COLÉGIO ETAPA
ANTOLOGIA
DE
TEXTOS FILOSÓFICOS
A escola de Atenas. Afresco de Rafazel Sanzio.
Palácio Apostólico, Vaticano
ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA
2.º ANO DO ENSINO MÉDIO
CONJUNTOS 3 E 4
2
ÍNDICE
PRIMEIRA PARTE – TEORIAS E PROBLEMAS ÉTICOS
ÉTICOS
1 – A ÉTICA DO DEVER EM KANT
Textos 1 a 3
Excertos da Fundamentação da metafísica dos costumes
2 – SARTRE E O PROBLEMA DA LIBERDADE
Texto 4
Excerto de O existencialismo é um humanismo
3 – A ÉTICA DA VIRTUDE EM ARISTÓTELES
Texto 5 a 7
Excertos da Ética a Nicômaco
SEGUNDA PARTE – FILOSOFIA POLÍTICA
4 – ARISTÓTELES E A CONCEPÇÃO GREGA DE POLÍTICA
Texto 8
Excertos de A política
5 – MAQUIAVEL E A SEPARAÇÃO ENTRE MORAL E POLÍTICA
Textos 9 e 10
Excertos de O príncipe
6 – HOBBES E A JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO ABSOLULISTA
Textos 11
Excerto de Leviatã
7 – LOCKE E O ESTADO LIBERAL
Texto 12
Excertos do Segundo tratado sobre o governo
8 – ROUSSEAU E A VONTADE GERAL
Texto 13
Texto 14
Excerto do Discurso sobre a desigualdade
Excertos de Do contrato social
3
PRIMEIRA PARTE
Teorias e problemas éticos
éticos
4
1 – A ÉTICA DO DEVER EM KANT
Retrato de IMMANUEL KANT (1724-1804).
Pintura do séc. XVIII de autor desconhecido.
METAFÍSICA
FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSIC
A DOS COSTUMES
TEXTO 1
[O conceito de dever]
1. Deixo aqui de parte todas as ações que são logo reconhecidas como contrárias ao dever,
posto possam ser úteis sob este ou aquele aspecto; pois nelas nem sequer se põe a questão de saber
se foram praticadas por dever, visto estarem até em contradição com ele. Ponho de lado também as
ações que são verdadeiramente conformes ao dever, mas para as quais os homens não sentem
imediatamente nenhuma inclinação, embora as pratiquem porque a isso são levados por outra
tendência. Pois é fácil então distinguir se a ação conforme ao dever foi praticada por dever ou com
intenção egoísta. Muito mais difícil é esta distinção quando a ação é conforme ao dever e o sujeito é
além disso levado a ela por inclinação imediata. Por exemplo: — É na verdade conforme ao dever
que o merceeiro não suba os preços ao comprador inexperiente, e, quando o movimento do negócio
é grande, o comerciante esperto também não faz semelhante coisa, mas mantém um preço fixo geral
para toda a gente, de forma que uma criança pode comprar em sua casa tão bem como qualquer
outra pessoa. É-se, pois, servido honradamente; mas isso ainda não é bastante para acreditar que o
comerciante tenha assim procedido por dever e princípios de honradez; o seu interesse assim o
exigia; mas não é de aceitar que ele além disso tenha tido uma inclinação imediata para os seus
fregueses, de maneira a não fazer, por amor deles, preço mais vantajoso a um do que a outro. A ação
não foi, portanto, praticada nem por dever nem por inclinação imediata, mas somente com intenção
egoísta.
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2. Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para
que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso,
que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime
nenhum conteúdo moral. Os homens conservam a vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por
dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram
totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza da alma, mais enfadado do que
desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação
ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral.
3. Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de
disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham
íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros,
enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal ação, por conforme ao dever, por
amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com
outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que
efetivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece
louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais
ações se pratiquem, não por inclinação, mas por dever. Admitindo pois que o ânimo desse filantropo
estivesse velado pelo desgosto pessoal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia, e que ele
continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, mas que a desgraça alheia o não
tocava porque estava bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma inclinação o
estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e praticasse a ação sem qualquer
inclinação, simplesmente por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor moral. Mais ainda:
— Se a natureza tivesse posto no coração deste ou daquele homem pouca simpatia, se ele (homem
honrado de resto) fosse por temperamento frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo
dotado especialmente de paciência e capacidade de resistência às suas próprias dores e por isso
pressupor e exigir as mesmas qualidades dos outros; se a natureza não tivesse feito de um tal
homem (que em boa verdade não seria o seu pior produto) propriamente um filantropo, — não
poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais
elevado do que o dum temperamento bondoso? Sem dúvida! — e exatamente aí é que começa o
valor do caráter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto, e que consiste em fazer o
bem, não por inclinação, mas por dever.
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4. [...] Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se
quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do objeto da ação,
mas somente do princípio do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da
faculdade de desejar, foi praticada. Que os propósitos que possamos ter ao praticar certas ações e os
seus efeitos, como fins e móbiles da vontade, não podem dar às ações nenhum valor incondicionado,
nenhum valor moral, resulta claramente do que fica atrás. Em que é que reside pois este valor, se ele
não se encontra na vontade considerada em relação com o efeito esperado dessas ações? Não pode
residir em mais parte alguma senão no princípio da vontade, abstraindo dos fins que possam ser
realizados por uma tal ação; pois que a vontade está colocada entre o seu princípio a priori, que é
formal, e o seu móbil a posteriori, que é material, por assim dizer numa encruzilhada; e, uma vez que
ela tem de ser determinada por qualquer coisa, terá de ser determinada pelo princípio formal do
querer em geral quando a ação seja praticada por dever, pois lhe foi tirado todo o princípio material.
5. [...] — Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei. Pelo objeto, como efeito da
ação em vista, posso eu sentir em verdade inclinação, mas nunca respeito, exatamente porque é
simplesmente um efeito e não a atividade de uma vontade. De igual modo, não posso ter respeito
por qualquer inclinação em geral, seja ela minha ou de outro; posso quando muito, no primeiro caso,
aprová-la, e, no segundo, por vezes amá-la mesmo, isto é, considerá-la como favorável ao meu
interesse. Só pode ser objeto de respeito e portanto mandamento aquilo que está ligado à minha
vontade somente como princípio e nunca com efeito, não aquilo que serve à minha inclinação, mas o
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que a domina ou que, pelo menos, a exclui do cálculo na escolha, quer dizer a simples lei por si
mesma. Ora, se uma ação realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação e
com ela todo o objeto da vontade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do que a lei
objetivamente, e, subjetivamente, o puro respeito por esta lei prática, e por conseguinte a máxima
que manda obedecer a essa lei, mesmo com o prejuízo de todas as minhas inclinações.
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6. Ponhamos, por exemplo, a questão seguinte: — Não posso eu, quando me encontro em
apuro, fazer uma promessa com a intenção de a não cumprir? Facilmente distingo aqui os dois
sentidos que a questão pode ter: — se é prudente, ou se é conforme ao dever, fazer uma falsa
promessa. O primeiro caso pode sem dúvida apresentar-se muitas vezes. É verdade que vejo bem
que não basta furtar-se ao embaraço presente por meio desta escapatória, mas que tenho de
ponderar se desta mentira me não poderão advir posteriormente incômodos maiores do que aqueles
de que agora me liberto; e como as consequências, a despeito da minha esperteza, não são assim tão
fáceis de prever, devo pensar que a confiança uma vez perdida me pode vir a ser mais prejudicial do
que todo o mal que agora quero evitar; posso enfim perguntar se não seria mais prudente agir aqui
em conformidade com uma máxima universal e adquirir o costume de não prometer nada senão com
a intenção de cumprir a promessa. Mas breve se me torna claro que uma tal máxima tem sempre na
base o receio das consequências. Ora ser verdadeiro por dever é uma coisa totalmente diferente de
sê-lo por medo das consequências prejudiciais; enquanto no primeiro caso o conceito da ação em si
mesma contém já para mim uma lei, no segundo tenho antes que olhar à minha volta para descobrir
que efeitos poderão para mim estar ligados à ação. Porque, se me afasto do princípio do dever, isso é
de certeza mau; mas se for infiel à máxima de esperteza, isso poderá trazer-me por vezes grandes
vantagens, embora seja em verdade mais seguro continuar-lhe fiel. Entretanto, para resolver da
maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma promessa mentirosa é conforme ao
dever, preciso só de perguntar a mim mesmo: — Ficaria eu satisfeito de ver a minha máxima (de me
tirar de apuros por meio de uma promessa não verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para
mim como para os outros)? E poderia eu dizer a mim mesmo: — Toda a gente pode fazer uma
promessa mentirosa quando se acha numa dificuldade de que não pode sair de outra maneira? Em
breve reconheço que posso em verdade querer a mentira, mas que não posso querer uma lei
universal de mentir; pois segundo uma tal lei, não poderia propriamente haver já promessa alguma,
porque seria inútil afirmar a minha vontade relativamente às minhas futuras ações a pessoas que
não acreditariam na minha afirmação, ou, se precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma
moeda. Por conseguinte a minha máxima, uma vez arvorada em lei universal, destruir-se-ia a si
mesma necessariamente.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela.
Lisboa: Edições 70, 2008, p. 27-38, p. 30-32, 34-35.
[O imperativo categórico]
TEXTO 2
1. [...] todos os imperativos ordenam ou hipotética — ou categoricamente. Os hipotéticos
representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra
coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos
representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer
outra finalidade.
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7
2. O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.
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3. Uma vez que a universalidade da lei, segundo a qual certos efeitos se produzem, constitui
a que se chama propriamente natureza no sentido mais lato da palavra (quanto à forma), quer dizer
a realidade das coisas, enquanto é determinada por leis universais, o imperativo universal do dever
poderia também exprimir-se assim: Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua
vontade, em lei universal da natureza.
natureza
4. Vamos agora enumerar alguns deveres [...].
5. Uma pessoa, por uma série de desgraças, chegou ao desespero e sente tédio da vida, mas
está ainda bastante em posse da razão para poder perguntar a si mesmo se não será talvez contrário
ao dever para consigo mesmo atentar contra a própria vida. E procura agora saber se a máxima da
sua ação se poderia tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, porém, é a seguinte: Por
amor de mim mesmo, admito como princípio que, se a vida, prolongando-se, me ameaça mais com
desgraças do que me promete alegrias, devo encurtá-la. Mas pergunta-se agora se este princípio do
amor de si mesmo se pode tornar em lei universal da natureza. Vê-se então em breve que uma
natureza cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cujo objetivo é suscitar a sua
conservação, se contradiria a si mesma e portanto não existira como natureza. Por conseguinte
aquela máxima não poderia de forma alguma dar-se como lei universal da natureza, e portanto é
absolutamente contrária ao princípio supremo de todo o dever.
6. Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Sabe
muito bem que não poderá pagar, mas vê também que não lhe emprestarão nada se não prometer
firmemente pagar em prazo determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem ainda
consciência bastante para perguntar a si mesma: Não é proibido e contrário ao dever livrar-se de
apuros desta maneira? Admitindo que se decidia a fazê-lo, a sua máxima de ação seria: Quando julgo
estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca
sucederá. Este princípio do amor de si mesmo ou da própria conveniência pode talvez estar de
acordo com todo o meu bem-estar futuro; mas agora a questão é de saber se é justo. Converto assim
esta exigência do amor de si mesmo em lei universal e ponho assim a questão: Que aconteceria se a
minha máxima se transformasse em lei universal? Vejo então imediatamente que ela nunca poderia
valer como lei universal da natureza e concordar consigo mesma, mas que, pelo contrário, ela se
contradiria necessariamente. Pois a universalidade de uma lei que permitisse a cada homem que se
julgasse em apuros prometer o que lhe viesse à ideia com a intenção de o não cumprir, tornaria
impossível a própria promessa e a finalidade que com ela se pudesse ter em vista; ninguém
acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de
vãos enganos.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela.
Lisboa: Edições 70, 2008, p. 52, p. 62-64.
TEXTO 3
1. Ora digo eu: — O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em
si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário em
todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres
racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. [...]
2. [...] O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses a humanidade,
tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio. Vamos ver se é possível cumprir isto.
3. Atendo-nos aos exemplos dados atrás, veremos:
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4. Primeiro: Segundo o conceito de dever necessário para consigo mesmo, o homem que
anda pensando em suicidar-se perguntará a si mesmo se a sua ação pode estar de acordo com a ideia
de humanidade como fim em si mesma. Se, para escapar a uma situação penosa, se destrói a si
mesmo, serve-se ele de uma pessoa como de um simples meio para conservar até ao fim da vida
uma situação suportável. Mas o homem não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser
utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre em todas as
suas ações como fim em si mesmo. Portanto não posso dispor do homem na minha pessoa para o
mutilar, o degradar ou o matar. [...]
5. Segundo: Pelo que diz respeito ao dever necessário ou estrito para com os outros, aquele
que tem a intenção de fazer a outrem uma promessa mentirosa reconhecerá imediatamente que
quer servir-se de outro homem simplesmente como meio, sem que este último contenha ao mesmo
tempo o fim em si. Pois aquele que eu quero utilizar para os meus intuitos por meio de uma tal
promessa não pode de modo algum concordar com a minha maneira de proceder a seu respeito, não
pode portanto conter em si mesmo o fim desta ação. Mais claramente ainda dá na vista esta colisão
com o princípio de humanidade em outros homens quando tomamos para exemplos ataques à
liberdade ou à propriedade alheias. Porque então é evidente que o violador dos direitos dos homens
tenciona servir-se das pessoas dos outros simplesmente como meios, sem considerar que eles, como
seres racionais, devem ser sempre tratados ao mesmo tempo como fins, isto é unicamente como
seres que devem poder conter também em si o fim desta mesma ação.
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6. Este princípio da humanidade e de toda a natureza racional em geral como fim em si
mesma (que é a condição suprema que limita a liberdade das ações de cada homem) não é extraído
da experiência, — primeiro, por causa da sua universalidade, pois que se aplica a todos os seres
racionais em geral, sobre o que nenhuma experiência chega para determinar seja o que for; segundo,
porque nele a humanidade se representa não como fim dos homens (subjetivo), isto é como objeto
de que fazemos por nós mesmos efetivamente um fim, mas como fim objetivo, o qual, sejam quais
forem os fins que tenhamos em vista, deve constituir como lei a condição suprema que limita todos
os fins subjetivos, e que por isso só pode derivar da razão pura. [...]
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela.
Lisboa: Edições 70, 2008, p. 71-75.
9
EXERCÍCIOS DE VESTIBULARES
1. [UEL / 2010] Leia o texto a seguir:
Como determinamos as regras do que é certo ou errado? Immanuel Kant (1724-1804) responde a essa pergunta da
seguinte forma: é moralmente correta a ação que está de acordo com determinadas regras do que é certo,
independente da felicidade resultante a um ou a todos. Kant não propõe uma lista de regras com conteúdo
previamente determinado – como é o caso dos mandamentos religiosos, por exemplo –, mas formula uma regra
para averiguar a correção da máxima que orienta nossa ação. Essa regra de averiguação é chamada imperativo
categórico [...].
BORGES, M. de L. et alii. O que você precisa saber sobre... Ética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p.15.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o Imperativo Categórico kantiano, é correto afirmar:
I.
Constitui um princípio formal dado pela razão que visa à discriminação das máximas de ação, com a pretensão de
verificar quais podem, efetivamente, enquadrar-se numa legislação universal.
II. Representa a capacidade de a razão prática, do ponto de vista a priori, fornecer à vontade humana um dever
incondicional com pretensão de universalidade e de necessidade.
III. Compreende um princípio teleológico construído a partir da concepção valorativa do “bem viver” e que se impõe,
como condição absoluta, na realização de ações e comportamentos das pessoas em geral.
IV. Abrange a sabedoria prática, como condição inata de o ser humano deliberar e proceder, sempre de forma
semelhante em relação às demais pessoas, no quesito das ações que envolvem virtude e prudência.
Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
b) Somente as afirmativas II e IV são corretas.
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
e) Somente as afirmativas I, III e IV são corretas.
2. [UFU / Julho 2006] Kant define a ação moral através da relação entre dever e inclinação. Assinale, dentre as alternativas
abaixo, a que estabelece uma relação correta entre estes conceitos, de acordo com o pensamento kantiano.
a) Uma vez que o homem é dotado de intelecto e sensibilidade, a ação moral deve expressar o meio termo entre razão e
paixão.
b) Uma vez que a meta final da ação moral é a felicidade, o homem deve escolher somente as inclinações que permitam
que todos os homens sejam felizes.
c) Somente na medida em que é livre, o homem pode tornar as inclinações o fundamento da ação moral.
d) Somente na medida em que evita as inclinações, o homem pode agir por dever e fundar moralmente suas ações.
3. [UEL / 2003] Leia o texto a seguir.
O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne lei universal.
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 1995, p. 59.
Segundo essa formulação do imperativo categórico de Kant, uma ação é considerada ética quando:
a) Privilegia os interesses particulares em detrimento de leis que valham universal e necessariamente.
b) A máxima que rege a ação pode ser universalizada, ou seja, quando a ação pode ser praticada por todos, sem prejuízo da
humanidade.
c) Ajusta os interesses egoístas de uns ao egoísmo dos outros, satisfazendo as exigências individuais de prazer e felicidade.
d) É determinada pela lei da natureza, que tem como fundamento o princípio da autoconservação.
e) Está subordinada à vontade de Deus, que preestabelece o caminho seguro para a ação humana.
Gabarito
1. a
2. d
3. b
10
2 – SARTRE E O PROBLEMA DA LIBERDADE
Fotografia de JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980) por Lufti Özkök.
TEXTO 4
O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO
1. [...] O que [os filósofos existencialistas] têm de comum é simplesmente o fato de
admitirem que a existência precede a essência, ou, se se quiser, que temos de partir da
subjetividade. Que é que em rigor se deve entender por isso? Consideremos um objeto fabricado,
como por exemplo um livro ou um corta-papel: tal objeto foi fabricado por um artífice que se
inspirou de um conceito; ele reportou-se ao conceito do corta-papel, e igualmente a uma técnica
prévia de produção que faz parte do conceito, e que é no fundo uma receita. Assim, o corta-papel é
ao mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma
utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber
para que há de servir tal objeto. Diremos, pois, que, para o corta-papel, a essência — quer dizer, o
conjunto de receitas e de características que permitem produzi-lo e defini-lo — precede a existência:
e assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel ou de tal livro está bem determinada. [...]
2. [...] Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o
homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem,
tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só
depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que
não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que
seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a
existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É
também a isso que se chama a subjetividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que
queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou
uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é o que o homem primeiro existe, ou seja, que o
homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no
futuro. O homem é, antes de mais nada, um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um
creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há
no céu inteligível, o homem será antes de mais o que tiver projetado ser. Não o que ele quiser ser.
Porque o que entendemos vulgarmente por querer é uma decisão consciente, e que, para a maior
parte de nós, é posterior àquilo que ele próprio se fez. Posso querer aderir a um partido, escrever um
livro, casar-me; tudo isso não é mais do que manifestação duma escolha mais original, mais
espontânea do que o que se chama vontade. Mas se verdadeiramente a existência precede a
11
essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o
de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua
existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o
homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens.
Há dois sentidos para a palavra subjetivismo, e é com isso que jogam os nossos adversários.
Subjetivismo quer dizer, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio; e por outro,
impossibilidade para o homem de superar a subjetividade humana. É o segundo sentido que é o
sentido profundo do existencialismo. Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer
que cada um de nós escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a
si próprio, ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos nossos atos um sequer que, ao criar
o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que
deve ser. Escolher isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos [...]. Se a
existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que
construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Assim, a
nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a
humanidade. Se sou operário e se prefiro aderir a um sindicado cristão a ser comunista, se por esta
adesão quero eu indicar que a resignação é no fundo a solução que convém ao homem, que o reino
do homem não é na terra, não abranjo somente o meu caso: pretendo ser o representante de todos,
e por conseguinte a minha decisão ligou a si a humanidade inteira. E se quero, fato mais individual,
casar-me, ter filhos, ainda que este casamento dependa unicamente da minha situação, ou da minha
paixão, ou do meu desejo, tal ato implica-me não somente a mim, mas a toda a humanidade na
escolha desse caminho: a monogamia. Assim sou responsável por mim e por todos, e crio uma certa
imagem do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o homem. [...]
3. [...] O existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista,
porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode
existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está
escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já
que precisamente estamos agora num plano em que há somente homens. Dostoiévski escreveu: “Se
Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com
efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não
encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há
desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir
uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo,
o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante
de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de
nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e
sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado
porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é
responsável por tudo quanto fizer. [...] O existencialista não pensará também que o homem pode
encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há de orientar; porque pensa que o homem
decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa, portanto, que o homem, sem qualquer apoio
e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo
artigo: “O homem é o futuro do homem”. É perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso
que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria
um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o
espera, então essa frase está certa. Mas, em tal caso, o homem está desamparado. Para vos dar um
exemplo que permita compreender melhor o desamparo, vou citar-vos um caso dum dos meus
alunos que veio procurar-me nas seguintes circunstâncias: o pai estava de mal com a mãe, e tinha
além disso tendências para colaboracionista; o irmão mais velho fora morto na ofensiva alemã de
1940, e este jovem com sentimentos um pouco primitivos, mas generosos, desejava vingá-lo. A mãe
vivia sozinha com ele, muito amargurada com a semitraição do marido e com a morte do filho mais
velho, e só nele achava conforto. Este jovem tinha de escolher, nesse momento, entre o partir para a
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Inglaterra e o alistar-se nas Forças Francesas Livres — quer dizer, abandonar a mãe — e o ficar junto
dela ajudando-a a viver. Compreendia perfeitamente que esta mulher não vivia senão por ele e que o
seu desaparecimento — e talvez a sua morte — a mergulharia no desespero. Tinha bem a
consciência de que no fundo, concretamente, cada ato que praticasse em favor da mãe era
justificável na medida em que a ajudava a viver; ao passo que cada ato que praticasse com o objetivo
de partir e combater seria um ato ambíguo que poderia perder-se nas areias, não servir para nada:
por exemplo, partindo para a Inglaterra, podia ficar indefinidamente num campo espanhol ao passar
pela Espanha; podia chegar à Inglaterra ou a Argel e ser metido numa secretaria a preencher papéis.
