Diego Henrique Rodrigues
Algumas contribuições de Laplanche e de sua teoria da sedução
generalizada para o debate sobre a violência sexual infantil
A experiência de atendimento psicanalítico a crianças vítimas de abuso
sexual em uma instituição, como no Projeto CAVAS da UFMG 1, coloca o psicanalista
diante de alguns desafios como o risco de perder o foco na realidade psíquica do
paciente em função do contexto marcado por demandas externas ao setting em que essas
análises acontecem, ou o desafio de não criar uma dicotomia entre o evento traumático
do abuso e a sedução presente nas origens do aparelho psíquico. Esses desafios podem
ser pensados a partir das elaborações de Laplanche que nos apresenta uma lógica que
avança da “sedução restrita” à “sedução generalizada” e que fornece novos fundamentos
para a prática da psicanálise nesse contexto.
Um dos aspectos que torna mais complexa a intervenção nesse contexto se
refere ao fato de que os atendimentos realizados em uma instituição são marcados por
uma inevitável relação com outras instituições, como as instituições jurídicas. Isso
ocorre na medida em que já existem leis que definem o fluxo percorrido por esses casos
até chegarem ao consultório, o que interfere diretamente no tratamento que se configura
como um campo atravessado por demandas externas como pedidos de laudos
psicológicos por parte de autoridades, de relatórios para a escola e de todo tipo de
declarações para os pais. Da parte do analista, será preciso um grande investimento na
psicanálise para que o tratamento não perca o foco na realidade psíquica do paciente,
uma vez que outros personagens, além do próprio paciente, como seus familiares e até
funcionários de outras instituições como abrigo, escola e Conselho Tutelar, por
exemplo, precisem ser escutados para que o analista estabeleça uma base segura aonde
firmar a rede transferencial que dará suporte ao tratamento.
O que estamos chamando aqui de “abuso sexual” é algo retirado da
experiência de atendimento desses casos e o nosso objetivo é pensar algumas
ressonâncias suscitadas pelas idéias de Laplanche a partir da prática clínica. Tendo isso
em mente, é possível dizer que, rotineiramente, o tratamento se inicia com a história de
uma “sedução restrita”, nos termos de Laplanche, ou de uma “sedução infantil”,
expressão consagrada na obra freudiana, onde alguns artigos escritos entre 1882 e 1889,
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Projeto de Pesquisa e Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual, iniciado em
novembro de 2005 no SPA/UFMG e coordenado pela professora Cassandra Pereira França.
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contêm as bases da teoria da sedução. Laplanche postula novos fundamentos para as
idéias de Freud e propõe pensarmos uma “hierarquia das seduções” em três níveis: a
sedução infantil, a sedução precoce e a sedução originária.
A sedução infantil é a factualidade que caracteriza os estudos iniciais de
Freud. Para Laplanche, a força das idéias desse período estão na sua capacidade
explicativa, na possibilidade de oferecer uma teoria estreitamente vinculada com a
psicopatologia e por colocar em jogo três registros psíquicos essenciais: a
temporalidade, a localização tópica e os laços tradutivos que as cenas traumáticas
estabelecem entre si. Como ponto fraco, Laplanche assinala a questão de que uma teoria
restritiva da sedução deixa intacta a crença de que o trauma se produz pela
responsabilidade única de uma cena real e que contem em si todo o sentido dos
sintomas. O registro temporal abarca a concepção de um trauma que se efetiva em dois
tempos psíquicos distintos, ou sempre num a posteriori. Laplanche afirma que não é
necessário atribuir uma direção a esse mecanismo da causalidade psíquica, quer
progressivo ou retroativo, mas que seu valor está em pensá-lo na sua dinâmica própria
de jogo interpretativo, sucessivo e simultâneo, que os fatos estabelecem entre si no
mundo subjetivo e que obrigam o ego a um trabalho permanente de reconstrução
biográfica. Para Laplanche, o essencial do primeiro tempo do trauma não é a
factualidade, mas o seu aspecto de originário, de primário, de apoio. A fonte
traumatizante desse primeiro tempo é a sexualidade inconsciente do outro primordial
que veicula mensagens capazes de deixarem significantes enigmáticos que
permanecerão como restos, como objetos-fontes da pulsão sobre os quais será erguida a
tópica psíquica e, a esse trauma elementar, coincide o recalque primário. A participação
do recalque nos remete ao registro tópico da sedução infantil. Laplanche afirma que,
num primeiro momento, quando a criança sofre um ataque sexual externo proveniente
de um adulto, o máximo que ela poderá fazer para se defender psiquicamente é
enquistar essa lembrança. O ego ainda inexperiente da criança não consegue organizar
suas defesas para enfrentar um evento dessa magnitude e que se torna, por esse motivo,
traumatogênico. Paralelo aos registros tópico e temporal, Laplanche acrescenta o
registro tradutivo que, resumidamente, coloca em jogo a possibilidade do sujeito
processar psiquicamente um acontecimento por meio de uma sucessão de inscrições,
reinscrições e traduções à que este material está sujeito no psiquismo. Na clínica,
observamos a dificuldade dos pacientes em lidar com a magnitude do sexual que passou
a habitá-los após o abuso. É como se os grandes enigmas da sexualidade, como a
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sedução, a castração e a diferença sexual, lhes fossem injetados de uma só vez,
permanecendo, então, sempre em aberto, sempre sendo relançados, encharcados de
estranheza, perturbando os fundamentos da organização psíquica e empobrecendo as
funções egóicas do paciente.
