Departamento de Teologia - Escatologia Cristã – 2012/II - Geraldo De Mori SJ
A reformulação da escatologia católica no diálogo com a modernidade
O modelo espacial da escatologia da pessoa dominou a teologia católica até
meados do séc. XX. Schmaus foi um dos primeiros a levar em conta as questões
levantadas pela teologia protestante no tocante à tese da imortalidade da alma. Na parte
da quinta de seu manual de teologia consagrada aos Novíssimos, ele vai não somente
tratar da escatologia geral, que começa com a condição histórica e temporal do homem,
segue com o reino de Deus como conteúdo e sentido da revelação, e termina com o juízo
final, mas também propõe uma escatologia da pessoa, onde desenvolve uma ontologia e
um ethos da morte e onde aborda os quatro novíssimos. Em sua escatologia da pessoa,
Schmaus, dialogando com a filosofia existencial, diz que o homem alcança com a morte a
suprema possibilidade de chegar a si mesmo, posto que ele é, de uma certa maneira, um
ser para a morte. Isso porém não basta, diz ele. A morte só é auto-realização se, ao
morrer, o homem chega a Deus que sai ao seu encontro. Se o homem não se abre a
Deus, tampouco realiza a fidelidade a si mesmo. Schmaus discute ainda a tese da
atividade psico-metafísica do homem na hora da morte. Contra a retomada da tese de
Epicuro pelos filósofos modernos, esse teólogo vai ver a morte como auto-realização e a
morte como ação. Apesar de entrar no debate sobre a tese da imortalidade da alma,
Schmaus não apresenta uma proposta inovadora no tocante à ressurreição, não
problematizando o problema do estado intermédio.
Rahner foi o primeiro teólogo católico a retomar o tema do estado intermédio numa
“quaestio disputata” (O sentido teológico da morte), em 1958. O contexto no qual ele
aborda este tema é o do debate com a filosofia existencial sobre a morte. Esse debate
não era alheio a algumas conclusões da teologia protestante liberal, que sustentava que a
morte afetava o homem inteiro e que a ressurreição se produzia do outro lado da morte,
no âmbito do além, de forma imediata: morrer e ressuscitar eram um todo. A escatologia
intermédia ficava assim esvaziada de seu conteúdo. Rahner tenta dizer algo sobre isso.
Por isso escolheu o gênero literário da “disputatio”. Ele reconhecia a urgência da
desplatonização da escatologia cristã, construindo uma escatologia livre da herança
grega. Explicar a morte como separação entre alma e corpo, como se corpo e alma
fossem estranhos um ao outro, como em Platão, não permite de justificar a ressurreição
final dos corpos, ainda que permita compreender a subsistência da alma depois da morte.
Diante de tal concepção platonizante, era preciso reconhecer que a alma separada do
corpo mantinha uma relação com o mundo material. Segundo Rahner, era preciso levar a
sério que a alma é forma substancial do corpo. A relação da alma com o corpo é
transcendental, no sentido neo-escolástico do termo. Esta relação permite de entender as
penas do purgatório (e as do inferno). A reflexão rahneriana não se afastava da tradição
tomasiana. Para santo Tomás, a alma separada se individua por sua relação com o corpo,
que não tem e que recuperará no final dos tempos, quando termina a história da
humanidade. “Ainda que as palavras não signifiquem o que queremos dizer, podemos
afirmar que a alma, pela morte, não se converte em acósmica mas em pancósmica”. Isso
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não se deve entender como se o mundo fosse o corpo da alma. “A alma, ao abandonar na
morte sua forma corporal limitada e ao abrir-se ao todo, concorre de alguma maneira a
determinar o universo e o determinaria precisamente como fundo da vida pessoal dos
outros enquanto seres corpóreo-espirituais”. Com isso Rahner assume de alguma
maneira a influência dos mortos na vida do mundo, aceita pela fé cristã, e busca uma
explicação teológica para o mistério da comunhão entre o aqui e o além. Ele exprime
também a influência da vida terrena de cada um no ulterior desenvolvimento da história,
que só será perceptível no momento do juízo final. Ele sustenta enfim que o corpo
glorificado pode converter-se em expressão da pancosmicidade permanente da pessoa
glorificada. Em 1959, Rahner vai aprofundar as intuições do artigo escrito um ano antes
(A ressurreição da carne). O tom deste escrito é desafiante: “pode-se perguntar se a
teologia tem aproveitado a ocasião para aprofundar e dizer com clareza e com verdadeiro
interesse o que significa exatamente a “ressurreição da carne” para nós? Procede-se
como se sobre isso não haveria nada de novo a dizer, como se tudo já fosse o mais claro
possível e como se só se devesse saber se Maria já alcançou esta última perfeição”. A
posição de Rahner vai levar à popularização da tese da ressurreição na hora da morte.
