ENSINO DE HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES:
DILEMAS PERSISTENTES
HISTORY TEACHING AND IDENTITIES CONSTRUCTION:
PERSISTENT DILEMMAS
Jean Carlos Moreno1
RESUMO
A questão da construção de identidades é um problema de longa duração para o ensino de História.
Ensinar história e formar identidades são projetos intrínsecos, inseparáveis em suas intencionalidades.
Esta problemática retornou, ainda com maior intensidade, à ordem do dia na primeira década do
século XXI. A presente comunicação tem por objetivo apresentar as reflexões e resultados incipientes
de pesquisa, em nível de doutorado, em desenvolvimento na Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (UNESP), sob orientação do professor Milton Carlos Costa. Com o título “QUEM
SOMOS NÓS? Apropriações e representações sobre a identidade nacional em manuais didáticos
(1971-2007)” a pesquisa procura relacionar a escolha de conteúdos e abordagens de editores e autores
dos manuais didáticos com os dilemas e discussões em torno da identidade por que passa a sociedade
brasileira contemporânea.
Palavras-chaves: livros didáticos; identidade nacional; cultura escolar.
ABSTRACT:
The question about the identity’s construction is a long time problem for the history teaching. Teach
history and educate identities are intrinsic projects, inseparables in their intentions. This problematic
returned, the intensity even bigger, in the XXI century first decade. Our presentation lens to show
research reflections and initial results of it, doctorate standard, developing in the State University
Paulista Júlio de Mesquista Filho (UNESP), oriented by professor Milton Carlos Costa. The research,
with the title “WHO ARE US? Appropriations and representations about national identity in teaching
materials (1971-2007)”, intents to consider the contents choices and the writers and editors approaches
relation to the dilemmas and discussions around of the identity that the Brazilian society lives
nowadays.
Keywords: textbook, national identity, school culture.
Em sua edição de junho de 2010, uma revista de grande circulação em bancas de jornal, a
Superinteressante, do grupo Abril, trazia como matéria de capa, a seguinte chamada “19 mitos que
você aprendeu sobre o Brasil”. Logo abaixo vinha a legenda “Saiba como uma geração de
historiadores está reescrevendo tudo que nos ensinaram na escola”. Na referida capa, uma única
1
Doutorando em História e Sociedade pela UNESP. Professor de Metodologia e Didática do Ensino de História
na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Líder do Grupo de Pesquisa Ensino de História (UENP).
ANPUH-PR; DEHIS – Irati. Anais do XII Encontro Regional de História e VI Semana de História: Regiões, imigrações, identidades, de 09 a
12 de Outubro de 2010. ANPUH-PR, UNICENTRO: Irati, 2010. ISSN: 2178-8588. Disponível em www.eventosanpuhpr.com
imagem: uma banana (sim: um dos mitos que os novos historiadores estão derrubando é de que a
banana seria nativa do país).
Para além deste lado tragicômico, a matéria principal, assinada pelo jornalista Leandro
Narloch, autor do Guia Politicamente Incorreto2 da História do Brasil, pode nos fazer pensar sobre os
usos sociais do discurso histórico e, mais especialmente, sobre as relações entre a história escolar e a
história acadêmica. No editorial da revista, Sérgio Gwercman, diretor de redação, apontava a
“fragilidade de alguns conceitos que aprendemos na escola”, a importância de “não se deixa enganar
por falsas verdades” e o propósito da matéria de revelar “o verdadeiro passado do Brasil” (grifos
meus). Embora prolixo, o eixo central do texto de Narloch assentava-se sobre questões relativas à
escravidão e à situação de africanos e indígenas na América Portuguesa.
Evidentemente que o discurso da revista não paira no ar e está em relação com um contexto e
com outros discursos que circulam no mesmo período. Ainda que não revele no artigo, Narloch está
dialogando, nitidamente, com um momento histórico permeado por discussões e polêmicas que giram
em torno dos usos do discurso histórico no presente, em especial com as questões suscitadas desde a
publicação da Lei nº 10639, 09 de janeiro de 2003 sobre a obrigatoriedade do estudo da História da
África e cultura afro-brasileira e suas decorrências3.
