como pertencentes a disputas polifônicas e a tensionamentos. Conflitos que criam territorializações de memórias. Percebe-se, portanto, que a dedicação ao estudo de memórias coletivas poderia fornecer indícios sobre esse mencionado processo de negociação que está no cerne da disputa por vozes e dos tensionamentos entre memórias e representações - que se configuram como interesse desta pesquisa. Sobre memórias em disputa, não se pretende estabelecer aqui relações de hierarquia entre aquelas consideradas subterrâneas ou dominadas, e às outras condizentes com os preceitos do discurso politicamente oficial2 (POLLAK, 1989). Até por que, em consonância com Michel Pollak (1989) e Verena Alberti (1996), considera-se que alguns estudos que se dedicam a estudar grupos dominados acentuam a característica e a força do dominador e, pois, da própria dominação, por reduzirem as memórias a meros produtos de dominação. Além disso, quando uma memória dominada é objeto de estudo à pretensão de reverter sua situação de ser-dominada, essa passa a integrar o extremo oposto da dicotomia estabelecida: de dominada, ela passa a ser dominadora frente a outras que não sofrerão a reversão, dando 2 Pollak (1989) comenta, em sua obra sobre memória, esquecimento e silêncio, que há um processo de trabalhamento da memória, ou enquadramento, responsável pela produção de memória condizente com o discurso que se quer que perdure no tempo. Quando se concebe, por exemplo, a memória nacional reside aí uma pretensão de transformar o coletivo mnemônico em uma história que se encaixe em molduras oficiais – compondo o que se tem como a História de um país. A despeito de sua hegemonia, Pollak destaca seus problemas em relação à continuidade temporal frente às memórias alternativas que escapam a essa dimensão institucional de memória: “o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que emerja nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples ‘montagem’ ideológica, por definição precária e frágil” (POLLAK, 1989, p. 7). 24 continuidade às oposições binárias. “Aliás, acredito que as oposições binárias, das quais as discussões intelectuais fazem grande uso - subjetivo/objetivo, racional/irracional, científico/religioso, [dominador/dominado] – só servem para fins de acusação ou de autolegitimação” (POLLAK, 1989, p. 11). Considerar, por exemplo, os assentados como grupo dominado, por insurgirem de um contexto opressor pautado na desigualdade fundiária, e que, depois de conquistada a terra, transforma sua condição de ser-dominado, é um tanto quanto perigoso e não condiz com os significados de memória enquanto processo de negociação aqui assumidos. Não se pretende conceder voz como se nessa atitude esses assentados fossem beneficiados pela tiragem de amordaça que integra sua condição de ser dominado. A despeito de eles não terem mesmo sido contemplados em escritos acadêmicos, considera-se que agora, por estar sendo, se relaciona à conquista por voz. Essa conquista é oriunda da disputa que travaram a ponto de despertar o meu olhar. Não dou aqui voz: há disputas por voz, memórias e representações. Essa disputa será mais adiante discutida. Os processos de negociação de memória, considerando o diálogo entre formas coercivas e afetivas de se construí-la, abarcam a dimensão correspondente à microfísica das disputas de poder: “o indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos, multiplicidades, movimentos, desejo, forças”. (FOUCAULT, 1979, p.161-162). Isso significa que as memórias coletivas “não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo” (POLLAK, 1992, p.205). Elas se constroem, se edificam na vivência simbiótica com o mundo. A esse respeito, Maurice Halbwachs destaca que essa construção de memória correlaciona à construção de espaço que se dá também através da memória. Em razão disso, esta pesquisa se pautou na textualização de memória à apreensão do espaço, compondo o que se chamou aqui de narrativas de vidas espaciais. Assim, não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma à outra, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço – aquele que ocupamos, por onde sempre passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças (HALBWACHS, 1990, p. 143 ). 25 A memória é apresentada, portanto, como muleta teórica e também como viés que pauta a adoção das narrativas de vidas espaciais como instrumento metodológico. Há o interesse aqui, tal como o ímpeto pelos significados das categorias, pela memória chamada de coletiva, preocupando-me em não estabelecer entre elas – a individual e a coletiva - relações de oposições, pois essas também se fundem e se confundem, tais como as dimensões geral e particular já expostas no texto. Interesso-me não pelo significado rígido da memória coletiva ou pela delimitação empírica de sua coletividade. Em outras palavras, não se pretende verificar – no sentido analítico do termo verificar – até onde a coletividade memorial do assentamento e dos assentados está presente e a partir de onde esse limite-memória-coletiva já não exerce o esforço de unicidade. Há, ao contrário, a pretensão de concebê-la também como palavra-muleta, ou como conceito movente. Isso significa que pretendo me aproveitar da mobilidade concernente a uma muleta, para entender justamente onde ela se esbarra, onde ela estabelece relações de significâncias fronteiriças: trata-se de a memória coletiva já se esbarrar, por excelência, em memórias individuais e particulares, na medida em que é difícil estabelecer essa delimitação, bem como por criar narrativas que constroem espaços e são construídos por ele. Já a definição de identidade coletiva, a outra palavra-muleta chamada aqui para auxiliar na textualização, é feita por Michael Pollak (1992) de forma tangenciada aos significados de memória coletiva. Esse autor destaca alguns elementos que devem ser considerados como constituintes da memória coletiva e, por consequência, da identidade coletiva, a saber: 1. acontecimentos individuais que são singulares; 2. acontecimentos vividos por tabela que não quer dizer que o indivíduo tenha, de fato, vivido, mas dele faz parte, impregnando-se num processo de memória herdada; 3. pessoas e personagens, esses últimos pressupondo um processo de identificação com pessoas que não necessariamente fizeram parte da vivência individual, mas possuem significados que criam sentimento de reconhecimento; 4. lugares que guardam em si mesmos a memória vivida e o significado de se ter vivido; 5. datas fixadas em acontecimentos em que, a cronologia do tempo oficial contato em dias, meses e anos se transfigura a fatos que ganham o poder de representar temporalidades. Percebe-se que a identidade também possui uma pseudodelimitação sobre até onde se estabelece a integridade da identidade individual e a partir de onde se institui a unicidade da coletiva. Podemos dizer portanto que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que 26 ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 205, grifos do autor). Como também, Pollak (1992) destaca elementos que fazem parte da construção social de identidade que se resumem à unidade física, que se refere ao sentimento de pertencimento ao grupo; à continuidade temporal, ou seja, a resistência ao tempo; ao sentimento de coerência que está na unificação de elementos que formam os indivíduos; e ao Outro. Se assimilamos aqui a identidade social à imagem de si, para si e para os outros, há um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao indivíduo e, por extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o Outro. Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. (POLLAK, 1992, p. 205) É por considerar o Outro e a representação que se faz dele, que se entrecruza à definição de identidade coletiva e, pois, de memória coletiva, que a textualização desta pesquisa está se dando dessa forma. A preocupação com a alteridade norteou, inclusive, que esta pesquisa se enveredasse por esse caminho percorrido. Foi a partir de sentimentos que guardam em si certa angústia, sobre as formas como se investigaria as construções espaciais através dos sujeitos, sobre os sujeitos e as representações percebidas no que concerne à criação do assentamento Cafundão, que questionei-me: como inserir-me em uma realidade espacial do Outro sem me confundir com o Outro ou sem deixar margens de interpretação que levam à ideia de se pretender ser o próprio Outro? Ou o contrário, como conquistar certa aproximação ultrapassando as barreiras colocadas entre o Eu e o Outro, justamente por não ser o próprio Outro? Como textualizar as representações percebidas do Outro e sobre o Outro? Como representar de forma ética e preocupando-se em não constranger o Outro a partir desta pesquisa? Como realizar esta pesquisa? I.3 Falas plurais e pinguelas. A questão inicial a ser explicada será a escolha pela primeira pessoa para a escrita do texto, quando o comum na academia, ou ao menos na ciência a qual eu me vinculo, seria 27 adotar a terceira pessoa, também como forma de reforçar certa impessoalidade no andamento e nos resultados de uma pesquisa. No Regulamento do Trabalho de Conclusão de Curso, que dispõe sobre a atividade do trabalho de conclusão de curso que é a monografia no curso de Geografia do IFMG campus Ouro Preto, não há indicativos de que a escrita de uma monografia teria que ocorrer obrigatoriamente por meio do uso da terceira pessoa, e nem recomendações para que ela fosse adotada. Esse Regulamento prevê somente que a escrita se dê em consonância com normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que estejam vigentes e que contemplem temas que estejam em qualquer ramo ou caminho de pesquisa científica, não necessariamente apreciando aqueles concebidos como geográficos, a despeito das aberturas proporcionadas pela geografia. Conforme pode ser verificado no artigo sétimo de seu Capítulo 3: Art. 7º- O TCC deverá ser elaborado considerando-se: I – na sua estrutura formal os critérios técnicos estabelecidos nas normas da ABNT sobre documentação, no que forem aplicáveis; II – no seu conteúdo, a vinculação direta do seu tema com um dos ramos do conhecimento científico. Parágrafo Único. A estrutura do TCC compõe-se, no mínimo, de folha de rosto; folha de aprovação; resumo; abstract; sumário; introdução teóricometodológica; desenvolvimento; conclusão; bibliografia. (PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO DE GEOGRAFIA, COLEGIADO DE GEOGRAFIA, IFMG OURO PRETO) Contudo, segundo a norma NBR 6028/2003 da ABNT3, “deve-se usar o verbo na voz ativa e na terceira pessoa do singular” para confecção de resumos de trabalhos acadêmicos. Outros indicativos sobre a forma como se deve escrever os resumos dispõem sobre sua necessidade de ser objetivo, incisivo, conciso e informativo. A recomendação da terceira pessoa seria, portanto, uma forma de isso se garantir. Esta orientação sobre o uso da terceira pessoa é bastante recorrente. Impossível esquecer as lições aprendidas nas disciplinas de metodologia científica da graduação quanto ao uso do pronome ‘eu’ em atividades de pesquisa. Quase que como uma ordem nos era informado que este pronome deve ser guardado para pesquisadores e pesquisadoras que já possuem maior trajetória, que possuem mais autonomia e conhecimento sobre o que dizem. 3 NBR ABNT 6028/2003. Disponível em: http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&s ource=web&cd=1&cad=rja&ved=0CCIQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.sigaa.ufrn.br%2Fsigaa%2FverProd ucao%3FidProducao%3D927051%26key%3Dbd45a252e4d81320f8d209ab7cc4de7e&ei=GgR7ULPJN4jq9ATf _4HICA&usg=AFQjCNGshBrcor9EFE2Uz0JGxQJVFUObSg&sig2=DHOBamNQaRJvOcAITg3XMw. Acesso em: 14 de outubro de 2012. 28 Ou então que o pronome ‘eu’ só deve ser utilizado por aqueles que fazem pesquisas sobre os âmbitos locais, em que a fala do pesquisador não tem nenhuma intenção de generalizações (SOUSA, 2011, p. 191). De forma tabelar, há a recomendação da adoção da terceira pessoa, em detrimento da primeira, em textos acadêmicos, ainda assim não se configura como uma regra que tem que ser seguida obrigatoriamente. A despeito dessas pretensiosas recomendações, nem sempre trazidas por uma regulamento-oficial, incitem o uso da terceira pessoa, também como forma de firmar distanciamento preciso à objetividade de uma pesquisa científica; optou-se, e assume-se o risco de tal opção, por utilizar a primeira pessoa do singular em vários momentos do texto. Mas, essa escolha não reside, evidentemente, na simples permissão ao uso. Escolheu-se por alguns motivos que serão agora explicados. A escolha pela primeira pessoa do singular, colocando-me em vários momentos do texto, tem haver, primeiro, com a familiaridade que isso permitiria na textualização de impressões que obtive das idas ao assentamento, dos diálogos com pessoas que se relacionavam de alguma forma com o histórico de luta dos assentados e das leituras de documentos, jornais e outros escritos ao longo de todo o desenvolvimento desta pesquisa. Familiaridade que reside nas condições que essa escolha me permitiria, sobretudo, no processo de transformação em texto. A representação aqui feita não se trataria de tradução, nem transcrição e nem reprodução que guardam em si certa pretensão à objetividade. Não se trata, pois, de simplesmente relatar o que foi ouvido. A representação se daria por meio do registro de construção de paisagens que evocariam uma transcriação (DELGADO, 2006) das representações absorvidas por mim: uma representação das representações absorvidas, e uma admissão de que pertenço sim à objetivação do Outro e sobre o Outro. Desta forma, a Caderneta de Pesquisa se mostrou crucial à convergência de minhas impressões e para auxiliar na textualização, na medida em que absorveu tais paisagens e fundamentou as impressões delas decorrentes. Ou seja, acompanhou os movimentos desta pesquisa e a construção da alteridade a partir da apreensão de representações do Outro e sobre o Outro. Configura-se no momento em que o Eu dizia para si mesmo aquilo que viu no Outro e aquilo que percebeu se esbarrar no Outro: em cada página reside uma representação como essa e a releitura de todas elas pautou essa textualização. É importante aqui destacar que as expressões e/ou frases que forem utilizadas entre aspas e tiverem a indicação de corresponder à transcriação de falas de assentados, será dessa forma destacado por representar expressões que passaram pelo processo de transcrição, 29 textualização e transcriação, em consonância com Meihy (2009, p.195). Optou-se por essa forma de destaque, tal como se faz com os autores os mais diversos, por que todos eles são chamados ao debate. Esse debate almeja considerar as representações que os assentados possuem sobre eles mesmos e sobre a sua luta, bem como essas outras representações que inventam impressões e paisagens acerca do assentamento, dos assentados e da luta pela criação do assentamento. Portanto, trata-se de um texto que é sobre o Outro e sobre as formas de representação desse Outro, preenchendo o sentido que se pretende dar à pluralidade da composição de narrativas de vidas espaciais. Nesse sentido, o uso por si só do Eu no texto não inventaria formas de demonstrar aproximações para com o objeto de estudo desta pesquisa. Ainda que se use Eu por diversas vezes no texto, pode ser que a textualização se desse mais distante do que se se optasse, predominantemente, por que ele é chamado em momentos do texto, pelo uso da voz passiva ou de pronomes reflexivos que servem à impessoalidade. Porquanto, toma-se de empréstimo o entendimento que Sousa (2011) tivera da proposta de Denise Jodelet sobre a alteridade, pois ela fornece os subsídios teóricos que servirão à justificação do Eu usado e, por extensão, da forma como se pretendeu encarar a questão do Outro nessa textualização. Para avançarmos neste caminho de reflexões temos, entretanto, que indagar sobre os processos que convertem as diferenças em processos de alteridade. De acordo com Jodelet (1998), a alteridade é um processo de construção do outro a partir de sua oposição ao quadro de um ‘nós’. Neste processo, buscamos tipificar, desvalorizar ou estereotipar as práticas do outro a partir da tentativa de proteção e asseguramento de nossa identidade. É, desta maneira, um processo de num contexto de pluralidade marcar e identificar os sujeitos que fazem parte de nossas práticas e de distanciar (em termos de identificação) aqueles tidos como diferentes. Este processo de construção da alteridade se dá, de acordo com a autora, a partir de elementos da representação social, que se apóia em processos simbólicos que configuram em aproximação ou em marginalização a determinados sujeitos ou grupos. Mas distintamente da diferenciação, que busca marcar o outro como distinto e esvaziado de significado identitário, quando se fala em alteridade busca-se marcar a diferença entre o ‘nós’ e os ‘outros’ a partir justamente de seu caráter identitário. A alteridade explica, pois, porque somos diferentes dos outros, e não somente que somos diferentes do outro (SOUSA, 2011, p. 128). Esse esforço de diferenciação entre questões de alteridade, ligado à identidade, e questões de diferenciação, como marca pejorativa de delimitar o outro, por não corresponder à base comum do signo cultural, baliza uma possível reflexão sobre o uso do Eu em um texto 30 que é sobre o Outro percebido pelo Eu, percebido a partir de representações que o Outro faz de si próprio e percebido através daquelas representações que lhe são conferidas. A opção por se usar Eu não reside na anulação ou na diminuição do Outro, e nem na exaltação de se se tratar de um trabalho no qual o Eu poder-se-ia corresponder ao Eu-autor. De acordo com James Clliford, Todo uso do pronome eu pressupõe um você, e cada instância do discurso é imediatamente ligada a uma situação específica, compartilhada; assim, não há nenhum significado discursivo sem interlocução e contexto. A relevância desta ênfase para a etnografia é evidente. O trabalho de campo é significativamente composto de eventos de linguagem; mas a linguagem, nas palavras de Bakhtin, ‘repousa nas margens entre o eu e o outro. Metade de uma palavra, na linguagem, pertence a outra pessoa (CLLIFORD apud SOUSA, 2011, p. 179). Ou seja, todo o Eu carrega em si a ideia e a ratificação do Outro. De outra forma, quando é dito Eu, há o reforço concomitante do Outro que dá sentido de existência ao próprio Eu. Portanto, o uso até constante do Eu como forma de posicionamento não ocorre em detrimento do Outro e nem carrega em si, por si só, a familiaridade desejável em um texto sobre representações de representações. Trata-se de uma opção: pretensiosa, arriscada, mas é uma opção. Porém, essa foi feita de forma angustiada, compartilhando de muitos sentimentos e receios apontados por Patrício Sousa (2011) em sua dissertação: Escrever esta dissertação utilizando da primeira pessoa do singular constituiu-se, nesta medida, num desafio. Foi inevitável que inseguranças surgissem a partir da escolha do tipo de narrativa que elegi para construção da dissertação. Mesmo com todos os cuidados teóricos e metodológicos, o fantasma da tênue fronteira entre um tom de posicionamento de sujeito e um outro de arrogância na construção de uma “auto-ciência” me assombrou na elaboração de cada frase do texto. Temi por diversas vezes que minha atitude pudesse ser confundida com uma postura reacionária em que eu acabasse ou por falar demasiadamente de mim, como se eu me considerasse um indivíduo para além da vida ordinária, ou por que eu atuasse na construção de exóticos ou reiteração de sujeitos, a partir dos apontamentos lançados pelo meu olhar centrado num raciocínio ainda moderno e muitas vezes positivista sobre as realidades que problematizo. Somente com caminhar do texto é que fui adquirindo segurança para escrever desta maneira e também para alcançar o entendimento de que forma e conteúdo são elementos de fato inseparáveis em uma atividade de pesquisa. Só com esta segurança pude ter tranquilidade para conceber também que tão importante quanto as categorias, escalas, metodologias e questões que adotamos em uma pesquisa é a escolha da maneira que elegemos para comunicá-la. Minha escolha foi exatamente a de buscar esta possibilidade de comunicação. Ao dizer ‘eu’ por 31 diversas vezes, minha intenção não foi a de transformar minhas falas em dizeres subjetivos ou circunscrevê-las à minha experiência (SOUSA, 2011, p. 179). Por isso tudo, é que essa direção metodológica, preenchida de sentidos teóricos, constituindo o que chamo de orientação teórico-metodológica, se manifesta como pinguela. O esforço interpretativo de se conceber narrativas de vidas espaciais, que está no cerne dessa orientação teórico-metodológica, se revela metaforicamente como uma pinguela. A pinguela permite um trânsito entre o pensar e o como proceder. Isto por que, ao mesmo tempo em que serve de ponte para se chegar ao outro lado do rio, pinguela também nomeia a madeira com que se faz arapuca ou armadilha para se pegar animais que se arriscam instintivamente. Em outras palavras, compreende-se que aqui está se assumindo certo risco, por se tratar de um método-andaime atípico aos padrões cientificistas que poderiam oferecer certo respaldo ao desenvolvimento e à defesa da própria pesquisa. Essa associação metafórica guarda em si um misto de se conceber tais narrativas espaciais como muleta teórico-metodológica: há a ponte teórica que contribui à diminuição do risco metodológico. Vislumbra-se, portanto, que essa pinguela, a partir da consideração das narrativas de vidas espaciais, forneça as aberturas necessárias à apreensão das travessias da pesquisa: abre-se, pois, “uma possibilidade não de objetividade, mas de objetivação, que leva em conta a pluralidade das realidades” (POLLAK, 1992, p.210). I.4 Contextualização da metodologia de pesquisa: narrativas de vidas espaciais; Isto posto, ressalto que o Outro será representado aqui através de suas memórias, como “instrumento privilegiado para avaliar os momentos de mudança, os momentos de transformação” (POLLAK, 1989, p. 12), como também, através das memórias e representações que sobre o Outro são feitas. Há, pois, o diálogo entre essas memórias que guardam em si o tangenciamento entre suas fisionomias individuais e coletivas, que se expressam de forma tangenciada, mista, transversal. A memória está imbuída de vastidão de possibilidades, que a tornam infinitamente rica em suas manifestações. É um instrumento valioso para construção de narrativas, que registram modos de frequentar o mundo, fazendo a trama da vida existir como drama ou comédia (GROSSI apud DELGADO, 2006, s/n). 