Não há escolha: o homem é obrigado a escolher-se
Roberto Amaral
Um grito de dor é sinal da dor que o provoca. Mas um canto de dor é simultaneamente a própria
dor e outra coisa diferente da dor.
Jean-Paul Sartre
(O que é a literatura?)
Introdução
O intelectual não é testemunha de seu tempo, se testemunhar é certificar o acontecido. Mais que
tudo, responde ao seu tempo, fala a partir de seu tempo e da sociedade em que exerce o papel
de agente histórico. Condicionado por sua época, por seu modo de ser no mundo, o homem não
está, porém, necessariamente comprometido com a realidade dada. Ao contrário, seu papel é
sempre de intervenção. Ver-se-á que esse papel se exerce condicionado por circunstâncias que
independem da vontade do homem, mas não o determinam de forma absoluta, posto que a
relação homem-meio é dialética. O homem também atua sobre as circunstâncias. E é quando
ele exerce, em plenitude, seu papel de sujeito.
O escritor desloca-se de sua época: na simples narrativa ele já transforma a realidade, e no
desempenho dessa tarefa está toda a força de sua visão de mundo. Intervir é seu destino, do
qual não pode apartar-se. Para isto não é livre, embora o seja sempre para optar, tanto pelo
futuro que quer construir, quanto pela conservação do statu quo. Como não é possível congelar
o presente, o escritor conservador intervirá para atrasar o futuro.
Na narrativa só existem passado e futuro (e o futuro está virgem); o presente, um tempo em
trânsito, é alterado para que o novo possa nascer, e o passado é um conjunto de memórias nem
sempre convergentes. Presente em construção, passado imutável (mas sujeito a interpretações
diversas) e futuro por fazer-se. Se o passado é materialmente imutável, pode, porém, ser reescrito, re-lido, re-interpretado, ou seja, re-feito: os séculos, por exemplo, iluminaram de forma
diversa a interpretação da Idade Média (e da ‘democracia’ ateniense, e do Renascimento, e da
Revolução francesa…), e a diversidade dessas visões, dessas e de quaisquer visões,
corresponde à diversidade de visões ideológicas, do espaço epistêmico de onde fala,
corresponde, enfim, à posição de classe do observador, seus compromissos com a sociedade
em que vive. A História é sempre e apenas uma versão da realidade, escrita dominantemente
pelos vencedores. Nesse sentido o passado é construção mutável que atende às demandas do
presente.
O escritor dá vida à realidade ao torná-la conhecida. O conhecimento é que torna o fato real, e
real não é o fato acontecido, assim como teria ocorrido, mas o fato assim como foi registrado. E
narrar é definir-se. O homem cria o mundo e este ato de criação se completa com sua própria
autogeração como sujeito histórico. Por sua vez o homem só pode ser considerado como o
ser(sujeito)-no mundo, um ser que possui a si mesmo, um ser fundamentalmente inserido numa
objetividade; por isso estamos dizendo que o homem é acima de tudo um sujeito histórico. Que
resulta da afirmação do homem como sujeito histórico? Que ele está inserido numa comunidade
histórica que, se o condiciona, é ao mesmo tempo por ele modificada1.
O mundo é humano. Se o homem faz o mundo nascer – e aqui está o fundamento de tudo o que
Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Ética e sociabilidade. Edições
Loyola. São Paulo. 1996. p. 85.
1
1
se segue--, conhecer é interpretar a realidade, e esta interpretação é também uma construção
(no sentido de que é uma intervenção na realidade), necessária e essencialmente subjetiva e
ideológica. Mas essa subjetividade, tanto quanto essa ideologia, não está livre de
condicionamento objetivo: a consciência do ser observador é produto de sua existência, que
condiciona sua consciência, portanto, sua visão de mundo. Condiciona mas não determina,
necessariamente.