Há algum tempo os pesquisadores constatam que “o passado tornou-se, em função de
memórias concorrentes, objeto de interesse e de uso político de muitos grupos, independentemente da
ação ou explicação dos historiadores (ABREU; MATTOS; DANTAS, 2009, p. 181). No caso
específico, dos discursos sobre as desigualdades étnico-raciais, estamos, claramente, diante de um
passado que se recusa a passar.
Como um ato eminentemente político, qualquer projeto educacional - e o discurso histórico
escolar é um deles - revela sempre um posicionamento sobre quem somos e quem desejamos ser.
2
Pelo pouco que conseguimos apurar, até este momento, os “Guias do Politicamente Incorreto” não são uma
invenção brasileira, mas fazem parte de um conjunto de ações, ou melhor, de reações da tradição conservadora
norte-americana às conquistas das chamadas minorias que se processam desde os finais dos anos 1960, dentre
elas, direitos civis, políticas de reparações à escravidão, feminismo, discurso ecológico-ambiental, etc... Assim
tem-se The Politically Incorrect Guide to American History; The Politically Incorrect Guide to Islam; The
Politically Incorrect Guide to Women, Sex, and Feminism; The Politically Incorrect Guide to Hunting; The
Politically Incorrect Guide to The Sixties; The Politically Incorrect Guid to the Vietnam War. A análise ainda
incipiente destas obras mostra que seus autores se aproveitam das fragilidades da história oficial e,
especialmente, de uma história “à esquerda” (com relação à participação popular e às desigualdades sociais) para
instaurar um discurso relativista, utilizando em seus textos resultados de análises acadêmicas, ou, nas suas
palavras, “científicas”.
3
Refiro-me à Resolução nº1, de 17/06/2004, do Conselho Nacional de Educação, que institui as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e à Lei nº 11645, 10 de março de 2008 que inclui os Povos Indígenas, bem como a uma série de ações
e debates que vêm se procedendo em torno deste assunto.
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12 de Outubro de 2010. ANPUH-PR, UNICENTRO: Irati, 2010. ISSN: 2178-8588. Disponível em www.eventosanpuhpr.com
1. Quem Somos nós?
As discussões sobre quem somos nós, os brasileiros - na busca de uma identidade nacional -,
foram colocadas e recolocadas em pauta desde o século XIX. Movimentos sociais, artísticos, culturais
e mesmo o próprio Estado propuseram diversas rearticulações sobre o tema em torno de “o que” (ou
quem) o Brasil e os brasileiros foram, são e se tornarão.
No mundo acadêmico não foi diferente. Em trabalho que já completa uma década de
publicação, José Carlos Reis analisou trajetórias de intelectuais cujos trabalhos, ensaísticos e
acadêmicos, produziram impactos significativos sobre a imagem do Brasil como Estado e como
Nação. Como fio condutor tomou as diferentes maneiras de perceber o tempo histórico: “nas
interpretações sucessivas percebem-se as concepções diferenciadas do tempo histórico brasileiro que
em cada momento da história do Brasil puderam ser formuladas” (REIS, 2002, p. 13).
Em tom poético, mas não menos profundo, Alberto da Costa e Silva também nos mostrou que
passamos um século XX inteiro a debatermos e nos debatermos na busca de uma auto-imagem que nos
trouxesse certezas sobre nossos rumos e decisões em cada presente vivido. De Afonso Celso a Roberto
DaMatta, de Nina Rodrigues a Florestan Fernandes, de Silvio Romero a Darcy Ribeiro... o que estava
em jogo não eram apenas as representações em torno de um passado colonial - com o qual se deveria
romper ou reaproximar -, mas o projeto de um porvir, mais ou menos distante:
(…) Foi, aliás, em busca do futuro que passamos todo um século a
indagar quem somos, e o que queremos ser, e a projetar imagens de
nós mesmos, espelho contra espelho. A cada sístole e diástole desses
cem anos corresponderam visões otimistas e pessimistas, barrocas e
cotidianas, esperançosas e desalentadas. Pois a cada momento – o da
Belle Époque, o da Revolução de 30, o do Estado Novo, o da
redemocratização, o do dia seguinte ao suicídio de Getúlio Vargas, o
do desenvolvimentismo dos anos 50, o do regime militar e o da
segunda redemocratização – refez-se o retrato do Brasil. (SILVA,
2000, p. 38)
Todavia, ainda que tenham mudado, ao longo do tempo, a linguagem com que nos
descrevemos e o país sobre o qual se dissertava, não há como negar alguns pontos de permanência,
alguns temas gerais por onde giram os debates seja no mundo acadêmico, nas discussões em torno da
escolarização, na mídia, nos movimentos culturais e sociais, nas campanhas do Estado e no imaginário
da população.