32 A metodologia desta pesquisa se debruça, deste modo, sobre memórias que interferem na e edificam a visão, construção e interpretação de mundo pertencentes a uma narrativa. Narrativa é, senão, o modo discursivo de apreensão de expressões espaciais e de histórias de vidas estritamente ligadas à construção de espaço, o que Sousa (2011) concebe como biografia espacial. As narrativas são, portanto, tais quais os lugares da memória, instrumentos importantes de preservação e transmissão de heranças identitárias e tradições. São, de acordo com Costa e Botelho (2002), modos de traduzir o social. [...] Têm na natureza dinâmica e, como gênero específico do discurso, integram a cultura de diferentes comunidades. São peculiares, incorporam dimensões materiais, sociais, simbólicas e imaginárias. Plenas de dimensão temporal, têm na experiência sua principal fonte, “pois ao narrar as pessoas estão sempre fazendo referências ao passado e projetando imagens, numa relação imbricada com a consciência de si mesmas, ou daquilo que elas próprias aspiram ser na realidade social”. Trata-se de imaginar a narrativa como esta linha que caminha para frente, mas que é capaz de aceitar reviravolta e interrupções. Uma linha que pode se desdobrar em três, quatro, dez quadros. Quadros com um desenvolvimento relativamente autônomo. Quadros que podem parar, recuar em relação a linha fundamental, e que se relacionam entre si, formando uma espécie de teia, capaz de enredar a narrativa (DELGADO, 2006, s/n) Destarte, a narrativa oferece subsídios à apreensão de espaço. Porém, não se busca recompô-lo em sua integridade, mas sim de compreendê-lo em suas particularidades, através de “análise dos fragmentos, resíduos, objetos biográficos e diferentes tipos de documentação e fontes” (DELGADO, 2006, s/n). A ideia de se debruçar sobre narrativas de vidas entrelaçadas, resultantes e criadoras de espaço sobrevém da teorização feita por Alícia Lindon (2008). Essa orientação teórico-metodológica, chamada de narrativas de vidas espaciais, se pauta numa forma metodológica qualitativa de investigação, que se atenta para interpretações e representações de espaço abrindo-se às maneiras múltiplas como ele pode ser concebido, percebido e, pois, construído. Essa autora destaca que essa orientação se configura como desafio, dado a importância que as correntes teórico-metodológicas mais presas à objetividade, em seu sentido positivita, tiveram ao longo da construção do pensamento geográfico. Essa orientação, segundo Lindón (2008), se mostra alternativa, não-hegemônica, e particularizada. Cuando las prácticas espaciales son narradas o relatadas por el sujetohabitante que las ha realizado, el relato incluye una riqueza adicional a la 33 caracterización de los acontecimientos, que siempre estarán más o menos distorsionados en relación con los hechos que le dieron origen. Esa riqueza adicional consiste en que los acontecimientos (la componente fáctica) se va articulando en la narrativa con retazos de uma trama de sentido que para el sujeto tiene valor, y constituye parte de los cristales a través de los cuales ve y evalúa el mundo, y actúa en él. Entonces, si el tercer camino metodológico del discurso sobre lãs prácticas y su espacialidad es una apuesta legítima y de gran potencial para la investigación geográfica cualitativa, dentro de todas las formas de discursividad, las narrativas de vida constituyen uno de los núcleos de mayor riqueza, y dentro de ellas las que denominamos narrativas de vida espaciales (LINDÓN, 2008, p.10). De maneira geral, segundo Lindón (2008), as narrativas de vidas espaciais seriam construídas a partir de formas de captação alternativas e abrangentes. A entrevista, sendo uma dessas formas, poderia ser usada desde que com roteiros não enrijecidos e não manipuladores da ordem do discurso que se pretende ouvir. Teriam que se dar como conversas pautadas em diálogo, no qual se admite interferência do Eu sobre o Outro, mas preocupando-se, principalmente, em ouvi-lo. Alícia Lindón (2008) destaca que as narrativas de vidas espaciais tem que ser concebidas para além de entrevistas, a despeito de requererem as situações de entrevistas. São abordagens discursivas complexas que abarcam dimensões simbólicas e culturais, que não se prendem àquilo que foi dito: os silêncios, o esquecimento e o não-dito também dialogam como representações (POLLAK, 1989) . Admite-se representações que não se verbalizam. Admite-se representações que escapam ao entendimento sendo entendidas por quem as inventou. Construir narrativas é abrir-se à complexidade interpretativa. Esta forma de acercamiento a la realidad se funda en lo que Jerôme Bruner (1984; 1986) denomina “pensamiento narrativo”. Esta forma de pensamiento –muy antigua en la historia de la humanidad- consiste en contarnos a nosotros mismos, o a los otros, historias. La particularidad de reconocer que en esta vieja práctica opera un tipo de pensamiento responde a que, al contar esas historias, vamos construyendo lós significados de nuestras experiencias. Así, la construcción del significado surge de la narración. En cuanto a la forma de producción de la narrativa de vida es importante empezar por reconocer que en su construcción operan simultáneamente dos dimensiones: Una es la interaccional, y la otra son los juegos por los que la memoria se desliza entre el recuerdo y el olvido. En relación a lo interaccional, el investigador debe tener muy presente que ese discurso lo construye el sujeto, el narrador (el entrevistado), desplazándose espontáneamente (y sin ser consiente de ello) entre tres niveles de interacción, pasando del uno al otro y del otro al uno de manera natural y no buscada (LINDÓN, 2008, p.11). 34 A construção de narrativas de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão haveria de considerar, portanto, as representações apreendidas para além das situações de entrevistas. Essas impressões foram registradas ao longo da construção da pesquisa em uma Caderneta de Pesquisa. As conversas, os diálogos, as reações perante algumas perguntas e questionamentos transformaram-se em anotações impressas na Caderneta de Pesquisa. Interpretações foram feitas tentando-se ir além do contexto territorial do Cafundão. E por esse motivo, algumas leituras de textos acadêmicos e de documentos municipais ou sobre o assentamento foram feitas. A história dos assentados e do assentamento Cafundão se confunde com a história do próprio município, bem como se contextualiza ao pano de fundo nacional pautado na desigualdade fundiária. Esse tangenciamento entre as representações dos assentados e aquelas representações apreendidas sobre o assentamento compôs o atravessamento sobre o qual se pautou esta pesquisa. Esse debruçar-se justamente sobre os atravessamentos, tal qual se chamou à baila os significados tangentes das muletas, será mais adiante discutido, pois se configura no caminho pelo qual se enveredou esta pesquisa. É preciso ressaltar que é pretendido, através dessa construção monográfica, contribuir para que o Cafundão deixe de ser mero exemplo em textos acadêmicos. Isto por que, o conhecimento da luta pela terra que culminou no assentamento Cafundão se revelou, ao longo da pesquisa, restrito a poucas pessoas que se relacionaram de alguma forma com essa luta e também registrado por poucos autores. Não foram encontrados escritos bibliográficos sobre o Cafundão. E aqueles poucos encontrados que o mencionam em poucas linhas, concebem esse assentamento como objeto de comparação com outros situados em Minas Gerais. É percebido, pois, que esse assentamento tem composto tão somente os quadros e tabelas comparativas de indicadores sociais ou de análises socioeconômicas de assentamentos de reforma agrária. Tais estudos não são subestimados, por que é inegável a validade e a importância destes. Porém, ratifico a necessidade de se conhecer o Cafundão para além de seu aspecto comparativo: esse assentamento foi resultado de contextos peculiares e é preciso captá-los e, assim, compará-los ou discuti-los tendo em vista outros particulares históricos de luta pela terra. Porquanto, essa monografia possui a relevância de construir narrativas dos assentados, sobre os assentados e sobre o assentamento Cafundão, que ainda não foram feitas por estudos acadêmicos. Essas narrativas se perfazem no registro de memórias polifônicas, memórias que se expressam através de múltiplas vozes, que mudaram, mudam e mudarão constantemente, num “perpétuo deslocamento” (POLLAK, 1989, p.09). Se essas memórias não se configuram como prontas e acabadas, não se deve entender que essa monografia almeja trazer a História 35 do assentamento Cafundão, no sentido de se pretender ser a versão verídica e coesa dele. E sim, trarei à baila as representações discursivas de espaço com que me deparei na pesquisa. Há de se evidenciar que a textualização aqui empreendida não é de modo algum neutra. Não é pretendido defender que as representações de espaço apreendidas do Outro e sobre o Outro conferem fidedignidade ao que realmente lhe representam. São leituras, em grande medida, influenciadas pelas lentes moldadas no contato com as aberturas geográficas e também com as minhas próprias experiências de mundo. Se as narrativas aqui construídas se pautam em memórias e representações de espaço, compreende-se que “[...] não há neutralidade em qualquer forma de abordagem do passado. Cada um escolhe seu passado e essa escolha nunca é inocente” (DELGADO, 2006, s/n). E por isso mesmo, as narrativas serão concebidas como uma construção discursiva: possibilidade de representação e interpretação. Destaca-se, também, que esta pesquisa se volta à busca por sombras no sentido de se trabalhar com “pluralidades da história, das realidades e, logo, das cronologias historicamente admissíveis” (POLLAK, 1989). Portanto, busca-se sombras não num sentido de descobrir algo medonho e revelador de uma história obscurecida e negada pela academia, e sim almejase dar relevo a contornos de história, dessa história, a partir do investimento de voltar-se a eles: de olhá-los, de ouvi-los, de textualizá-los (OLIVEIRA, 1996). Porquanto, dedica-se à construção de um enfoque pautado na construção de narrativas espaciais, a partir da consideração da coexistência de formas interpretativas de se encarar o assentamento Cafundão. Ressalta-se também, que esta pesquisa emerge justamente do processo de disputa por voz: não se pretende narrar essa história no sentido de oferecê-la como produto de contemplação. Seu desenvolvimento se deu entrecruzando com o Eu, que ao invés de dar voz através da escrita daquilo que ouvi, tensionei voz com os assentados e com várias outras pessoas pertencentes a instituições que, por exemplo, possuíam material de meu interesse em seus arquivos institucionais. Essa disputa também se expressa na maneira como me receberam, da forma como absorviam as perguntas, das respostas que obtive nem sempre se reduzindo ou se relacionando às perguntas, dos silêncios que exigiam contextualizada interpretação, dos códigos absorvidos e dos outros tantos que passaram despercebidos ou não foram entendidos. Em consonância com Halbwachs, Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser 36 reconstruída sobre uma base comum. (HALBWACHS apud POLLAK, 1989, p.05) Essa tensão por voz se deu, sobretudo, no processo de escrita dessa monografia, que reclamou pela textualização das diversas representações da luta que foram percebidas no discurso social. A necessidade de se considerar relações fronteiriças e de tensionamento ao interpretar o contexto do qual se emergiu a sociogênese do assentamento Cafundão, requereu que se tivesse como baliza teorias e métodos que se pautassem em aberturas ao dinâmico, ao complexo, ao movente: essa se constitui como contribuição primaz que pude extrair da adoção às narrativas de vidas espaciais. I.4.1 Construção textual: etapas e procedimentos Na tentativa de investigar diferentes interpretações que fazem parte da contextualização desse Projeto de Assentamento (PA) Cafundão, foram consideradas a existência de várias vozes que narram o mesmo tema, que aqui é o assentamento. Vozes que expressam representações. Considera-se, de forma hipotética, que essas vozes que denunciam sociogênese se relacionam às motivações e ao desenrolar da luta, às formas como essas estão expressas através de memórias e, evidentemente, a como esses elementos são imaginados e expressos nos discursos e também nos silêncios. Dessa forma, realizou-se leituras que demonstrassem o contexto da política de criação do assentamento de reforma agrária. Nesse momento, esbarrou-se com teorizações que tenderam a explicar as desigualdades de distribuição de terras percebidas hoje, contendo raízes na construção do espaço brasileiro. Essas leituras se pautaram em textos os mais diversos que compõem as referências bibliográficas de pesquisa e em uma publicação governamental que visava a uma revisão das jurisdições que dispõem sobre a questão de terras no Brasil, a mencionada Coletânea de Legislação e Jurisprudência Agrária e Correlata (BRASIL/MDA, 2007). Essas leituras e a textualização das impressões delas oriundas compuseram o contexto da política de assentamento, que foram expostos no capítulo 1. Busquei por registros documentais que manifestassem formas interpretativas dos contextos dos quais o Cafundão poderia fazer parte, bem como algumas formas de representação sobre os assentados e o Cafundão. Considerei as abordagens do EstadoPrefeitura, da Igreja Cristã da Arquidiocese de Mariana e um ponto de vista da mídia expressa no jornalismo local, que compõem uma das possibilidades existentes. Por esse motivo, foram 37 visitados jornais e documentos que não expressam necessariamente a opinião da Instituição à qual se vinculam4, sendo eles: O Arquidiocesano (1972-1983) sendo a Arquidiocese de Mariana responsável por sua publicação; O Monumento (1989-1991) expedido pela Prefeitura de Mariana; e O Liberal (1994 - 2004) jornal local que abarca os municípios de Mariana, Ouro Preto e Itabirito; as Atas de Reunião Ordinária e Extraordinária da Câmara Municipal de Mariana nos períodos de 1989 a 1998; o jornal O Ruralista arquivado no órgão Emater-MG (1983-1993) e os poucos artigos que foram escritos mencionando-se, em poucas linhas, o Cafundão, tais como Alves Filho et al (2007; 2010; s/d), Agência Brasil (2011), INCRA (2008), CETEC (2006), Rita Santos (2009), Gustavo Silva (2006). Explica-se que os exemplares do jornal O Monumento e O Liberal foram consultados na Biblioteca Pública Municipal do município de Mariana, MG. As matérias foram digitalizadas por meio de fotografias tiradas de celular, e algumas impressões foram escritas na Caderneta de Pesquisa. Já os exemplares do jornal O Arquidiocesano estavam disponíveis na Hemeroteca Histórica da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, situada na cidade de Belo Horizonte, MG. Nessa Hemeroteca, há um sistema de consulta das matérias de forma digital e, aquelas que despertaram interesse, foram selecionadas e copiadas em CD-R, mediante pagamento efetuado por página de jornal. As Atas de Reunião Ordinária e Extraordinária da Câmara Municipal de Mariana estavam arquivadas na própria Câmara. O jornal O Ruralista estava disponível na Emater-MG, com sede em Belo Horizonte, MG. Os outros escritos foram encontrados mediante consultas em sites de busca na internet, colocando-se como palavra-chave de consulta o termo cafundão. É importante destacar que a Emater-Mariana possui uma pasta de arquivamento de informações sobre o assentamento Cafundão, e a consulta a esta também foi permitida, se dando na própria Instituição. Inquiri, também, sobre o papel da memória na construção de espaço e de espacialidade, fundamentando a metodologia de se conceber narrativas de vidas espaciais. Deparei-me com essa forma metodológica narrativas de vidas espaciais através da mexicana Alícia Lindón (2008). Essa autora chama atenção para a necessidade de a geografia acompanhar as particularidades inerentes à produção de espaço, através de lentes com cunho qualitativo de pesquisa. Conceber narrativas requereu que se debruçasse sobre a memória como teoria e também como metodologia, compondo uma orientação teórico-metodológica – e que está sendo exposto nesse capítulo. Para então, indagar sobre os processos de negociação 4 Mas, há de se ressaltar que, no caso dos jornais, por mais que não exprimam opiniões daqueles responsáveis pela sua circulação, a autorização para a impressão de seus exemplares, de certa forma, transforma-os em voz da Instituição ao qual se vincula. Traduzem-se, portanto, em voz da Instituição. 