Outra questão debatida por ele é a da morte como término do estado de viator. Ele
começa considerando duas possibilidades: a de que a morte exige por si mesma o juízo,
e a de que o juízo segue à morte não por vinculação intrínseca, mas porque Deus assim o
dispôs. Rahner opta pela primeira opinião e afirma que a decisão livre do homem
determina seu destino e que assim, o caráter definitivo do ser humano, fruto de uma
decisão pessoal vital, é um momento interno da morte, a qual vem a ser uma ação
espiritual e pessoal do homem mesmo. A decisão livre do homem o constitui certamente
em réprobo, mas isso não exclui que o juízo particular seja heterônomo, ou seja que não
se trata de um auto-juízo. Rahner não faz esta precisão, certamente porque esta não era
a intenção de seu raciocínio. Ele fala da atividade livre do homem na hora da morte.
Segundo ele, o ato mais transcendental da vida, vivido humanamente, implica a última
decisão pessoal da vida, não pelo que a morte tem de acontecimento passivo procedente
da vida biológica, mas pela livre ação da alma. O término do homem como pessoa
espiritual que decide livremente sobre sua própria sorte, há de ser a consumação ativa
desde dentro. Mas a morte do homem, como término de sua vida biológica, é ao mesmo
tempo de maneira indissolúvel e afeta o homem inteiro, ruptura desde fora, destruição. A
morte é ação e paixão numa pessoa: ação desde dentro, paixão desde fora.
O debate suscitado por Rahner teve em Boros, teólogo húngaro, um dos principais
representantes no decorrer dos anos sessenta. Ele retoma a tese da ressurreição na
morte, segundo a qual o homem assume, no instante mesmo da morte, uma corporeidade
nova. A ressurreição propriamente dita não é escatológica, ou seja, não tem lugar no fim
da história, porque não há comunicação positiva entre o aqui, ou seja o intra-histórico, e o
além, ou seja, o meta-histórico. Segundo Boros, a ressurreição dos mortos,
acontecimento universal e de natureza social, é, de fato, como uma nova criação. Outra
hipótese discutida por ele é a da opção do homem na morte, onde o hétero-juízo
particular se converte, na prática, numa espécie de auto-juízo, e no qual o destino final
dependeria da cada um e não da justiça divina. Como consequência, o purgatório tornase então problemático. De fato, a opção na morte seria também o momento do purgatório
e o momento da pancosmicidade da alma, entendida como uma espécie de sucedâneo da
ressurreição final da carne e dos mortos.
Em 1973 Boff publicou um pequeno opúsculo sobre a escatologia: A vida para
além da morte, e em 1974 um outro: A ressurreição de Cristo. A nossa ressurreição na
morte. Estas obras abordam de maneira nova a questão escatológica, tentando pensar a
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significação escatológica da vida intra-histórica. No primeiro livro, Boff reúne uma série de
influências, produzindo uma síntese bastante original. Ele retoma a teologia do reino a
partir da teologia política de matriz alemã, além da análise marxista da utopia. A exegese
sobre o sepulcro vazio o conduz às considerações que negam a escatologia
intermediária, que passa a ser entendida como um ínterim entre a morte e a ressurreição
da carne. O mais próprio de Boff é sua releitura de Gaudium et Spes. Esta constituição do
Vat. II afirmava que a esperança quimérica de uma vida futura não deve afastar-nos da
construção da cidade terrena. A partir daí, Boff discute a noção de utopia, contraposta à
doutrina do além, que ele denomina topia. No cristianismo, a utopia se converte em topia.