Passando para o nível seguinte de sedução, a sedução precoce corresponde
àquela que ocorre por meio dos primeiros cuidados maternos com o bebê. Laplanche irá
dizer que: “O pai perverso, principal personagem da sedução infantil, cede lugar à mãe,
essencialmente na relação pré-edipiana.” (ibid; 128). Podemos pensar que esta é a
sedução que Freud deveria ter aprofundado, acrescentando que o contato corporal com a
mãe, além de erogeneizar e sexualizar a criança, também implanta mensagens que são
desconhecidas da mãe por provirem de seu próprio inconsciente. Laplanche localiza os
momentos em que Freud teria se aproximado dessa idéia: no ensaio de 1910 sobre
Leonardo da Vinci, quando afirma que a mãe intervém junto a seu filho com todos os
seus desejos recalcados; nas “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”
(1932), quando nos diz que é efetivamente a mãe que, no desempenho dos cuidados
corporais de suas filhas, quem desperta sensações prazerosas nos genitais da criança; e
no “Esboço de psicanálise” (1938), quando fala da sedução materna como aquela da
qual nenhum ser humano escapa. Para Laplanche, Freud teria pecado por omissão na
valorização da sedução precoce, ficando limitado a teorizar sobre sua ação apenas “no
órgão genital” e deixando de dar a devida ênfase para o inconsciente da mãe que é o
cerne de toda sexualidade.
Em relação direta com a sedução precoce, a sedução originária é, portanto,
a situação fundamental na qual um adulto propõe à criança significantes impregnados de
significações sexuais inconscientes. Esses significantes enigmáticos, apesar de estarem
intimamente relacionados com a origem do inconsciente, não devem ser compreendidos
apenas no sentido daquilo que ocorre primeiro mas, sobretudo, como sendo o que dá
suporte e sustentação para a existência dos outros dois níveis de sedução. Nas palavras
de Laplanche: “A sedução originária é a essência última das duas outras (...). Os
cuidados “maternos” ou o ataque “paterno” só são sedutores porque não são
transparentes, mas opacos, veiculando o enigmático.” (ibid; 137). Assim, o caráter
traumático da sedução originária está no aspecto inconsciente que essas mensagens têm
para o próprio adulto e que, por isso mesmo, despertam uma excitação sexual
impossível de ser simbolizada, compreendida ou processada pela criança. Quando essas
mensagens são inseridas na criança na forma de uma intromissão, isso coloca um
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enorme obstáculo ao trabalho tradutivo, pois se introduz no psiquismo infantil um
elemento estranho e refratário, produzindo-se o efeito desorganizador do trauma, cujos
restos não assimiláveis, paradoxais e excessivos submetem o sujeito a uma
traumatização permanente.
Assim, ao ampliar o conceito de sedução, Laplanche nos permite pensar os
casos de abuso sexual livres da dicotomia entre sedução restrita e sedução generalizada,
uma vez que a força do trauma não está apenas nas cenas de abuso ou na sedução
originária, mas, sobretudo, nos enigmas inconscientes que se nutrem tanto de uma
quanto da outra na realidade psíquica de cada paciente.
Referências:
FERENCZI, S. (1933). Confusão de línguas entre os adultos e as crianças. In: ____ .
Escritos psicanalíticos. Rio de Janeiro: Taurus.
FREUD, S. (1894). As neuropsicoses de defesa. (ESB, v. III).
_________ (1893 – 1895). Estudos sobre a histeria. (ESB, v. II).
_________ (1896). Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. (ESB, v.
III).
_________ (1986). A etiologia da histeria. (ESB, v. III).
_________ (1910). Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. (ESB, v. XI).
_________ (1933 [1932]). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. (ESB, v.
XXII).
________ (1940 [1938]). Esboço de psicanálise. (ESB, v. XXIII).
FUKS, L. B. (1998). Abuso sexual de crianças na família: reflexões psicanalíticas.
Percurso, São Paulo, n. 20.
LAPLANCHE, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
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Diego Henrique Rodrigues - Laboratório de Psicopatologia