38 política e de disputa de poder nesse e desse assentamento que, hipoteticamente, fizeram emergir de seus contextos espaciais a sociogênese do Cafundão. Esse inquérito é parte inerente à própria construção da textualização, através da consideração de narrativas de vidas espaciais. As idas ao assentamento, as conversas com os assentados, a busca por contextos e representações de pessoas que se relacionaram de alguma forma com a luta pela terra, geraram impressões que foram transcritas na Caderneta de Pesquisa. Essas impressões se entrelaçam de certa forma com as visões de mundo que cada qual possui e que acaba interferindo na forma como expressam o seu passado e admitem as suas lembranças. “O passado espelhado no presente reproduz, através de narrativas, a dinâmica da vida pessoal em conexão com processos coletivos” Isto por que, “a reconstituição dessa dinâmica, pelo processo de recordação, que inclui ênfases, lapsos, esquecimentos, omissões, contribui para a reconstituição do que passou segundo o olhar de cada depoente” (DELGADO, 2006, s/n). Dessa forma, essa Caderneta é um caderno onde inscrevi as minhas percepções oriundas de cada conversa, de cada olhar, de cada situação que consegui ver, ouvir e, pois, absorver. É evidente que a Caderneta não representa o olhar fidedigno com as situações a mim conferidas. São impressões que obtive e que, por serem impressões, fazem parte das representações de espaço apreendidas. Na etapa de textualização, quando se produz esse texto, é que se preocupou, de fato, com o diálogo entre as representações. Na Caderneta os elementos respeitam uma certa ordem estabelecida pela própria página. A textualização será empreendida aqui tentando-se dinamizar as representações, conferindo-lhes movimento. Essas representações foram oriundas de caminhos de pesquisa que foram escolhidos. Ressalto que não foi realizada uma observação participante para apreensão do Outro, como recomendariam os teóricos clássicos das ciências sociais. Estes teóricos, tal como Bronislaw Malinowski (1976), associam a imersão ao grupo que se pretende estudar, como forma de entendê-lo em sua integridade. Dessa forma, quanto mais tempo se passa no cotidiano do grupo estudado, melhor se entenderia o seu mundo. Revelo aqui que possuo tais pretensões de empreender outros estudos que levem em conta o entendimento do Outro a partir de sua dinamização, de sua construção identitária e de seu cotidiano no sentido profundo e concreto de vida. Porém, nesta pesquisa que aqui está se textualizando, o entendimento do Outro se deu a partir dele próprio, do entendimento de seu contexto e da apreensão de representações que fazem sobre ele, sobre o Outro. E aí que reside a polifonia desta pesquisa e a pluralidade na construção de narrativas de vidas espaciais, que se dão a 39 partir da investigação de sombreamentos que revelem formas interpretativas da história de luta desses assentados e da constituição do assentamento Cafundão. Contudo, embora eu não tenha realizado, de fato, essa recomendada observação participante e imersão, utilizei-me de procedimentos de pesquisa a fim de apreender o Outro, e também sobre o Outro, em seu contexto espacial. Os procedimentos aqui adotados foram construídos em consonância com a proposta de Clifford Geertz (1989), para quem as técnicas de pesquisa devem ser contextualizadas conforme o objeto de estudo, e devem almejar a uma descrição densa que leve em conta à noção interpretativa de cultura. Dessa forma, os procedimentos se pautam no estabelecimento de relações com os assentados e com outros envolvidos na luta, incluindo autores que sobre ela escreveram. Como também, na seleção de informantes, na transcrição e transcriação de textos, no levantamento de genealogias, na apreensão contextual e, pois, espacial e no mantimento de uma Caderneta de Pesquisa (GEERTZ, 1989). Todo esse processo levou em conta a seriedade e a importância do olhar, do ouvir e do escrever (OLIVEIRA, 1996), que podem ser subestimadas pelo seu caráter corriqueiro. Roberto Cardoso de Oliveira (1996) destaca a importância de problematizar esse conjunto de procedimento – olhar, ouvir e escrever -, pois é a partir da problematização que se ressalta a importância a esse conjunto conferida. Desejo, assim, chamar a atenção para as três maneiras – melhor diria, três etapas – de apreensão dos fenômenos sociais, tematizando-as – o que significa dizer: questionando-as – como algo merecedor de nossa reflexão no exercício da pesquisa e da produção do conhecimento. Tentarei mostrar como o olhar o ouvir e o escrever podem ser questionados em si mesmos, embora, em um primeiro momento, possam nos parecer tão familiares e, por isso, tão triviais (OLIVEIRA 1996, p. 18). Para esse autor, esse processo do olhar, ouvir e escrever, quando problematizado e quando se respeita os limites que existem entre o Eu e o Outro, considerando também corresponder a uma forma de representação do Outro, possui abertura interpretativa à textualização do Outro. “Os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de observação muito peculiar” que podem revelar potencialidades tão efetivas, quanto a reconhecida observação participante (OLIVEIRA, 1996, p. 34). Além disso, a rememoração que compreende a etapa da releitura das escritas que são feitas ao longo da pesquisa, revela-se crucial à textualização. Conforme o autor, 40 [...] os dados contidos no diário e nas cadernetas de campo ganham em inteligibilidade sempre que rememorados pelo pesquisador; o que equivale a dizer que a memória constitui provavelmente o elemento mais rico na redação de um texto, contendo ela mesma uma massa de dados cuja significação é melhor alcançável quando o pesquisador a traz do passado, tornando-a presente no ato de escrever. Seria uma espécie de presentificação do passado, com tudo que isso possa implicar do ponto de vista hermenêutico [...]” (OLIVEIRA, 1996, p. 34). Há de se ressaltar, antes de se passar ao próximo capítulo, que os nomes dos assentados não serão destacados, e sim sua diferenciação de gênero e a nomenclatura Sr. e Sra. para destacar que se trata de um adulto. Isso por que, sendo um estudo sobre conflitos e tensionamentos, há a preocupação de que este não se torne voz que se volte contra eles mesmos, ainda que a permissão em divulgar tais nomes tenha sido a mim concedida. Ao mesmo tempo, não se almeja, com esse posicionamento, calar vozes ou ofuscar identidades: se se prioriza as memórias coletivas, o ser-assentado será alvo desta pesquisa, considerando que a identidade individual estará nesse ser-assentado também impressa. Porquanto, no próximo capítulo, explanarei sobre a historicidade da desigualdade fundiária que serve como cenário ao entendimento do contexto que compreende o meu objeto de estudo, que são os assentados e o assentamento Cafundão. 41 Capítulo II: Tangenciamentos: cenários e sociogênese. “Aquilo que revelo / e o mais que segue oculto / em vítreos alçapões / são notícias humanas, / simples estar no mundo, / e brincos de palavra, / um não-estar-estando, / mas de tal jeito urdidos / o jogo e a confissão / que nem distingo eu mesmo / o vivido e o inventado.” (Carlos Drummond de Andrade, Poema orelha). II.1 Elucidações II Há uma proposta de construção de tangenciamentos na textualização dessa monografia e que se evidenciará nesse Capítulo. Trata-se da tentativa de passar e passear pelas amplas acepções que concebem a questão da terra pautada em explicações histórico-estruturais de construção do espaço, conjuntamente com as formas delas se realizarem nos lugares. Em outras palavras, propus uma conversação que expõe sobre a historicidade da questão da terra a algumas maneiras dela se expressar no espaço, sendo percebida no lugar. Isto por que, “a vida é feita dos lugares, plenos do ser, tal como o mundo é realizado nos lugares. Eles são a vivência cotidiana nesses pequenos universos que, cada qual com a sua particularidade, carregam um pedaço de mundo” (HISSA e CORGOSINHO, 2006, p. 1, grifos do autor). Elucido que esse diálogo não está pautado numa conversação entre geral e particular, no sentido de que o particular é entendido como parcial, enquanto que ao geral estaria designada a união de todas as partes. Geral e particular se fundem e se confundem. Ao invés de parcial, considera-se aqui se tratar de conversações particulares no sentido de serem particularizadas, híbridas, plurais (FOUCAULT, 1992). Conversações tais como requerem as expressões de espaço que são múltiplas, vividas no cotidiano e percebidas no recorte para o qual se olha - que é lugar desta pesquisa. Os lugares, desse ponto de vista, podem ser vistos como um intermédio entre o Mundo e o Indivíduo [...]. Esta é uma realidade tensa, um dinamismo que se está recriando a cada momento, uma relação permanentemente instável, e onde globalização e localização, globalização e fragmentação são termos de 42 uma dialética que se refaz com frequência. [Portanto], cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou como afirma M. A. de Souza (1995, p.65), “todos os lugares são virtualmente mundiais”. Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente diferente das demais”. [...] Para apreender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um tratamento localista, já que o mundo se encontra em toda parte. Também devemos evitar o “risco de nos perder em uma simplificação cega”, a partir de uma noção de particularidade que apenas leve em conta “os fenômenos gerais dominados pelas forças sociais globais” (SANTOS, 2008, p. 314). Milton Santos (2008) sugere, portanto, que não se deve adotar o que ele denomina por posição localista, que se fundamenta em uma oposição binária entre particular e geral, a parte e o todo. Essa relação localista e de contraposição são sobrepostas pelas possibilidades comunicativas que se estabelecem entre palavras que, ao contrário de oposições binárias, abrem-se ao diálogo, à comunicação, ao trânsito de significações. As expressões de mundo são percebidas nos lugares, e estes lugares, em comunhão com o mundo, expressa-o. Deste modo, da historicidade da concentração, serão discutidas as políticas de assentamento de reforma agrária como medidas mitigadoras dos mal-estares oriundos desse painel de desigualdade fundiária e social. Já os assentamentos, como concretizações dessas políticas, sugerem ser mais que ajustamento fundiário. Entendê-los pressupõe a necessidade de se compreender a historicidade da desigualdade agrária e, pois, das tensões dela oriundas. Assim, essa iniciativa de pesquisa se pauta na tentativa de se encarar de forma contextualizada o histórico de luta dos assentados do Cafundão, dando margem para a consideração de contextos, de interpretações e de representações polifônicas de espaço. A abertura à polifonia, às múltiplas vozes, à pluralidade e à multiplicidade de representações espaciais se dará através da construção de narrativas de vidas espaciais (LINDÓN, 2008), evidenciadas no próximo capítulo. II.2 A historicidade da concentração de terras no Brasil: amplitudes e tensões. A amplitude da questão da terra, incluindo sua distribuição, acesso e uso tem sido alvo de muito escritos, não só acadêmicos, por se configurar numa tensão exímia à construção do espaço brasileiro5. O histórico de desigualdade fundiária parece se confundir com a própria 5 A distribuição de terras no Brasil, bem como elementos como a má distribuição e o acesso desigual, têm sido denunciados por diversos autores, tais como Vinhas (1972); Prado Jr (1981); Martins (2006); Veiga (2003). 43 história da formação territorial do país. Para Gerd Sparoveck (2003, p. 05), “a concentração da posse da terra no Brasil tem suas origens na época do descobrimento6” e, por isso, “o incrível desequilíbrio da estrutura fundiária em favor do latifúndio não constitui escândalo” (ALMEIDA, 2000, p. 30). Essa historicidade pode embasar a permanência da concentração ainda hoje, o que não quer dizer que seja a única responsável por ela. Moisés Vinhas (1972) defende a necessidade de ampliar o escopo de discussões sobre a distribuição de terras, por ela estar atrelada a e por interferir direta e fundamentalmente em outros elementos sociais, assim como assinala para a emergência de se reformular a estrutura agrária sobre a qual vem se construindo o país, começando pela discussão de tudo aquilo que deveria preencher a expressão reforma agrária. A reforma agrária tornou-se uma necessidade engendrada pelo processo real, à sociedade brasileira. As transformações ocorridas no País estão todas estreitamente vinculadas com as diversas estruturas agrárias: no momento presente, a economia nacional, a evolução social e política estão indissoluvelmente ligadas a ela e essa questão envolve o Congresso Nacional, os governos, os partidos, a própria Igreja, as Forças armadas e em especial as massas trabalhadoras rurais e urbanas. (VINHAS, 1972, p. 202) A expressão reforma agrária certamente figura entre os conceitos e/ou temas7 que demandam maiores reflexões, sendo formada a partir da junção de duas palavras - reforma e agrária - que têm adquirido significados para além das definições individuais de cada léxica. É também uma expressão que denota uma carga social oriunda ora do desejo, ora da resistência a promover o conjunto de ações e transformações nela embutidas. Saliento que a definição de reforma agrária é dada pela Lei 601 do ano 18508, conhecida como Lei de Terras, sendo utilizada ainda hoje pelos órgãos governamentais. A definição seguinte foi encontrada na página oficial de internet do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e é o parágrafo 1 do artigo primeiro da respectiva Lei: “reforma agrária é o conjunto de medidas para promover a melhor distribuição da terra, 6 Menciono o momento em que se iniciou o processo de colonialidade específico sobre a qual se inventou o território e o povo brasileiro, qual seja a tensão criada entre as etnias locais empacotadas sob o rótulo de “índio” e aqueles de fora, que não eram originalmente pertencentes a essas terras, mas compuserem a sua matriz formadora: tais como aqueles de origem europeia e africana. 7 A expressão reforma agrária é um conceito ou um tema? Não haveria de ser somente um conceito por que tal expressão denota uma carga social que vai além de definição construída no interior da ciência. Inclina-se a concebê-la como temática por poder ser apropriada por diversas formas de representação, inclusive as científicas. 8 Pode ser lida na íntegra no seguinte endereço eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Lei s/L06011850.htm . Acesso em: 03/06/2012. 44 mediante modificações no regime de posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social, desenvolvimento rural sustentável e aumento de produção.” 9 Este conjunto de transformações conflita justamente com os elementos que dão historicidade à concentração de terras: essa historicidade será, agora e brevemente, analisada à luz da jurisdição brasileira, para então se passar à reflexão de alguns elementos que a embasam. Uma maneira de se compreender como a questão de terras vem sendo tratada no Brasil, na tentativa de apreender o que está sendo chamado aqui de historicidade da concentração de terras, é a partir da análise do corpo jurídico de leis que rege tal país, considerando suas transformações, inovações e supressões. A Constituição do país, de certa forma, traduz a sua identidade, lhe dá substância, delineia o Estado de Direito. A Coletânea de Legislação e Jurisprudência Agrária e Correlata10 reúne uma série de leis, decretos, resoluções, medidas provisórias, alvarás e cartas régias que dispõe sobre aspectos constitucionais referentes ao acesso, à posse e à administração de terras pertencentes ao território brasileiro. Tal Coletânea é resultado de um trabalho conjunto entre estruturas do Ministério do Desenvolvimento Agrário, tais como o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD), a Assessoria Parlamentar, a Consultoria Jurídica, e a Procuradoria Federal Especializada do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Dividida em três Tomos, essa coletânea reúne uma série de leis que dispõe sobre as políticas agrárias brasileiras, desde aquelas influenciadas pela Lei de 26 de junho de 1375 quando visivelmente a Coroa Portuguesa obriga às cidades ou vilas do Reino a cultivarem as suas terras, também como forma de povoá-la (BRASIL/MDA, 2007). Não se almeja prolongar-se nessa discussão sobre as criações e formatações das leis agrárias ao longo da história de formação do território brasileiro. Ressalto, porém, que essa análise se mostra importante ao entendimento de como a questão da terra vem sendo edificada. O tratamento dado pelo Estado, ou melhor, por aqueles que estão e que estiveram na sua linha de frente, inclusive quando ainda não se tratava de um Estado Democrático; é fundamental para se apreender o que se percebe hoje: é como se o olhar sobre a legislação e a jurisprudência permitisse entender, ou ao menos sugerir, o sentido e o embasamento teórico, político e ideológico que sustenta o corpo jurídico de leis, no que concerne também ao seu aspecto agrário. 9 Disponível em: http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria-2/questao-agraria/reforma-agraria Acesso em: 08 de agosto de 2012. 10 (Brasil/MDA, 2007) 45 A Lei de 26 de junho de 1375, anteriormente mencionada, culminou na Carta Régia de 27 de dezembro de 1695 que permitia o regime que foi chamado de sesmarias, regulamentada pelo alvará de 03 de março de 1770. A aplicação dessa lei na Colônia ensejou o aparecimento de extensas propriedades territoriais e alta concentração fundiária que, acrescidas as dificuldades enfrentadas pelas repartições públicas e a incongruência da legislação sobre as sesmarias baixada posteriormente pelos responsáveis pelos assuntos do além-mar, estimulava a ocupação simples de parcelas de terra mediante precário cultivo e moradia. (NOZOE, 2006, p. 596) Evidencio que Nelson Nozoe (2006) se refere por além-mar à coroa portuguesa, enfatizando que por séculos as decisões políticas, econômicas e até ideológicas tomadas no Brasil respeitavam sempre ao domínio ou poderio português; majoritariamente, quando ainda era preciso importar as leis construídas no além-mar para que regesse aqui, em território brasileiro, a partir de seu achamento em 1500. Foi possível perceber, desde já, a tendência à concentração fundiária e ao mantimento de extensas propriedades, que talvez pudessem estar fundamentados, ao longo da história colonial brasileira, na necessidade de se povoar e de se cultivar as suas terras visando, inclusive, à defesa desse extenso território. A repartição de lotes e as divisões administrativas desses, longe de pressupor posse, garantiriam à coroa possuir certo controle através das ordenações do Reino. Nesse momento, segundo Nozoe (2006), coabitava em terras brasileiras dois tipos de domínios que acabaram se tornando paralelos: “os maninhos descobertos no Brasil constituíam propriedade da Coroa portuguesa, ainda que sobre seus beneficiários recaísse a obrigatoriedade do pagamento de dízimos à Ordem de Cristo” (NOZOE, 2006, p.590). Abrindo parênteses, destaco ser interessante atentar para esse paralelismo de poder na história colonial, entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Cristã, para perceber que, posteriormente a independência, as ordenações do Reino foram substituídas por outras criadas na simbiose das relações de poder que aqui se estabeleceram, tanto no Império quanto no Estado Ditatorial e no Democrático. Esse assunto será retomado mais a frente. O regime de concessão de sesmarias perdurou até 1822 quando, segundo Emmanuel Freitas (2007), o sistema de posse imperou como principal via de acesso a terra. A partir daí, coabitaram sesmeiros11, que haviam recebido a terra mediante seu cultivo e ocupação, e 11 O beneficiário da sesmaria. 46 os posseiros12 que haviam se apropriado das terras de forma diferente da concessão ou da compra. A já mencionada Lei nº601 de 18 de setembro de 1850, ou como ficou conhecida a Lei de Terras, desmanchou esse regime de posses e instituiu a compra como principal meio de se adquirir terras no Brasil, como pode ser verificado em seu artigo primeiro. Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra. Exceptuam-se as terras situadas nos limites do Imperio com paizes estrangeiros em uma zona de 10 leguas, as quaes poderão ser concedidas gratuitamente. (BRASIL, 1850) Além disso, essa Lei estabelece condenação àqueles que se apossarem das terras chamadas de devolutas, que eram definidas da seguinte maneira: Art. 3º: São terras devolutas: § 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal; § 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura; § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei; § 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei. (BRASIL, 1850) Essa mesma Lei de Terras propõe que se revalide as sesmarias que estiverem sendo cultivadas ou com princípio de cultivo; legitima a terra adquirida através da posse desde que se prove que há recursos para se cultivá-la; obriga tais posseiros a registrarem suas terras; dá preferência aos possuidores de terras na aquisição e compra de outras novas; e permite que estrangeiro também adquira gleba desde que com recursos para nela se estabelecer. Poderia ser percebido que aqueles que já possuíam subsídios ao cultivo da terra e à criação de animais foram grandemente beneficiados por essa Lei, por que além de terem suas terras legitimadas, se encontravam agora numa posição confortável à aquisição e ao aumento de sua propriedade fundiária. Benedito Prezia e Eduardo Hoornaert (2000) expõem justamente as consequências dessa Lei de Terras para a construção do espaço brasileiro. Apontam o seu caráter excludente, na medida em que inibe o estabelecimento de pequenos agricultores e proprietários de terra e 12 Aqueles que se apropriaram de terras mediante sua tomada, sua ocupação. 47 beneficia os grandes possuidores de recursos. Esses autores denunciam também, o reforço da estratificação agrária, o vigor com que surgem grandes latifúndios nem sempre cultivados, e, inclusive, o momento em que uma massa de excluídos impedidos de na terra viverem e da terra se estabelecerem, caminhe em direção aos centros urbanos ou permaneça na ilegalidade e/ou trabalhadores das terras-de-outros (PREZIA E HOORNAERT, 2000). Ou seja, impedia O acesso a terra para a grande maioria do povo brasileiro, que sem opção migrou para os centros urbanos ou tornou-se bóia-fria. Outros continuaram no campo como posseiros, numa situação de ilegalidade, sem direito ao título de propriedade (PREZIA E HOORNAERT, 2000, s/n). É evidente que todo esse impeditivo tenha gerado pressão social naquilo que se chamaria de campo brasileiro. Posteriormente a essa Lei, na qual fica evidente a permanência da desigualdade fundiária, medidas estatais foram sendo tomadas na tentativa de amenizar os mal-estares, mas não se inclinavam a reformular a estrutura agrária. Segundo Gervásio Castro de Rezende (2005, p.15, grifos meus), Esse “sistema do colonato”, assim como todas as demais relações sociais de produção que vigoravam no campo brasileiro no início da década de 1960, fazia parte também de um sistema de poder que ficou conhecido como o “Pacto Populista”, surgido com a Revolução de 1930 e que durou até a crise desse “pacto”, a partir da segunda metade da década de 1950. Nos termos desse pacto, em troca do apoio político dos fazendeiros, as relações de trabalho no setor agrícola ficavam imunes à interferência estatal, que paulatinamente aumentou com a subida de Getúlio ao poder, em 1930, através da regulamentação trabalhista, até redundar na CLT. CLT representa as siglas para Consolidação das Leis de Trabalho13 que foram, segundo Rezende (2005, p. 3), estendidas ao campo somente na década de 1960, sendo um desdobramento do Estatuto do Trabalhador Rural14 - ETR. Ainda segundo Rezende (2005), houve algum avanço na política fundiária brasileira através do Estatuto da Terra 15 de 1964, sendo que suas diretrizes se mantêm ainda hoje. Esse Estatuto se pautou em dois princípios que se mostraram inéditos: o primeiro residia na “necessidade de estrita regulamentação do mercado de aluguel de terra [para] proteger parceiros e arrendatários da ‘exploração’ por parte dos proprietários de terra”; e o segundo, na “resolução do problema fundiário através da 13 Refere-se à Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943 Refere-se à Lei nº 4.214, de 02 de março de 1963, publicada no Diário Oficial da União de 22/3/1963; revogado pela Lei nº 5889, de 08 de junho de 1973. 