Como vimos afirmando acima e como veremos neste texto, ainda por diversas vezes, não
estamos em face de um determinismo mecanicista. Uma das afirmações deste ensaio é que o
intelectual de esquerda é aquele que se aparta dos seus interesses de classe. Ora, a simples
existência do intelectual de esquerda é a demonstração cabal da possibilidade dialética de o
homem vencer quaisquer condicionamentos. E não há exemplo melhor do que aquele oferecido
pelas biografias de Marx e Engels (e de tantos e tantos militantes desvencilhados de seus
interesses de classe), um, filho da burguesia renana, outro, herdeiro de parque industrial têxtil
em Manchester. Ambos, co-autores do Manifesto comunista, e revolucionários a vida toda.
Esta é a questão central –- e necessariamente recorrente-- deste ensaio.
Discutiremos, igualmente, a capacidade de o homem alterar as condições objetivas segundo as
quais é chamado a definir-se no mundo, e o fato concreto de que sempre é possível escolher-se,
definir-se, optar. Se há uma tese, ela é esta:
Não há escolha: o homem sempre pode escolher; o intelectual precisa sempre escolher,
sabendo, ambos, o intelectual e o homem comum, que, quando não escolhem, também estão
escolhendo. São palavras de Sartre: a escolha é possível, num sentido, mas o que não é
possível é não escolher, mas eu devo saber que se eu não escolho, eu escolho ainda2.
Vejamos o papel do escritor
Não importa que o texto tenha o significado que lhe empresta o leitor, e desta forma podendo ter
tantos significados quantas sejam as leituras. Assim como não importa se o militante não tem
controle sobre o fato histórico que sua ação revolucionária desencadeou. O que importa é que
ambos, todos, somos responsáveis pelo que fazemos, pelo que escrevemos, pelo que deixamos
de fazer ou escrever.
Embora não possa escolher o seu tempo, aquele no qual terá de realizar sua existência, é
imperativo para o escritor escolher-se no tempo e no mundo dados, e, na verdade, está se
escolhendo toda a vez que redige uma só palavra. Ou quando deixa de escrever. O silêncio e a
passividade–- como a omissão no caso do militante— são, também, uma tomada de posição tão
efetiva e comprometedora –- e tão carregada de valor—, quanto o combate ou a defesa.
Escrever é definir-se, e definir-se é optar. Baudelaire definiu--se diante da revolução de 1848:
combateu-a, e pelo resto da vida se fez adversário das noções de progresso e liberdade, no que,
aliás, construiu uma contradição entre vida e obra, entre o intelectual e o poeta. Balzac
permaneceu indiferente diante das jornadas de 1848. Foi sua forma de escolher-se, apoiando a
repressão aos operários. Merleau-Ponty, co-fundador de Les Temps Modernes, silenciou diante
da execução do casal Rosenberg, da invasão francesa da Indochina e da guerra da Coréia. Foi
sua forma de definir-se diante da guerra-fria. E Sartre nos lembra, ele mesmo um intelectual
permanentemente engajado (definido em face do fascismo, do racismo, do colonialismo, da
Resistência, do imperialismo, da Guerra-fria, da guerra da Argélia, da revolução cubana, da
invasão da Hungria, em face do Vietname, em face do Prêmio Nobel, em face do processo
contra Debray, em face de maio de 1968), do silêncio de Flaubert e Goncourt diante da
repressão à Comuna (1871)3, para mostrar como ambos se definiram por intermédio da omissão.
Omissão que numa tábua de valores tem tanto significado quanto a ação ativa (e altiva) de Zola,
quando o autor de Acuso!, sem temer pelas conseqüências, optou (contra o pensamento
Idem. In L’Existentialisme est un humanisme. Les Éditions Nagel.
Paris. 1967. P. 73.