Por conseguinte, encontrava-se em face de dois tipos de ação muito diferentes: uma, concreta,
imediata, mas que não dizia respeito senão a um indivíduo; outra, que dizia respeito a um conjunto
infinitamente mais vasto, uma coletividade nacional, mas que era por isso mesmo ambígua, e que
podia ser interrompida a meio do caminho. Ao mesmo tempo, hesitava entre dois tipos de moral.
Por um lado, uma moral de simpatia, de dedicação individual; por outro lado, uma moral mais larga,
mas duma eficácia mais discutível. Havia que escolher entre as duas. Quem poderia ajudá-lo a
escolher? A doutrina cristã diz: sede caridosos, amai o vosso próximo, sacrificai-vos pelos outros,
escolhei o caminho mais duro, etc., etc. ... mas qual o caminho mais duro? Quem devemos amar
como nosso irmão: o combatente ou a mãe? Qual a maior utilidade: essa, duvidosa, de combater
num conjunto, ou essa outra, precisa, de ajudar um ser preciso a viver? Quem pode decidir a priori?
Ninguém. Nenhuma moral estabelecida pode dizê-lo. A moral kantiana afirma: não trates nunca os
outros como um meio mais como um fim. Muito bem; se eu fico junto da minha mãe, trato-a como
fim e não como meio, mas assim mesmo corro o risco de tratar como meio os que combatem à
minha volta; e, reciprocamente, se vou juntar-me aos que combatem, tratá-los-ei como um fim, e
paralelamente corro o risco de tratar a minha mãe como um meio.
4. Se os valores são vagos, e sempre demasiado vastos para o caso preciso e concreto que
consideramos, só nos resta guiarmo-nos pelo instinto. Foi o que aquele jovem tentou fazer; e quando
o vi, dizia ele: no fundo, o que conta é o sentimento; eu deveria escolher o que verdadeiramente me
impele numa certa direção. Se sinto que amo o bastante a minha mãe para lhe sacrificar tudo o mais
— o meu desejo de vingança, o meu desejo de ação, o meu desejo de aventuras —, fico junto dela.
Se, pelo contrário, sinto que o meu amor por minha mãe não é o bastante, então parto. Mas como
determinar o valor dum sentimento? Que é que constituía o valor do seu sentimento para com a
mãe? Precisamente o fato de ter ficado por causa dela. Posso dizer: gosto bastante de tal amigo para
lhe sacrificar tal soma de dinheiro; mas só o posso dizer depois de o ter feito. Posso, pois, dizer:
gosto o bastante de minha mãe para ficar junto dela — se eu tiver ficado junto dela. Não posso
determinar o valor desse afeto a não ser que, precisamente, eu pratique um ato que o confirme e o
defina. Ora, como eu pretendo que esta afeição justifique o meu ato, encontro-me metido num
círculo vicioso.
5. Além de que Gide disse, e muito bem, que um sentimento que se finge ou um sentimento
que se vive são duas coisas quase indiscerníveis: decidir que gosto da minha mãe ficando ao pé dela
ou representar uma comédia que me leve a ficar por causa de minha mãe é a mesma coisa. Por
outras palavras, o sentimento constitui-se pelos atos que se praticam; não posso, pois, consultá-lo
para me guiar por ele. O que quer dizer que não posso nem procurar em mim o estado autêntico que
me obrigará a agir nem pedir a uma moral os conceitos que me autorizem a agir. [...]
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio
Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 5-7, p. 9-11.
13
EXERCÍCIOS DE VESTIBULARES
1. [UFU / Abril 2006 / Adaptado]
[...] não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não termos nem
atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem
desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si
próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez que lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução e notas de Vergílio Ferreira. São
Paulo: Nova Cultural, 1978, p. 9.
Tomando o texto acima como referência, assinale a alternativa correta.
correta
a)
b)
c)
d)
Sartre afirma que o homem está condenado a ser livre e que, por esta razão, deve ser responsável por tudo o que
acontece ao seu redor.
Sartre considera que o homem não é responsável por seus atos, “porque não se criou a si mesmo”, sendo, por
esta razão, totalmente livre.
Ao dizer que “[...] não encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta”, Sartre
defende que o existencialismo não admite qualquer valor, nem a liberdade.
O existencialismo de Sartre defende a tese da absoluta responsabilidade do homem em relação aos atos que
pratica, porque sua moral parte do princípio de uma liberdade coerente e comprometida com o bem comum.
2. [UFU / Setembro 2002] Liberdade, para Jean-Paul Sartre (1905-1980), seria assim definida:
a) o estar sob o jugo do todo para agir em conformidade consigo mesmo, instaurando leis e normas necessárias para os
indivíduos.
b) circunstâncias que nos determinam e nos impedem de fazer escolhas de outro modo.
c) conformação às situações que encontramos no mundo e que nos determinam.
d) escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. “Estamos condenados à liberdade”, segundo
o autor.
3. [UFU / Julho 2000] Sartre fundou um existencialismo ateu. Para este filósofo, não há um Deus que cria o homem e
ordena-lhe a vida segundo um fim prévio. Sobre o existencialismo de Sartre as afirmativas abaixo são corretas, exceto
a) a liberdade do homem só poderá efetivar-se plenamente no âmbito da sociedade burguesa que defende a livre iniciativa
e o papel mínimo do Estado.
b) o homem é o único ser que é ser-para-si, isto quer dizer que ele é o seu próprio projeto.
c) a má fé resulta da fuga da experiência da angústia de ter sempre que escolher.
d) os valores que estruturam a existência humana não são obrigações metafísicas individuais e nem imposições da tradição;
cabe apenas ao homem criá-las.
Gabarito
1. d
2. d
3. a
14
3 – A ÉTICA DA VIRTUDE EM ARISTÓTELES
Cabeça de ARISTÓTELES (384-322 a.C.).
Cópia do séc. I ou II d.C. Museu do Louvre, Paris.
TEXTO 5
NICÔMACO,, LIVRO I
ÉTICA A NICÔMACO
2
1. Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o
mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em
outras (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar),
evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem.
2. Mas não terá o seu conhecimento, porventura, grande influência sobre a nossa vida?
Semelhantes a arqueiros que têm um alvo certo para a sua pontaria, não alcançaremos mais
facilmente aquilo que nos cumpre alcançar? Se assim é, esforcemo-nos por determinar, ainda que
em linhas gerais apenas, o que seja ele e de qual das ciências ou faculdades constitui o objeto.
Ninguém duvidará de que o seu estudo pertença à arte mais prestigiosa e que mais verdadeiramente
se pode chamar a arte mestra. Ora, a política mostra ser dessa natureza, pois é ela que determina
quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve
aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdade tidas em maior apreço, como a estratégia,
a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por
outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve
abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal
fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e
mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha a pena atingir esse fim para um
indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-Estado. Tais
15
são, por conseguinte, os fins visados pela nossa investigação, pois que isso pertence à ciência política
numa das acepções do termo.
3
1. Nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não
se deve exigir a precisão em todos os raciocínios de maneira igual, assim como não se deve buscá-la
nos produtos de todas as artes mecânicas. Ora, as ações belas e justas, que a ciência política
investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião, de forma que se pode considerá-las
como existindo por convenção apenas, e não por natureza. E em torno dos bens há uma flutuação
semelhante, pelo fato de serem prejudiciais a muitos: houve, por exemplo, quem perecesse devido à
sua riqueza, e outros por causa da sua coragem.
2. Ao tratar, pois, de tais assuntos, e partindo de tais premissas, devemos contentar-nos em
indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais; e ao falar de coisas que são verdadeiras
apenas em sua maior parte e com base em premissas da mesma espécie, só podemos tirar
conclusões da mesma natureza. E é dentro do mesmo espírito que cada proposição deverá ser
recebida, pois é próprio do homem culto buscar a precisão, em cada gênero de coisas, apenas na
medida em que a admite a natureza do assunto. Evidentemente, não seria menos insensato aceitar
um raciocínio provável da parte de um matemático do que exigir provas científicas de um retórico.
[...]
3. Sirvam, pois, de prefácio estas observações [...].
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo:
Abril Cultural, 1979, p. 49-50.
TEXTO 6
NICÔMACO,, LIVRO II
ÉTICA A NICÔMACO
1
1. Sendo, pois, de duais espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra,
gera-se e cresce graças ao ensino — por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é
adquirida em resultado do hábito, donde ter-se formado o seu nome (éthiké) por uma pequena
modificação da palavra éthos (hábito). Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das
virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode
formar um hábito contrário à sua natureza. Por exemplo, à pedra que por natureza se move para
baixo não se pode imprimir o hábito de ir para cima, ainda que tentemos adestrá-la jogando-a dez
mil vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por
natureza se comporte de certa maneira a comportar-se de outra.
2. Não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós.
Diga-se, antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito.
3. Por outro lado, de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeiro adquirimos a
potência e mais tarde exteriorizamos os atos. Isso é evidente no caso dos sentidos, pois não foi por
ver ou ouvir frequentemente que adquirimos a visão e a audição, mas, pelo contrário, nós as
possuíamos antes de usá-las, e não entramos na posse delas pelo uso. Com as virtudes dá-se
exatamente o oposto: adquirimo-las pelo exercício, como também sucede com as artes. Com efeito,
as coisas que temos de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo; por exemplo, os
homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de lira tangendo esse instrumento. Da mesma
forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a temperança, a bravura, etc.
4. Isto é confirmado pelo que acontece nos Estados: os legisladores tornam bons os cidadãos
por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todo legislador, e quem não logra tal
desiderato falha no desempenho da sua missão. Nisso, precisamente, reside a diferença entre as
boas e as más constituições.
16
5. Ainda mais: é das mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destrói toda
virtude, assim como toda arte: de tocar a lira surgem os bons e os maus músicos. Isso também vale
para os arquitetos e todos os demais; construindo bem, tornam-se bons arquitetos; construindo mal,
maus. Se não fosse assim não haveria necessidade de mestres, e todos os homens teriam nascido
bons ou maus em seu ofício.
6. Isso, pois, é o que também ocorre com as virtudes: pelos atos que praticamos em nossas
relações com os homens nos tornamos justos ou injustos; pelo que fazemos em presença do perigo e
pelo hábito do medo ou da ousadia, nos tornamos valentes ou covardes. O mesmo se pode dizer dos
apetites e da emoção da ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros intemperantes e irascíveis,
portando-se de um modo ou de outro em igualdade de circunstâncias.
5
1. Devemos considerar agora o que é a virtude. Visto que na alma se encontram três espécies
de coisas — paixões, faculdades e disposições de caráter —, a virtude deve pertencer a uma destas.
2. Por paixões entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade,
o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e em geral os sentimentos que são acompanhados de
prazer ou dor; por faculdades, as coisas em virtude das quais se diz que somos capazes de sentir tudo
isso, ou seja, de nos irarmos, de magoar-nos ou compadecer-nos; por disposições de caráter, as
coisas em virtude das quais nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com
referência à cólera, nossa posição é má se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco, e boa se
a sentimos moderadamente; e da mesma forma no que se relaciona com as outras paixões.
3. Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos chama bons ou maus
devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ou vícios; e porque não somos louvados
nem censurados por causa de nossas paixões (o homem que sente medo ou cólera não é louvado,
nem é censurado o que simplesmente se encoleriza, mas sim o que se encoleriza de certo modo);
mas pelas nossas virtudes e vícios somos efetivamente louvados e censurados.
4. Por outro lado, sentimos cólera e medo sem nenhuma escolha de nossa parte, mas as
virtudes são modalidades de escolha, ou envolvem escolha. Além disso, com respeito às paixões se
diz que somos movidos, mas com respeito às virtudes e aos vícios não se diz que somos movidos, e
sim que temos tal ou tal disposição.
5. Por estas mesmas razões, também não são faculdades, porquanto ninguém nos chama
bons ou maus, nem nos louva ou censura pela simples capacidade de sentir as paixões. Acresce que
possuímos as faculdades por natureza, mas não nos tornamos bons ou maus por natureza. [...]
6. Por conseguinte, se as virtudes não são paixões nem faculdades, só resta uma alternativa:
a de que sejam disposições de caráter.
7. Mostramos, assim, o que é a virtude com respeito ao seu gênero.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo:
Abril Cultural, 1979, p. 67-68
TEXTO 7
NICÔMACO,, LIVRO II
ÉTICA A NICÔMACO
6
1. Não basta, contudo, definir a virtude como uma disposição de caráter; cumpre dizer que
espécie de disposição é ela.
2. Observemos, pois, que toda virtude ou excelência não só coloca em boa condição a coisa
de que é a excelência como também faz com que a função dessa coisa seja bem desempenhada. Por
exemplo, a excelência do olho torna bons tanto o olho como a sua função, pois é graças à excelência
do olho que vemos bem. Analogamente, a excelência de um cavalo tanto o torna bom em si mesmo
17
como bom na corrida, em carregar o seu cavaleiro e em aguardar de pé firme o ataque do inimigo.
Portanto, se isto vale para todos os casos, a virtude do homem também será a disposição de caráter
que o torna bom e que o faz desempenhar bem a sua função.
3. Como isso vem a suceder, já o explicamos atrás, mas a seguinte consideração da natureza
específica da virtude lançará nova luz sobre o assunto. Em tudo que é contínuo e divisível pode-se
tomar mais, menos ou uma quantidade igual, e isso quer em termos da própria coisa, quer
relativamente a nós; e o igual é um meio-termo entre o excesso e a falta. Por meio-termo no objeto
entendo aquilo que é equidistante de ambos os extremos, e que é um só e o mesmo para todos os
homens; e por meio-termo relativamente a nós, o que não é nem demasiado nem demasiadamente
pouco — e este não é um só e o mesmo para todos. Por exemplo, se dez é demais e dois é pouco,
seis é o meio-termo, considerado em função do objeto, porque excede e é excedido por uma
quantidade igual; esse número é intermediário de acordo com uma proporção aritmética. Mas o
meio-termo relativamente a nós não deve ser considerado assim: se dez libras é demais para uma
determinada pessoa comer e duas libras é demasiadamente pouco, não se segue daí que o treinador
prescreverá seis libras; porque isso também é, talvez, demasiado para a pessoa que deve comê-lo, ou
demasiadamente pouco — demasiadamente pouco para Milo e demasiado para o atleta
principiante. O mesmo se aplica à corrida e à luta. Assim, um mestre em qualquer arte evita o
excesso e a falta, buscando o meio-termo e escolhendo-o — o meio-termo não no objeto, mas
relativamente a nós.
4. Se é assim, pois, que cada arte realiza bem o seu trabalho — tendo diante dos olhos o
meio-termo e julgando suas obras por esse padrão; e por isso dizemos muitas vezes que às boas
obras de arte não é possível tirar nem acrescentar nada, subentendendo que o excesso e a falta
destroem a excelência dessas obras, enquanto o meio-termo a preserva; e para este, como dissemos,
se voltam os artistas no seu trabalho —, e, se, ademais disso, a virtude é mais exata e melhor que
qualquer arte, como também o é a natureza, segue-se que a virtude deve ter o atributo de visar ao
meio-termo. Refiro-me à virtude moral, pois é ela que diz respeito às paixões e ações, nas quais
existe excesso, carência e um meio-termo.
5. Por exemplo, tanto o medo como a confiança, o apetite, a ira, a compaixão, e em geral o
prazer e a dor, podem ser sentidos em excesso ou em grau insuficiente; e, num caso como no outro,
isso é um mal. Mas senti-los na ocasião apropriada, com referência aos objetos apropriados, para
com as pessoas apropriadas, pelo motivo e da maneira conveniente, nisso consistem o meio-termo e
a excelência característicos da virtude.
6. Analogamente, no que tange às ações também existe excesso, carência e um meio-termo.
Ora, a virtude diz respeito às paixões e ações, em que o excesso é uma forma de erro, assim como a
carência, ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvada
são características da virtude. Em conclusão, a virtude é uma espécie de mediania, já que, como
vimos, ela põe a sua mira no meio-termo.
7. Por outro lado, é possível errar de muitos modos (pois o mal pertence à classe do ilimitado
e o bem à do limitado, como supuseram os pitagóricos), mas só há um modo de acertar. Por isso, o
primeiro é fácil e o segundo difícil — fácil errar a mira, difícil atingir o alvo. Pelas mesmas razões, o
excesso e a falta são característicos do vício, e a mediania da virtude: Pois os homens são bons de um
modo só, e maus de muitos modos.
8. A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa
mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do
homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro
por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no
tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. E assim, no que toca à sua
substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania [...].
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São
Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 71-73.
18
EXERCÍCIOS DE VESTIBULARES
1. [UEL / 2010] No livro II da Ética a Nicômaco, Aristóteles diz que há duas espécies de virtudes – dianoética e ética. A
virtude dianoética requer o ensino, o que exige experiência e tempo. Já a virtude ética é adquirida pelo hábito e não é algo
que surge por natureza. Isso não quer dizer que as virtudes são geradas em nós contrariando a natureza. Para Aristóteles,
somos naturalmente aptos a receber as virtudes e nos aperfeiçoamos pelo hábito. Com base no enunciado e nos
conhecimentos sobre a ética aristotélica, considere as afirmativas a seguir:
I.
II.
III.
IV.
A virtude dianoética e a virtude ética são adquiridas, respectivamente, pela experiência, tempo e hábito.
A virtude dianoética e a virtude ética, por serem inatas, são facilmente aprendidas desde a infância.
Os seres humanos são naturalmente aptos a receber as virtudes éticas, embora não sejam virtuosos por natureza.
O hábito, de forma necessária, nos torna melhores eticamente, contudo as virtudes independem da ação para o
desenvolvimento moral do indivíduo.
Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
b) Somente as afirmativas I e III são corretas.
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
d) Somente as afirmativas I, II e IV são corretas.
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
2. [UEL / 2003]
A virtude é pois uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consiste numa mediania [...].
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova
Cultural, 1991, p. 33.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre a virtude em Aristóteles, assinale a alternativa correta.
a) A virtude é o governo das paixões para cumprir uma tarefa ou uma função.
b) A virtude realiza-se no mundo das idéias.
c) A virtude é a obediência aos preceitos divinos.
d) A virtude é a justa medida de equilíbrio entre o excesso e a falta.
e) A virtude tem como fundamento a utilidade da ação.
3. [UFU / Julho 2005]
A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania
relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um
meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam
aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, II, 6. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova
Cultural, 1979, p. 73.
Considerando o trecho acima e a concepção aristotélica de virtude, assinale a alternativa correta.
a)
b)
c)
d)
A virtude consiste na rejeição de todo prazer, resultado do uso da razão do homem sábio e corajoso que,
contendo suas paixões, escolhe viver de modo ascético e agir sempre com piedade e compaixão, dispondo-se a
sacrificar a qualquer momento a própria vida pelo próximo, pois, pleno de audácia e entusiasmo, não teme de
forma alguma a morte.
A virtude é a firme e irrefletida determinação para superar uma condição viciosa, como a coragem que, por ser
opor totalmente à covardia, define-se como temeridade ou audácia.
A virtude consiste numa capacidade equilibrada e racional de agir, como, por exemplo, a verificada na coragem,
medianeira entre o excesso de audácia que caracteriza a temeridade e a falta de audácia ou excesso de medo do
covarde.
A virtude é a capacidade ou força do político corajoso que usa racionalmente os seus recursos para conservar o
seu poder.
Gabarito
2. d
1. b
3. c
19
SEGUNDA PARTE
Filosofia Política
20
1 – ARISTÓTELES
RISTÓTELES E A CONCEPÇÃO GREGA DE POLÍTICA
Cabeça de ARISTÓTELES (384-322 a.C.).
Cópia do séc. I ou II d.C. Museu do Louvre, Paris.
TEXTO 8
A POLÍTICA
INTRODUÇÃO – O homem, “animal cívico”
1. A sociedade que se formou da reunião de várias aldeias constitui a Cidade, que tem a
faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conservar a existência, mas
também para buscar o bem-estar. Esta sociedade, portanto, também está nos desígnios da natureza,
como todas as outras que são seus elementos. Ora, a natureza de cada coisa é precisamente seu fim.
Assim, quando um ser é perfeito, de qualquer espécie que ele seja — homem, cavalo, família —,
dizemos que ele está na natureza. Além disso, a coisa que, pela mesma razão, ultrapassa as outras e
se aproxima mais do objetivo proposto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si mesmo é uma
meta a que tende toda a produção da natureza e é também o mais perfeito estado. É, portanto,
evidente que toda Cidade está na natureza e que o homem é naturalmente feito para a sociedade
política. Aquele que, por sua natureza e não por obra do acaso, existisse sem nenhuma pátria seria
um indivíduo detestável, muito acima ou muito abaixo do homem, segundo Homero: Um ser sem lar,
sem família e sem leis.
2. Aquele que fosse assim por natureza só respiraria a guerra, não sendo detido por nenhum
freio e, como uma ave de rapina, estaria sempre pronto para cair sobre os outros.
3. Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que
vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não
devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agradáveis ou
desagradáveis, de que os outros animais são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão
21
limitado a este único defeito; nós, porém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo
menos o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos
para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra
é o laço de toda sociedade doméstica e civil.
4. O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a
natureza. O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos
não são senão as partes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas
por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos
pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como
uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da Cidade: nenhum pode bastar-se a si
mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é
um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade.
5. O primeiro que a instituiu trouxe-lhe o maior dos bens. Mas, assim como o homem
civilizado é o melhor de todos os animais, aquele que não conhece nem justiça nem leis é o pior de
todos. Não há nada, sobretudo, de mais intolerável do que a injustiça armada. Por si mesmas, as
armas e a força são indiferentes ao bem e ao mal: é o princípio motor que qualifica seu uso. Servir-se
delas sem nenhum direito e unicamente para saciar suas paixões rapaces ou lúbricas é atrocidade e
perfídia. Seu uso só é lícito para a justiça. O discernimento e o respeito ao direito formam a base da
vida social e os juízes são seus primeiros órgãos.
LIVRO III
Capítulo IX – Das Diversas Formas
Formas de Governo
1. O governo é o exercício do poder supremo do Estado. Este poder só poderia estar ou nas
mãos de um só, ou da minoria, ou da maioria das pessoas. Quando o monarca, a minoria ou a
maioria não buscam, uns ou outros, senão a felicidade geral, o governo é necessariamente justo.