Em torno do ano 2000, diante das comemorações e protestos pelos 500 anos da chegada dos
portugueses ao Brasil, realizaram-se diversas pesquisas de opinião - empreendidas por grandes
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institutos4 ou por pesquisadores acadêmicos - a fim de perceber as representações que os brasileiros
constroem do seu país, de sua história e de si mesmos. De modo geral, o que se constatou foi a
sobrevivência de alguns mitos, cânones, em torno dos quais, as repostas tendiam a se concentrar. A
democracia racial, a sociedade harmônica, as grandezas naturais, a representação homogênea da
nação, etc. constituem uma espécie de núcleo duro de representações que os brasileiros, não obstante
as constantes transformações, projetam como espelho social.
Não são poucos os autores que vêem o estabelecimento destas representações a partir da
consolidação do Estado brasileiro no século XIX, mais especificamente na produção do IHGB 5 Instituto Histórico e Geográfico Nacional - e do Romantismo6. Em um período no qual ex-colônias e
até novos e velhos Estados europeus, buscavam razões históricas, lingüísticas, étnicas e religiosas para
construir imagens de unidade, o recurso à História, à Geografia, à Literatura e à produção artística se
consolidou.
Na procura de uma “nacionalidade essencial”, uma identidade sem nuances e feita de
continuidade (SCHWARCZ, 2003, p. 356), uma visão romântica de nação - espaço homogêneo do
território, tempo homogêneo da historia nacional, cultura homogênea em toda a população
(NOVAES, 2003, p. 12) – foi construída e se estabeleceu, com auxílio da produção acadêmica, com
força de “verdade” histórica7.
Reelaborada, conforme o contexto, a Nação, construída pelo romantismo e entendida como
um “nós” coletivo, torna-se um elemento de identificação onipresente a impregnar a vida social,
mesmo em seus aspectos cotidianos (ROSA, 2008). Esta permanência tornou-se objeto para diversos
pesquisadores, entre historiadores, antropólogos, psicólogos, etc. Dentre tantas, destacamos algumas
interpretações advindas da filosofia - CHAUÍ, 2000 - e da análise do discurso - ORLANDI, 2001.
Ao percebê-lo como produtor e produto de uma consciência, ainda que difusa, de
pertencimento, Marilena Chauí considera que o mito fundador “oferece um repertório inicial de
representações da realidade e, em cada momento da formação histórica, esses elementos são
4
As mais conhecidas são do Instituto Vox Populi (1995) e do CPDOC da FGV (1995). Estas e outras pesquisas
em torno do tema foram comentadas e analisadas, dentre outros, por SIMAN (2001), CARVALHO (1998),
OLIVEIRA (2000a e 2000b), CHAUÍ (2000), CERRI (2002).
5
Outros autores reconhecem a origem destas representações em obras anteriores como as de Rocha Pita
(CHAUÍ), Pero de Magalhães Gândavo e Frei Vicente do Salvador ( PAIVA, 2001).
6
É dentro deste movimento artístico literário, por exemplo, que se produzem o que FONSECA (2001) chamou
de trilogia visual da formação nacional, as pinturas: Primeira Missa no Brasil, Batalha dos Guararapes e
Independência ou Morte.
7
A origem comum, real, construída ou imaginada dos membros de uma nação é uma das bases do nacionalismo
do século XIX e esta construção, evidentemente, não é um fenômeno exclusivo brasileiro: "os dois últimos
séculos de história humana do planeta Terra são incompreensíveis sem o entendimento do termo 'nação' e do
vocabulário que dele deriva” (HOBSBAWN, 1991). Ver também: HOBSBAWN (1984).
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reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que
comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos vêm se acrescentar ao
significado primitivo)” (op. cit. p. 10). Por outro caminho, Eni P. Orlandi analisa os discursos
fundadores como aqueles que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo de um
país. Para esta pesquisadora, estes enunciados “vão nos inventando um passado inequívoco e
empurrando um futuro pela frente (...) nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história de um
mundo conhecido.” (op. cit. p. 12).