3
In Apresentação da revista Les Temps Modernes. Apud Situações
II. Publicações Europa-América. Lisboa.1968, p. 13.
2
2
dominante, contra M. Barrès mas acompanhado de Proust, A. France, L. Blum e outros
intelectuais) pela defesa da liberdade do capitão Dreyfus; como antes se havia definido Voltaire
no processo Calas; como bem depois se definiria Gide diante da administração do Congo. Mas
os intelectuais franceses que silenciaram também fizeram cada um sua opção, e assim também
se tornaram responsáveis seja pelo massacre da Comuna, seja pela condenação de Dreyfus.
Quantos intelectuais brasileiros mantiveram-se silentes diante do escravismo? Quantos se
integraram ao regime do Estado Novo e quantos silenciaram a crítica ao totalitarismo? Quantos,
com seu silêncio, apoiaram entre nós o avanço das idéias (e movimentos) fascistas e os
interesse do Eixo? Quantos entendiam nada terem a ver com a repressão do regime militar,
porque não eram nem comunistas nem subversivos?
Ser é definir-se, e ao nos definirmos estamos sempre optando. E todos somos chamados a fazer
nossa escolha, no dia-a-dia e nos desafios impostos pela História. Pelo passado que aprisiona o
futuro ou pelo presente que prorroga o passado – opção do intelectual conservador--, ou por
aquele futuro cujo nascimento decorre da revolução do presente, opção do intelectual de
esquerda.
Quando se trata de um intelectual de esquerda, isto é, de intelectual comprometido com o
progresso social, com a denúncia do statu quo e com a construção de um futuro de igualdade,
diverso do passado/presente de hegemonia de uma classe --, seu papel, mais do que o de
revelar a realidade (que seria atitude puramente mecanicista), é o de promover sua
transformação, aproximando-a de sua visão de mundo, portanto, modificando-a. Revelar para
transformar.
Queremos dizer que o papel do homem não é pura gratuidade, mas obra finalística (isto é,
mobilizada por um objetivo): ele atua para poder modificar, por isso é livre para escolher a forma
de atuar, porque sua liberdade é sua possibilidade de eleger, definindo-se diante dos fatos,
inclusive quando as circunstâncias dadas são desfavoráveis.
O grande compromisso do escritor é com o futuro, com a melhoria do mundo no qual viverão
outros homens, que ele não conhece, nunca conhecerá.
Mas enfatize-se que a categoria intelectual não se confunde com a categoria homem de
esquerda, nem com a categoria escritor.
Retornaremos a este tema adiante.
Que é ser ‘intelectual’?
Ser intelectual é tentar exprimir a sociedade para si própria, conhecer o mundo para mudá-lo,
com vistas ao progresso social. É o especialista que atua além dos limites de sua competência
técnica, que se vale de sua notoriedade para fazer-se ouvir na e pela sociedade. O físico nuclear
que se dedica à construção de uma bomba atômica, ou, que, com suas pesquisas, possibilita a
construção daquele artefato, é um cientista; o mesmo físico quando contesta a construção da
bomba e se faz ativista da erradicação dos armamentos nucleares, é um intelectual. No primeiro
momento é um pesquisador a serviço da hegemonia; rebelado, transforma-se em intelectual em
defesa da vida: “[…] não chamamos de ‘intelectuais’ os cientistas que trabalham na fissão do
átomo para aperfeiçoar os engenhos da guerra atômica: são cientistas, eis tudo. Mas, se esses
mesmos cientistas, assustados com a potência destrutiva das máquinas que permitem construir,
reunirem-se e assinarem um manifesto para advertir a opinião pública contra o uso da bomba
atômica, transformam-se em intelectuais”4. Em seus intelectuais. Mas, evidentemente, no
mesmo sentido é intelectual o cientista que, com argumentos científicos ou políticos, defende a
construção da bomba, e se articula politicamente para viabilizar tal projeto.
Se o cientista pode recusar a colaboração, ele é responsável pela sua decisão tanto quanto
quando denuncia, tanto quanto quando colabora. No final de 1945, Einstein escreveu um
Manifesto [ destinado] a ser lido em congresso de cientistas estadunidenses, marcado para
janeiro de 1946 e jamais realizado. Nele o cientista denunciava o militarismo norte-americano.