15 Refere-se à Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964. 48 14 redistribuição da terra, via desapropriação das propriedades improdutivas e sua distribuição na forma de pequenos lotes, dentro dos assentamentos de reforma agrária” (REZENDE, 2005, p. 22). Nesse momento, a função social da terra16, que estava atrelada diretamente à produção de alimentos, passa a ser considerada e serve de fundamento ao desenvolvimento das políticas de assentamento. (REZENDE, 2005) Porém, as políticas de assentamento - que são as novidades sociais trazidas por esse Estatuto, adotadas ainda hoje, que em suma consiste na redistribuição via desapropriação de terras - não se mostram como soluções ao problema agrário. Ao contrário, as políticas de assentamentos ainda possuem alcance limitado e distante de se configurarem como reforma agrária, de fato (MARIN et al, 2009; MESQUITA, 2008; SANTOS, R., 2011; FERNANDES, s/n). Tal distanciamento para com a efetiva resolução da desigualdade de terras possui sua raiz na abordagem e no tratamento que se tem feito, historicamente, da questão fundiária brasileira. Essencialmente, a questão agrária recebe tratamento reduzido e, algumas vezes, até sobreposto se comparado à importância dada para a questão agrícola. A divisão da questão da terra nessas duas subquestões - agrária e agrícola -, que será discutida posteriormente, extravasou os fins analíticos e tem se incrustado na sociedade como se realmente existisse, demonstrando que a abordagem de uma questão tão ampla como a da terra se expressa no espaço brasileiro de forma complexa. II.3 Elementos embasadores da historicidade da concentração de terras: agrário e agrícola em uma questão brasileira. Graziano da Silva (2001) separa, para fins analíticos, a questão agrária da questão agrícola brasileira. A questão agrícola faz referência à dinâmica da produção apenas, incluindo a otimização dos processos, ampliação dos rendimentos, logística de distribuição, o que e como se produz. Por outro lado, a questão agrária seria mais ampla, relacionada às condições de vida no campo, à estrutura social que dá suporte para a produção, ao nível de renda e emprego dos trabalhadores, às mudanças nas tecnologias e ao impacto que isso traz às comunidades. Considerando estarem “internamente relacionadas” e de ocorrerem “muitas 16 Nesse momento, a função social estava atrelada à produção de alimentos; mais tarde, a Constituição Federal de 1988 dispõe sobre: “Art. 186 da Constituição Federal. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I) aproveitamento racional e adequado; II) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/constituicao/constitui%C3% A7ao.htm Acesso em: 03/06/2012. 49 vezes simultaneamente”, separar tais questões fornece subsídios para se entender de que forma “muitas vezes a maneira pela qual se resolve a questão agrícola pode servir para agravar a questão agrária” (SILVA, 2001, p. 11). Contudo, ressalto que essa separação foi criada por Silva (2001) com o intuito de explicitar o porquê de existência de determinados paradoxos na sociedade brasileira, de complexidades. À luz da separação, foi a maneira que esse autor encontrou para chamar atenção para as decisões tomadas tendendo à resolução de uma questão agrícola estar se dando em detrimento da ampla questão agrária. Tomarei essa separação de empréstimo para demonstrar diferentes tratamentos dados a essas questões, como se realmente fossem duas, a fim de embasar uma das possíveis explicações da historicidade da concentração de terras. A partir dela, é possível compreender certas características paradoxais presentes na estrutura do país oriundas desse assimétrico tratamento, por exemplo: a capitalização do campo sendo empreendida à custa da massa de trabalhadores do campo; ou o fato de o país se destacar no cenário mundial como grande fornecedor de alguns poucos produtos específicos 17, ao mesmo tempo em que possui internamente carências alimentares, no que concerne à qualidade e à variedade do que se produz para a alimentação do brasileiro (CASTRO, 2001). A esse respeito, Josué de Castro (2001), em Geografia da Fome - o dilema brasileiro: pão ou aço, fornece subsídios para se entender as razões de existência de carências alimentares que se espacializaram pelo território nacional e que guardam profunda relação com o embate entre as questões agrária e agrícola brasileiras. Chamo atenção para a importância brasileira como potencial fornecedor agroexportador possuindo raízes cristalizadas na construção de seu espaço, sendo marcada pela incorporação de capitais e de inovações tecnológicas a fim de manter-se soberana. Sobre essa dedicação do Brasil aos produtos agropecuários que figuram em seu rol de exportação, Graziano da Silva (2001) disserta sobre a exigência de a agricultura acompanhar, pois, o desenvolvimento, transformando a sua aparência atrasada que significava ser “empecilho ao desenvolvimento econômico, entendido como sinônimo da industrialização do país”. (SILVA, 2001, p.11-12). Dessa forma, 17 No Caderno Economia & Negócios da versão online do jornal Estadão, há uma matéria divulgada no mês de março de 2012 que retrata que seis produtos são responsáveis por 47% de toda a exportação de produtos brasileiros, são eles: minério de ferro, petróleo bruto, complexo de soja e carne, açúcar e café - representaram 47,1% do valor exportado. Sendo que, ainda segundo essa matéria, em 2006 esses produtos representavam 28,4% de participação total nas exportações. Esta matéria está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,seis-produtos-sao-responsaveis-por-metade-das-exportacoesbrasileiras,105640,0.htm Acesso em: 06/08/2012. 50 Com o desenvolvimento da produção capitalista na agricultura (ou seja, nas transformações que o capital provoca na atividade agropecuária), tende a haver um maior uso de adubos, de inseticidas, de máquinas, de maior utilização de trabalho assalariado, o cultivo mais intensivo da terra, etc. [...] Essa industrialização na agricultura é exatamente o que se chama comumente de “penetração” ou “desenvolvimento do capitalismo no campo” (SILVA, 2001, p.13-14). Esse processo ficou conhecido também como Revolução Verde ou Modernização Conservadora. Para Rodrigo Martins, [...] a expansão [dos capitais] sobre as áreas rurais deu-se, no mais das vezes, mediante conciliação dos interesses da grande propriedade agrícola com aqueles da manutenção das circunstâncias locais de domínio e desigualdades sociais, constituindo assim o que convencionou-se chamar de modernização conservadora das áreas rurais (MARTINS, 2006, p.167). O conservadorismo dessa modernização diz respeito à preocupação de a agricultura acompanhar os progressos técnicos a fim de manter-se em voga e, de forma concomitante, as circunstâncias locais serem mantidas ou agravadas, constituindo o grande paradoxo sobre o qual tem sido construído o espaço brasileiro. Em outras palavras, preocupou-se com elementos ligados à dinâmica da produção ao abastecimento do mercado externo, a fim de aumentá-la, pois isso significaria aumento de lucro; ao mesmo tempo em que estruturalmente o painel agrário de desigualdade fundiária permanecia o mesmo. Poucas mudanças ocorreram, então, com o intuito de transformar essa estrutura desigual 18, dando historicidade à concentração de terras. Ao contrário, houve certa inclinação a apoiar a conservação e a reprodução das relações de poder entre quem emprega – detentores da força de produção – e quem é empregado – os trabalhadores, traduzindo-se como diferenças sociais latentes no processo de modernização da agricultura do Brasil (MARTINS, 2006). Os grandes proprietários e fazendeiros, lavradores embora, são antes de tudo homens de negócio para quem a utilização da terra constitui um negócio como outro qualquer [...] do outro lado, para os trabalhadores rurais, para a massa camponesa de proprietários ou não, a terra e as atividades que nela se 18 “O instantâneo tirado em 1995/6 mostrou que 785 mil estabelecimentos patronais do ‘setor principal’ ocupavam 63% da área total e dispunham de quatro milhões de trabalhadores. O ‘setor secundário’ era formado pela diminuta parte desses empregados que ainda residiam em fazendas, mais 13 milhões de pessoas que viviam em 4 milhões de pequenos e médios estabelecimentos, amontoando-se nos restantes 37% da área total” (VEIGA, 2003, p.119). 51 exercem constituem a única fonte de subsistência para eles acessível. Confundindo na análise da questão agrária situações tão distintas, não se pode evidentemente ir muito longe (PRADO JR, 1981, p. 22). Assumir que há diferenças de tratamento para essas questões contribui ao entendimento de que elas têm sido concebidas de forma separada extrapolando os fins analíticos, se arraigando na sociedade brasileira. Para citar um exemplo, Ângela Mendes de Almeida (2000) trata da preferência do governo brasileiro pela grande propriedade, optando pela manutenção da desigualdade agrária, já que os latifúndios seriam mais adequados às pretensões ligadas à mecanização e à modernização agrícolas voltadas para a exportação. [...] A pequena propriedade seria coisa do passado, ultrapassada, sendo que a incrível desigualdade da estrutura fundiária constituiria um pré-requisito importante que o Brasil já teria para entrar na modernidade agrícola. Nesse aspecto, ao contrário de outros em que o neoliberalismo argumentava ter que superar obstáculos e entraves à modernidade, o país já estaria - subentendese, desde sempre, desde a instalação dos portugueses - preparado para receber a grande propriedade agrícola mecanizada. (ALMEIDA, 2000, p. 30) A autora também chama atenção para o posicionamento do governo brasileiro apontando, como exemplo, a existência de dois Ministérios que, de certa forma, representam o diferencial tratamento dado à questão agrária e agrícola do Brasil. A saber, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério da Agricultura. Esse último, desde 2001 recebe o nome de Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Segundo a referida autora, “a dualidade de intenções do governo em relação ao tratamento da política agrícola está expressa na existência de dois Ministérios” (ALMEIDA, 2000, p.29-30), ressaltando que as questões, digamos, mais sociais estão ancoradas no MDA, enquanto que o MAPA assumiria atribuições ligadas ao agronegócio ou Complexo Agroindústria - CAI19. Essa diferença está expressa nas páginas oficiais de internet sustentada pelos setores de comunicação desses dois órgãos. A missão que orienta o MAPA se resume à “promover o desenvolvimento sustentável e a competitividade do agronegócio em benefício da sociedade brasileira.20 Além disso, em sua página oficial”21, consta o histórico de competências desse 19 20 Termo aqui utilizado a partir do uso e da apropriação que Martins (2006) faz desta ideia. Missão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Fonte: site oficial do MDA. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br/ministerio/missao. Acesso em: 31/05/2012. 21 Disponível em: http://www.agricultura.gov.br 52 Ministério onde percebi que o que se chama por reforma agrária vem sido retirada da pauta de pretensões desse órgão, que já existe desde 1860. Já as competências do MDA, criado em 1999 através da medida provisória 1.911-1222, estão diretamente ligadas aos nomes de suas secretarias, quais sejam: Secretaria Executiva (SE); Sub-Secretaria de Planejamento, Orçamento e Administração (SPOA); Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal (SERFAL); Secretaria de Agricultura Familiar (SAF); Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT); e a Secretaria de Reordenamento Agrário (SRA). Essa organização ministerial mostra que a separação entre a questão agrária e a agrícola está internalizada nos pressupostos que orientam o planejamento e as intervenções no campo brasileiro. As estratégias de desenvolvimento econômico, ampliação da produção, aumento da competitividade e lucratividade do setor agrícola encontram-se desconectadas, ideológica e fisicamente, das estratégias de promoção de qualidade de vida, dignidade e cidadania para a população que vive no campo. Temas como a reforma agrária e a agricultura familiar surgem como anexos do sistema agrícola brasileiro, não figurando entre as formas de organização que comandariam o processo de desenvolvimento. Esse tratamento diferenciado certamente encontra-se no cerne das tão graves desigualdades hoje percebidas no campo. A partir dessas leituras que almejam compreender a questão da terra em seu sentido amplo, deparou-se com movimentos, que ocorreram ao longo da história recente do país, que denunciam o despertar de consciência ou certo incômodo em relação ao mencionado panorama de concentração de terras. As Ligas Camponesas, por exemplo, marcaram a década de 1940 com a organização de trabalhadores rurais na tentativa de reclamar por reforma agrária, e também reivindicar direitos sociais e trabalhistas ao campo. Destaco que o cenário de pós-ditadura, logo redemocratização do país, no pós-1945, colaborou para a organização rural que foi amparada pelo então recém-legalizado Partido Comunista Brasileiro – PCB, angariando adeptos por todo o território nacional. Porém, segundo Lúcia Gaspar (2012), a proscrição do PCB contribuiu para que nenhum item da pauta de reivindicações fosse aprovado pelo Congresso, o que ocasionou considerável perca de forças. A partir daí, de organização, as Ligas Camponesas passaram a representar o movimento agrário, denunciando que a luta pela terra deixa de se dar de forma prioritariamente partidária, se dando agora alternativamente a partir da pressão social (GASPAR, 2012). Ainda segundo Gaspar (2012), o movimento pró-reforma agrária volta a se intensificar a partir de 1961, com a chegada de João Goulart ao poder com sua promessa de reforma de 22 Nessa ocasião, possuía o nome de Ministério de Política Agrícola e Desenvolvimento Agrário, mudando para Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2003 através do decreto 3338. (FAVARETO, 2010, p.83) 53 base como carro-chefe da pauta de pretensões. No ano seguinte, é criada a Superintendência de Política Agrária, para então se chegar, somente em 1963, ao mencionado ETR, que regulamenta as leis trabalhistas e serve de pano de fundo à criação da CLT. Percebi que, já nessa época, a reforma agrária aglutinava tensão e pressão social, dada sua pertinência e sua justificação de existência. E também por esse motivo, depois de reconhecida capacidade de organização entre os pares que compartilhavam das mesmas insatisfações, esse termo – reforma agrária - passou a ganhar vulto no cenário político, compondo políticas e pautas de pretensões de diversos governos. Como já expus no texto, falar em reforma agrária denotava certo compromisso com a sociedade e um suposto reconhecimento de uma estrutura que carecia de reformulação. O ano de 1964 além de ser lembrado por nele ter sido dado o golpe militar, foi marcado também pela criação do Estatuto da Terra. Esse Estatuto traz à baila a consideração da política de assentamento de reforma agrária como remediação ao incômodo gerado pelo painel de desigualdade fundiária, assim como revela também certo interesse de que esses assentamentos se dediquem à função social da terra, que é o seu cultivo. Porém, segundo Gaspar (2012), tentativas de desapropriação de terras, conforme permitia esse novo Estatuto, foram coagidas, gerando certa pressão para que as Ligas de novo se institucionalizassem: dessa vez, de movimento passam a atuar como Sindicato de Trabalhadores Rurais. Ao longo da construção do espaço brasileiro, a distribuição fundiária foi sendo parcialmente empreendida quando estavam implícitas as pretensões e os interesses de pessoas representativas no cenário político e econômico do país – e raramente contra esses. Por exemplo, os grandes projetos de desenvolvimento regional, característicos da segunda ditadura do país (1964-1985), se pautaram na tentativa de descentralizar industrialmente o território, criando novos polígonos potencialmente econômicos e densamente habitacionais. Glebas foram postas à compra ou à distribuição para que se garantisse o sucesso desses projetos. (GASPAR, 2012). Destarte, a política de assentamento passou a ser executada a passos lentos, desde que interesses maiores e primazes não fossem prejudicados. [...] o Estado apenas distribuía a terra e destinava poucos recursos para que os agricultores viabilizassem economicamente suas propriedades, o que levou ao fracasso de diversos assentamentos. Além disso, as terras distribuídas estavam localizadas em áreas marginais e de solo pobre. O modelo de assentamento adotado atualmente no Brasil conta com estímulos à produção de alimentos e métodos sustentáveis na produção. Para melhorar a qualidade de vida do assentamento e estimular os agricultores a não abandonar as próprias propriedades, as políticas públicas no campo passaram 54 a incluir também obras de infraestrutura, como a implantação de redes de água e energia elétrica e a melhoria e construção de estrada [...]. Há ainda o acompanhamento e orientação produtiva, social e ambiental nos assentamentos [...] (BRASIL).23 Essa mudança na maneira de se encarar os assentamentos de reforma agrária, diz respeito ao entendimento de que é preciso ir além do acesso a terra, passando a incluir a necessidade de esses assentados conseguirem permanecer na terra, viver dela e nela. Os programas de reforma agrária pensados pelo Estado, e por seus órgãos federais, passaram a ser ajustados em nível local e até contextualizados através do serviço de assistência ao assentado. Para tanto, foram criadas instituições específicas e dedicadas a essa questão: a criação do INCRA, em 1970, e dos serviços de extensão rural a partir de 1948, se configuram em grandes exemplos. A primeira instituição é, em suma, incumbida da concretização do assentamento: administrar as políticas, avaliar os potenciais beneficiários e as glebas reivindicadas e/ou a eles postas à compra. Enquanto que os serviços de extensão rural, no caso do Estado de Minas Gerais, se iniciaram com a criação da Associação de Créditos e Extensão Rural (ACAR) em 1948 e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATERMG) em 1976. Esse tipo de serviço se responsabiliza pela assistência ao beneficiário, de forma a contribuir para sua permanência e sobrevivência na terra. Essas instituições possuem papel importante na reforma agrária, ainda que ela esteja sendo empreendida de forma tímida e pautada em mitigação de pressão e reivindicação social, e não de forma estrutural. No caso do assentamento Cafundão, houve a consideração de particularidades, que ainda não se sabe se foi proposital, mas que interferiu diretamente para constituição do assentamento. Percebi que a terra reivindicada por tais assentados, e que se verá mais adiante ter pertencido juridicamente à Igreja, possuía em si, na terra, elementos que construíram noções de lugar para esses e desses assentados. Outra terra se fosse a eles destinada, talvez não expressasse a importância de se ter a gleba. Para se entender a importância da terra, e que será construída ao longo de toda a textualização, revela-se necessário, antes, o entendimento da mencionada importância das instituições INCRA e EMATER. II.4 O assentamento Cafundão e o inquérito por contextos de sociogênese 23 Disponível em: http://www.brasil.gov.br/sobre/cidadania/brasil-rural/reforma-agraria/print. 55 As importâncias das Instituições INCRA e Emater foram confirmadas nas falas dos assentados do Cafundão que exaltam e designam a elas parte substantiva da conquista de serassentado. Ao INCRA, é destinado o papel de ter desapropriado as terras e, consequentemente, de ter posto fim ao conflito, conforme pode ser verificado nesse fragmento que faz parte de uma lauda que eles próprios escreveram e me entregaram como forma de contar sua história e apresentarem-se: A determinação dos posseiros como Geraldo Pintado, Zé de Regina, dona Graciete, Neném Barriga, Adriano e Adão e todos os outros, conseguimos resistir bravamente desta forma com muita luta. Foi conquistada a desapropriação daquelas terras pelo INCRA sendo Fazenda Cafundão entregue para os posseiros que estão na luta pela construção da Cooperativa da Fábrica de Panela de pedra sabão pelo INCRA. A luta da fazenda cafundão é um exemplo de vida do povo pobre e trabalhador unido e mobilizado pode conquistar seus direitos e avançar na construção de uma vida melhor (LAUDA CONSTRUÍDA POR ASSENTADOS)24. 