Seguindo Rahner, Boff afirma que os novíssimos não são realidades que começarão a
partir da morte, mas que já agora podem ser vividas e experimentadas, embora de
maneira incompleta. Começam a existir aqui na terra e vão crescendo até que na morte
se dê sua germinação plena. Isso seria transformar em topia o que no gênero apocalíptico
é utopia. Por conseguinte, há que evitar dois extremos: o de um Deus sem mundo, o que
ocorre numa escatologia na qual só a parusia inauguraria o reino de Deus, e o da
identificação da Igreja com o reino de Deus, de modo que todos os que não pertencem
plenamente à Igreja sejam condenados ao fogo eterno. Boff é também influenciado pelo
marxismo humanista, sobretudo na maneira como ele concebe o princípio esperança de
matriz blochiana. Tal princípio seria a fonte de toda utopia, entre as quais ele enumera o
reino de Deus da literatura apocalíptica e da pregação de Jesus. Isso implica uma
releitura crítica do NT. Boff entende a morte como morte total e a ressurreição não como a
volta à vida de um cadáver, mas como a realização exaustiva das capacidades do homem
corpo e alma. Por isso, o homem ressuscita simultaneamente em sua morte e no fim do
mundo, porque a morte significa para a pessoa o fim do mundo. Também há aqui
algumas considerações sobre a pancosmicidade, quando descreve a nova condição da
corporeidade depois da morte, que nos recordam certas considerações teilhardianas, que
Boff conhecia bem, pois tinha publicado um livro sobre Teilhard de Chardin nos anos 60.
Em seu segundo livro, Boff trata primeiro da ressurreição de Cristo. A partir daí tenta
pensar o futuro do homem e sua ressurreição. Reconhece a importância da tanatologia
para a compreensão da vida humana e o valor da situação terrena. Sublinha também sua
transcendência para a antropologia considerada em seu sentido mais amplo. Pergunta-se
se a ressurreição pressupõe a imortalidade da alma ou se esta pressupõe aquela.
Ressuscitamos porque somos imortais ou somos imortais porque ressuscitamos? A
doutrina católica afirma, segundo Boff, que Deus ressuscita os homens, devolvendo à
alma o mesmo corpo. Em outros termos, se a alma se manteve individual enquanto
subsistia separada, tem forçosamente que receber o mesmo corpo, ainda que em
condições de corpo glorioso, porque separada seguia sendo uma forma substancial
separada. Daí ele deduz que o homem ressuscita porque é imortal a alma. Caso
contrário, tratar-se-ia de uma recriação da parte de Deus. Para Boff, o homem é imortal
porque ressuscita. Ele apóia-se na leitura de algumas passagens de Paulo, que desejava
separar-se do seu corpo e ao mesmo tempo estar presente na hora da parusia de Cristo.
Ele apóia-se também na leitura da liturgia dos mortos que diz: “porque a vida dos que em
ti cremos, Senhor, não termina, mas se transforma. E ao desfazer-se nossa morada
terrena, adquirimos um posto eterno no céu”.
Gisbert Greshake publica em 1976 Mas fuertes que la muerte. Lectura
esperanzada de los novísimos. Ele é considerado como o patrocinador mais destacado da
hipótese segundo a qual a ressurreição acontece na morte e não no término da história.
Não é necessário, segundo ele, o fim da história. Esta poderia permanecer
indefinidamente aberta.