Depois de afirmar-se “satisfeito pelo fato de a grande maioria dos cientistas estar plenamente
consciente de suas responsabilidades como estudiosos e cidadãos do mundo”, escreve: “(…) Se
4
Idem. Ibidem. P. 15.
3
o governo seguir este curso fatídico [a militarização da ciência], nós, cientistas, devemos nos
recusar a nos submeter a suas exigências imorais, ainda que elas contem com o apoio da
máquina legal. Existe uma lei não escrita, aquela da nossa própria consciência, que deve ser
ouvida muito mais do que qualquer lei escrita em Washington. E existem, é claro, mesmo para
nós, as armas fundamentais: a não-cooperação e a greve”5.
O escritor, o intelectual, o operário, o funcionário público que redige despachos, o juiz que
sentencia, o administrador que decide, o homem comum, enfim, cada sujeito está se definindo a
todo momento, porque sua existência, isto é, sua forma de postar-se no mundo e viver seu
projeto, é que modela sua consciência.
Sartre afirma que a existência precede e determina a essência e com isso quer dizer que o
homem “primeiro existe, se encontra, surge no mundo, e só depois se define”6. Mas que significa
essa afirmação senão que o homem não tem nem essência nem anterioridade? Podemos
resumir assim: o homem se faz e é o que fizer de si próprio: sem passado, é um projeto de futuro
e este futuro é sua existência, que se objetiva em um mundo concreto, palpável, histórico.
O indivíduo age sob determinadas circunstâncias, como nos disse antes Marx, mas não se reduz
a mero joguete das forças coletivas. Há sempre margem de ação, mesmo porque o homem é
sujeito do processo histórico.
Nessa obra seminal que é Fenomenologia do espírito [Die Phaenomenologie des Geistes](1808),
na verdade a primeira elaboração de um julgamento a respeito da história, Hegel, em quem
seguidamente Marx e Sartre vão se alimentar, já compreendia o homem como criador de si
mesmo “num processo histórico em que a força motriz é o trabalho humano ou a atuação prática
do homem vivendo em sociedade”7. Hegel, na verdade, é o primeiro pensador a sustentar
teoricamente a noção de que as idéias são filhas do tempo, aprisionando o trabalho do
intelectual ao momento histórico. Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, obra de 1844,
observaria que “A grandeza da Fenomenologia hegeliana (…) consiste em que Hegel
compreenda a autogeração do homem como processo [e] compreenda a essência do trabalho e
conceba o homem objetivado, (…) como o resultado do seu próprio trabalho”8. É através do
trabalho, presente em toda e qualquer sociedade humana, que, como assinala Marx – e antes
dele assinalaram Locke e Rousseau e Ricardo, de quem, relembre-se, o pensamento econômico
marxista é herdeiro-- o homem intervém e interage com a natureza; o trabalho transforma-se em
condição necessária da existência (e sobrevivência) do homem9. Mas, acima de tudo, o trabalho
criou o homem; isto significa dizer que o homem criou o homem: o trabalho é a atividade que
contém a humanidade do homem.
Mas o homem é livre para definir-se, e porque é livre, é responsável pelo que decide.
Qual o papel do intelectual de esquerda?
Que é ser de esquerda hoje, frente à crise do marxismo, o fracasso das experiências européias
de implantação de sociedades socialistas, frente aos avanços do capitalismo e do
neoliberalismo? Que é ser de esquerda hoje, frente à transformação dos partidos socialistas em
partidos socialdemocratas? Que é ser de esquerda, hoje, frente às novas perspectivas do
socialismo e ao fenômeno da chegada ao governo de partidos e grupamentos de esquerda nas
últimas décadas, em diversos países, inclusive no Brasil? Que é ser de esquerda em face da
MÉSZAROS, István. O poder da ideologia. S. Paulo. Boitempo
Editorial. 2004. p. 275.
