Sodré parou, recuou dois passos, encafuou-se atrás de um pos- te ao notar que Valdemar vinha em sua direção na Rua do Estácio, altura do Bar do Apolo. Deu para sair na escama, dobrar a esquina sem que o outro o percebesse. Caraminholou, iniciou a volta ao quarteirão para surpreendê-lo pelas costas. Manhã deserta na zona do baixo meretrício. Se matasse esse rival, que era preto nesta vida, não teria problema com a polícia, já que era branco e funcionário do Banco do Brasil. Muito por esse motivo acatou a ideia de Valdirene. Nunca pensou em matar ninguém, nem mesmo Brancura. Não fosse o amor, não cometeria esse crime de morte. Ia naquela hora tentar matar Valdemar à navalha. Se precisasse, pregaria chumbo nele, já que levava às costas, presa ao cós da calça, uma pistola para qualquer eventualidade. Tentaria matar com arma branca porque chama menos a atenção. Tinha de acertar logo a jugular, num ataque único, sem produzir muita dor. Nada de um monte de golpes para uma morte só. Não queria jorramento de sangue, não suportaria gente que demorasse a morrer em suas mãos. A bem da verdade, Brancura era que tinha de ir primeiro. Era ele o cafetão dela, o perigoso, o malandro velho do Largo do Estácio, cobra de duas cabeças, faca de dois gumes. Valdemar era só um bobo apaixonado, moleque novo, sem real noção das desavenças da vida. No entanto, quando mulher cisma não tem jeito, ela não estava 1 minilivrosamba.indd 1 21/03/2012 09:54:50 Paulo Lins querendo mais Valdemar na face da terra. Tirá-lo de circulação era um modo de provar a ela seu amor e sua cumplicidade. Valdemar entrou no Bar do Apolo, pegou um revólver da mão de Brancura, colocou-o na cinta, foi à esquina montar tocaia. Brancura foi para o sobrado de uma de suas putas para assistir a tudo de camarote. Poderia ter largado mão desse negócio de vingança, já que pensava em deixar aquela vida para trás a fim de seguir sua sina de fazedor de versos bonitos, de criador de melodias intocáveis; sina de fazer samba que nem Bide, Silva, Bastos, Baiaco, Edgar e tantos outros ali de sua área que tinham a arte como religião. Pra quê? Não ia casar com a virgem de seus sonhos? Então por que essa necessidade de vingança? O que nos leva a querer ser sempre o mais esperto? O maioral? Seu Tranca-Rua da Calunga Grande lhe dissera que, se ele cumprisse a sua recomendação, sua vida caminharia no rumo que ele sempre quis: arrumaria emprego, seus sambas seriam comprados e moraria no mesmo cazuá que a mulher que lhe dava prazer de verdade. Então, pra que ver o português morto nessa trama que bolou? Só para provar a si e aos amigos que era o mais malandro dos malandros? Coisa feia! Coisa de bobo. Na verdade, no fundo, no fundo, tinha certa desconfiança de que Valdirene gozava com Sodré. Também nunca apostou tudo na macumba, apesar de ter experiência suficiente para saber que sua vida espiritual também iria cair para um patamar de padrão vibratório sem nenhuma força para elevação de alma. Então, por que agia assim? Essa coisa de errar sabendo que está errando não é tolice de criança que não recebe corretivo de pai e mãe? De criança que faz esperneamento de raiva por qualquer coisa? O ser humano tem esses sentimentos de nada. Tem gente que se alegra com situações de força negativa. Um babaca de pouca fé. 2 minilivrosamba.indd 2 21/03/2012 09:54:50 Valdirene chegava lentamente ao Bar do Apolo. Olhos baixos. Estava sem leveza de ideias sobre os acontecimentos. Tudo se devia à sua beleza, ao seu jeito de corpo, à sua maneira de meter gostoso. Era dessas que deixava qualquer um de pica em pé mesmo depois de ter gozado várias vezes. Com ela, todo homem virava grande fodedor. Sempre a queriam de novo. Gostava de ser assim, talvez por isso ela vivia comprando roupas, cremes, batons, maquiagem, embora não precisasse: mulher que nasce pra ser gostosa não tem jeito. Não foi uma nem duas vezes que Brancura precisou dar corretivo de tapas e socos em caboclo que quis largar a família prometendo o que não podia pelo amor da negona. Ela bem que pensou em abandonar seu cafetão