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Quase contemporâneo do livro de Greshake é o manual de Joseph Ratzinger:
Escatologia. La muerte y la vida eterna, publicado em 1977. Nesse livro,o autor
contrapõe-se à opinião que já se tornara corrente no seio da teologia católica da
desplatonização da escatologia. Já no livro Introducción al cristianismo, escrito em 1968,
ele diz que a ideia da imortalidade expressa na Bíblia com a palavra ressurreição, indica a
imortalidade da pessoa, do homem. Enquanto para os gregos a essência do homem é um
produto que, enquanto tal, não subsiste, mas que o corpo e a alma seguem caminhos
diferentes segundo sua índole diversa, para a fé bíblica a essência do homem permanece
como tal, ainda que mude. Trata-se de uma imortalidade dialógica (ressurreição), ou seja,
a imortalidade não nasce simplesmente da evidência de não poder morrer, mas do ato
salvador daquele que ama e que tem poder para realizá-lo. O homem não pode pois
perecer totalmente porque foi conhecido e amado por Deus. Ao publicar o manual de
1977, precisamente quando a tese da desplatonização tinha se generalizado no seio da
teologia católica, Ratzinger se mostrava convencido da validade das grandes afirmações
da tradição católica em matéria escatológica, ou seja, da tese sobre a subsistência da
alma separada e sobre o ínterim entre a morte pessoal e a parusia. Ele recuperava desta
forma a escatologia intermediária.
Em 1980 Cândido Pozo reedita seu livro: Teologia del mas allá, cuja primeira
edição, de 1968, retomava a escatologia do Vat. II e questionava as teses da
desplatonização. A reedição desta obra retoma e aprofunda a declaração da congregação
para a doutrina da fé sobre a escatologia de 1979 e declara que a tese da ressurreição na
hora da morte é ainda mais platônica que a tese da alma separada. Isso porque, ao
postular uma espécie de ressurreição imediata depois da morte, essa tese afirma um
corpo ressuscitado que não é propriamente o corpo do falecido, pois que este permanece
no sepulcro. Por conseguinte, a ressurreição na hora da morte põe o acento na alma,
como se ela fosse o especificamente humano, o qual é precisamente o característico do
platonismo. Foge-se do platonismo para refugiar-se nele, diz Pozo. Para evitar tal
contradição recorre-se a uma hipótese muito sutil: o histórico, que seria temporal, correria
paralelo ao meta-histórico, que seria atemporal. Isso supõe, segundo ele, que o morrer é,
para cada um dos falecidos, o verdadeiro fim da história.
Em meados de 1980, Ratzinger toma posição na revista Communio no artigo:
Entre muerte y resurrección. Una aclaración de la Congregación de la Fe a cuestiones de
escatología. Para ele, o problema de fundo que havia motivado a Declaração pontifícia
era o de superar a dicotomia entre fidelidade e interpretação. Em outros termos,
aproximar o distanciamento entre fé e teologia. Ratzinger está convencido de que a
Declaração pontifícia tem por objetivo primeiro e fundamental defender a fé dos fiéis e
evitar seu desconforto frente às especulações dos teólogos. Quais eram, segundo ele, as
causas da substituição da escatologia de dupla fase para uma escatologia de fase única,
sobretudo no campo protestante, ainda que também entre alguns católicos? Em sua
opinião, as controvérsias têm como pano de fundo algumas teses de Lutero radicalizadas.
Em primeiro lugar, a separação entre origem e tradição, que em Lutero se exprime com o
princípio da sola Scriptura. Em segundo lugar, a resistência de Lutero ante todo o
helênico, especialmente o aristotélico, tido como corruptor do genuinamente bíblico. O
cristianismo histórico repousaria, segundo o Reformador, numa confusão entre a herança
bíblica e o pensamento grego. Esta síntese deve ser desfeita para buscar-se um
cristianismo não helênico. A primeira das teses luteranas enunciadas constitui um ponto
radical e irrenunciável do protestantismo primitivo. A estas duas teses, Ratzinger
acrescenta duas abordagens modernas do problema: uma volta do sentimento antihelênico, especialmente depois do Vat. II, manifestado no ceticismo generalizado diante
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da metafísica, e um verdadeiro pânico dos teólogos de serem tachados de dualistas.