24 Essa lauda foi escrita pelos assentados e traz a história de luta desses contada sob o titulo Cafundão: uma história de vida. Nela há uma construção pautada na ordem dos acontecimentos, sendo que a cronologia se mostra presa aos próprios acontecimentos. Essas impressões serão discutidas mais adiante no texto. Ressalta-se que essa lauda foi a mim entregue pelos assentados como forma de apresentarem-se. Pediram para que eu lesse e contasse essa história, pois ela já estava pronta. Essa lauda, que é uma forma de sistematização da história, serviu, num primeiro momento, como forma de justificativa de que não precisariam aprofundar sobre eles mesmos, não precisaria de mais perguntas, pois tudo já estava escrito e ensaiado. Eles se expressaram para além do que estava escrito mediante alguns comentários meus que fugiam da cronologia e dos acontecimentos postos nessa lauda. Isso também será discutido, mais adiante. 56 Figura 1: História do assentamento Cafundão em uma lauda escrita pelos próprios assentados. O título dessa é “Cafundão, uma história de vida” (Arquivo pessoal). Percebe-se que a terra denominada de Fazenda Cafundão é entendida como direito inerente a eles próprios, por que nela sempre trabalharam. Percebe-se também que os nomes dos assentados que foram à luta, no sentido de ir em busca daqueles potencialmente capazes de contribuir para ela – tais como a Prefeitura Municipal de Mariana, o INCRA e Sindicatos de Trabalhadores Rurais -, são destacados. Mas, a dimensão coletiva dessa luta não é diminuída ou subestimada em delineamento de sub-papéis. O papel do coletivo, daqueles outros nessa história não mencionados, foi resistir à espera da resolução do conflito que foi trazida pelo INCRA. E, por esse motivo, essa Instituição apareceu nessa história escrita por esses assentados. Mas, adianta-se, que a relação que eles possuem para com o INCRA se relaciona estritamente ao papel relegado a ele em seu quadro de competências: “o de ter vindo de algum lugar, resolvido o nosso problema e depois ouvi falar poucas vezes” (FALA DE ASSENTADO, TRANSCRIAÇÃO DE ANOTAÇÕES DA CADERNETA). Há de se destacar que a mencionada Cooperativa da Fábrica de Panela de pedra-sabão tem importância considerável e se entrelaça com a própria narrativa de vida e trabalho dessas pessoas. O assentamento Cafundão está situado numa área de ocorrência da rocha metamórfica denominada esteatito, mais comumente conhecida como pedra-sabão. Suas 57 propriedades de retenção de calor, somada às propriedades que permitem seu manuseio artesanal, são aproveitadas na confecção de panelas. Essa atividade se constitui como a principal fonte de renda das famílias do assentamento Cafundão e também do subdistrito ao qual ele pertence, que é Cachoeira do Brumado. Esse assentamento retira, pois, da venda de panelas de pedra o seu sustento e a possibilidade de se obter utensílios, serviços e alimentos que o cultivo da terra não é capaz de oferecer. Explico. O assentamento Cafundão é composto por doze famílias de assentados: essa delimitação da família em doze se refere ao número de lotes em que foi dividida essa terra, e não a laços consanguíneos. Até mesmo por que, todos eles possuem alguma forma de parentesco, seja na forma de ser consanguínea, seja por apadrinhamento de descendentes. Cada família possui, pois, seu lote devidamente demarcado, inclusive fisicamente através de cercas. Em cada lote, e isso se reproduz em todas as doze famílias, há a casa, a horta e alguns animais soltos pelo terreiro, tais como galinhas, porcos, animais domésticos, patos, algumas unidades de vacas e peixes. Esses lotes estão numa topografia tão íngreme que dificulta a criação de animais que poderiam, a partir da venda, agregar renda às famílias. Estão situados também em uma região denominada por eles próprios como rica de água, por se localizar na sub-bacia do Ribeirão Cachoeira do Brumado (SOBREIRA et al, 2005). As terras de cada lote são insuficientes para se investir em grandes colheitas, tendo-se em vista que o território do lote já é disputado pela casa, pelos poucos animais, pela horta, e pelas áreas de passagem de um lote a outro. Há o plantio de milho fora do assentamento, em terras vizinhas, mas que, segundo um assentado, tende a não mais ocorrer devido à ausência de alguém que dedique atenção a esse plantio. A confecção de panelas de pedra sabão se constitui como o trabalho que torna possível a reprodução desses que são hoje assentados. É aí que reside a grande importância concedida à Emater, especificamente à seção regional situada na sede do município de Mariana. Essa Instituição contribui de algumas formas para a venda de panelas quando busca dar certa visibilidade ao trabalho feito pelos assentados, em feiras de artesanato na região. Inclusive, e tudo isso será melhor discutido ao longo do texto, a Emater-Mariana se mostra corresponsável pelo recente despertar de consciência desses assentados na lapidação de sua própria imagem de ser-assentado aos de fora, aproveitando-a à singularidade e à inserção de seus produtos no mercado da região. O fazer panelas se configura como atividade essencialmente de homens, tanto no assentamento quanto no restante da área do distrito, enquanto que as mulheres são responsáveis pelas crianças, pela horta, pelas atividades artesanais, tais como a confecção de 58 tapetes. Salvo alguns casos de completude na divisão do trabalho, que caminha para uma ressignificação. Fazer panelas de pedra sabão é uma atividade de longa-data, que já ocorre antes mesmo da criação do assentamento. Quando indagados sobre há quanto tempo trabalham na confecção dessas panelas, a explicação remete a tempos anteriores ao que conseguem lembrar: “meu avô, o pai do meu avô, o avô do meu avô já mexia com isso” (FALA DE ASSENTADO TRANSCRIADA A PARTIR DA CADERNETA DE PESQUISA). Percebe-se, portanto, que fazer panela de pedra sabão não se resume àquilo que Schneider (2003) chama de pluriatividade, quando se quer referenciar outras formas de produção para além do cultivo da terra, às quais denomina de atividades não-agrícolas, como forma de na terra permanecer. No caso dos assentados, esses possuem o saber que está diretamente ligado ao território em que sempre se encontraram: fazer panelas de pedra está para além de ser mero ofício ou alternativa de trabalho, se circunscrevendo em algo identitário e com raízes literalmente no solo do Cafundão. Adianta-se que essas raízes emergem como importantes fatores a serem considerados na sociogênese e constituição do próprio assentamento e, por extensão, nessa textualização. No próximo capítulo, se construirá as narrativas de vidas espaciais em seu sentido plural e polifônico. Isto por que, se colocará em diálogo as construções espaciais com as representações absorvidas dos assentados, sobre os assentados e sobre o assentamento Cafundão. Há, pois, diálogos entre estas representações, que não deverão ser interpretados de forma escalonada e sim tangenciada. 59 Capítulo III: Narrativas de vidas espaciais. ”Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com os outros acho que nem se misturam [...]. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, principio, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez seja esse o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…” (João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas). III.1 Elucidações III Um caminho foi percorrido até aqui. Primeiro, Primeiro, foi proposta uma conversação que pretendeu servir de alicerce teórico-metodológico a esta pesquisa. A teoria foi construída a partir da contribuição de muletas teóricas, que são palavras chamadas a auxiliar na textualização de representações. Apoiou-se sobre muletas concebidas como geográficas – região, território, paisagem, lugar e espaço – e sobre outras duas fundamentais ao desenvolvimento desta pesquisa, a saber memória e identidade coletivas, sendo que essa última foi brevemente abordada se relacionando à primeira. Essas muletas possuem significados individuais que as justificam no sentido de serem e de servirem como muletas. Todavia, preocupou-se muito mais com os tangenciamentos que são atravessamentos de significados que revelam correspondências, pontos em que se intersectam, se esbarram, se fundem e se confundem. Preocupou-se com tangenciamentos que auxiliassem na textualização de impressões e, pois, de representações. 60 Posteriormente, abordei algumas questões que compõem o que se chama de questão da terra que acaba criando um contexto ou um sentido de existência da política de assentamento de reforma agrária. Percebi que tal política serve, de certa forma, como medida mitigadora de mal-estares sociais oriundos dos cenários de desigualdade social e de acesso a terra. Essa política sugere mitigar o tratamento diferenciado dado à questão da terra, ao longo da história de construção do espaço brasileiro. A despeito de leis como a da política de assentamento, jurisdições foram brevemente analisadas percebendo-se certa ratificação desse desigual tratamento, inclusive com a diferenciação entre duas subquestões, quais sejam agrária e agrícola. Esse tratamento desigual também preenche imaginários sobre o que seja um assentamento de reforma agrária, que recebe o nome de uma expressão – reforma agrária – que denota carga social que lhe dá significâncias para além dos significados de cada uma dessas duas léxicas. Contudo, almejou-se inquirir por representações de espaço dos assentados, sobre os assentados e sobre o assentamento Cafundão. Esse inquérito por representações se deu a partir da consideração de narrativas de vidas espaciais que, como já discutido, se pauta em uma orientação teórico-metodológica que leva em conta as particularidades e os movimentos necessários à apreensão de espaço, que é movente. Esse capítulo se propõe, portanto, a textualizar tais representações, compondo o que se chama aqui de narrativas de vidas espaciais dos assentados e assentamento Cafundão. Ressalto que irei textualizar as representações absorvidas tal qual as percebi. Não me proporei a escalonar memórias e nem a estabelecer entre elas relações de veracidade. Há uma proposta de textualizar as representações que fiz do Outro, que apreendi como sendo representações que o Outro possui dele próprio e aquelas outras representações absorvidas como sendo acerca do Outro, considerando o contexto apreendido. Proporei o diálogo entre as representações que estará pautado na consideração do tensionamento como construtor de espaço e de hibridez espacial. Deste modo, essa textualização não haveria de possuir tom conclusivo ou estabelecimento factual entre as situações absorvidas. Há tensionamentos entre representações que, quando olhadas hoje, são passíveis de diálogo, entrecruzamento, correspondência. Sendo que, o “hoje [...] é o presente que assume todo o espaço e se dá como representação global no tempo [...] que se substitui à profundidade da duração” (SUE apud SANTOS, 2008, p.329). Contudo, considero importante destacar, como já mencionado, que esta pesquisa não é um estudo sobre o Outro, no sentido de conhecê-lo profundamente, no que concerne também aos seus signos culturais, às suas identidades e às suas visões de mundo. É uma pesquisa que 61 nasceu da inquietação em relação aos sombreamentos encontrados na história de luta pela terra chamada de Cafundão. A busca por esses sombreamentos está pautada na consideração das diversas formas de representar a luta. Para tanto, considerei o tangenciamento entre as representações do Outro sobre ele mesmo, as representações sobre o Outro e as formas de apropriação e interpretação das terras que se transformaram em assentamento. Esta pesquisa se enveredou, portanto, por caminhos tangentes na consideração da polifonia do espaço. Essa textualização, portanto, possui movimento em grande medida baseado pelo movimento de mundo, percebido no tempo em que se dá a pesquisa. O movimento acompanha também a atividade construtora de texto que é a rememoração. Essa escrita do texto se deu através da atividade de rememoração (OLIVEIRA, 1996), proporcionada a partir da releitura da Caderneta de Pesquisa. Ao longo desta pesquisa, de cujo começo é difícil precisar, mas remete, talvez, há tempos correspondentes ao início da graduação, tudo aquilo com que me esbarrei trazia em si a pretensão de poder se relacionar de alguma forma com o Cafundão. Passei a prestar a atenção a informações as mais diversas que comunicavam mensagens que se relacionavam a assentamentos, assentados, conflitos por terra, pluriatividade, distrito de Cachoeira do Brumado, desigualdade fundiária. Ao longo desta pesquisa, percebi que eu me perdi em informações. Por isso, passei a adotar, no final do ano de 2011, a Caderneta de Pesquisa para convergir e organizar essas tais. E só depois compreendi ser a Caderneta uma etapa crucial da textualização de representações (GEERTZ, 1989). Nesse momento, essa Caderneta correspondia a uma pasta, com folhas plastificadas, onde eu encaixava os documentos xerocados, os textos impressos, as notícias recolhidas, as entrevistas transcritas. Depois, passei a convergi-las para um documento digital, com certa lapidação estética. Mantenho, portanto, duas Cadernetas que se somam na Caderneta de Pesquisa. Esse capítulo se dedica, portanto, a lê-la, textualizando-a em seu processo de construção. A construção desse capítulo se deu a partir da consideração de que há tensionamentos inerentes à construção do espaço brasileiro, e que se expressam no Cafundão. O conflito por terras, se misturando à impunidade, violência, apropriações espaciais as mais diversas. O atravessamento de religiosidades foi percebido como cenários de tensões que extrapolam os domínios das crenças. As disputas por poder, materializado também no anseio pela governança, expressam divergências nem sempre relacionadas às propostas, indo de encontro a interesses pessoais, políticos e econômicos postos ao confronto. Percebeu-se também tensionamentos relacionados à concorrência, por exemplo, de produtos, de produção e de ser contemplado por políticas governamentais. Essas questões tiveram que fazer parte da 62 narrativa do assentamento Cafundão por compor sua sociogênese, que se pauta sobre o diálogo entre essas e outras várias tensões. As narrativas dos assentados tiveram que, por consequência, ser construídas de forma entrelaçada ao espaço que eles próprios contribuíram para a construírem e que foi responsável pela construção deles próprios – numa dialética espacial. Ressalto que essa dialética não deve fechar-se em si mesmo como dois espelhos postos frente a frente, num atravessamento unidirecional de reflexos que constroem e são construídos mutuamente. A história do Cafundão, dos assentados, sobre os assentados e do assentamento deve ser concebida como possibilidade de abertura polifônica, abrindo-se a outras formas de representação. A construção do espaço hoje, sendo resultado daquilo construído ao longo do tempo, converge materialidade e formas invisíveis que não são passíveis de apreensão. Aqui estarão expostas aquelas que eu absorvi e, pois, representei através dessa textualização. Figura 2: Capa da Caderneta de Pesquisa, que no processo de rememoração à textualização, passou também por um processo de lapidação estética. 63 III.2 A Terra: questão de posse. De quem era a terra, antes de ser assentamento? Escolhi essa indagação para iniciar esse capítulo. A questão da posse da terra ou do direito de nela viver constitui o grande cerne da história de luta dos assentados e da criação do assentamento Cafundão. Os conflitos ocorridos nessas terras, ou por causa delas, foram responsáveis pela criação do assentamento, pela criação da identidade de ser-assentado e pela confluência na construção desse espaço. Em relação ao espaço, além de ter sido construído a partir dos tensionamentos, também construiu a gênese dos conflitos. Tais tensionamentos foram construídos pela sociogênese, ao mesmo tempo em que a construiu. Ou seja, são oriundos da questão de posse das terras que correspondiam à Fazenda Cafundão e abrangem elementos que se relacionam às motivações dos conflitos, aos envolvidos e às maneiras como o espaço construiu e foi construído por tais conflitos. Como já mencionado, o assentamento de reforma agrária Cafundão se localiza em uma terra que era chamada de Fazenda Cafundão. Aliás, o assentamento corresponde a somente parte dessa Fazenda, que pertencia em sua totalidade à Paróquia da Nossa Senhora da Cachoeira do Brumado. A área vendida ao INCRA corresponde a 48 (quarenta e oito) hectares, cerca de trinta por cento (30%) da dimensão da Fazenda Cafundão que possuía amplitude de 158 (cento e cinquenta e oito) hectares, conforme vistoria e avaliação de imóvel rural solicitada pelo INCRA através da Portaria de 12 de março de 199225. Posteriormente a essa vistoria, no ano seguinte, através da Portaria número 9 de 21 de janeiro de 199326, foi manifestado o interesse dessa autarquia em adquirir as terras vistoriadas no ano anterior e que viriam a ser as terras correspondentes ao assentamento Cafundão. Tal interesse reside no fato de que essas já estavam direcionadas para fins de reforma agrária. CONSIDERANDO que no imóvel objeto da aquisição deverão ser assentadas treze famílias de agricultores, que já o ocupam; CONSIDERANDO o disposto nos arts. 17, alíneas "o", e 31, inciso III, da Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, e no art. 10, 65 Decreto :IQ 433, de 24 de janeiro de 1992, bem como a autorização do Conselho de Diretores do INCRA, expressa na Resolução nO 123, de 09 de julho de 1992, resolve: 25 Publicada no Diário Oficial da União de 18 de março de 1992, seção 01, quarta-feira, página 1674. Portaria publicada no Diário da União de 27 de janeiro de 1993, quarta-feira, número 18, seção 01, página 1180. 64 26 I - DETERMINAR a adoção das providências necessárias à aquisição de parte do imóvel rural denominado "FAZENDA CAFUNDÃO", com área de 48,4110 hectares, localizado no Município de Mariana, no Estado de Minas Gerais, de propriedade da Paróquia de Nossa Senhora da Cachoeira do Brumado, mediante o pagamento da quantia de Cr$ 42.424.003,64, correspondente a 101 Títulos da Dívida Agrária, a serem emitidos com prazo de dez (10) anos, resgatáveis em parcelas iguais, do segundo ao décimo ano. II - DETERMINAR à DF, à DA e à PJ a adoção das providências pertinentes, com vistas ao empenho dos valores, lançamento dos Títulos da Divida Agrária e elaboração da minuta de escritura pública, a qual devera atender aos requisitos do art. 10, parágrafos 24 e 34, do Decreto n4 433, de 24 de janeiro de 1992 (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1993, p. 1180). Nessa Portaria, é expresso o número do cadastro da Fazenda Cafundão como imóvel rural devidamente regulamentado nessa mesma autarquia, tendo como proprietária a Paróquia desse distrito. Consta também a concordância da Paróquia em vender os 48 hectares requisitados para fins de reforma agrária. Nesse mesmo ano, foi solicitada à Superintendência do INCRA no Estado de Minas Gerais, escritura pública de compra e venda relativa à área em questão. Essa solicitação ocorreu através da Portaria 344 de 24 de junho de 1993, publicada no Diário Oficial da União27 desse mesmo ano. O encaminhamento para a criação, de fato, do assentamento se deu a partir da Portaria publicada em 1995, que solicitou a criação e os ajustes necessários ao reconhecimento dessas terras como assentamento de reforma agrária, bem como o seu pertencimento à unidade denominada de SR-062 que corresponde à seção do INCRA do Estado de Minas Gerais. [...] Comarca de Mariana, Minas Gerais, sob a Matricula n° 7.393, Livro 2AA, Folhas 253 em 20 de setembro de 1993, e que prevê a criação de 12 (doze) unidades agrícolas familiares e a implantação de infraestrutura física necessária ao desenvolvimento da comunidade rural, de conformidade com o Plano Preliminar, elaborado na SR-062; II - Criar o Projeto de Assentamento CAFUNDÃO a ser implantado e desenvolvido por esta Superintendência Regional, em articulação com a Diretoria de Assentamento; III - Autorizar a Divisão de Assentamento desta SR-(06) a promover as modificações e adaptações que, no curso da execução, se fizerem necessárias para a consecução dos objetivos do Projeto; IV - Determinar à Divisão de Assentamento da SR-(06) que encaminhe cópia deste ato, ora aprovado, para a Diretoria de Assentamento, para fins de registro, controle e publicação do mesmo no Diário Oficial da União; V - Determinar à Divisão de Assentamento da SR-(06) que participe aos órgãos de Meio Ambiente, Federal e Estadual, o Projeto ora criado. (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 1995, p. 2078). 27 Publicada no Diário Oficial da União de 25 de junho de 1993, seção 02, sexta-feira, página 3482. 