Em nosso caminho incipiente, interpretamos os discursos sobre identidade como um exercício
de poder simbólico, – firmado no reconhecimento – que produz a existência daquilo que enuncia,
como bem já demonstrou Bourdieu (1989). A abordagem sobre este poder, esta magia social – tentar
trazer à existência a coisa nomeada – faz parte do convite de Bourdieu aos pesquisadores para incluir
no que se entende por real a representação do real, ou, melhor, a luta por – e entre – representações
que têm por fim impor sentido e consenso. “As lutas a respeito da identidade são um caso particular
nas lutas das classificações, pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer
reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio de fazer e
desfazer os grupos” (idem, p. 113).
Quer encaremos como discurso ou como mito (que, no caso, também se expressa pelo
discurso), o fato é que representações em torno do Brasil circulam socialmente através dos muitos
meios de comunicação que compõem a sociedade contemporânea. Um destes meios é o livro didático,
que, ao circular, em geral, com o aval do Estado, ganha status de oficialidade.
3. O Livro Didático e as identidades
Tomando o desenvolvimento de obras didáticas como um campo de produção, imposição,
circulação e apropriação de modelos e representações culturais nossa pesquisa, em andamento, intenta
analisar as apropriações dos discursos sobre a identidade nacional presentes na produção didática
recente da disciplina de História. Captar a historicidade deste objeto – o livro escolar e a identidade - é
também perceber o diálogo que ele estabelece com os discursos ou mitos fundadores consolidados e
reelaborados ao longo do tempo e, concomitantemente, compreendê-lo como um lugar onde escolhas e
opções, necessariamente, são feitas:
Cada uma dessas escolhas é (de)marcada por lugares e interesses distintos
(do escritor ao produtor, do copidesque ao consumidor) por seleções,
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argumentações, significações e subjetividades. Cada livro é escolha e
recortes, produções possíveis, inventários que ganham visibilidade. A escrita
dessa história é singular e plural ao mesmo tempo, tanto para cada autor,
quanto para cada leitor.” (OLIVEIRA, 2007, p. 68-69)
Desta maneira, é preciso entender o autor - ou a autoria8 – imerso em uma batalha de
percepções (GAY, 1988) e não tomá-lo como um demiurgo onipotente. Os limites para composição do
livro didático são muitos e entre eles encontramos o currículo prescrito ou oculto, a tradição escolar, o
espaço gráfico (tamanho da página, tamanho do livro) e o público alvo: avaliadores acadêmicos,
professores da rede pública e alunos (faixa etária, condição social, etc.). A imagem (dados,
representações) que autores e editores constroem destes limites e desafios é determinante para a
produção do livro.
Assim, consideramos que os autores são eles próprios receptores dos discursos que circulam
na academia, na mídia, nos debates políticos e educacionais, etc. Inclusive os discursos presentes nos
diversos livros didáticos estão em relação uns com os outros e, na tentativa de compreendê-los, é
preciso colocá-los em relação sincrônica e diacrônica.
No que tange à análise que envolve as rupturas com o modelo estabelecido no século XIX, a
maioria dos autores tem destacado a tese da permanência (VESENTINI, 1984; GLEZER, 1987;
SIMAN, 2001) que podem ser resumidas nas citações a seguir de Luis Fernando Cerri e Kazumi
Munakata:
A constituição da seqüência canônica de conteúdos, com raízes do século
XIX compõe o núcleo pouco permeável de informações/conhecimentos sobre
a qual as modernizações acabam por gerar apêndices e não uma
transformação intrínseca ao modo de selecionar conteúdos e contar a história
do Brasil. (CERRI, 2007, p. 83)
“[os novos livros didáticos] valeram-se de uma história consolidada, com
seus temas, períodos e personagens bem assentados, mas invertendo-lhes o
significado ou reorganizando-os mediante certos conceitos como modo de
produção (...) a história do vencedor com sinais trocados, continua sendo a
história do vencedor”. (MUNAKATA, 2001, p. 293)
8
Os estudos sobre manuais didáticos mostram que cada vez mais os livros são uma concepção e produção
coletiva e o peso da equipe de funcionários da editora vem crescendo ainda mais após a implantação do PNLD.