6
In L’Existentialisme est un humanisme. Ed. cit. P. 55.
7
Apud BOTTOMORE, T.B. e RUBEL, Maximilien. Sociologia e filosofia
social de Karl Marx. Rio de Janeiro. Zahar Editores. 1964. p.14.
8
MARX, ‘Manuscritos econômico-filosóficos’ in Marx Manuscritos
econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Col. Os pensadores.
São Paulo. Ed. Abril Cultural. 1985. p. 37.
9
Este tema é caro a Marx e recorrente em sua obra.
5
4
nova configuração de classes sociais, com as alterações da participação do trabalho na
produção, em face do definhamento do proletariado? [esse definhamento n~ao causa, mas
conseqüncia]
Ser de esquerda é simplesmente isso: lutar pelas mudanças10, pelas conquistas sociais, pela
igualdade e contra a exclusão, pela liberdade e pela participação democrática, em síntese, pelo
movimento transformador, em contraposição à defesa do statu quo e do imobilismo, projetos do
pensamento de direita. Ser de esquerda é revoltar-se contra as iniqüidades sociais, contra a
exploração do homem pelo homem, ser de esquerda é estar historicamente comprometido com a
construção do futuro.
E ser intelectual de esquerda é lutar, juntamente com as demais forças sociais, visando a mudar
o mundo, melhorando-o; é lutar pela instauração de uma sociedade de iguais, juridicamente,
politicamente e socialmente; é lutar contra as mais comuns formas de discriminação11. É
defender a Paz (não como princípio, nem como valor moral, não uma Paz etérea, metafísica,
indefinida, mas a Paz concreta, objetiva, pontuada, histórica, contemporânea, em lugares
definidos e em momentos definidos) e combater a guerra imperialista, a guerra de conquista e
defender as guerras de libertação nacional e o direito de o invadido fazer guerra ao invasor; é
combater toda a sorte de imperialismo, e intervencionismo e defender a autodeterminação dos
povos; é lutar contra a fome, é escolher-se pela construção de uma nova ordem internacional
desfiliada do unilateralismo derivado do regime de unipotência/onipotente. É defender o
desarmamento e a erradicação de todos os arsenais atômicos, começando pelos arsenais das
grandes potências nucleares, é defender o meio-ambiente e o Protocolo de Kioto, é condenar o
neocolonialismo e o racismo.
Ser intelectual de esquerda no Brasil de hoje é lutar contra o projeto liberal neoconservador de
destruir o Estado social, é lutar pelas mudanças econômicas e sociais que beneficiem a maioria,
pela democracia participativa, pela emancipação econômica e política do país, pela instauração
de uma nova sociedade, fundada na igualdade de todos, na liberdade de todos, na democracia
ao alcance de todos, na riqueza nacional acessível a todos. É lutar pelo emprego, pela
distribuição de renda e contra a exclusão.
O intelectual de esquerda é o que transcende da condenação moral para a condenação e a
denúncia através de fatos, de atos, mediante sua intervenção na realidade; o intelectual de
esquerda se investe de um mandato que a sociedade formalmente não outorgou, e, na
expressão de Sartre, se dedica “a combater a ressurreição perpétua no povo das ideologias que
10
Não por mudanças quaisquer, mas por aquelas que significam
melhoria das condições de vida das grandes massas, aquelas
mudanças que apontam para o progresso social. A simples ruptura
da ordem, como o golpe militar contra Allende, tanto quanto as
mudanças ocorridas no Brasil após o golpe militar de 1964, não
apontavam para o progressão social, senão exatamente para
reprimi-lo.
11
BOBBIO, Noberto. In Direita e esquerda. Unesp. São Paulo. 1995.