Contemplar o homem como essência de corpo e alma, crer numa vida da alma entre a
morte do corpo e sua ressurreição, parece uma traição ao conhecimento moderno e
bíblico da unidade do homem, da unidade da criação. A esta ruptura de continuidade da
tradição cristã haveria que acrescentar uma notável insegurança diante das relações entre
fé e razão, como uma desconfiança apriorística acerca da possibilidade de concordar fé e
razão.
Em 1985 Libanio e Maria Clara publicam Escatologia cristã, retomando e
popularizando a tese da ressurreição na hora da morte, além de repensarem a dimensão
escatológica da existência cristã a partir dos pressupostos hermenêuticos da teologia da
libertação.
Em 1986 Ruiz de la Peña publica a terceira edição de La otra dimensión.
Escatología cristiana. Seu esforço em levar em conta o magistério da Igreja, sobretudo os
momentos mais decisivos para a escatologia intermédia, é notável. É assim que ele
retoma a censura do concílio de Viena contra Pedro Olivi (DS 900. 902), a bula
Benedictus Deus (DS 1000), a declaração dogmática do V concílio de Latrão (DS 1440),
além da carta da sagrada congregação da doutrina da fé de 1979. Segundo Ruiz de la
Peña, o obstáculo maior para quem sente alguma dificuldade diante da escatologia de
dupla fase é a afirmação da Benedictus Deus de que os justos vêem imediatamente a
Deus antes da ressurreição da carne, ou seja antes de que a alma separada recupere o
corpo para a ressurreição. Paralelamente a bula pontifícia afirma que há reprovação final
também antes da ressurreição (DS 1002). A Benedictus Deus supõe, segundo nosso
teólogo, a existência de um estado intermédio. Por conseguinte, deveria reinterpretar-se o
teor desta bula, se se pensasse que não existe tal estado. E é isso precisamente o que
ele pretende fazer, mostrando que o objetivo da definição de Bento XII não é a existência
deste estado, admitida pela teoria que provocou a definição, mas a condenação de todo
retardamento da retribuição. O que o documento quer ensinar é a imediatidade da
consumação depois da morte, posta em dúvida por João XXII. O papa havia afirmado que
as almas dos justos permanecem “sub altari”, ou seja, sob o amparo ou a proteção de
Cristo, até a parusia, na qual verão não somente a humanidade de Cristo, mas também
sua divindade, e nela, a Trindade. Por conseguinte, a visão beatífica facial ficaria adiada
até a segunda vinda do Senhor. A bula pretende esclarecer as dúvidas levantadas pelo
Papa, mas não se limitou a isso, como testemunha a recepção desta constituição na
teologia posterior. Os documentos têm uma finalidade imediata mais restrita que a
interpretação que recebem posteriormente por parte da Igreja. Da mesma forma, o
concílio de Viena não queria consagrar o hilemorfismo definindo que o homem é
composto de corpo e alma ou que a alma é a forma substancial do homem. O contexto
cristológico da definição deste concílio mostra que o mesmo temia que a tese de Olivi
levasse ao niilismo cristológico de Pedro Abelardo. O concílio queria também aproximarse do dualismo platônico para afirmar a verdadeira unidade humana, reivindicando a
pertença da alma intelectual ao composto humano. Esse é o contexto da constituição
vienense. A recepção posterior vai porém interpretar as declarações deste concílio num
sentido mais amplo, vendo na constituição uma espécie de sanção à dualidade humana e
consagrando como doutrina católica que o homem é um composto de alma e corpo e que
a alma é a forma substancial do corpo. A tradição escolástica entendeu que a
antropologia assumida pelo Vienense tinha assumido explicitamente o hilemorfismo
aristotélico. Aqui também a recepção amplia o sentido literal do documento, estendendo-o
a outros âmbitos. Esta ampliação do significado aparece no V concílio de Latrão, que cita
as palavras do Vienense num contexto diferente. Este concílio tinha como objetivo
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imediato a censura ao mono-psiquismo dos neo-aristotélicos italianos de matriz
averroísta. O intelecto humano não é único para toda a espécie humana, diziam eles, mas
se multiplica ao infundir-se em cada corpo, de modo que é próprio e exclusivo de cada
homem em particular. Aqui a recepção do documento foi além da pura interpretação literal
do texto conciliar, entendendo posteriormente que o Lateranense V havia definido a
imortalidade da alma humana individual, e não só havia pretendido a condenação do
mono-psiquismo neo-aristotélico.