Stoddard (apud CHARTIER, 1990, p. 126) observa este fenômeno para períodos muito anteriores ao que
estudamos. “Façam o que fizerem, os autores não escrevem livros. Os livros não são de modo nenhum escritos.
São manufaturados por escribas e outros artesãos, por mecânicos e outros engenheiros, e por impressoras e outra
máquinas.”
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Renilson Rosa RIBEIRO (2004) dedicou-se a analisar a produção textual didática, desde o
século XIX até os anos 1980, no que diz respeito à questão da produção de discursos identitários. Para
ele, os livros didáticos seriam um “espaço privilegiado de disputas políticas de constituição de
identidades” com “diferentes personagens e modelos de interpretações em jogo – o jogo das
identidades” (uma batalha discursiva, diríamos nós).
Ainda dentro da concepção de Ribeiro, a categoria central, a chave para entender a
argumentação a respeito dos sujeitos históricos na chamada “História do Brasil9”, seria a raça. As
explicações para as ações de grupos e indivíduos, presentes nos livros didáticos, estariam baseadas
nesta categoria desenvolvida pelo pensamento evolucionista do século XIX. “Ao construir suas
representações do índio, português e negro, percebemos como os manuais escolares, em diferentes
contextos, fizeram uso do instrumento conceitual da raça para fabricar identidades estáticas, fechadas
e padronizadas destes grupos” (idem, p. 375).
Mas, nem tudo são permanências. Cabe ressaltar que as análises que enfatizam a continuidade
das representações engendradas no século XIX dedicaram-se aos livros produzidos no máximo até
meados dos anos 1990. Perspectivas recentes têm destacado o impacto da fixação de critérios e o papel
pedagógico e disciplinador do PNLD sobre a literatura didático-escolar no Brasil (GATTI JR, 2007;
CERRI, 2007). Membros da comissão avaliadora, em balanço histórico sobre o programa, apontaram
um salto qualitativo para os materiais da 2ª fase do ensino fundamental, especialmente a partir do
PNLD 2005: “o distanciamento entre os avanços historiográficos consensuais e a composição do
livro didático deixou de ser gritante, notando-se em muitas coleções a incorporação efetiva da
historiografia mais recente e reconhecida nos meios acadêmicos” (BEZERRA, LUCA, 2006, p. 44).
Será que esta argumentação é válida, também para os discursos identitários referentes à
pluralidade dos sujeitos sociais, seus conflitos e convivências dentro do território a que hoje
chamamos de Brasil? É possível ao discurso didático dar conta desta diversidade, sem produzir
enquadramentos e generalizações10?
As análises atuais sobre a história da educação e os manuais escolares têm demonstrado que a
produção didática nunca foi tão homogênea como aparentemente poder-se-ia supor. Desde Joaquim
Manuel de Macedo e João Ribeiro, os livros didáticos de História apropriam-se de maneira diversa da
historiografia e dos modelos de identidade, conforme o contexto em que estavam inseridos e a leitura
que fazem de seu público consumidor.
9
A América Portuguesa, nomeada nos Livros escolares como “Brasil Colônia”.
Poder-se-ia perguntar, também, se esta postura é desejável socialmente. Contudo, esta questão, por enquanto,
segue apenas como norte de fundo para a pesquisa.
10
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Tentando captar estas nuanças, com um olhar mais atento para as diferenças, sabemos de
antemão que não há continuidade pura sem mudanças; e também não há mudança pura sem
continuidades. O passado continua agindo depois da mudança, por mais radical que essa tenha sido
(REIS, 1998). A argumentação é válida, também, no sentido oposto: se a memória histórica fosse
assim tão radicalmente plena e homogênea, seríamos sujeitos condenados (como a mitológica ninfa
Eco) a repetir de modo infindável sentidos imutáveis (MARIANI, 2001, p. 41). Procurar não apenas
denunciar as permanências que, forçosamente, devem existir, mas tentar entender o porquê delas e
colocá-las em relação com as mudanças propostas em seus devidos contextos, é também seguir o
conselho de Febvre (1959) e “substituir a pergunta do juiz: é certo? pela do historiador: como se
explica que…”.