65 O intervalo ocorrido entre a vistoria do imóvel rural Fazenda Cafundão e o encaminhamento para a criação do assentamento foi de aproximadamente três anos. Esse pequeno intervalo poderia ofuscar todo um confuso processo inerente a essa petição de criação de assentamento. O assentamento Cafundão foi criado a partir do que chamam de forma de obtenção de terras por compra e venda. Segundo o Relatório 0227 de 18 de agosto de 2011 do Sistema Institucional do Programa de Reforma Agrária (SIPRA), da Diretoria de Obtenção e Implantação de Projetos de Assentamento, existem onze formas de obtenção de terras e de implantação de projetos de assentamento, são elas: desapropriação, reconhecimento, compra e venda, doação, arrecadação, discriminação, incorporação, transferência, confisco, adjudicação, cessão e aquelas que ainda estão em fase de obtenção. A diferenciação dessas formas de obtenção se relaciona às maneiras como se deu ou está se dando a criação de um assentamento. É importante destacar que esse Relatório é uma atualização dos dados referentes à reforma agrária, trazendo os nomes, os municípios, as áreas, as formas de obtenção e a situação de todos os assentamentos criados desde o ano de 1900, totalizando 8.790 projetos (MDA/SIPRA, 2011). Saliento que esse Relatório denomina cada assentamento como Projeto de Assentamento ou simplesmente a sigla PA. Não será adotada essa forma de nomear o assentamento Cafundão, chamando-o de PA Cafundão, pois não foi notada certa assimilação dessa expressão pelos assentados. Ao contrário, quando se falou PA Cafundão, eles não entenderam se tratar do próprio assentamento. Além disso, eles possuem uma inclinação a sempre evidenciar que moram em um assentamento e não somente no Cafundão, pois essa última nomenclatura também serve aos arredores que não abrange terras de fins de reforma agrária, ou seja, os outros 70% (setenta por cento) de terras da Fazenda Cafundão. Por esse motivo, está se adotando aqui sempre a denominação de assentamento Cafundão. Indaguei a uma assentada, que veio de São Paulo para casar-se com um assentado, sobre a forma como ela percebe a visão que outras pessoas possuem do assentamento e deles, dos assentados. Tratam igual. Assim, nem sabem que é assentamento e perguntam se tem assentamento lá. Nós temos que falar assentamento cafundão. Por que até a conta de luz vinha errado, vinha cafundão, vila cafundão. Aí explica, esse é o assentamento cafundão. Mas tem essa separação por que lá em cima não é assentamento e lá embaixo também não é assentamento... Até uma parte desse morro descendo é o assentamento, mas ai depois já não é mais. O cafundão de baixo é Vargem Alegre, né? É, mas lá esse Vargem Alegre não foi aprovado pela prefeitura. Não aprovou por que o povo já conhece como 66 Cafundão (FALA DE SRA. ASSENTADA TRANSCRIADA A PARTIR DE ENTREVISTA GRAVADA). O assentamento Cafundão foi criado, então, a partir do processo de compra e venda de terras. Isso pressupõe que, a Paróquia da Nossa Senhora da Cachoeira do Brumado era realmente proprietária legal do imóvel rural e que concordou com a venda para o INCRA de parte de sua Fazenda. Indaguei sobre a forma como efetuam o pagamento da terra e se eles sabem para quem estão pagando esse valor. Nós paga ela todo final de ano. Eu não sei pra onde o dinheiro vai, só sei que vai. Nós colocamos no nome do INCRA. É, no nome do INCRA. A gente deposita o dinheiro lá, né? Por que vem o papel deles e a gente paga aquele papel lá. Acho que vai pro INCRA. Cada um tem seu lote. Aí, cada um paga sua quantia. [...] Perguntei se havia prazos para o pagamento. Tem um prazo. Vem agora. Esse final de ano agora, eu termino de pagar meu lote. Aí quando ele veio pra mim pagar no ano passado, eu não tive mil e pouco pra pagar tudo. Aí, então, esse ano eu espero ter... Mas eu vou ter! (FALA DE SRA. ASSENTADA TRANSCRIADA A PARTIR DE ENTREVISTA GRAVADA). Aos assentados, caberia a compra por meio de políticas específicas ao assentado, que reside nas condições específicas de pagamento, em prestações que são cobradas em forma de boleto ao final de cada ano, no tempo necessário à concessão de titulo de posse, além das políticas de apoio, destacadas por Francisco Albuquerque (et al, 2004), que reside em “uma política de crédito própria, através do INCRA, que financia a implantação dos lotes, com recursos para a construção da moradia, da manutenção da família no primeiro ano, além de financiar o custeio da produção e disponibilizar crédito para investimento, com prazos e carências” (ALBUQUERQUE et al., 2004, p. 82). Algo poderia ser, então, problematizado: dentre as formas de obtenção de terras, por que o Cafundão foi criado a partir da compra e venda? Depois de quanto tempo de reivindicação a Igreja decidiu vender? Por que não houve doação dessas terras por parte da Igreja? E por que a Igreja haveria de doar? Essas perguntas guardam em si questões complexas que estão muito além de respostas meramente prontas, como aquela que poderia remeter à ideia de que terra corresponde a dinheiro e a poder. Fala-se da associação da Igreja às riquezas e ao poder, como se essa Instituição fosse una, única e sem contradições internas. 67 A Paróquia da Nossa Senhora da Cachoeira do Brumado é hoje denominada de Paróquia da Nossa Senhora da Conceição, que é o nome de sua igreja matriz. Ela foi criada coincidentemente, ou não, no ano de criação da Lei de Terras que é 1850. Essa Paróquia abrange comunidades situadas em distritos do município de Mariana, diferentemente de outras, tais como a Paróquia da Nossa Senhora da Assunção e a Paróquia Sagrado Coração de Jesus, que englobam comunidades situadas na sede do município. Rosemeire Nakashima (et al 2006) fizeram um estudo convergindo situações socioeconômicas com a distribuição populacional, de renda e de atividades desenvolvidas em cada área do município. Nesse artigo, há um quadro contendo informações importantes acerca da distribuição de renda que se dá de forma concentrada na cidade-sede que é Mariana e de forma periférica nos distritos, sendo aqui exposto: Tabela 1: Domicílios particulares permanentes, por classes de rendimento nominal mensal da pessoa responsável pelo domicílio (%) Município de Mariana, seus Distritos e Minas Gerais 2000. Extraído de Nakashima (et al. 2006, p.03). Dentre outras possíveis apreensões, destaco que Cachoeira do Brumado, que é o distrito onde o assentamento se localiza, possui metade de sua população recebendo cerca de até um salário mínimo. Aliás, a distribuição de renda é feita de forma concentrada na cidadesede, em detrimento de suas periferias que são os seus distritos. Por extensão, essa relação centro-periferia poderia se repercutir no público de uma Paróquia, ou seja, àqueles nela cadastrados ou que são os seus frequentadores. Mas, não há estudos que demonstrem que a renda é diretamente proporcional àquilo oferecido como dízimo, por exemplo. Aliás, os devotos mais afincos costumam ser justamente aqueles que necessitam de fé como incentivador e gratificador de vida. Porém, toma-se de empréstimo essa relação como forma de conversação entre a concentração de renda e a supervalorização de Paróquias centrais em 68 detrimento daquelas periféricas, e tanto uma como a outra possuem historicidade, ou seja, se fazem presentes na construção desse espaço. Sabe-se que o dízimo é um importante mecanismo de atuação da igreja, pois concede a ela também poder de intervenção sobre as comunidades, sobre o mantimento das tradições festivas e sobre a sustentação de seu pessoal, como padres, párocos, bispos, etc. Destaco que, a despeito de essa Paróquia estar subordinada à Arquidiocese de Mariana, seu trabalho de evangelização e de intervenção social se dá em nível local de organização. Isso poderia significar que, apesar de a Arquidiocese ostentar valores exuberantes, inclusive, por meio de imóveis a ela doados, em testamentos de devotos ou por meio de recolhimento de dízimos, a Paróquia da Conceição possui seu recolhimento de certa forma abreviado àquilo ofertado por membros de suas comunidades. Deste modo, a Arquidiocese de Mariana é conhecida por sua tradição no sentido de defender a ortodoxia dos ideais e por sua amplitude de interferência. Fabrício Oliveira e Reinaldo Schiavo (2008) retrataram a forma como essa Igreja ortodoxa se comportou frente ao advento dos ideais da chamada Teologia da Libertação. Essa ala Católica chamada de conservadora é aquela concentrada na idéia de manter a tradição, a autoridade hierárquica e a doutrina ortodoxa. Ela é formada por um grupo que acredita no papel moral e espiritual da Igreja católica e na concepção de que as idéias progressistas, comumente associadas ao marxismo, são perigosas e, muitas vezes, incompatíveis com os ideais do cristianismo (LÖWY, 1995). Esses clérigos são, portanto, mantenedores de uma tradição católica ultramontana em contraposição ao novo jeito de ser Igreja, proposto pela Teologia da Libertação. Dom Oscar de Oliveira, arcebispo da Arquidiocese de Mariana-MG entre 1960 e 1988, foi considerado um desses conservadores por impor resistências às propostas da Teologia da Libertação em defesa da face tradicional que essa arquidiocese assumiu historicamente ao longo de sua existência (OLIVEIRA E SCHIAVO, 2008, p. 208). Na década de 1970, por exemplo, em sua publicação jornalesca chamada O Arquidiocesano (1972, p.02), a própria Igreja destaca a magnitude de sua população. As informações que se pautam em um recenseamento feito na década de 1970, trazem que a população dessa Arquidiocese é de 835.871 pessoas. Para se comparar, a população arquidiocesana situada somente na sede marianense era de 24.832 pessoas, nesse mesmo censo. E a população total desse município hoje, segundo o censo de 2010, é de 54.179 habitantes (IBGE, 2010). Nessa contagem feita pela própria Arquidiocese, destacam-se os 69 municípios, e suas respectivas populações, com os pesos populacionais mais importantes, dispostos na tabela abaixo: Tabela 2: População da Arquidiocese de Mariana em 1970, segundo os dados do jornal O Arquidiocesano de (1972, nº 658, p.02). POPULAÇÃO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA EM 1970. MUNICÍPIO POPULAÇÃO Barbacena 73.905 Conselheiro Lafaiete 50.919 Ouro Preto 46.166 Ponte nova 45.782 Viçosa 25.784 Mariana 24.832 Itabirito 22.508 Raul Soares 20.990 Congonhas 20.399 Abre Campo 19.970 Rio Casca 18.315 Jequeri 18.151 Piranga 16.603 Santa Bárbara 16.282 Alto Rio Doce 15.449 Percebe-se, portanto, que o somatório populacional da cidade de Mariana faz dela somente a sexta cidade com maior número de habitantes que compõem a Arquidiocese de Mariana. Porém, sua interferência e seu poder decisório sobre as demais foram notados por Fabrício Oliveira e Reinaldo Schiavo (2008). Esses autores confirmam a importância da cidade de Mariana, também por ter sido a sede do bispado português no Brasil. Como também, destacam que, a despeito da ortodoxia dessa Arquidiocese e da abrangência de adeptos, foram surgindo manifestações e movimentos populares, em meio à pressão, que demonstravam abrir-se a questionamentos e debates sociais, como é o caso do advento das chamadas Comunidades Eclesiais de Base em cidades brasileiras, tomando como exemplo a cidade Porto Firme, MG. 70 Não são raros os casos em que as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) tornaram-se espaço de debates e articulações políticas entre leigos católicos no Brasil. São muitos os exemplos de partidos políticos, sindicatos, ONGs, movimentos e pastorais sociais que se organizaram sobre os alicerces de várias CEBs em diversos cantos do país. Todavia, essa “politização” nas bases da Igreja católica não se deu de forma homogênea nas diversas arquidioceses brasileiras. Nas jurisdições eclesiásticas mais “abertas” às idéias da Teologia da Libertação, a formação dessas Comunidades Eclesiais aconteceu com maior intensidade, ao contrário do ocorrido onde o clero, por diversas razões, postou-se de maneira cética diante das orientações ditas progressistas dessa vertente teológica. Na Arquidiocese de Mariana - MG, durante o arcebispado de Dom Oscar de Oliveira (1960-88), a organização das CEBs bem como a articulação política dos leigos sofreram resistências por parte do governo arquiepiscopal, receoso quanto ao perfil contestatório e ao discurso “revolucionário” adotados por muitas dessas comunidades. Porém, as objeções desse arcebispo não foram suficientes para conter a proliferação desse referido modelo de catolicismo na sua Instituição, uma vez que influências externas ultrapassaram seu crivo, fomentando o germinar das Comunidades Eclesiais de Base nesta Arquidiocese, como aconteceu na paróquia de Nossa Senhora da Conceição em Porto Firme - MG (OLIVEIRA E SCHIAVO, 2008, p.01-02). Os ideais tradicionais que pregavam os pertencentes à Igreja Católica em seu viés mais ortodoxo, foram coabitando com manifestações diferentes que se inclinavam às reivindicações sociais. A força desses ideais, sejam ortodoxos, sejam digamos revolucionários, se relacionam estritamente com o contexto de sociogênese no qual estavam inseridos. As ordens religiosas tradicionais que pregavam ideais de ordem e moral convinham para fins ditatoriais que serviam, amplamente, ao controle da nação e de devotos. Há, inclusive, defesa pública da forma de governo ditatorial por parte da Igreja Católica, como pode ser verificado em publicações de O Arquidiocesano (1972, 1973, 1983). Há notícias que elencavam datas comemorativas de apoio à ditadura, como o aniversário da ditadura. Havia, deste modo, uma pretensiosa aliança entre a Igreja e o Estado Ditatorial, conforme verificaram Fabrício Oliveira e Franklin Rothman (2008), Intrigante é o fato de que, enquanto muitas dioceses brasileiras atuavam apoiando movimentos populares nas décadas de 1970 e 1980, a Arquidiocese de Mariana legitimava a ditadura militar e não apoiava manifestações populares contestatórias das ordens econômicas, sociais e políticas vigentes. (OLIVEIRA E ROTHMAN, 2008, p.02). 71 Os ideais sustentadores da Igreja Católica tornaram-se ainda mais complexos com o advento das propostas mais compromissadas com intervenções sociais que ficaram conhecidas como Teologia da Libertação. O surgimento dessas ideias na área compreendida como pertencente à Arquidiocese de Mariana causou estranhamento a ponto de haver ataques contra os pertencentes da própria Igreja e que pregavam tais ideias. Houve, notadamente, através também das páginas do jornal O Arquidiocesano (1983), recomendações para que se tivesse cuidados em relação a essa forma de pensar, que já estava angariando adeptos por toda a Arquidiocese. Cristãos passaram a se envolver em movimentos sociais, tais como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Sem-Terra (MST) (OLIVEIRA E ROTHMAN, 2008). A Arquidiocese pregava nessa época, que correspondia às décadas de 1970 e 1980, que a Teologia da Libertação possuía fundamentação comunista e por isso haveria de ser banida. Essa mesma Igreja sobrepôs o discurso a partir da redemocratização do país, com um outro mais atencioso às carências societárias, tais como a fome, as desigualdades, as injustiças, a defesa de recursos humanos e, mais recentemente, os discursos ambientais e de sustentabilidade. Essa ressignificação de discursos não anulou aquele que ainda se manifesta em sua face mais tradicional, dentro da Arquidiocese e para além dela. Por isso, convido a pensar em uma hipótese que carece de investigação: a Teologia da Libertação, que denota o compromisso social da Igreja Católica, abrange ideal de luta que se dá de forma entrincheirada por não corresponder ao discurso-oficial dessa Igreja ortodoxa. Tal discurso-oficial se mostrava consoante com o modelo ditatorial que estava na linha de frente desse país, estabelecendo uma associação que não subestimava nenhum dos dois poderes, que ao contrário se somavam. Um exemplo de compatibilidade de poder está nessa passagem retirada de O Arquidiocesano: “antigamente as divisas das Dioceses entendiam antes aos acidentes geográficos que aos limites civis. A criação de novos municípios ou distritos, não tem em si força para alterar os limites eclesiásticos das Dioceses bem como os da Paróquia” (1972, p. 02). Em outras palavras, nem o Estado que possui o poder de gerir limites civis poderia interferir sobre os limites da Arquidiocese, e estes estavam pautados em delimitações chamadas de geográficas. Portanto, a Igreja dispunha sobre si própria, não precisando respeitar, por exemplo, limites civis impostos pelo Estado. Com a redemocratização do Brasil, os discursos foram se metamorfoseando. Os ideais dessa Teologia são incorporados às pregações e homilias dessa Igreja que pareceu se remodelar de forma mais condizente ao contexto social. Isso se deu por que a Teologia da Libertação contribuiu, de fato, para que a carga de intervenção social da Igreja se fizesse mais 72 presente, ou houve uma adaptação dessa Igreja aos discursos em voga a fim de manter-se soberana? Essa discussão não é o intuito desta pesquisa, a despeito de apoiá-la amplamente. Para se investigar quais são as pretensões da Igreja teria que, antes, se assumir que ela é construída de forma heterogênea e complexa no espaço brasileiro. Além disso, são pessoas que constroem a Igreja e ostentam toda a tradição que lhe dá substância e importância. Na cidade de Mariana, onde a Arquidiocese se faz profundamente presente, inclusive sobre as tradições culturais, há o surgimento de diversas outras Igrejas e religiões. Os assentados do Cafundão, por exemplo, se reconhecem como Evangélicos. Essa relação se revela coinfluente para a forma como representam a questão de posse das terras da Fazenda Cafundão. No trecho que se segue, pode ser percebida essa influência da religiosidade, como também, a forma como percebem a ausência desse tipo de conflito no cafundão-de-baixo. Indaguei sobre a existência de conflitos no Cafundão-de-baixo. Já moravam ali, mas aquela parte lá nunca teve problema com a Igreja Católica e nem nada. Aqui que a Fazenda era muito grande. [...] Indaguei sobre a possível solicitação da saída dos assentados das terras em que moravam e os motivos disso ter acontecido. Aí a igreja falou que era deles e que queria a terra. Não queria [que eles ficassem por lá] de jeito nenhum. Nossa, era guerra. [...] Indaguei sobre os motivos disso ter acontecido. Por que era da igreja católica. Que tinha documentação, né? Mas, o pessoal antigo aqui também tem documentação. Igual a gente tem uma pasta que tem essas documentações, no cartório também tem, ai não sei o que o INCRA resolveu. Eu tenho pra mim que o INCRA deve ter negociado com a Igreja Católica pra não arrumar confusão... Por que essa terra não foi de graça pra nós (FALA DE SRA. ASSENTADA TRANSCRIADA A PARTIR DE ENTREVISTA GRAVADA). É no mínimo interessante o fator de os assentados se reconhecerem em outra religião, que é diferente daquela predominante nesses domínios regionais e que, ainda, era detentora das terras que eles estavam reivindicando. Algumas interpretações poderiam ser feitas a partir disso, tal como, o intervalo de tempo entre a avaliação das terras e a criação do assentamento durou, como já mencionado, três anos. Esse intervalo ofusca a temporalidade do conflito que se estendeu por anos, se tornando mais intenso no final da década de 1980 e começo da década de 1990, e que viera a se tornar mais comedido a partir da intervenção do INCRA. Nesse tempo, poderia ter havido empecilhos postos pela Igreja no que concerne à aceitação 73 em vender tais terras. Não estabelecendo uma relação contrária e sim de completude, esse conflito, ou o prolongamento dele, poderia ter sido subestimado pela Prefeitura de Mariana ou pela polícia local, que contiveram em intervir de alguma forma, ou simplesmente porque os assentados não eram vistos e nem se faziam vistos. III.3 A Terra: tensões. A cidade de Mariana, e por extensão sua Prefeitura, é marcada, historicamente, por características que preenchem de sentido toda efervescência e paixão que são percebidas na disputa pela sua linha de frente, pela Prefeitura. Há um sentido festivo e também de tensionamento entre candidatos, e que carece de maiores estudos. Na disputa pela Prefeitura, onde a eleição corresponde somente à teatralidade de tensões mais profundas, é percebido um conflito que está para além da administração do município. Não se exclui que isso aconteça em outras cidades, mas na cidade de Mariana os candidatos são como padrinhos, o pai escolhido, aquele com quem se identifica de alguma forma. Essa identificação talvez não se relacione a ideias ou a propostas de governanças, e sim ao que Michelle Brandão (2009, p. 01) chamou de “fiéis vassalos de sua majestade” quando referenciou as relações de poder entre elites locais e a Coroa Portuguesa, e que poderiam se reproduzir nesse contexto espacial. É importante destacar essa característica, pois ela está pautada também na distribuição de terras do município. Há grandes fazendeiros e que, não por acaso, já foram Prefeitos dessa cidade. Na história contada por alguns assentados, a despeito de ela parecer um tanto quanto confusa, há o apontamento de ter havido outras pessoas na tensão da luta pela terra, ao mesmo tempo em que reforçam o caráter culpabilístico da Igreja pelos conflitos. Perguntei a Sra., que é original do Estado de São Paulo, e que casou-se com Sr. Assentado, se ela sabia o que era o assentamento de reforma agrária. Não. Eu imaginava que era lugar de guerra mesmo, por que o povo fugia pra mata. E o meu sogro estava sempre preso. O pai dele estava sempre no hospital. E a dona Cecília que teve depressão pós-parto, é uma pessoa assim, doente, né? Por conta de sempre fugir pra mata na hora do parto. Olha só! Aí ela teve problema de parto e hoje ela tem problema. É, como que chama... Problema, assim, mental mesmo. E o outro que foi baleado!? Essas coisas assim. Era guerra mesmo. [...] Perguntei entre quem era essa