Diante dessas declarações do magistério e de sua recepção, Ruiz de la Peña
pensa que parece inevitável afirmar a escatologia de dupla fase. Ele tenta porém uma
saída que permita manter a doutrina dos documentos magisteriais, rejeitando a
escatologia de dupla fase. Ele destaca para isso quatro modelos escatológicos da teologia
católica recente: a. morte e ressurreição estão separadas por uma duração extensa
(estado intermédio) cujo sujeito é a alma separada (Ratzinger e Pozo, entre outros); b.
ressurreição na morte e inexistência de um fim da história e, consequentemente, de todo
tipo de estado intermédio (o primeiro Greshake, Libanio, entre outros); c. ressurreição
incoativa na morte e consumada no eschaton (Boros, Schoonenberg, Martelet e o último
Greshake); d. ressurreição num eschaton distinto, mas não distante no sentido
cristológico, da morte (Ruiz de la Peña, entre outros). Nosso autor retoma os trabalhos
anteriores, estabelecendo uma cuidadosa diferença entre duas noções: “distinção” e
“distância”. A seu entender, bastaria, para salvar os conteúdos doutrinais do magistério
(tomados à letra, não considerando sua posterior recepção), distinguir entre alma
separada e alma que recuperou seu corpo pela ressurreição. Essas duas situações
devem manter-se como distintas. Não é obrigado, no entanto, separá-las por uma
“distância”. São duas situações distintas, mas não distantes, posto que a alma separada
acha-se, depois da morte, em outra dimensão (daí, precisamente o título de seu livro: A
outra dimensão. Escatologia cristã). Segundo Ruiz de la Peña, a noção de alma separada
evita o vazio ou o nada, entre a morte e a ressurreição. A alma separada se comporta
como nexo entre dois extremos: o homem viator e o homem ressuscitado, evitando que a
ressurreição possa entender-se como uma re-criação. A alma separada articula o trânsito
da morte à ressurreição. A esta situação ontológica é preciso acrescentar uma dimensão
cronológica, uma persistência extensa. Para diferenciar entre distinto e distante há que
apelar à noção escolástica de eviternidade. Esta noção tenta pensar uma duração
intermediária entre tempo e eternidade, permitindo de sustentar que o distinto não é
distante no aenum, enquanto que poderia sê-lo no tempo. Ruiz de la Peña afirma que no
além, na meta-história, o que os escolásticos chamam aenum, um ponto (um ato) pode
equivaler a toda nossa história. A aeternitas, que é um instante imutável, equivale a todos
os pontos do aenum. O aenum é uma medida discreta. O tempo uma medida contínua.
Psicologicamente, diz Ruiz de la Peña, a alma separada vivencia o aenum em poucos
atos (juízo, purificação, quando há, visão ou condenação), ao cabo dos quais, a
ressurreição final, comum e simultânea, ou seja, universal, será o penúltimo ato de tal
aenum intermédio, com seu ato conclusivo que será o juízo universal. Esta maneira de ver
as coisas choca-se com a declaração da comissão teológica internacional de 1990 que
diz que o eschaton da história humana coincide com a parusia. A ressurreição dos corpos,
que se realizará na parusia, ainda que não seja um fato intra-histórico, será então o fim da
história.
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Escatologia Cristã – 2012/II