4. Alguns pontos de abordagem
Para perceber as apropriações, que fazem autores e editores de livros didáticos, dos modelos
de identidade em circulação, das prescrições curriculares e da produção historiográfica, bem como o
diálogo que estabelecem com a tradição escolar, nos diferentes contextos analisados, elaboramos uma
periodização11 prévia com o intuito, também, de estabelecermos a conexão entre este produto cultural
e o seu contexto de produção, acessibilidade e consumo (APPLE, 1995).
De 1971 a meados da década de 1980, temos um período que estamos entendendo,
aprioristicamente, como o de uma memória revisitada, em que, apesar de inexistir censura prévia aos
livros didáticos, encontramos, com a existência do Estado autoritário, mais permanências do que
rupturas com o modelo de identidade construído no século XIX e reelaborado pelos ideais
nacionalistas do Estado Novo (1937-1945).
Incorporada como política oficial a partir do Estado Novo, a idéia de democracia racial veio
se desenvolvendo desde o século XIX. Dentro desta concepção, a colonização portuguesa teria
estabelecido relações sociais suaves, com poucos conflitos, quiçá harmônicas. Junto com esta
constatação vinha o desejo de miscigenação que apagasse a herança cultural da escravidão. Já em
Varnhagen esta postura era muito clara.
11
É importante ressaltar que as fases sugeridas, além da provisoriedade inicial, são tomadas como ponto de
inflexão para facilitar a pesquisa, mas não as consideramos, de antemão, homogêneas, nem tampouco esperamos
encontrar rupturas drásticas entre umas e outras.
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“fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo se
combinem que venham desaparecer totalmente no nosso povo os
característicos da origem africana, e por conseguinte a acusação da
procedência de uma geração, cujos troncos no Brasil vieram conduzidos em
ferros do continente fronteiro, e sofreram os grilhões da escravidão, embora
talvez com mais suavidade do que nenhum outro país da América (...)”
(VARNHAGEN, p. 73-74)
Os livros didáticos da década de 1970 ainda herdam, como crença ou como meta, a ideia da
constituição de um povo uno, homogêneo, mestiço. Para os regimes autoritários seria ainda mais
essencial construir uma imagem positiva da nação sem conflitos e com unidade racial através da
miscigenação.
A miscigenação, não problematizada pelo livro12, que recebe visibilidade pela ilustração, torna
as relações sociais naturalizadas. Como afirma BUENO (p. 60), “a imagem recriada pelo ilustrador
transforma-se no “é assim que é”, ou “é assim que foi””. Evidentemente que não se trata apenas de
uma manipulação ideológica de cunho supostamente maquiavélico. Os autores e o corpo editorial
estão a compartilhar de uma “comunidade de sentidos”, um discurso sobre o Brasil e os brasileiros
bem sedimentado no imaginário social.
12
Os exemplos aqui são apresentados de forma isolada e descontextualizada, sem a devida referência a autores,
circulação, relação com programas públicos e o projeto da própria obra. Dentro dos limites do artigo, fizemos a
opção de traçar um panorama geral, sem explorar as importantes relações sincrônicas que são determinantes para
a constituição de cada livro abordado.
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A partir de meados da década de 1980 até 1999 teríamos outro momento em que o campo ou o
mercado simbólico13 está em aberto. A abertura política e a conseqüente reconstrução democrática dão
ensejo a debates educacionais e reformas curriculares em
que se expressa de maneira mais contundente o desejo de
romper com a tradição no ensino de História. Obras
tradicionais são reescritas utilizando, ao menos na
intenção, o mote central da redemocratização: a formação
do cidadão crítico e participativo. Outras, com menos
sucesso de público consumidor, são mais ousadas
buscando empreender periodizações diferenciadas e
propor rompimentos com a linearidade cronológica.
Neste período, buscaram-se teorias e discursos e
reformularam-se currículos com o intuito de formar
consciências, denunciar a realidade injusta e superar a
alienação que a censura dos militares aos meios de
comunicação proporcionava. Revelou-se a problemática
ideológica presente no ensino de História e incluíram-se
novas perspectivas, além das tradicionais, para explicar os
fatos.
13
A expressão é de BOURDIEU (1996).