Mas, se ele visa ao interesse particular do príncipe ou dos outros chefes, há um desvio. O interesse
deve ser comum a todos ou, se não o for, não são mais cidadãos.
2. Chamamos monarquia o Estado em que o governo que visa a este interesse comum
pertence a um só; aristocracia, aquele em que ele é confiado a mais de um, denominação tomada ou
do fato de que as poucas pessoas a que o governo é confiado são escolhidas entre as mais honestas,
ou de que elas só têm em vista o maior bem do Estado e de seus membros; república, aquele em que
a multidão governa para a utilidade pública; este nome também é comum a todos os Estados.
...................................................................................................................................................................
3. Estas três formas podem degenerar: a monarquia em tirania; a aristocracia, em oligarquia;
a república em democracia. A tirania não é, de fato, senão a monarquia voltada para a utilidade do
monarca; a oligarquia, para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres.
Nenhuma das três se ocupa do interesse público. Podemos dizer ainda, de um modo um pouco
diferente, que a tirania é o governo despótico exercido por um homem sobre o Estado, que a
oligarquia representa o governo dos ricos e a democracia o dos pobres ou das pessoas pouco
favorecidas.
ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 4-6, p. 105-106.
22
EXERCÍCIOS DE VESTIBULARES
1. [UEL / 2004] Observe a charge e leia o texto a seguir.
Fonte: LAERTE. Classificados. São Paulo: Devir, 2001. p. 25.
É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza ,que o homem é naturalmente um animal político, destinado
a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de
uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem [...].
ARISTÓTELES. A política. Tradução. de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 13.
Com base no texto de Aristóteles e na charge, é correto afirmar:
a) O texto de Aristóteles confirma a idéia exposta pela charge de que a condição humana de ser político é artificial e um
obstáculo à liberdade individual.
b) A charge apresenta uma interpretação correta do texto de Aristóteles segundo a qual a política é uma atividade nociva à
coletividade devendo seus representantes serem afastados do convívio social.
c) A charge aborda o ponto de vista aristotélico de que a dimensão política do homem independe da convivência com seus
semelhantes, uma vez que o homem basta-se a si próprio.
d) A charge, fazendo alusão à afirmação aristotélica de que o homem é um animal político por natureza, sugere uma crítica
a um tipo de político que ignora a coletividade privilegiando interesses particulares e que,por isso, deve ser evitado.
e) Tanto a charge quanto o texto de Aristóteles apresentam a idéia de que a vida em sociedade degenera o homem,
tornando-o um animal.
2. [UEL / 2004] Leia o texto abaixo:
Uma vez que constituição significa o mesmo que governo, e o governo é o poder supremo em uma cidade, e o mando pode
estar nas mãos de uma única pessoa, ou de poucas pessoas, ou da maioria, nos casos em que esta única pessoa, ou as
poucas pessoas, ou a maioria, governam tendo em vista o bem comum, estas constituições devem ser forçosamente as
corretas; ao contrário, constituem desvios os casos em que o governo é exercido com vistas ao próprio interesse da única
pessoa, ou das poucas pessoas, ou da maioria, pois ou se deve dizer que os cidadãos não participam do governo da cidade,
ou é necessário que eles realmente participem.
ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UNB, 1997, p. 91.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre as formas de governo em Aristóteles, analise as afirmativas a seguir.
I. A democracia é uma forma de governo reta, ou seja, um governo que prioriza o exercício do poder em benefício do
interesse comum.
II. A democracia faz parte das formas degeneradas de governo, entre as quais destacam-se a tirania e a oligarquia.
III. A democracia é uma forma de governo que desconsidera o bem de todos; antes, porém, visa a favorecer indevidamente
os interesses dos mais pobres, reduzindo-se, desse modo, a uma acepção
demagógica.
IV. A democracia é a forma de governo mais conveniente para as cidades gregas, justamente porque realiza o bem do
Estado, que é o bem comum.
23
Estão corretas apenas as afirmativas:
a) I e III.
b) I e IV.
c) II e III.
d) I, II e III.
e) II, III e IV.
Gabarito
1. d
2. c
24
2 – MAQUIAVEL E A SEPARAÇÃO ENTRE MORAL E POLÍTICA
Retrato de NICOLAU MAQUIAVEL (1469-1527).
Pintura de Santi di Tilto. Palazzo Vecchio, Florença.
O PRÍNCIPE
TEXTO 9
CAPÍTULO XV
Das razões por que os homens e, especialmente,
os príncipes são louvados ou vituperados
1. Resta examinar agora como deve um príncipe comportar-se com os seus súditos e seus
amigos. Como sei que muita gente já escreveu a respeito desta matéria, duvido que não seja
considerado presunçoso propondo-me examiná-la também, tanto mais quanto, ao tratar deste
assunto, não me afastarei grandemente dos princípios estabelecidos pelos outros. Todavia, como é
meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar
a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se pode imaginar. E muita gente imaginou
repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros. Vai
tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com
o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que o modo de se
preservar; e um homem que quiser fazer profissão de bondade é natural que se arruíne entre tantos
que são maus.
2. Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se
valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade.
3. Deixando de parte, pois, as coisas ignoradas relativamente aos príncipes e falando a
respeito das que são reais, digo que todos os homens, máxime os príncipes, por estarem mais no
alto, se fazem notar através das qualidades que lhe acarretam reprovação ou louvor. Isto é, alguns
são tidos como liberais, outros como miseráveis (usando o termo toscano misero, porque avaro, em
nossa língua, é ainda aquele que deseja possuir pela rapinagem, e miseri chamamos aos que se
abstêm muito de usar o que possuem); alguns são tidos como pródigos, outros como rapaces; alguns
são cruéis e outros piedosos; perjuros ou leiais; efeminados e pusilânimes ou truculentos e
animosos; humanitários ou soberbos; lascivos ou castos; estúpidos ou astutos; enérgicos ou
indecisos; graves ou levianos; religiosos ou incrédulos, e assim por diante. E eu sei que cada qual
reconhecerá que seria muito de louvar que um príncipe possuísse, entre todas as qualidades
25
referidas, as que são tidas como boas; mas a condição humana é tal, que não consente a posse
completa de todas elas, nem ao menos a sua prática consistente; é necessário que o príncipe seja tão
prudente que saiba evitar os defeitos que lhe arrebatariam o governo e praticar as qualidades
próprias para lhe assegurar a posse deste, se lhe é possível; mas, não podendo, com menor
preocupação, pode-se deixar que as coisas sigam seu curso natural. E ainda não lhe importe incorrer
na fama de ter certos defeitos, defeitos estes sem os quais dificilmente poderia salvar o governo,
pois que, se se considerar bem tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se fossem
praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e que, sendo seguidas,
trazem a segurança e o bem-estar do governante.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 63-64.
TEXTO 10
CAPÍTULO XVIII
De que forma os príncipes devem guardar a fé
1. Quanto seja louvável a um príncipe manter a fé e viver com integridade, não com astúcia,
todos o compreendem; contudo, observa-se, pela experiência, em nossos tempos, que houve
príncipes que fizeram grandes coisas, mas em pouca conta tiveram a palavra dada, e souberam, pela
astúcia, transtornar a cabeça dos homens, superando, enfim, os que foram leais.
2. Deveis saber, portanto, que existem duas formas de se combater: uma, pelas leis, outra,
pela força. A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes a
primeira não seja suficiente, é preciso recorrer à segunda. Ao príncipe torna-se necessário, porém,
saber empregar convenientemente o animal e o homem. Isto foi ensinado à socapa aos príncipes,
pelos antigos escritores, que relatam o que aconteceu com Aquiles e outros príncipes antigos,
entregues aos cuidados do centauro Quiron, que os educou. É isso que (ter um preceptor metade
animal e metade homem) significa que o príncipe sabe empregar uma e outra natureza. E uma sem a
outra é a origem da instabilidade. Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza
da besta, deve dela tirar as qualidades da raposa e do leão, pois este não tem defesa alguma contra
os laços, e a raposa, contra os lobos. Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para
aterrorizar os lobos. Os que se fizerem unicamente de leões não serão bem sucedidos. Por isso, um
príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e
quando as causas que o determinaram cessem de existir. Se os homens todos fossem bons, este
preceito seria mau. Mas, dado que são pérfidos e que não a observariam a teu respeito, também não
és obrigado a cumpri-la para com eles. Jamais faltaram aos príncipes razões para dissimular a quebra
da fé jurada. Disto poder-se-iam dar inúmeros exemplos modernos, mostrando quantas convenções
e quantas promessas se tornam írritas e vãs pela infidelidade dos príncipes. E, dentre estes, o que
melhor soube valer-se das qualidades da raposa saiu-se melhor. Mas é necessário disfarçar muito
bem esta qualidade e ser bom simulador e dissimulador. E tão simples são os homens, e obedecem
tanto às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar.
Não quero deixar de falar pelo menos de um dos exemplos novos. Alexandre VI não pensou e não fez
outra coisa senão enganar os homens, tendo sempre encontrado ocasião para assim proceder.
Jamais existiu homem que possuísse maior segurança em asseverar, e que afirmasse com juramentos
mais solenes o que, depois, não observaria. No entanto, os enganos sempre lhe correram à medida
dos seus desejos, pois ele conhecia muito bem este lado da natureza humana.1
3. Contudo, o príncipe não precisa possuir todas as qualidades acima citadas, bastando que
aparente possuí-las. Antes, teria eu a audácia de afirmar que, possuindo-as e usando-as todas, essas
qualidades seriam prejudiciais, ao passo que, aparentando possuí-las, são benéficas; por exemplo: de
um lado, parecer ser efetivamente piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e de outro, ter o ânimo
de, sendo obrigado pelas circunstâncias a não o ser, tornar-se o contrário. E há de se entender o
1
Dizia-se de Alexandre VI que ele nunca fazia o que dizia, ao passo que César Bórgia nunca dizia o que ia fazer.
26
seguinte: que um príncipe, e especialmente um príncipe novo, não pode observar todas as coisas a
que são obrigados os homens considerados bons, sendo frequentemente forçado, para manter o
governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade e a religião. É necessário, por isso, que possua
ânimo disposto a voltar-se para a direção a que os ventos e as variações da sorte o impelirem, e,
como disse mais acima, não partir do bem, mas, podendo, saber entrar para o mal, se a isso estiver
obrigado. O príncipe deve, no entanto, ter cuidado em não deixar escapar da boca expressões que
não revelem as cinco qualidades acima mencionadas, devendo aparentar, à vista e ao ouvido, ser
todo piedade, fé, integridade, humanidade, religião. Não há qualidade de que mais se careça do que
esta última. É que os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos
podem ver, mas poucos são os que sabem sentir. Todos veem o que tu pareces, mas poucos o que és
realmente, e estes poucos não têm a audácia de contrariar a opinião dos que têm por si a majestade
do Estado. Nas ações de todos os homens, máxime dos príncipes, onde não há tribunal para que
recorrer, o que importa é o êxito bom ou mau. Procure, pois, um príncipe, vencer e conservar o
Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o
vulgo é levado pelas aparências e pelos resultados dos fatos consumados, e o mundo é constituído
pelo vulgo, e não haverá lugar para a minoria se a maioria não tem onde se apoiar. Um príncipe de
nossos tempos, cujo nome não convém declarar, prega incessantemente a paz e a fé, sendo, no
entanto, inimigo acérrimo de uma e de outra.1 E qualquer delas, se ele efetivamente a observasse,
ter-lhe-ia arrebatado, mais de uma vez, a reputação ou o Estado.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 73-75.