guerra. Entre o povo da igreja católica e os assentados. Por conta, que eles queriam guerra. Aí mandavam fazer as brigas, arrancar cerca, aquelas coisas... Tiro! 74 Todo esse negócio, né? Aí aqui, nós temos ali [aponta] só que tá bem pequenininho a história do assentamento [a mencionada lauda a mim entregue]. Nem a polícia quis ajudar. [...] Indaguei sobre quem conseguiu ajudá-los a criar o assentamento. Um senhor [membro da CPI da Câmara] pegou meu sogro e levou pro INCRA. Aí o INCRA veio pra negociar com a Igreja católica e, depois, ficou pertencendo ao INCRA, aí quando ficou pertencendo ao INCRA, o INCRA foi e aceitou o povo (FALA DE SRA. ASSENTADA TRANSCRIADA A PARTIR DE ENTREVISTA GRAVADA). Fazendeiros, grileiros e posseiros também foram apontados como aqueles responsáveis pela remoção de cercas, agressões morais, físicas e até conflitos armados. É aí que reside a característica coronelista, por estar pautada num misto de aproveitamento da posição social, oriunda da detenção de terras, ao autoritarismo, à coerção e à impunidade. Impunidade concernente aos envolvidos e aos responsáveis pelo conflito, como também ao órgão que seria responsável pela cessão e controle de tal, como pode ser verificado na Ata da Câmara que pede o afastamento do então Delegado de Polícia por compactuar-se e omitir-se da questão. Às dezenove horas do dia 12 de novembro de 1990, com todos os senhores vereadores presentes, reuniu-se mais uma vez a edilidade marianense para tratar dos assuntos de interesse do município. (...) Enquanto se aguardava o Parecer da Comissão de Finanças, do referido Projeto, o Sr. Presidente abriu um parêntese na sessão para ouvir a reclamação do pessoal do local denominado Cafundão, no Distrito de Cachoeira do Brumado, a respeito de uma questão de terreno. Usou da palavra em nome do pessoal de Cafundão, o Sr. Valcir Pereira Viana, vice-presidente do Partido de Trabalhadores deste município que falou do Marcus Vinicius, que vem ameaçando os moradores do local, estando armado e o povo já está com suas terras prontas para o plantio. Esperando que a Câmara Municipal já requereu a desapropriação de terreno para sanar esta situação, embora Marcus Vinicius continua ameaçando o povo. Usou da palavra o Dr. Derly Pedro da Silva que disse que as Constituições Federal e Estadual não entra em vigor em Mariana e que a polícia não toma conhecimento dos fatos degradantes que estão ocorrendo nesta cidade e nos distritos. O Exmo. Sr. Presidente, reconhecendo que esta situação era bastante delicada e perigosa, resolveu criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar os fatos alegados em conexão no terreno de Cafundão, que se formou com os seguintes vereadores: José Antônio Cota e Souza; Jesus Geraldo da Silva e Sebastião Evangelista Fernandes. Usaram ainda da palavra sobre o assunto os vereadores Geraldo Ramos Magalhães, Sebastião Evangelista Fernandes e Mário Ramos Eleutério onde cada um dos edis sustentaram as suas alegações em favor dos posseiros de Cafundão que ali residem há mais de cem anos. [...] Não havendo mais nada a tratar, o Sr. Presidente colocou a palavra franca. No uso da mesma, o vereador Geraldo Ramos Magalhães voltou a falar do Cafundão, acusando Marcus Vinicius, que é o principal causador do tumulto criado lá em Cachoeira do Brumado (Cafundão). [...] Em seguida, 75 foi apresentada um requerimento assinado por todos os senhores vereadores, solicitando a remoção do Dr. Delegado de Polícia, em virtude do tumultuado caso de Cafundão. Foi criado também pelo Sr. Presidente, uma comissão de Direitos Humanos, composta pelos vereadores José Boaventura de Oliveira, Geraldo Ramos Magalhães e Mário Ramos Eleutério, para acompanhar amanhã na Delegacia de Polícia os depoimentos das pessoas residentes em Cafundão. Do que se passou, lavrei a presente ata que se for aprovada será assinada (CÂMARA MUNICIPAL DE MARIANA, 1990, p. s/n, grifos meus) Verificou-se, portanto, omissão de autoridades nos conflitos que ocorriam na Fazenda Cafundão. Por esse motivo, foi eleita uma comissão composta por vereadores que tiveram a função de ir até o local, verificar a situação do conflito e trazer, de volta à Câmara, possíveis soluções. Não encontrei nos arquivos da Câmara as informações que deveriam estar sistematizadas em um Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que foi criada. Porém, a leitura das Atas ao longo desse ano de 1990 até o ano de 1994 demonstrou que, posteriormente a criação da CPI, os trâmites legais no que concerne à compra e venda de terras para fins de reforma agrária deram prosseguimento, se convergindo ao intervalo de tempo de três anos para efetivação da compra. Foi mencionada nessa Ata, e também pelos assentados, a presença do Sr. Marcus Vinicius como o responsável pelos conflitos armados. Há de ressaltar que, a despeito de sua presença em ambos os discursos, não se encontrou escritos ou correspondências que revelem quem é, de fato, essa pessoa. Surgiram falas de que ele recebeu dinheiro do INCRA, por corresponder ao dono das terras, e depois mudou-se para outro Estado onde se transformou num grande e importante fazendeiro. Como também, há falas que denunciam que ele atuou à mando de alguém, que sempre esteve nas sombras das ações e que, depois de sua atuação, foise embora ser um grande fazendeiro num outro Estado. Na esteira dessas discussões, convido ao diálogo a circunstância de que, segundo reportagem publicada no jornal O Liberal (1995), um ex-prefeito da cidade de Mariana seria responsável por inúmeros conflitos e até mortes encomendadas. É importante destacar que não se encontrou confirmações de tais notícias, e nem que esses assentados mencionaram o nome desse ex-prefeito. Porém, toma-se de empréstimo a discussão em torno da impunidade acusada de ser inerente à construção do espaço marianense. Aliás, há uma específica reportagem que sugere que tal ex-prefeito se envolveu em disputas por terras no município de Mariana, sendo aqui destacada: “O atrabiliário e violento [nome do ex-prefeito], mais uma 76 vez enfeita o noticiário policial com os seus desmandos ao tentar matar os ex-correligionário e hoje desafeto [nome] por disputas de terras e pontos comerciais” (O LIBERAL, 1995. p. 08). Contudo, há de se ressaltar que há três fatores que devem ser destacados, que poderia relacionar esse ex-prefeito à sociogênese do assentamento Cafundão. Saliento, antes, que essa relação nem precisa se resumir diretamente na pessoa ex-prefeito, por que conforme já apontado, estabelece-se um sentido grupal em torno dessas figuras-políticas chaves. O primeiro fator é concernente ao tensionamento entre religiões. Sendo assim, já foi discutida a importância da Arquidiocese de Mariana não só para a cidade de mesmo nome, mas para toda a população que a ela pertence. Porquanto, esse ex-prefeito era assumidamente frequentador da Igreja Universal, e essa Igreja corresponde ser a mesma seguida pelos assentados. Em reportagem de O Liberal (1996), tal ex-prefeito, que nessa época era prefeito, é acusado de possuir pacto com forças ocultas por ser adepto dessa Igreja e por, supostamente, ter escrito uma carta de repúdio a Nossa Senhora Aparecida. Essa carta parece ter confirmado uma insatisfação, que se fazia presente, em relação a esse prefeito. Destaca-se, também, que a reação desse jornal revelou certa inclinação ao catolicismo, dada a paixão na escrita da matéria. Portanto, esse fator das religiões poderia ter aproximado os assentados ao, então, prefeito do município, e, por tabela, os primeiros podem ter adentrado um tensionamento que não necessariamente lhe correspondia. O segundo fator que será destacado é justamente o conflito que envolvia as alternâncias de poder na prefeitura. Em matéria publicada no O Monumento (1990), que é a voz jornalesca da prefeitura, destaca-se o caráter de emergência dado por um prefeito, que é opositor daquele outro, à questão das terras do Cafundão. Ao assumir a prefeitura, através da vitória em eleição, é publicada uma matéria que quase serviu de bandeira de governo. Foi destacado que esse tal daria solução ao conflito que se prolongou e se atingiu seu “ponto crítico” nesse momento (O MONUMENTO, 1990, p. 03). Essa bandeira poderia representar uma afronta ao opositor, ex-prefeito, por meio de uma questão que será trazida no terceiro fator, ou uma forma ultrajada de realizar a desapropriação de terras em favor de pessoas que possuem certa correspondência religiosa com o ex-prefeito, ou ainda o compromisso que possuía, de fato, esse mencionado prefeito junto a questões sociais, humanas e também fundiárias. O terceiro fator reside na noção da localidade ou de território, dependendo da tipologia de representação escolhida. O ex-prefeito, aquele acusado de matanças e de disputa armada por terras, é originário do mesmo distrito onde se situa o assentamento Cafundão, ou seja, Cachoeira do Brumado e era reconhecidamente detentor de grande quantidade de terra por 77 toda a área. Reside ai uma grande questão paradoxal: poderia esse ex-prefeito ser um dos interessados pelas terras do Cafundão, já que se estabeleceria certa continuidade regional, fazendo-se dessa região algo territorial e fundiariamente apropriado. E, dessa forma, o Cafundão emerge como localidade, como mais um ponto que deveria ser agregado ao montante propriedade-de-terras. Ou, por as terras pertencer à Igreja católica, que não é assimilada nem pelo ex-prefeito e nem pelos assentados, essa luta passa a ser a luta desse exprefeito que, ao invés de agir através da intervenção política e institucionalizada, conspirou para o processo de construção da imagem do inimigo-Igreja, junto aos assentados e às pessoas desse mesmo lugar. E, por isso, o reconhecimento do território-Cafundão. Ressalta-se que todos esses três fatores não excluem a possibilidade de haver outras interpretações e/ou que tais representações feitas nada tem haver com os sentidos de luta dados no tempo em que ela se deu. Contudo, esses três fatores aqui trazidos à baila almejaram destacar questões concernentes à política, em seu escopo institucional através da prefeitura, em relação ao tratamento dado para as terras do Cafundão. Todavia, há de se criar aqui um quarto fator que, não necessariamente corresponde a posturas da prefeitura, mas a ausência de postura talvez se configure nela mesma num posicionamento. Fala-se de conflitos que poderiam ter suas origens em interesses de fazendeiros e posseiros que lutaram por essas terras, também de forma armada. Considerando que o contexto de Mariana também é meu contexto de vivência, pude perceber que as terras que não se conhece exatamente quem sejam os seus proprietários, são acusadas popularmente de serem da Igreja ou de empresas mineradoras. Essa acusação reside no fato de que, essas tais realmente detêm somas significativas. Parte dessas terras é ocupada por moradores ou por imigrantes, até por corresponder a terras com usos subestimados, improdutivos e inabitáveis. Essas terras, que se transformam em terras-de-ninguém, atraem olhares e querências no sentido de ocupá-las, viver nelas ou transformá-las em retorno financeiro, vendendo-as. Esses interessados podem ter reivindicado tais terras, podendo ter sido corresponsáveis pela intensificação da tensão. O que gerou, por consequência, a impulsão ao fazer-se visto, por parte dos assentados, no sentido de buscar a resolução do conflito. O fazer-se visto é que dá sentido à disputa e à tensão por voz. Percebi que tais assentados se inseriram em discussões políticas em torno da distribuição de terras e no direito ao acesso a terra, quando souberam da forma institucionalizada de reivindicação de terras para fins de reforma agrária. A reforma agrária passou a fazer parte de seu contexto quando ainda se tratava de querência: o querer ser beneficiado por ela, através da política de assentamento. Foi nesse momento que souberam da existência de movimentos sociais e de sindicados de 78 trabalhadores rurais, tais como o MST e a CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, permitindo possíveis conselhos acerca da forma como comportar-se nesse cenário político. Essa forma de inserção no discurso político inventou a visibilidade que se mostrou necessária para que, as situações que já estavam há tempos em processo de tensionamento, fossem de fato consideradas como merecedoras de atenção por aqueles que poderiam potencialmente contribuir para cessão de conflitos. O trecho seguinte de O Monumento (1990) pode ser interpretado de duas formas, dentre outras possíveis. Diante de todos estes fatos, o Prefeito [nome] ressalta a importância de que o comportamento dos moradores do Cafundão se mantenha pacífico, aguardando as decisões que estão sendo tomadas pela justiça e, principalmente, a legalização do uso de terras” (O MONUMENTO, 1990, p.03) A palavra pacífico pode carregar dois grupos de significados. O primeiro reside na ideia de esses assentados continuarem a não representar reação armada, frente às ameaças, permanecendo na defensiva dos conflitos, esquivando-se. E o segundo grupo abarca uma ideia de concebê-los como amorfos, aqueles que devem continuar esperando por uma ação de outrem, capaz de resolver por eles o conflito. E esse outrem emerge pretensiosamente como o outro-prefeitura, o outro-prefeito. O primeiro grupo de significados que remete à ideia da reação não-armada, de certa forma legitima a reivindicação por terra, ainda que se tenha a proprietária legal dessas. Já o segundo grupo, concebe-os como grupo-dominado, que espera por ação governamental. Em relação a essa composição de identidade coletiva dominada, já se discutiu possuir problema por coabitar com as oposições binárias que só servem para fins de autolegitimação. A legitimidade da reivindicação é a grande questão do histórico de luta pela terra desses assentados e da construção do assentamento Cafundão, por levar em conta as noções de propriedade jurídica da Igreja se relacionando aos sentidos e às vidas que acontecem nos lugares. III.4 A Terra: questão de pertencimento. De quem era a terra, antes de ser assentamento? Rememoro essa indagação. Elucidei sobre a propriedade jurídica pertencendo à Igreja. Reforcei que essa Igreja possui 79 propriedades por todo o território que compreende a Arquidiocese de Mariana. Não pretendo, com esse reforço, tentar justificar as apropriações de terras e de espaço feitas forçosamente, passando-se por cima do sentido legal dado ao direito ao mantimento de propriedade. Possuo a pretensão, ao contrário, de levantar a questão em torno da necessidade de fazer valer a função social da terra, seja essa terra pertencida aos grandes fazendeiros, seja à Igreja e a outros proprietários. Somado a tudo isso, emerge uma noção de estimável importância que se arrola aos significados que essa terra possui a esses que são hoje assentados. Os assentados e assentamento Cafundão se envolvem em uma atividade que além de manter suas sobrevivências, foi a responsável por eles serem considerados como assentamento consolidado, no sentido dado pelo INCRA de conseguir se autossustentar e de não-depender vitalmente de políticas governamentais (SIPRA, 2011; DOU, 2002). Essa atividade se traduz como saber local e que pertence a esses assentados há gerações. Trata-se da produção de panelas de pedra sabão, feitas a partir do torneamento da rocha esteatito. Os assentados vendem as panelas para a população do município de Mariana, e têm se inserido no comércio que se estabelece a partir do turismo. Perguntei sobre como está a produção de panelas depois da criação da Associação. Eu acho que agora, como nós estamos vendendo fora, e também a gente nunca usou a panela de cobre, é a primeira vez, têm uns dois meses que estamos usando o cobre, agora a gente está tendo mais resultado. E os tapetes, como estamos vendendo fora, está bem melhor. Bem melhor agora. Por que antes nós vendíamos por aqui. Aí, a gente tinha um tapete assim, [aponta] nós vendíamos por 20 reais. Só que a mão de obra e os negócios que foram gastos, nós não pusemos. E aí pra receber era dois, três meses. Nós pegávamos cheque e não tinha fundo. Aí tinha que esperar mais um tempo, né? Aí, esses negócios. Aí agora, com associação, nós pomos o preço e só vendemos por esse preço. E como também, nós temos lugar pra entregar fora, então a gente fica com aquele dinheiro, dá pra segurar a mercadoria. Mas quando a gente vivia na mão dos pessoal lá fora [do atravessador e do comerciante], até pra fazer a compra, nós compravámos no armazém deles. Por que abatia tudo nas contas, né? E nós nunca pegávamos no dinheiro. Ah, não, era ruim demais! Aí não, agora que está melhor. Agora se precisa de uma coisa na loja, paga com dinheiro (FALA DE SR. ASSENTADO TRANSCRIADA A PARTIR DE ENTREVISTA GRAVADA). É mantida, contudo, uma horta que contribui para diversificação e qualidade da alimentação. Os alimentos básicos, tais como o arroz, o feijão, o óleo e outros, são adquiridos a partir da renda obtida da venda de panelas. A produção de panelas é feita por boa parte dos 80 assentados, que estão organizados em uma Associação, sendo que os outros trabalham em outras atividades, inclusive em mineradoras, no município. Essa Associação funciona através do compartilhamento de máquinas e de materiais, relativizando-se a distribuição de lucros e o gasto com matérias-primas – tais como, o bloco de rocha esteatito e alças de cobre – a partir do volume da produção. É importante destacar que essa atividade garante aos assentados um poder de negociação de seus produtos, tendo-se em vista que eles lidam com concorrência direta oriunda da produção dos mesmos produtos que são característicos do distrito em que estão inseridos. No Relatório elaborado pela Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais CETEC (2006), de Avaliação das Condições Existentes para a Estruturação do Desenvolvimento Regional Auto Sustentado, são expostas as condições verificadas pelos representantes desse órgão e que revelam profundas distinções do grau tecnológico e financeiro investido na atividade de produção de panelas de pedra sabão. Peço licença para expor tais descrições das características que, apesar de apresentar-se aqui como uma extensa citação, fez-se necessário como mais uma forma de representação do olhar que se teve sobre o assentamento Cafundão e, também, sobre a principal Empresa do distrito de Cachoeira do Brumado, que converge à tipologia da produção. Localidade: Cafundão Empresa: Associação Cooperativa de Cafundão: Fomos atendidos pelo presidente da ACC [...]. As instalações são todas da ACC e reclamou varias vezes da falta de matéria prima, que as empresas grandes estão bloqueando tudo. Estão especializados na produção de panelas, sendo que alguns cooperados trabalham nas lavras, já desbastando os blocos para o formato mais apropriado uso nos tornos manuais. Outros trabalham na área de produção, onde havia 3 ou 4 tornos. A produção de panelas, tal como é feita hoje, gera enorme quantidade de pó e desperdiça muita matéria prima. Mostrou estar extremamente interessado em testar o torno descrito pela Sra. Ceres, que permitira que o mesmo bloco suporte a fabricação de 2 ou 3 panelas de tamanho diferente, enquanto hoje só se consegue fazer uma. Toda a venda é feita através de “atravessadores”, já que não tem nenhuma estrutura formal de vendas. Uma panela que ele vende por R$ 12 é vendida no mercado por R$ 40, no mínimo. A Cooperativa tem 12 sócios e está em operação há 6 anos. A EMATER foi muito importante na fase inicial, tendo ajudado muito. A Prefeitura também tem ajudado no transporte de matéria prima, usando caminhões da Prefeitura. Atualmente a ACC faz cerca de 40 panelas por dia e cerca de 1.000 por mês. Se tiver matéria prima, poderia chegar a 70 panelas por dia. Vende também panelas semi acabadas, que outras pessoas terminam e colocam as cintas de cobre e alças. 