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Os novos textos didáticos estavam inspirados em outros autores, dentre eles Caio Prado júnior
e, especialmente no que tange ao tema abordado, Florestan Fernandes. Nesta nova perspectiva não
havia espaço para idéias como a de democracia racial. A sociedade brasileira era marcada por uma
grande desigualdade e a escravidão era vista como profundamente destrutiva e nociva, tanto para suas
vítimas imediatas quanto para o futuro dos brasileiros como um todo (RIBEIRO, p. 363). Como
enfatizava Jaime Pinsky era preciso superar “a idéia de um Brasil sem preconceito racial, onde cada
um colabora com aquilo que tem para a felicidade geral. O negro com a pimenta, o carnaval e o
futebol; o imigrante com sua tenacidade; o índio com sua valentia” (PINSKY, 2002, p. 17). Os livros
passaram a enfatizar as relações desiguais e violentas que se estabeleceram no período de colonização
portuguesa, bem como as formas de resistência direta de africanos e indígenas.
A partir da década de 1990, demandas importantes começaram a amadurecer. Por um lado, as
discussões em torno da LDB, dos Parâmetros Curriculares Nacionais e do Programa Nacional de
Avaliação de Livros Didáticos (PNLD) acabavam por trazer à tona a problemática e os desafios que
envolviam a equalização de novas propostas para professores e alunos na lida diária com o ensino de
História. Concomitantemente, congressos, encontros e simpósios, nacionais e regionais, começaram a
reunir pesquisadores ligados à Didática, Metodologia e Prática de Ensino de História. Uma
comunidade nacional de pesquisadores passou a debater e trocar experiências em torno da História
ensinada. Um número maior de professores de Ensino Fundamental e Médio passou a freqüentar os
cursos de pós-graduação. A quantidade de dissertações e teses em torno do ensino de História
multiplicou-se. Discutiram-se as organizações curriculares, a utilização de novas linguagens, as
relações entre memória e História, os usos dos manuais didáticos, novas metodologias, etc.
Embora na prática escolar ainda viva-se um tempo de insatisfação, insegurança e instabilidade,
novas possibilidades vêm sendo investigadas. Relatos de ricas experiências, com estratégias de
motivação e, principalmente, de concretização de aprendizagem, têm ganhado espaço em revistas
especializadas. Novas pesquisas sobre como se dá a formação e a progressão da consciência histórica
dos alunos têm lançado novas luzes sobre a relação ensino-aprendizagem.
Seguindo uma tendência mundial14, neste período há uma discussão mais forte sobre a
diversidade cultural e a perspectiva de alteridade na escolarização. Os Parâmetros Curriculares trazem
um volume especial propondo o tema como um dos conteúdos transversais a todos os componentes
curriculares. Por outro lado, a crítica à globalização traz uma nova perspectiva sociológica para o
14
A Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jontien, na Tailândia, em 1990, apontava a necessidade
de reformas curriculares neste sentido.
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tema: para muitos autores, os artefatos culturais e os universos simbólicos que se globalizavam eram
ocidentais, e na maioria, norte-americanos (RAMOS. 2007, p. 95).
Mais tarde, a pressão dos grupos sociais faz vir à tona as Diretrizes Curriculares para a
Educação Étnico-raciais. Entre as suas demandas estava a de não tratar os diversos sujeitos sociais
apenas como vítimas da violência física ou simbólica. A própria historiografia corroborava neste
sentido ao salientar as estratégias, astúcias, resistências cotidianas e trocas culturais entre os diversos
grupos que conviveram na América Portuguesa.
A partir de 1999, então, quando tivemos a publicação da primeira avaliação do PNLD para a
segunda fase do Ensino Fundamental, sedimenta-se o objetivo de substituir os conteúdos vinculados à
educação patriótica pela disseminação de valores de estímulos à convivência social ao respeito, à
tolerância e à liberdade (GATTI JR, 2007. p. 29). Neste período, temos o aumento do peso de
expectativas e exigências da sociedade, o impacto da fixação de critérios pelo PNLD, a ascensão do
multiculturalismo, um dos eixos centrais dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a pressão de grupos
sociais, dantes alijados, para serem tratados como sujeitos de sua própria história, o próprio
amadurecimento da historiografia sobre a sociedade colonial e a escravidão (tema que tem grande
impacto nos discursos sobre identidade) e a profissionalização de editoras, que se tornam empresas de
grande porte, com enorme estrutura organizacional. Tudo isto, aponta para a possibilidade de uma
renovação das obras didáticas de História e, quiçá, para a rearticulação dos discursos sobre identidade,
da imagem do Brasil e dos brasileiros.