P. 20. E conclui (pp. 23-4): “Nenhuma pessoa de esquerda
(sinistrorso) pode deixar de admitir que a esquerda de hoje não é
mais a de ontem. Mas, enquanto existirem homens cujo empenho
político seja movido por um profundo sentimento de insatisfação e
de
sofrimento
perante
as
iniqüidades
das
sociedades
contemporâneas – hoje talvez menos ofensivas do que em épocas
passadas, mas bem mais visíveis— eles carregarão consigo os ideais
que há mais de um século têm distinguido todas as esquerdas da
História”.
5
o paralisam”12.
O intelectual contemporâneo nasce após uma era, e desempenha seu papel antes do
nascimento de outra. Urge compreendê-lo ainda que as ferramentas de interpretação sejam
reflexas de um outro mundo.
O homem é suas ações
Não é o fato de ser operário que faz de José da Silva um revolucionário, mas, sim, sua maneira
de ser operário, pois o homem não é mais do que aquilo que faz, ou seja, suas ações, e essas
ações é que lhe dão vida e a esta vida criada as ações emprestam valor e historicidade. Com
isso queremos significar que a intervenção do homem não se dá no vazio, mas em um mundo
concreto. Ele faz a História, mas a faz, insistimos, de acordo com as circunstâncias. Isto quer
dizer que o homem que faz a História é o mesmo que por ela é feito. É o tema que
desenvolveremos na seqüência. Porque, como observa Sartre, o homem é pura e simplesmente
seu próprio projeto e só existe na medida em que se realiza, realizando esse projeto. Em
resumo, o homem nada mais é do que o conjunto de seus atos, nada mais do que sua vida.13.
Ou, nas palavras anteriores de Marx-Engels: “Assim como os homens manifestam sua vida,
assim são”14.
Repetindo: o homem é o que ele faz; o escritor é o que ele escreve, e pelo que escreve (ou deixa
de escrever) é o único responsável. Do militante social cobram-se ações. Mas nem um escreve
nos céus nem outro age no limbo. Atuam em função de seu tempo e de seu mundo, de acordo
com as circunstâncias históricas que determinam sua maneira de ser, pois o homem é sua
existência. A pedra lascada e a pedra polida, o moinho de vento e a máquina a vapor, como a
escravidão e o trabalho livre, produziram homens diversos entre si; há um homem forjado pelo
feudalismo e um homem forjado pelo capitalismo. Nem por isso o homem deixa de exercer seu
papel como agente do processo histórico.
A história não é uma vasta coleção de biografias; se o fato histórico –nele compreendidas as
condições desfavoráveis e o acaso-- condiciona a ação do homem, este sempre dispõe de
margem de manobra, e, assim, a um tempo atende à sua necessidade histórica e à sua
capacidade de intervir. Para Plékhanov15, a possibilidade de uma influência social do individuo,
condicionada pela organização da sociedade, abre a porta à influência do que chama de os
acasos sobre o destino dos povos. Já Sartre observaria que a vida histórica é plena de acasos,
de encontros. “O amanhã é incerto, somos nosso próprio risco, o mundo é nosso perigo”16.
A vida do homem, a luta pela existência, é a representação de sua maneira de ser de forma tão
exata como o reflexo de um espelho17. Essa maneira de ser resulta de seu comportamento –- de
SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. Editora Ática. São
Paulo. 1994. P. 43.
13
Idem. Idem. p. 267.
14
IN La ideologia alemana. Ediciones Pueblos Unidos. Montevidéu,
1959, p. 19.
15
PLÉKHANOV, Georges. ‘L’individu dans l’Histoire’, in Oeuvres
philosophiques. Éditions du Progrès. Moscou. Tome II p. 331.
16
SARTRE (Saint-Genet, comedien et martyr. Paris, Gallimard, 1952,
p. 347, citado por SIRINELLI, Jean-François. Deux intelectuells dans
le siècle. Sartre et Aron. Paris Fayard. 1995. pp. 19-20).