1
Alusão a Fernando, o Católico.
27
EXERCÍCIOS DE VESTIBULARES
1. [UEL /2010] Leia o texto de Maquiavel a seguir:
[Todo príncipe prudente deve] não só remediar o presente, mas prever os casos futuros e preveni-los com toda a perícia,
de forma que se lhes possa facilmente levar corretivo, e não deixar que se aproximem os acontecimentos, pois deste modo
o remédio não chega a tempo, tendo-se tornado incurável a moléstia. [...] Assim se dá com o Estado: conhecendo-se os
males com antecedência o que não é dado senão aos homens prudentes, rapidamente são curados [...].
MAQUIAVEL, N. O príncipe / Escritos políticos. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.12.
Nas ações de todos os homens, máxime dos príncipes, onde não há tribunal para recorrer, o que importa é o êxito bom ou
mau. Procure, pois, um príncipe, vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e
louvados por todos, porque o vulgo é levado pelas aparências e pelos resultados dos fatos consumados.
MAQUIAVEL, N. O príncipe / Escritos políticos. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.75.
Com base nos textos e nos conhecimentos sobre o pensamento de Maquiavel acerca da polaridade entre virtú e fortuna na
ação política e suas implicações na moralidade pública, considere as afirmativas a seguir:
A virtú refere-se à capacidade do príncipe de agir com astúcia e força em meio à fortuna, isto é, à contingência e
ao acaso nas quais a política está imersa, com a finalidade de alcançar êxito em seus objetivos.
II. A fortuna manifesta o destino inexorável dos homens e o caráter imutável de todas as coisas, de modo que a virtú
do príncipe consiste em agir consoante a finalidade do Estado ideal: a felicidade dos súditos.
III. A virtú implica a adesão sincera do governante a um conjunto de valores morais elevados, como a piedade cristã e
a humildade, para que tenha êxito na sua ação política diante da fortuna.
IV. O exercício da virtú diante da fortuna constitui a lógica da ação política orientada para a conquista e a
manutenção do poder e manifesta a autonomia dos fins políticos em relação à moral preestabelecida.
I.
Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
b) Somente as afirmativas II e III são corretas.
c) Somente as afirmativas II e IV são corretas.
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
e) Somente as afirmativas I, III e IV são corretas.
2. [UEL / 2009] Leia o seguinte texto de Maquiavel.
[...] como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade
pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se pode imaginar. E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca
se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros. Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se
deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do
que o modo de se preservar; e um homem que quiser fazer profissão de bondade é natural que se arruíne entre tantos que
são maus. Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser maus e que se valha ou deixe de
valer-se disso segundo a necessidade.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Cap. XV. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 69.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o pensamento de Maquiavel acerca da relação entre poder e moral, é
corretor afirmar.
a)
b)
c)
d)
e)
Maquiavel se preocupa em analisar a ação política considerando tão-somente as qualidades morais do Príncipe,
que determinam a ordem objetiva do Estado.
O sentido da ação política, segundo Maquiavel, tem por fundamento originário e, portanto, anterior, a ordem
divina, refletida na harmonia da Cidade.
Para Maquiavel, a busca da ordem e da harmonia, em face do desequilíbrio e do caos, só se realiza com a
conquista da justiça e do bem comum.
Na reflexão política de Maquiavel, o fim que deve orientar as ações de um Príncipe é a ordem e a manutenção do
poder.
A análise de Maquiavel, com base nos valores espirituais superiores aos políticos, repudia como ilegítimo o
emprego da força coercitiva do Estado.
28
3. [UFU / Fevereiro 2004] Antonio Gramsci, filósofo político do século passado, proferiu o seguinte comentário a respeito de
Maquiavel:
Maquiavel não é um mero cientista; ele é um homem de participação, de paixões poderosas, um político prático, que
pretende criar novas relações de força e que por isso mesmo não pode deixar de se ocupar com o ‘deve ser’, que não deve
ser entendido em sentido moralista. Assim, a questão não deve ser colocada nestes termos, é mais complexa: trata-se de
considerar se o ‘dever ser’ é um ato arbitrário ou necessário, é vontade concreta, ou veleidade, desejo, sonho. O político
em ação é um criador, um suscitador; mas não cria do nada, nem se move no vazio túrbido dos seus desejos e sonhos.
Baseia-se na realidade factual.
GRAMSCI, A. Maquiavel. A política e o Estado moderno. Tradução de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 42-43.
Considerando o texto de Gramsci, marque a alternativa correta.
a) Maquiavel não trata o “deve ser” na perspectiva ontológica da filosofia clássica. O juízo moral se submete às condições
concretas que se apresentam para a conquista e a conservação do poder do Estado pelo príncipe moderno.
b) O poder da paixão do político prático é visto por Maquiavel como o único caminho para o poder, isto significa que o
príncipe deve agir guiado pelas suas veleidades e desejos que alimentam o seu sonho de poder.
c) A realidade factual não deve ser vista como o conjunto das forças históricas. Elas podem ser desprezadas porque o
príncipe é dotado de sabedoria suficiente para prescindir delas e agir motivado apenas pelos seus desejos.
c) O príncipe é um homem de criação, que dá forma ao “dever ser” e rompe a distância que separa o sonho da realidade,
porque tudo aquilo que ele quer, ele faz independente da realidade factual em que se insere a ação política.
Gabarito
1. a
2. d
3. a
29
3 – HOBBES
OBBES E A JUSTIFICAÇÃO
DO ESTADO ABSOLUTISTA
Retrato de THOMAS HOBBES (1588-1679).
Pintura de John Michael Wright. National Portrait Gallery, Londres.
TEXTO 11
LEVIATÃ
OU MATÉRIA, FORMA E PODER DE UM ESTADO
ECLESIÁSTICO E CIVIL
Capítulo XVII
Das causas, geração
geração e definição de um Estado
1. O fim último, causal final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o
domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver
nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o
desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária (conforme se
mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em
respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas
leis da natureza [...].
2. Porque as leis da natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em
resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de
algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais
30
nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a
espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar
das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazêlo em segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada
um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como
proteção contra os outros. Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias,
roubar-se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser
considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior era a
honra adquirida. Nesse tempo os homens tinham como únicas leis as leis da honra, ou seja, evitar a
crueldade, isto é, deixar aos outros suas vidas e seus instrumentos de trabalho. Tal como então
faziam as pequenas famílias, assim também fazem hoje as cidades e os reinos, que não são mais do
que famílias maiores, para sua própria segurança ampliando seus domínios e, sob qualquer pretexto
de perigo, de medo de invasão ou assistência que pode ser prestada aos invasores, legitimamente
procuram o mais possível subjugar ou enfraquecer seus vizinhos, por meio da força ostensiva e de
artifícios secretos, por falta de qualquer outra segurança; e em épocas futuras por tal são recordadas
com honra.
...................................................................................................................................................................
3. É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem
sociavelmente umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas
políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual
possam indicar umas às outras o que consideram adequado para o benefício comum. Assim, talvez
haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho a
responder o seguinte.
4. Primeiro, que os homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e
pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os
homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não
acontece.
5. Segundo, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem
individual e, dado que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o bem
comum. Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode tirar
prazer do que é eminente.
6. Terceiro, que, como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso da razão,
elas não veem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum. Ao passo
que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que
os outros para o exercício do poder público. E esses esforçam-se por empreender reformas e
inovações, uns de uma maneira e outros doutra, acabando assim por levar o país à desordem e à
guerra civil.
7. Quarto, que essas criaturas, embora sejam capazes de um certo uso da voz, para dar a
conhecer umas às outras seus desejos e outras afecções, apesar disso carecem daquela arte das
palavras mediante a qual alguns homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a
aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a
importância visível do bem ou do mal, semeando o descontentamento entre os homens e
perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem.
8. Quinto, as criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e
consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes.
Ao passo que o homem é tanto mais implicativo quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso
que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado.
9. Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens
surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar que seja
necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou
31
seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do benefício
comum.
10. A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos
estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que,
mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é
conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir
suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar
um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e
reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa
praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos
submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é
mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e
mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é
como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim
mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu
direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida
numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes
(para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus
Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no
Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz
de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua
contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim
definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os
outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de
todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.
11. Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder
soberano. Todos os restantes são súditos.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nissa da Silva. São Paulo: Abril
Cultural, 1983, p. 104-106.
32
EXERCÍCIOS DE VESTIBULARES
1. [UEL / 2003]
Sabemos que Hobbes é um contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII
(basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato: os homens viveriam,
naturalmente, sem poder e sem organização – que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles,
estabelecendo as regras de comércio social e de subordinação política.
RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco. Os clássicos
da política. São Paulo: Ática, 2000. p. 53.
Com base no texto, que se refere ao contratualismo de Hobbes, considere as seguintes afirmativas:
I.
II.
III.
IV.
A soberania decorrente do contrato é absoluta.
A noção de estado de natureza é imprescindível para essa teoria.
O contrato ocorre por meio da passagem do estado social para o estado político.
O cumprimento do contrato independe da subordinação política dos indivíduos.
Quais das afirmativas representam o pensamento de Hobbes?
a) Apenas as afirmativas I e II.
b) Apenas as afirmativas I e III.
c) Apenas as afirmativas II e III.
d) Apenas as afirmativas II e IV.
e) Apenas as afirmativas III e IV.
2. [UEL / 2010] Leia os textos de Hobbes a seguir.
[...] Os homens não podem esperar uma conservação duradoura se continuarem no estado de natureza, ou seja, de guerra,
e isso devido à igualdade de poder que entre eles há, e a outras faculdades com que estão dotados. A lei da natureza
primeira, e fundamental, é que devemos procurar a paz, quando possa ser encontrada [...]. Uma das leis naturais inferidas
desta primeira e fundamental é a seguinte: que os homens não devem conservar o direito que têm, todos, a todas as
coisas.
HOBBES, T. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 40 - 41; 45 - 46.
[...] aquele que submete sua vontade à vontade outrem transfere a este último o direito sobre sua força e suas faculdades –
de tal modo que, quando todos os outros tiverem feito o mesmo, aquele a quem se submeteram terá tanto poder que, pelo
terror que este suscita, poderá conformar as vontades particulares à unidade e à concórdia. [...] A união assim feita diz-se
uma cidade, ou uma sociedade civil.
HOBBES, T. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, p. 1992, p. 109.
Para os jusnaturalistas o problema da legitimidade do poder político comporta uma questão de fato e uma questão de
direito, isto é, o problema da instituição da sociedade civil e o problema do fundamento da autoridade política.
Com base nos textos e nos conhecimentos sobre o pensamento jusnaturalista de Hobbes, considere as afirmativas a seguir:
I. A instituição da sociedade civil fundamenta-se na sociabilidade natural do ser humano, pela qual os indivíduos
hipoteticamente livres e iguais decidem submeter-se à autoridade comum de um só homem ou de uma assembléia.