81 Localidade: Cachoeira do Brumado Empresa: xx: Fomos recebidos pelo Sr. Mário, que está há 60 anos no ramo. È um grande líder local, já tendo sido vereador durante 14 anos e ter feito um projeto de plantação de pita para substituir o sisal que vem importado da Bahia, já que a região fabrica também tapetes de sisal, artesanais. Também reclamou da falta de pedras e da qualidade que tem encontrado, pois as grandes empresas compram tudo. Tem usina própria para gerar energia para sua fabrica, tem pousadas em Cachoeira do Brumado e tem um filho dedicado às vendas, enquanto ele gerencia a produção, tendo 10 empregados na fabrica e mais 10 nas lavras. Informou que a cidade pode produzir 2.000 panelas por dia (sua empresa é especializada neste produto também), e que há cerca de 500 a 600 pessoas trabalhando neste ramo de negócios. Que a região tem 250 tornos, sendo que normalmente, existem uns 50 parados para manutenção ou por falta de material. Existe uma Associação de Artesãos, mas gostaria de criar uma Cooperativa, para beneficiar mais os produtores. Cachoeira do Brumado tem, além de artesanato em pedra sabão e tapetes de sisal, alguns artistas que trabalham com madeira, fazendo esculturas de muito boa qualidade. Segundo ele, não há ricos, mas ninguém esta desempregado. Mas externou a preocupação com a falta de apoio local, seu projeto plantação de pita, mesmo distribuindo de graça as mudas, não teve sucesso, A compra de sisal na Bahia custa R$ 30 mil para uma carreta com 15 toneladas. Tentou exportar para os Estados Unidos, mas teve problemas com a alça de cobre que foi barrada pela alfândega e os produtos chegaram todos quebrados. Indicou que precisa de maquinas para recompor as lavras após a extração de pedras, mas que os artesãos não tem recursos para isto. Conseguiu que fossem feitas 90 fossas sépticas acima da Cachoeira do Brumado, um ponto turístico interessante próximo à sua fábrica e agora a água está limpa (CETEC, 2006, p. 30-32). A despeito dessas diferenças nos níveis tecnológicos, chamou-me a atenção a maneira como os assentados representam essa concorrência direta, e em grande medida desproporcional, por qual passam cotidianamente. A visão que possuem do Cafundão-debaixo, os 70% das terras que não são assentamento, em relação a eles próprios é o conflito que surge a partir dos privilégios que possuem no que concerne às políticas específicas enquanto assentamento de reforma agrária. Cafundão-de-baixo é uma terminologia usada e apropriada no município para designar a parte inferior, no sentido topográfico, das terras. E, a partir das falas, parecem representar o baixo como nível que tenta aspirar a estar em cima, a estar em terras de assentamento, em terras conquistadas. Além disso, essa concorrência é de certa forma amenizada a partir do importante papel desempenhado pela Emater-Mariana na divulgação do trabalho que os assentados desenvolvem durante todo o ano. Principalmente, quando o Projeto Lumiar foi extinto. Esse 82 projeto tinha amplitude nacional e se pautava numa assistência a assentamentos, de forma a inseri-los em dinâmicas espaciais na realidade em que estão inseridos. [...] os últimos anos, foi implementado o Projeto Lumiar, que deixou de funcionar ao final do ano de 1999. Esse projeto objetivou fornecer assistência técnica aos assentados, pois esta era uma das suas reivindicações históricas. Tinha por finalidade maior: o desenvolvimento das famílias assentadas; a consolidação dos projetos de assentamento e sua inserção no Município ou região como unidade de produção competitiva, geradora de renda e emprego; suprir a necessidade de assistência técnica e a capacitação das famílias assentadas, no que diz respeito à implantação e desenvolvimento de culturas e pastagens, armazenamento e comercialização, criação de animais e introduzir novas tecnologias e ações de estímulo à organização dos assentados (ALBUQUERQUE et al., 2004, p. 82). Esse papel foi, de alguma maneira, assumido pela Emater em sua seção local de Mariana. Tal Instituição coloca os assentados em contato com potenciais compradores, além de viabilizar a participação desses em feiras de artesanato. A partir do Relatório da CETEC (2006), pode-se perceber o subsídio tecnológico usado no desenvolvimento do trabalho, que se dá de forma ainda bem manual e sem utilizar de muitos apetrechos tecnológicos. Essa forma de trabalhar acaba acompanhando o ritmo de ocorrências dessas feiras e também a frequência de vendas locais que estabelecem. A partir desse Relatório, uma equipe da CETEC detectou que esses assentados precisariam de tornos para conseguir continuar a produção, fazendo frente à concorrência por qual passam no próprio distrito onde estão localizados. Dessa forma, tornos foram fabricados e enviados ao assentamento, que também ganhou um curso de algumas horas para aprender a operacionalizá-los. 83 Figura 3: Galpão da Associação dos Assentados do Cafundão, onde se fabricam as panelas de pedra sabão. Ao fundo, o torno doado pela CETEC. No chão, algumas panelas em processo de feitura. Pelo chão, o pó de esteatito que utilizam como fertilizante, devido ao teor de calcário (arquivo pessoal). Porém, tais tornos estão hoje subutilizados, sendo usados somente para a confecção de tampas de panelas. Primeiro, de acordo com os assentados, esses tornos utilizam água para funcionar e, por esse motivo, fazem “muita bagunça”, como também “acaba demorando mais pra fazer”. Mas, o motivo percebido e que se destacou perante a minha indagação resume-se ao fato de que o fazer-panelas está para além da substância ou do volume da produção. Configura-se num trabalho no qual “trabalho para mim mesmo, não tenho dono”. Um trabalho que acompanha o próprio tempo de vida desses assentados. Estão atentos ao fazer-panelas como forma de angariar renda à família, mas há resistência na forma de trabalhar muito para ganhar mais. “Trabalhar não está com nada não. Aqui eu trabalho, ouço rádio, vejo o dia passar, janto e vou dormir”. “Quando eu quero, eu trabalho, quando eu não quero, mexo na horta e cuido das criações” (FALA DE ASSENTADO TRANSCRIADA A PARTIR DA CADERNETA DE PESQUISA). A atividade de torneamento da rocha esteatito, fazendo-se panelas ou outros produtos artesanais, se dá pela sua ocorrência exuberante nessa região. Como pode ser percebido no mapa a seguir, o assentamento Cafundão está localizado em meio a um campo de mineração. Essa localização, em meio ao campo de mineração, permite o próprio desenvolvimento da 84 atividade. Há pedreiras, que as concessões de lavra não lhes pertencem, bem perto do assentamento. Eles compram o bloco rochoso através da Associação e trabalham durante dois a três meses. O curioso é que, quando indagados sobre quanto conseguem obter da venda de panelas, eles mencionam um valor sem extrair os custos da produção. Ou seja, falam que conseguem até dois mil reais, sem considerar que gastam no bloco rochoso, a cada dois meses, cerca de dois terços desse valor. E isso por percebido através da mudança da forma como se fazia as perguntas. 85 Mapa 1: Área do assentamento Cafundão e campo de mineração. Elaborado por mim. 86 Essa localização, além de favorecer o desenvolvimento, poderia ter sido também causador de conflitos. Esses assentados já se utilizavam de pedreiras dessa região, muito antes da reivindicação oficial de terras, ou seja, patenteado junto ao INCRA. Aliás, estes mencionam o conflito na extração de esteatito ainda hoje, revelando uma noção de território nem sempre associada à permissão jurídica ao uso, ou seja, obtida através da concessão de lavra. Parece haver mineradoras que se apropriam da pedreira e nem sempre visam à extração do próprio esteatito. III.5 Os assentados e o assentamento Cafundão: o ser-assentado. Contudo, o fazer panelas se configura em algo para além de ser mero ofício, se circunscrevendo em ponto central da história de luta desses assentados. Configura-se como saber local, pois “o meu pai já mexia com isso, o meu avô já mexia...” e gerações inteiras estão, de alguma forma, relacionadas a essa atividade (FALA DE ASSENTADO TRANSCRIADA A PARTIR DA CADERNETA DE PESQUISA). O fazer panelas revela-se como forma de vida, como trabalho, como cultura. Essa atividade preenche de sentido o cotidiano que se constrói em torno dela. Esses assentados estão presos a terra, e é especificamente a essa terra. Suas vidas se confundem com a história desse espaço: a panela, a mineração, a horta, o cotidiano. Vidas que parecem se justificar no solo do Cafundão, dada a forma como concebem essa atividade. Esse sentimento preso ao solo do Cafundão, como pertencimento e também como preenchimento de sentido de ser do cotidiano, parece ter motivado a própria luta. Aliás, ela já se dava e ainda se dá no cotidiano, na vivência, no entrecruzamento de espaços-tempos. Contudo, fala-se da luta pelo fazer-se visto, fazer-se notado, aquela que empreenderam na tentativa conquistar a visibilidade necessária ao cessar do conflito, principalmente armado, que ameaçavam suas vidas. A luta cotidiana desses que são hoje assentados conquistou evidência quando o discurso institucionalizado foi apropriado visando problematizar um outro discurso também institucionalizado. Fala-se de a política de reforma agrária servir para atender a uma reivindicação que aparentemente ia contra a noção jurídica de propriedade Entende-se, a partir desse tensionamento, um entrecruzamento de noções que se fazem necessárias à contextualização e ao preenchimento de sentido das políticas de assentamento que são pensadas num plano geral. Isto posto, vale indagar: se fossem oferecidas outras terras que não fossem essas, como haveria de ser construída a vida e o espaço desses assentados, que sempre viveram no Cafundão? Como iria se dar a efetivação de uma política de 87 assentamento, se as características desses que são hoje assentados não fossem consideradas? Qual o significado que outra terra teria se a eles fossem postas a compra? As palavras-muletas da geografia podem oferecer subsídios a possíveis interpretações da história de luta espacial desses assentados e serão aqui chamadas. A noção de lugar pôde preencher de sentido o território concedido através da política de assentamento. Esse lugar foi construído no entrecruzamento das características regionais, expressas principalmente através da ocorrência da rocha esteatito. Como também, paisagens mnemônicas construíram o saber local e é responsável por sua apropriação que vai se ressignificando com a construção do espaço-tempo desses assentados. A inserção política no discurso da política de assentamento propiciou que tais assentados despertassem para o fazer-se visto, reivindicando territorialmente o seu próprio lugar. É por isso mesmo que a conquista por voz possui papel significante, por convergir o anseio pelo ser-assentado em terras que já são os seus lugares. A luta, através da inserção política e do fazer-se visto, foi também a responsável pela invenção do ser-assentado a essas pessoas que já possuíam em si a noção de pertencimento ao Cafundão. O ser-assentado emerge como uma identidade ressignificada, na medida em que se pauta naquela já construída, de forma atravessada a construção de espaço, sendo lapidada pelas novas condições que conquistaram. O ser-assentado carrega em si a luta por qual empreenderam, indo além de ser mera designação ao beneficiário da política de assentamento. Percebi que há o despertar em vários sentidos – político, econômico, social – para a abertura de possibilidades de ressignificações sobre eles mesmos, lhes trazendo ou angariando melhores condições de vida. Esses assentados, por exemplo, têm diversificado a tipologia de sua produção, estendendo o fazer-panelas para a confecção de formas de pizza, panelas de pressão, vasilhames, e aparato para fondue. Como também, estão deixando de depender de atravessadores e vendendo seus produtos diretamente ao consumidor final e em feiras de artesanato. Possuem, para tanto, um cartão de identificação que fazem questão de apresentar como se fosse uma verdadeira carteira de identidade à apresentação do ser-assentado. Nesse sentido, o ser-assentado parece se configurar numa noção identitária presa ao lugar-Cafundão, que agora passa a ser o lugar-assentamento-Cafundão. Esse território do assentamento parece funcionar como limite criado por eles. Quando estão fora do assentamento se sentem desprotegidos, vulneráveis. Os territórios que se compreendem no exterior do assentamento são concebidos como mundo que é perigoso e desconhecido, por não possuir a identidade conhecida do Cafundão. O lugar surge como ponto de encontro e de reconhecimento identitário. A história de luta no Cafundão inscreveu uma força a eles inerente, mas que parece estar presa na terra. Com as mudanças que vem ocorrendo, com o 88 contato deles com os-de-fora, incentivado pela Emater, a partir, por exemplo, da inserção na rede de turismo, tem contribuído para ressignificação deles próprios. Essa recriação de si vem transformando os limites do assentamento em fronteiras, onde o lugar permanece forte, mas os limites para além do assentamento tem se hibridizado. O ser-assentado vem se ressignificando com o movimento que o próprio assentamento tem conquistado. Estudos mais aprofundados que revelem dinâmicas, identidades, relações de vizinhança e contradições internas do assentamento, e isso tudo surgindo ou se ressignificando a partir do próprio movimento do assentamento e dos assentados, configuramse pertinentes e poderiam tangenciarem-se a esse próprio estudo, com viés de apreensão espacial. Contudo, destaco um movimento percebido. Refere-se a uma assentada, nascida alguns anos antes da criação do assentamento, que conquistou no final do ano de 2011 a possibilidade de estudar na Universidade Federal de Minas Gerais fazendo o curso de licenciatura para a educação no campo. Movida pelo sonho de poder trazer ao assentamento a possibilidade de letramento, suas idas à capital - que se dá em intervalos de 15 em 15 dias - é tarefa coletiva de auxílio. Eles se ajudam para conseguir o dinheiro necessário à compra de passagens rodoviárias, alimentação e demais materiais que são precisos, tais como fotocópias, livros, etc. O ser-assentado foi percebido como orgulho, como mudança de uma vida para outra, como conquista de seu próprio lugar. A luta, com conflitos armados cessados, continua cotidianamente, na sobrevivência, no trabalho, no movimento tenso de construção do espaço. Para apreender as representações dos assentados, eu tive que abrir-me ao diálogo com outras e distintas formas de representação, e isso não se dando de forma escalonada. É por esse motivo que as narrativas, essas narrativas, tiveram que ser construídas considerando as representações de espaço dos assentados, as representações que se têm dos assentados e as interpretações e apropriações espaciais do assentamento Cafundão. Narrativas que se entrecruzam, se tangenciam, relevam-se mutuamente como sociogêneses. Narrativas que se somam dando sentido à dimensão da luta e a conquista por voz. Essas narrativas configuram-se como polifonias que se expressaram através de mim e por mim. Polifonias buscadas a partir de olhares que viam sobreamentos, sombreamentos de uma luta. 89 Considerações: aberturas e leituras. “Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti: que – só de um jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair – do fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí. E, me parece, o mundo se acabou. Ao menos, o daquela noite.” (Guimarães Rosa). Esta pesquisa possui movimento. Não há produtos no sentido de poderem ser apropriados com tons conclusivos. O produto desta pesquisa, que se configura como a sua principal contribuição, é a percepção de que as representações dessa luta que culminou no assentamento Cafundão estão pautadas justamente no tensionamento entre elas. As diferentes representações apreendidas ao longo desta pesquisa se conflitam umas com as outras. O olhar dos assentados sobre eles mesmos, os olhares que se têm dos assentados e as visões construídas acerca da luta pelo assentamento Cafundão se atravessam, dialogam-se, e vão se ressignificando a partir do próprio tensionamento e da sua rememoração. Essa textualização se configura como uma versão criada no tangenciamento das percebidas representações. Aquele diálogo proposto entre as formas gerais e as formas particulares de construção do espaço pautou o sentido de se conceber tais representações como formas particularizadas de representação de mundo e de luta. Geral e particular, se expressando como mundo e lugar, se atravessam, se imbricam, se dialetizam. De tal forma que foi possível perceber como a noção de lugar conflitou-se com o sentido geral da política de assentamento que, nesse caso, se pautou mesmo na consideração das particularidades do lugar. Fala-se da importância que essas terras possuem para esses assentados preenchendo de sentido a política de assentamento que, se fosse feita de outra forma, em outras terras, o serassentado talvez não estivesse entrecruzado ao lugar, ao pertencimento, às paisagens mnemônicas que reconhecem territorialmente esse lugar como seu. 90 As narrativas de vidas espaciais foram construídas a partir do atravessamento entre expressões coletivas e individuais da luta. Coletivo e individual se fundiram e se confundiram, através de representações apreendidas. Construí essa versão da história de luta do assentamento na consideração não somente do que falam os assentados acerca de sua própria luta. Houve a abertura em considerar o que se fala dessa luta e, por esse motivo, olhares diferentes compuseram a construção dessas narrativas. Portanto, esta pesquisa se debruçou justamente onde esse debate ou embate de representações é provocado. O embate se coloca no tangenciamento entre as formas interpretativas de se encarar essa luta e o sentido de tê-la empreendido. Por esse motivo, essa representação textualizada não pressupõe ser a versão conhecida ou clara de luta. Não se trata de uma composição da História do Cafundão, em seu sentido verídico e coeso. Busquei por sombreamentos que emergem do conflito entre representações. Sombreamentos que são como olhares particulares e que se entrecruzam com o que se quer ou se consegue ver. Sombreamentos que guardam em si o tensionamento entre as memórias da luta, que se expressam em rememorações espaciais, orais, documentais e também através de códigos culturais ou de expressões mnemônicas nem sempre passíveis de verbalização. O tangenciamento talvez não tivesse sido construído se não houvesse a orientação teórico-metodológica de conceber as narrativas de vidas espaciais. Essa metodologia, conhecida através de Alícia Lindón (2008), embasou a consideração de olhares diferentes sobre um mesmo tema que aqui é o assentamento Cafundão. Assim como, norteou a própria orientação teórica desta pesquisa, na medida em que se concebe a memória como construtora de espaço e de espacialidade. Além disso, permitiu, em alguma medida, o trânsito entre autores que elucidam sobre elementos que compõem o contexto que justifica uma política de assentamento, com a apreensão de representações que são feitas sobre a luta que trazem esses elementos na simbiose da invenção de outros construídos no lugar. Nesse sentido, esta pesquisa se assenta num terreno de instabilidades por estar debruçada sobre tangenciamentos. A despeito de conferi-la o desejável movimento, as narrativas foram construídas sem a propriedade discursiva inerente a estudos aprofundados. O olhar dos assentados sobre eles próprios foram apreendidos na consideração de seu tangenciamento com as representações espaciais. Dito de outra forma, o ser-assentado foi considerado nas fronteiras – ou no trânsito - em que se esbarra com as noções espaciais apreendidas. Ratifico que a proposta desta pesquisa não foi mesmo a construção da História do Cafundão, mas elementos sobre a construção da identidade do ser-assentado poderia 91 revelar ricas interpretações discursivas sobre eles mesmos e sobre seu atravessamento à construção de espaço. Destarte, essa instabilidade, ao contrário de impor-se como limite desta pesquisa, se perfaz como convite ao prolongamento das representações da luta. Isto porque, configura-se numa representação que, por isso mesmo, se tangenciará às outras formas de apreensão da luta. Aqui, reside o investimento de se ter voltado aos assentados e à historicidade de construção do assentamento, que ainda não havia sido contemplado pela academia. No entrecruzamento da história de luta e de espaço do Cafundão, essa monografia traz elementos que estão presentes na construção do espaço do próprio município e que, por isso, poderão servir de contribuição para a discussão acerca de sua governança se dando de forma entrelaçada a questões como religiosidade e conflitos fundiários. Como também, as narrativas que revelam tensões inerentes à criação do assentamento podem contribuir como uma forma de registro ou voz dessas tensões, tendo-se em vista que elementos que compuseram a sociogênese do assentamento ainda se fazem presentes na construção do espaço marianense, ainda que a ausência de gritos possa sugerir o silenciamento de vozes. É importante ressaltar, como abertura proporcionada por essa monografia, que há elementos que compõe a dinâmica do próprio assentamento, mas que aqui não se empreendeu uma análise de discursos a partir daquilo que poderia ser apreendido através de observação participante. Cito, por exemplo, a repartição dos lotes de forma diferente e conforme também as características do terreno, o que interferiu nos valores pagos por eles, e a forma como isso se reflete na dinâmica e nas contradições internas do assentamento. Como também, várias outras possibilidades discursivas ligadas a questões de gênero, divisões do trabalho, disputas internas ligadas à produção ou à liderança, já que são poucos aqueles que fazem as viagens referentes à exposição de produtos ou à apresentação do próprio assentamento como grupo social beneficiário de política pública. Essa textualização se pautou, portanto, na busca por polifonias, que foram sendo descobertas a partir dos sombreamentos percebidos pelo meu olhar. E esse texto se transformou ele mesmo em mais uma forma polifônica de expressão de sombreamentos – sombreamentos de uma luta dos assentados e assentamento Cafundão. Não há luz nesta pesquisa, e sim sombreamentos. 92 Referências Bibliográficas “Sus! Brio! Obstinemo-nos. 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