por causa das trapalhadas dele com a polícia, pela mania de querer passar a todos para trás e por aquele ciúme assassino. Se ainda não o havia deixado era por causa da segurança que ele oferecia ali na zona e porque lhe tinha amor. Um amor já malhado, muito chorado, de lances terríveis, mas ainda amor. Sentia pena de Valdemar, que a amava de verdade, só lhe queria bem. Não desgostava também de Sodré, e seu tesão por ele era grande: Sodré se parecia com Alves, o maior cantor de rádio da época, homem bonito, alinhado, cheiroso, que sempre transmitia sensação de limpeza. Pediu um copo de groselha, botou os olhos no movimento da rua. Viu Brancura butucolhando tudo através da janela. 3 minilivrosamba.indd 3 21/03/2012 09:54:50 Paulo Lins Antes de dobrar a esquina, a vontade de matar Brancura pegou grandeza em Sodré, com isso talvez nem precisasse matar Valdemar. Com medo, este fugiria, então não precisaria ficar com dois crimes nas costas. Outras vezes, movido pelos ciúmes, pensava em matar o garoto. Só não o fizera ainda por causa de Ernesto, a quem sempre teve consideração pelo fino trato que o homem dispensava a todo o mundo. Não sabia como ele podia ter um filho tão otário, tão metido a malandro. No fundo, estava cabreiro do porquê de Valdirene ter lhe pedido que acabasse com Valdemar. Assim, do nada. Será que era uma forma de lhe dizer que ele era o homem dela? Ou seria um jeito de fazer ciúmes em seu cafetão por qualquer motivo de mulher que fosse? Estava ele sendo usado? Se ela lhe pedira que matasse Valdemar, e ele acabasse com Brancura agora, ela ficaria com ele sem pestanejar? Era tarde para saber de tudo tim-tim por tim-tim: mataria Brancura logo depois que matasse Valdemar. Estava baratinado de bagaceira de orgulho ferido. Avistou-o chegando à esquina, tirou a navalha do bolso, iniciou uma corrida de ponta de pé. 4 minilivrosamba.indd 4 21/03/2012 09:54:50 “É por causa das palhaçadas, da cabeça-dura, da burrice de certas pessoas, que Deus e os santos ficam donos de nossa vida na terra, no Céu e no Purgatório. Isso tudo pra gente ter loucura, força, correria, juízo, inteligência, respeito próprio e peito aberto pra ganhar a vida… Pra ser normal, ser feliz com os filhos, com os netos e os bisnetos, na hora da morte por velhice. Essa é que é a morte de gente séria! E pra isso é só levar a vida certa, ter força pra trabalhar, se instruir… Sempre em frente pra ter luz, sorte, redenção dos deuses… Senão a gente fica parado na vida, que nem Ernesto e Valdemar. Parados na vida, metidos com sinuca, bebida, jogo de chapinha, roda de capoeira. Não tomam prumo de vivência por causa desse troço de mulher com vida fácil na zona do baixo meretrício. Valdemar passa anos sem entrar numa igreja pra rezar um pai-nosso, uma ave-maria ou um credo. Na macumba, só vai no dia de Exu pra pedir a Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas proteção na rua, harmonia com as negas e segurança no lar. Besteira… Eu é que não passo um domingo sequer sem igreja e uma quinta sem macumba, porque, se Deus não me der ouvido, Oxalá escuta. É melhor ter dois pais do que um só. E somente no Inferno é que eles não podem fazer mais nada… Se o cabra foi parar lá é porque ele mesmo quis assim”, pensava Tia Amélia, sentada num toco, perto do fogão de lenha. Escutava meio quilo de peito de vaca rechinar na panela de ferro. Tinha acabado de jogar mais um pouquinho de água, colocado 5 minilivrosamba.indd 5 21/03/2012 09:54:50 Paulo Lins as rodelas de batata; ia dar mais uma horinha de nada, tirar do fogo, deixar a panela do lado do fogão para se manter quente até a hora de Valdemar almoçar. Era necessário dar a ele uma comida forte, já que desde a sexta-feira ficara só por conta de torresmo e outras besteiras de botequim. O máximo que bebera de bom fora um caldo de cana no Largo do Estácio, mas às vezes virava na Paraty direto. Um sacana. Não se passou muito tempo até Tia Amélia ter de descer o morro mentalizando Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas e Seu Tranca- -Rua da Calunga Grande. É