II. Além do pacto de associação para união de todos em um só corpo, é preciso que ao mesmo tempo se estabeleça o
pacto de submissão de todos a um poder comum para a preservação da segurança e da paz civil.
III. A soberania do povo encontra sua origem e seus princípios fundamentais no ato do contrato social constituído pelas
vontades particulares dos indivíduos a fim de edificar uma vontade geral indivisível e inalienável.
IV. O estado de guerra decorre em última instância da necessidade fundamental dos homens, naturalmente iguais entre
si, por sua preservação que faz com que cada um tenha direito a tudo.
Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
b) Somente as afirmativas II e III são corretas.
c) Somente as afirmativas II e IV são corretas.
33
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
e) Somente as afirmativas I, III e IV são corretas.
3. [UFU / Dezembro 2004] Hobbes escreve, no Leviatã, que a condição dos homens fora da sociedade civil nada mais é do
que uma simples guerra todos contra todos, na qual todos os homens têm igual direito a todas as coisas.Com base nisso,
assinale a única alternativa correta.
a) A sociedade civil continua o estado de natureza.
b) A sociedade civil é uma ruptura com o estado de natureza.
c) O estado de guerra está presente na sociedade civil.
d) A guerra de todos contra todos não pode ser eliminada da condição humana.
Gabarito
1. a
2. d
3. b
34
4 – LOCKE E O ESTADO LIBERAL
Retrato de JOHN LOCKE (1632-1704).
Pintura de Godfrey Kneller. Museu Hermitage, São Peterburgo.
TEXTO 12
SEGUNDO TRATADO SOBRE
SOBRE O GOVERNO
ENSAIO RELATIVO À VERDADEIRA
VERDADEIRA ORIGEM,
EXTENSÃO E OBJETIVO DO GOVERNO CIVIL
CAPÍTULO II
Do Estado de Natureza
4. Para bem compreender o poder político e derivá-lo de sua origem, devemos considerar em
que estado todos os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade
para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente,
dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer
outro homem.
Estado também de igualdade, no qual é recíproco qualquer poder e jurisdição, ninguém
tendo mais do que qualquer outro; nada havendo de mais evidente que criaturas da mesma espécie
e da mesma ordem, nascidas promiscuamente a todas as mesmas vantagens da natureza e ao uso
das mesmas faculdades, terão também de ser iguais umas às outras sem subordinação ou sujeição; a
menos que o senhor de todas elas, mediante qualquer declaração manifesta de sua vontade,
colocasse uma acima da outra, conferindo-lhe, por indicação evidente e clara, direito indubitável ao
domínio e à soberania.
...................................................................................................................................................................
6. Contudo, embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade, apesar de
ter o homem naquele estado liberdade incontrolável de dispor da própria pessoa e posses, não tem a
de destruir-se a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão quando uso mais
nobre do que a simples conservação o exija. O estado de natureza tem uma lei de natureza para
governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão-só a
consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na
vida, na saúde, na liberdade ou nas posses. [...]
35
CAPÍTULO V
Da Propriedade
27. Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada
homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele
mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele. Seja o
que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado
ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o
propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse
trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens. Desde que esse trabalho é
propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que se juntou, pelo
menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros.
CAPÍTULO VII
Da Sociedade Política ou Civil
89. Sempre que, portanto, qualquer número de homens se reúne em uma sociedade de tal
sorte que cada um abandone o próprio poder executivo da lei da natureza, passando-o ao público,
nesse caso e somente nele haverá uma sociedade civil ou política. E tal se dá sempre que qualquer
número de homens, no estado de natureza, entra em sociedade, para constituir um povo, um corpo
político, sob um governo supremo, ou então quando qualquer indivíduo se junta ou se incorpora a
qualquer governo já constituído; porque por esse meio autoriza a sociedade ou, o que vem a dar no
mesmo, o poder legislativo dela a fazer leis para ele conforme o exigir o bem público da sociedade,
para a execução das quais pode-se pedir-lhe o auxílio, como se fossem decretos dele mesmo. E por
este modo os homens deixam o estado de natureza para entrarem no de comunidade,
estabelecendo um juiz na Terra, com autoridade para resolver todas as controvérsias e reparar os
danos que atinjam a qualquer membro da comunidade; juiz esse que é o legislativo ou os
magistrados por ele nomeados. E, sempre que houver qualquer número de homens, associados
embora, que não possuam tal poder decisivo para o qual apelar, estes ainda se encontrarão em
estado de natureza.
90. Do que ficou dito é evidente que a monarquia absoluta, que alguns consideram o único
governo do mundo, é, de fato, incompatível com o governo civil, não podendo por isso ser uma
forma qualquer de governo civil, porque o objetivo da sociedade civil consiste em evitar e remediar
os inconvenientes do estado de natureza que resultam necessariamente de poder cada homem ser
juiz em seu próprio caso, estabelecendo-se uma autoridade conhecida para a qual todos os membros
dessa sociedade podem apelar por qualquer dano que lhe causem ou controvérsia que possa surgir,
e à qual todos os membros dessa sociedade terão de obedecer. Onde quer que existam pessoas que
não tenham semelhante autoridade a que recorrerem para decisão de qualquer diferença entre elas,
estarão tais pessoas no estado de natureza; e assim se encontra qualquer príncipe absoluto em
relação aos que estão sob seu domínio.
CAPÍTULO VIII
Do Começo das Sociedades Políticas
95. Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e
independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de
outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia
à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras
pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas
com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior
proteção contra quem quer que não faça parte dela. Qualquer número de homens pode fazê-lo,
porque não prejudica a liberdade dos demais; ficam como estavam na liberdade do estado de
36
natureza. Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em constituir uma
comunidade ou governo, ficam, de fato, a ela incorporados e formam um corpo político no qual a
maioria tem o direito de agir e resolver por todos.
CAPÍTULO IX
Dos fins da Sociedade Política e do Governo
123. Se o homem no estado de natureza é tão livre, conforme dissemos, se é senhor absoluto
da sua própria pessoa e posses, igual ao maior e a ninguém sujeito, por que abrirá ele mão dessa
liberdade, por que abandonará o seu império e sujeitar-se-á ao domínio e controle de qualquer outro
poder? Ao que é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruição do
mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque, sendo todos
reis tanto quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte pouco observadores da equidade e
da justiça, a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito arriscada. Estas
circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de temores e
perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com
outros que estão já unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e
dos bens a que chamo de “propriedade”.
124. O objetivo grande principal, portanto, da união dos homens em comunidades,
colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade. Para este objetivo, muitas condições
faltam no estado de natureza:
Primeiro, falta uma lei estabelecida, firmada, conhecida, recebida e aceita mediante
consentimento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer
controvérsias entre os homens; porque, embora a lei da natureza seja evidente e inteligível para
todas as criaturas racionais, entretanto os homens, sendo desviados pelo interesse bem como
ignorantes dela porque não a estudam, não são capazes de reconhecê-la como lei que os obrigue nos
seus casos particulares.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 35, p. 45-46, p. 67-68, p. 77, p. 82-83.
37
EXERCÍCIOS DE VESTIBULARES
1. [UFU / Julho 2007] Partindo do modelo de comunidade originária, John Locke descreve os pressupostos de sua teoria da
propriedade. É um dever do homem se conservar e, portanto, preservar a sua vida. Esta tese pressupõe que todos os
indivíduos racionais são proprietários de sua própria pessoa e, em conseqüência disso, do trabalho de suas mãos, da
energia gasta no processo de apropriação e transformação dos recursos naturais. Mais exatamente, o fundamento
irredutível da propriedade é a propriedade de si mesmo, de sua própria pessoa, e do trabalho que essa pessoa realiza.
Em conformidade com o pensamento de Locke, assinale a alternativa correta.
a) A propriedade determina o início das desigualdades morais entre os homens e o declínio da civilização.
b) O pacto social institui o direito de propriedade nas sociedades que já estão politicamente constituídas.
c) A propriedade é fruto do esforço humano e deve garantir a liberdade dos indivíduos.
d) O detentor da soberania absoluta é responsável pela distribuição do direito à propriedade aos cidadãos de um
determinado corpo político.
2. [UFU / Janeiro 2004] John Locke justificou a existência do Estado com estas palavras:
O motivo que leva os homens a entrarem em sociedade é a preservação da propriedade; e o objetivo para o qual escolhem
e autorizam um poder legislativo é tornar possível a existência de leis e regras estabelecidas como guarda e proteção às
propriedades de todos os membros da sociedade, a fim de limitar o poder e moderar o domínio de cada parte e de cada
membro da comunidade; pois não se poderá nunca supor seja vontade da sociedade que o legislativo possua o poder de
destruir o que todos intentam assegurar-se, entrando em sociedade e para o que o povo se submeteu a legisladores por ele
mesmo criado.
LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 121.
Analise as assertivas em conformidade com a citação acima.
I . A propriedade privada é contratual, isto é, ela é subsequente ao nascimento do Estado, que institui o direito à
propriedade, distribuindo a cada um aquilo que era propriedade comunal no estado de natureza.
II . A propriedade privada surge com o aparecimento da sociedade civil, a geradora do Estado, que é a instituição suprema
que tem, inclusive, a prerrogativa de suprimir a propriedade em benefício da segurança do Estado.
III . A propriedade privada é parte do estado de natureza, pois o homem possui a propriedade de si mesmo e, com isso, tem
o direito de tornar como sua propriedade aquilo que está vinculado com seu trabalho.
IV . A propriedade privada é anterior à sociedade civil, portanto, a propriedade antecedeu ao Estado, cuja existência
resultou do contrato social e teve a finalidade de preservar e proteger a propriedade privada de cada um.
Assinale a alternativa que tem as assertivas corretas.
a) III e IV.
b) I e II.
c) II e III
d) II.
3. [UFU / Janeiro 1999] Para John Locke, filósofo político inglês, os direitos naturais do homen eram
a) família, propriedade e religião.
b) liberdade, propriedade e servidão.
c) propriedade, servidão e família.
d) liberdade, igualdade e propriedade.
e) família, religião e pátria.
Gabarito
1. c
2. a
3. d
38
5 – ROUSSEAU E A VONTADE GERAL
Retrato de JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778).
Pintura de Maurice Quentin de La Tour. Musée Antoine Lécuyer.
TEXTO 13
DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS
FUNDAMENTOS
DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS
[O estado de natureza]
1. Parece, a princípio, que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre si
qualquer espécie de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus ou
possuir vícios e virtudes, a menos que, tomando estas palavras num sentido físico, se considerem
como vícios do indivíduo as qualidades capazes de prejudicar sua própria conservação, e virtudes
aquelas capazes de em seu favor contribuir, caso em que se poderia chamar de mais virtuosos
àqueles que menos resistissem aos impulsos simples da natureza. Sem nos afastarmos do senso
comum, é oportuno suspender o julgamento que poderíamos fazer de uma tal situação e desconfiar
de nossos preconceitos até que, de balança na mão, se tenha examinado se há mais virtudes do que
vícios entre os homens civilizados; ou se suas virtudes são mais proveitosas do que funestos seus
vícios; ou se o progresso de seus conhecimentos constitui compensação suficiente dos males que se
causam mutuamente à medida que se instruem sobre o bem que deveriam dispensar-se; ou se não
estariam, na melhor das hipóteses, numa situação mais feliz não tendo nem mal a temer nem bem a
esperar de ninguém, ao invés de ter-se submetido a uma dependência universal e obrigar-se a
receber tudo daqueles que nada se obrigam a lhe dar.