17
“Si en toda la ideología los hombres y sus relaciones aparecen
invertidos como en la cámara oscura, este fenómeno responde a su
proceso histórico de vida, como la inversión de los objetos al
proyectarse sobre la retina responde a su proceso de vida
directamente físico”. Marx-Engels, idem. P. 25.
12
6
sua inserção político-social--, isto é, da forma mediante a qual responde às exigências impostas
pelo mundo e necessárias à sua sobrevivência. Trata-se das relações homem-sociedade na
acepção mais ampla, não apenas no que se refere ao que é produzido, mas, igualmente, ao
modo de produção empregado.
A maneira de ser dos indivíduos, todavia, resulta primariamente das condições em que [eles]
tiram a subsistência e garantem a sobrevivência, como espécie e como animal político. Essa
ordem de raciocínio assegura o primado da existência sobre a representação que a consciência
(dela) tem: o ser molda a consciência. A consciência é o ser consciente, desde que o ser dos
homens é seu processo da vida real.[ nota remetendo ao meu livro] Horkheimer, em texto
anterior à obra filosófica de Sartre (seu ‘Teoria tradicional e teoria crítica’ [‘Tradizionelle und
kritische Theorie’] foi publicado pela primeira vez em 1937) destaca o papel do modo de
existência (coletiva) do homem: “A ação conjunta dos homens na sociedade é o modo de
existência de sua razão; assim utilizam suas forças e confirmam sua essência”.18.
O desenvolvimento da consciência no homem está condicionado ao seu papel na sociedade,
embora não dependa, exclusivamente, de sua inserção numa dada classe. A consciência se
forma no processo social. Não é a essência operário frente à essência patrão que determina a
luta de classes, mas a acumulação da mais-valia (ou a exploração do trabalho pelo capital) que
enseja a consciência de classe. O ser é o produto dialético da relação social.
Escolha e consciência são uma só coisa: é preciso ser consciente para escolher, mas é
necessário escolher para ser consciente.
Não existe isenção para o intelectual, senão comprometimento. O intelectual engajado é um ator
da História e agente de um projeto de mundo. Não há imparcialidade. Há participação e
responsabilidade, inclusive pelo que não fizemos, pelo que não dissemos, pelo que não
fazemos, pelo que não dizemos. Os intelectuais alemães que se calaram diante do nascimento e
consolidação do nazismo são também responsáveis pelo holocausto, assim como os que, como
Heidegger, aderiram ao Führer. Há, igualmente, as escolhas, e correspondentes
responsabilidades, coletivas. Sabidamente, o Partido Comunista Alemão, sem ignorar a
construção do nazismo, optou por jogar toda a sua energia revolucionária no combate à socialdemocracia. Já antes, o Partido Comunista Italiano não soubera ver na ascensão de Mussolini a
possibilidade de uma ditadura fascista, embora a combatesse. Karl Popper, numa crítica aos
marxistas alemães radicais, acusa-os de haverem visto no fascismo apenas uma forma de
apressar a revolução inevitável, razão pela qual não teriam lutado contra ela, quando o nazismo
tomou o poder: “Como a revolução certamente viria, o fascismo só poderia corresponder a um
dos meios de provocá-la; e tanto mais isso era verdade, dada a circunstância de que a revolução
vinha com grande atraso. A Rússia já a havia realizado, a despeito de suas más condições
HORKHEIMER, Max. ‘Teoria tradicional e teoria crítica’, in
Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas, Textos escolhidos. Abril
Cultural. São Paulo, 1980, escreve (p. 125): “Os homens não são
apenas um resultado da história em sua indumentária e
apresentação, em sua figura e seu modo de sentir, mas também a
maneira como vêem e ouvem é inseparável do processo de vida
social tal como este se desenvolveu através dos séculos. Os fatos que
os sentidos nos fornecem são pré-formados de modo duplo: pelo
caráter histórico do objeto percebido e pelo caráter histórico do
órgão perceptivo. Nem um nem outro são meramente naturais, mas
enformados pela atividade humana, sendo que o indivíduo se
autopercebe, no momento da percepção, como perceptivo e
passivo”. E conclui (p. 128): “A ação conjunta dos homens na
sociedade é o modo de existência de sua razão; assim utilizam suas
forças e confirmam sua essência”.