que uma vizinha chegara assustada, dizendo que Valdemar estava metido numa briga de navalha na zona. Tia Amélia agora seguia pela Maia Lacerda tentando manter a calma, com o espírito também voltado para Oxalá. Valdemar tinha saído na sexta-feira. Já era domingo, e nada de ele voltar até aquela hora da tarde. Bem que algumas vezes o seguira pelas entranhas do morro, pelo Largo do Estácio, chamando-o para casa. O infeliz dizia sempre a mesma coisa: — Pode ir, mãe, que eu já tô indo. E nada de arredar o pé da rua. Ela estava indo buscar o filho numa briga, coisa que nunca tivera de fazer por Ernesto, que morreu de tanto comer tira-gosto e beber Paraty nos seus últimos dez anos de vida. Tia Amélia não sabia que Ernesto só gostava da música tocada e cantada na zona do baixo meretrício, na Praça Onze, no Kananga do Japão, na casa de Tia Almeida, enfim, da música da Pequena África de João. As más-línguas falavam de Ernesto para perturbar Tia Amélia, que, na verdade, nunca soube ao certo por que Ernesto se enfurnava na zona. O pessoal da fofoca aproveitava para enervá-la. E não era porque ela fosse bonita, não, ou má pessoa. O povo tinha era inveja da inteligência dela, que cursara até a segunda série 6 minilivrosamba.indd 6 21/03/2012 09:54:50 Desde que o samba é samba do curso normal na escola de professores, ali mesmo no Estácio. Era uma pessoa letrada, até dava aula para a criançada que ia mal na escola primária e ginasial, lia jornais, revistas, livros; não era de ficar de andança de fofoca à porta dos outros, ou mesmo se desgastando em prosa que não tivesse troca de conhecimento. Pra ela, brincadeira sempre teve hora. Só não terminou os estudos porque precisou trabalhar. Mas Valdemar era um caso sério. É que quando a lua apita o primeiro lance de sua luz lá no céu, às sextas-feiras, o cabra fica doido. Mistura o dia com a noite durante todo o final de semana com a alma largada na rua, o que não faz gosto de mãe alguma. Troço de vagabundo. Agora, Tia Amélia ameaçava pequenas corridas, suplicava a Nosso Senhor Jesus Cristo que parasse com a briga. Que mandasse Exu dar rapidez de raciocínio a seu filho ou a Sodré, para um não machucar o outro. Uma palavra, um gesto, uma atitude que cortasse danação, vencesse a demanda de ódio, otarice de homem bobo. Sabia que podia confiar nos deuses. Brigava-se por qualquer coisa na zona, mas as desavenças mais frequentes tinham a ver com mulher. Era a primeira vez que Tia Amélia ia àquele lugar tirar Valdemar de confusão, porque, quando vivo, Ernesto dizia que mulher de família não podia entrar na zona, inventando as mais carecas desculpas. Mas ela bem sabia das mulheres vadias, capazes de fazer de tudo com um homem por dinheiro. E os veados? Era isso que a machucava mais: as vizinhas diziam que o marido dela já tinha andado até com travesti da Lapa. “Homem, quando não presta, não presta mesmo.” — E não é prosa de pau e cu só, não! Tem beijo na boca e o caralho! — dizia o povo ruim. Tia Amélia entrou na zona, viu o filho abaixado, olhando para o lado oposto ao que ela estava. 7 minilivrosamba.indd 7 21/03/2012 09:54:50 Paulo Lins A questão era que Valdemar punha todo o seu dinheiro na bolsa de Valdirene pra poder ficar com ela horas e horas, até por dias seguidos. Exímio jogador, ia para o bilhar da Rua Machado Coelho, ganhava bastante dinheiro, voltava para o quarto de Valdirene, que agora dera para rejeitar Sodré, que fazia a mesma coisa nos finais de semana, só que com o seu salário de funcionário público. Brancura, cafetão de Valdirene, agia como se nada estivesse acontecendo, mas se mantinha informado. Tanto é que Zilda, a segunda mais bonita da zona, eleita pelo povo, confessou-lhe que um dia ouviu Valdirene dizer a Sodré: — Tarado, me fode, mete, mete gostoso, põe a mão na minha boca senão eu vou gritar: Aiii! Eu vou gozar, não para, não para, não para! Eu tô gozando! — Foi assim mesmo como eu te falei — disse-lhe Zilda, fazendo gestos eróticos, numa dessas noites de conversas reveladoras entre amigos. 8 minilivrosamba.indd 8 21/03/2012 09:54:50