A coleção mais escolhida, nos finais da primeira década do século XXI, pelos professores das
escolas públicas de todo o Brasil, e uma das melhor avaliadas pelo PNLD (pontuação máxima em 8
dos 10 itens), o Projeto Araribá, da Editora Moderna, tentava conciliar as visões, até então vistas como
antagônicas, sobre a relação entre os grupos sociais. Sob os títulos “Resistência e Luta”, “Trocas e
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Conflitos” e o “Pioneirismo de Gilberto Freyre”, estabelecia-se a possibilidade de afirmar a dupla
faceta de resistência e convivência entre os diversos sujeitos.
O desafio a ser enfrentado por autores e editoras, contudo, é enorme. Construir uma imagem
positiva dos sujeitos sociais, cumprindo a finalidade político-social da escolarização, e ao mesmo
tempo atender às novidades historiográficas e lidar com a construção de uma identidade, um modelo,
uma tradição de longa data de pensar a História do ponto de vista de uma nação que teria nascido una
e homogênea desde os seus princípios acarreta dificuldades múltiplas para quem quer atender a uma
linguagem acessível para estudantes do ensino fundamental e ainda agradar ao seu público mais
objetivo: os professores e seus diversos níveis de formação dentro de um território gigantesco.
Considerações Finais
As disputas e interesses em torno dos manuais didáticos mostram que, para boa parte dos
envolvidos, a presença nos livros didáticos dá, como um discurso de autoridade, existência real às
identidades sociais. Classificar, caracterizar e falar sobre os outros, o normal e o diferente, significa
atribuir, não sem disputas, um sentido ao mundo social.
Ao abordar as relações entre a história reificada e a história incorporada, Bourdieu amplia suas
observações sobre a origem social das representações, ou melhor, das práticas culturais. Para ele há
uma história em estado objetivado, que se acumulou ao longo do tempo nos objetos, ferramentas,
instituições. Há também uma história que se tornou habitus, incorporada, inscrita nos corpos, noção
que se aproxima à idéia de segunda natureza de Norbert Elias. Esta permanência (o passado continua
vivo) restringe o universo dos possíveis. “Podemos compreender que o ser social é aquilo que foi; mas
também que aquilo que uma vez foi ficou para sempre inscrito não só na história, o que é óbvio, mas
também no ser social, nas coisas e nos corpos” (BOURDIEU, 1989, p. 100).
Os livros didáticos são um bom exemplo desta história incorporada, deste passado que custa a
passar. Mesmo diante da diversidade, constata-se que a mudança cultural implica investimentos e
esforços contínuos para todos os interessados não só no tema das identidades, como na educação
escolar como um todo.
Da mesma maneira, como bem demonstra o uso aparentemente sutil, mas revelador, do
passado e da pesquisa histórica pela Revista Superinteressante, não há como existir uma transposição
(ou uma vulgarização) pura e simples dos conteúdos produzidos pela academia. O terreno de
enfrentamento que envolve o uso social do discurso histórico, sobretudo a história escolar, é diferente
de seu contexto de produção original e, por vezes, obedece a finalidades diversas.
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Ao adotar, numa pesquisa, uma perspectiva diacrônica - por vezes arriscada, devido aos
muitos fatores envolvidos na construção da interpretação -, não se pode deixar de perceber que o
significado do discurso só pode ser apreendido no contexto de enunciação. Os livros didáticos são
depositários de demandas sociais e compartilham de comunidades de sentido diversas ao longo do
tempo.
De qualquer forma o tema é complexo e árduo, mas também promissor, pois nos faz divisar os
próprios interesses, aspirações, dilemas, medos e limites da sociedade brasileira contemporânea. A
identidade não é algo imutável, mas em processo. Cada sujeito, individual e coletivamente, insere-se
neste contínuo de redefinir-se e de inventar e de reinventar a sua própria história.
Pensar os livros, a escola, o ensino, as identidades... é também pensar as fronteiras e as
possibilidades do espelho social, que estendemos a nós mesmos, numa projeção em que passado,
presente e futuro estão sempre interligados.
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