39
2. Não iremos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma ideia da bondade,
seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a virtude; que nem sempre
recusa a seus semelhantes serviços que não crê dever-lhes; nem que, devido ao direito que se atribui
com razão relativamente às coisas de que necessita, loucamente imagine ser o proprietário do
universo inteiro. Hobbes viu muito bem o defeito de todas as definições modernas de direito natural,
mas as consequências, que tira das suas, mostram que o toma num sentido que não é menos falso.
Raciocinando sobre os princípios que estabeleceu, esse autor deveria dizer que, sendo o estado de
natureza aquele no qual o cuidado de nossa conservação é o menos prejudicial ao de outrem, esse
estado era, consequentemente, o mais propício à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Ele
diz justamente o contrário por ter incluído, inoportunamente, no desejo de conservação do homem
selvagem a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que
tornaram as leis necessárias. O mau, diz ele, é uma criança robusta. Resta saber se o homem
selvagem é uma criança robusta. [...]
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural,
1991, p. 251-252.
TEXTO 14
DO CONTRATO SOCIAL
OU PRINCÍPIOS DO DIREITO
DIREITO POLÍTICO
LIVRO I
Capítulo VI – Do pacto social
1. Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua
conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo
dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo não pode subsistir, e o gênero
humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria.
2. Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as
já existentes, não têm eles outro meio de conservar-se senão formando, por agregação, um conjunto
de forças, que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a operar
em concerto.
3. Essa soma de forças só pode nascer do concurso de muitos; sendo, porém, a força e a
liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação, como poderia ele
empenhá-los sem prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si mesmo deve? Essa dificuldade,
reconduzindo ao meu assunto, poderá ser enunciada como segue:
4. “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada
associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a
mim mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.” Esse, o problema fundamental cuja
solução o contrato social oferece.
5. As cláusulas desse contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a
menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito, de modo que, embora talvez jamais
enunciadas de maneira formal, são as mesmas em toda a parte, e tacitamente mantidas e
reconhecidas em todos os lugares, até quando, violando-se o pacto social, cada um volta a seus
primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual
renunciara àquela.
6. Essas cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma só: a alienação total
de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar,
dando-se completamente, a condição é igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa
para os demais.
40
7. Ademais, fazendo-se a alienação sem reservas, a união é tão perfeita quanto possa ser e a
nenhum associado restará algo mais a reclamar, pois, se restassem alguns direitos aos particulares,
como não haveria nesse caso um superior comum que pudesse decidir entre eles e o público, cada
qual, sendo de certo modo seu próprio juiz, logo pretenderia sê-lo de todos; o estado de natureza
subsistiria, e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou vã.
8. Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém, e não existindo um associado
sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente
de tudo que se perde, e maior força para se conservar o que se tem.
9. Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence à sua essência, ver-se-á que
ele se reduz aos seguintes termos: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder
sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte
indivisível do todo”.
10. Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada
contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto são os votos da
assembleia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.
Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente
o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros
de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparada a seus
semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam,
em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto
submetidos às leis do Estado. Esses termos, no entanto, confundem-se frequentemente e são usados
indistintamente; basta saber distingui-los quando são empregados com inteira precisão.
Capítulo VIII – Do estado civil
1. A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança
notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que
antes lhes faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o
lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir
baseando-se em outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações. [...]
2. Reduzamos todo esse balanço a termos de fácil comparação. O que o homem perde pelo
contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar.
O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. A fim de não fazer um
julgamento errado dessas compensações, impõe-se distinguir entre a liberdade natural, que só
conhece limites nas forças do indivíduo, e a liberdade civil, que se limita pela vontade geral, e, mais,
distinguir a posse, que não é senão o efeito da força ou o direito do primeiro ocupante, da
propriedade, que só pode fundar-se num título positivo.
4. Poder-se-ia, a propósito do que ficou acima, acrescentar à aquisição do estado civil a
liberdade moral, única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso
do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade. Mas já
disse muito acerca desse princípio e o sentido filosófico da palavra liberdade, neste ponto, não
pertence a meu assunto.
LIVRO II
Capítulo I – A soberania é inalienável
1. A primeira e a mais importante consequência decorrente dos princípios até aqui
estabelecidos é que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de
sua instituição, que é o bem comum, porque, se a oposição de interesses particulares tornou
necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o
possibilitou. O que existe de comum nesses vários interesses forma o liame social e, se não houvesse
41
um ponto em que todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora,
somente com base nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada.
2. Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode
alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si
mesmo. O poder pode transmitir-se; não, porém, contra a vontade.
3. Se não é, com efeito, impossível que uma vontade particular concorde com a vontade
geral em certo ponto, é pelo menos impossível que tal acordo se estabeleça duradouro e constante,
pois a vontade particular tende pela sua natureza às predileções e a vontade geral, à igualdade.
Menor possibilidade haverá ainda de alcançar-se uma garantia desse acordo; ainda quando devera
sempre existir, não seria um produto da arte, mas do acaso. O soberano pode muito bem dizer:
“Quero, neste momento, aquilo que um tal homem deseja, ou, pelo menos, aquilo que ele diz
desejar”. Mas não poderá dizer: “O que esse homem quiser amanhã, eu também o quererei”, por ser
absurdo submeter-se a vontade a grilhões futuros e por não depender de nenhuma vontade o
consentir em algo contrário ao bem do ser que deseja. Se, pois, o povo promete simplesmente
obedecer, dissolve-se por esse ato, perde sua qualidade de povo — desde que há um senhor, não há
mais soberano e, a partir de então, destrói-se o corpo político.
4. Isso não quer dizer que não possam as ordens dos chefes ser consideradas vontades
gerais, desde que o soberano, livre para tanto, não se oponha. Em tal caso, pelo silêncio universal
deve-se presumir o consentimento do povo. [...]
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. Tradução
de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 31-34, p. 36-37, p.
43-44.
42
EXERCÍCIOS DE VESTIBULARES
1. [UEL / 2010] Leia o seguinte texto de Rousseau.
[...] só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é o bem comum,
porque, se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses
mesmos interesses que o possibilitou. O que existe de comum nesses vários interesses forma o liame social e, se não
houvesse um ponto em que todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, somente com base
nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada.
ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. 5. edição. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.43.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre a relação entre contrato social e vontade geral no pensamento de Rousseau,
é correto afirmar:
a) A vontade geral, fundamento da ordem social e política, consiste na soma e, por sua vez, na concordância de todas as
vontades individuais, as quais por natureza tendem para a igualdade.
b) Pelo contrato social, a multidão promete obedecer a um senhor, a quem transmite a vontade coletiva e, por este ato de
doação, torna-se povo e institui-se o corpo político.
c) Pelo direito natural, a vontade geral se realiza na concordância manifesta pela maioria das vontades particulares,
reunidas em assembléia, que reivindicam para si o poder soberano da comunidade.
d) Por força do contrato social, a lei se torna ato da vontade geral e, como tal, expressão da soberania do povo e vontade
do corpo político, que deve partir de todos para aplicar-se a todos.
e) O contrato social, pelo qual o povo adquire sua soberania, decorre da predisposição natural de cada associado,
permitindo-lhe manter o seu poder, de seus bens e da própria liberdade.
2. [UFU / Julho 2006] A obra mais conhecida de Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social ou osPrincípios do Direito
Político, marca uma mudança radical na concepção de soberania. Sobre isso, leia o trecho abaixo e assinale a alternativa
correta.
Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e,
hoje, o de república ou de corpo político, [...]. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se
chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto submetidos às leis do
Estado.
ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
a) O povo é, ao mesmo tempo, cidadão e súdito; o primeiro quando é ativo, o segundo quando é passivo.
b) Pelo texto acima, fica claro que, para Rousseau, a autoridade soberana pertence ao Estado e não ao povo.
c) O povo obedecerá às leis feitas pelo Governo, pois ao Governo pertence a autoridade soberana.
d) Para Rousseau, o corpo político é formado pelos cidadãos, e exclui os súditos.
3. [UFU / Julho 2000] O que há de comum entre as teorias dos filósofos contratualistas é que
a) eles partem da análise do homem em estado de natureza, isto é, antes de qualquer sociabilidade, tendo
direito a tudo.
b) no estado de natureza, o homem possui segurança e paz, pois é dono de um poder ilimitado.
c) os interesses egoístas não existem no estado de natureza, pois os homens realizam todos os seus desejos.
d) as disputas evitam a guerra de todos contra todos, pois os homens desfrutam de todas as coisas.
Gabarito
1. d
2. a
3. a
43
QUADRO CRONOLÓGICO DOS AUTORES CITADOS
FILOSOFIA ANTIGA
SÉCULO
FILÓSOFOS
IV a.C.
Aristóteles
SÉCULO
FILÓSOFOS
XVI
Maquiavel
CONTEXTO HISTÓRICO
Crise da democracia ateniense
Império macedônico: Filipe da Macedônia e
Alexandre Magno
FILOSOFIA RENASCENTISTA
CONTEXTO HISTÓRICO
Formação das monarquias nacionais
Reforma protestante
Concílio de Trento
Fim do Renascimento artístico
FILOSOFIA MODERNA
SÉCULO
FILÓSOFOS
XVII
Empirismo: Hobbes, Locke
XVIII
Iluminismo: Kant, Rousseau
CONTEXTO HISTÓRICO
Renascimento científico
Mercantilismo e absolutismo
Guerra dos Trinta Anos
Revolução Gloriosa
Liberalismo
Revolução Industrial
Despotismo Esclarecido
Revolução Francesa
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
SÉCULO
FILÓSOFOS
XX
Existencialismo: Sartre
CONTEXTO HISTÓRICO
Revolução Russa
Segunda Guerra Mundial
Guerra Fria
República Popular da China (1949)
44
BIBLIOGRAFIA CITADA E SUGERIDA
1. Fontes citadas
ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
—. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de
João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nissa da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 2008.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril
Cultural, 1983.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução de Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
—. Do contrato social ou princípios do direito político. Tradução de Lourdes Santos Machado. São
Paulo: Nova Cultural, 1991,
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
2. Historia da Filosofia
BRÉHIER, Émile. História da filosofia. Tradução de Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou,
1977-1978.
BUNNIN, Nicholas; TSUI-JAMES, E. P. Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São
Paulo: Loyola, 2007.
OLIVEIRA, Armando Mora de. Primeira filosofia. Aspectos da história da filosofia. São Paulo:
Brasiliense, 1996.
—. Primeira filosofia. Tópicos de filosofia geral. São Paulo: Brasiliense, 1996.
3. Antologias de textos de filosofia
NICOLA, Ubaldo. Antologia ilustrada de filosofia. Das origens à idade moderna. Tradução de Maria
Margherita De Luca. São Paulo: Globo, 2005.
VERGEZ, André; HUISMAN, Denis. História dos filósofos ilustrada pelos textos. Tradução de Lélia de
Almeida Gonzalez, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980.
4. Dicionários de filosofia
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução coordenada revista por Alfredo Bosi. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Tradução de Desidério Murcho e outros. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor,1997.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. Tradução de Fátima Sá Correia e outros. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
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