18
7
econômicas. Somente as vãs esperanças geradas pela democracia estavam detendo a
revolução nos países mais adiantados. Dessa forma, a destruição da democracia pelos fascistas
só poderia facilitar a revolução, levando os trabalhadores à desilusão última com respeito aos
métodos democráticos. Dessa maneira, a ala radical do marxismo julgou que havia descoberto a
‘essência’ e o ‘verdadeiro papel histórico’ do fascismo. O fascismo seria, fundamentalmente, o
último bastião da burguesia. Assim pensando, os comunistas não lutaram quando o fascismo se
apossou do poder. (Ninguém esperava que os social-democratas lutassem.) Com efeito, os
comunistas estavam seguros de que a revolução proletária viria e que o interlúdio fascista,
necessário para apressá-la, não poderia prolongar-se por mais que uns poucos meses. Dessa
forma, não cabia aos comunistas qualquer ação. Eles eram inofensivos. Nunca houve um ‘perigo
comunista’ a ameaçar a conquista do poder pelo fascismo”.19. Mas da crítica não se livram os
liberais. Umberto Eco nos dirá que foi “o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais
europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de
fornecer uma alternativa modernamente revolucionária à ameaça comunista20.
Esses conceitos se aplicam igualmente ao homem comum. Os judeus dos campos de
concentração foram chamados a optar entre a passividade e a revolta, a colaboração e a
resistência. Os intelectuais marxistas que silenciaram suas críticas aos erros do socialismo oficial
são também responsáveis pelos tijolos que ergueram o muro de Berlim e contribuíram tanto
para as invasões de Praga e Budapeste quanto, no extremo oposto, para a dissolução da União
Soviética e conseqüente ascensão da Pax americana. Quando nos opomos e denunciamos os
crimes praticados pelos Estados Unidos contra o povo cubano, a pretexto de combater um
governo que lhe é resistente, estamos nos definindo, e optando, tanto quanto estão se definindo
e optando os que silenciam. A opção aí é pelo agressor. A passividade também é definição.
Assim, entre nós, os intelectuais que apoiaram a ditadura foram tão responsáveis pela tortura
dos inimigos do regime quanto os que se omitiram na denúncia de seus crimes: o silêncio, anos
e anos sem levantar a pena contra a tortura e os assassinatos, selou o compromisso de cada um
com a repressão.
Niomar Moniz e Roberto Marinho, com seu Correio da Manhã e seu O Globo, optaram diante da
ditadura militar, conscientes ambos, uma dos riscos, outro dos benefícios, quanto ao que
nenhum dos dois estava errado, como demonstrou a história. Houve empresários que
financiaram a Operação Bandeirantes, centro civil e militar de repressão e tortura e morte; e
houve empresários como Fernando Gasparian, que financiou o semanário Opinião, trincheira de
resistência política à ditadura.
Todos nos definimos diante da agressão norte-americana ao Vietname, e é nessa medida que
por ela fomos responsáveis, cada um a seu modo: há os que optaram pelas vítimas da invasão,
dos bombardeios e do napalm, há os que condenaram a guerra em si, por repúdio moral, e há os
que optaram pelos agressores, porque nada fizeram para evitar o genocídio. E havia o que
fazer? Bertrand Russell respondeu com o seu Tribunal Internacional dos Crimes de Guerra no
Vietname, instalado em Estocolmo em 1967. Sempre há o que fazer. Esta é a questão.
Não há isenção em face do massacre de palestinos, réprobos em sua terra, povo sem Estado,
agredido por um Estado militar-guerreiro, apoiado pela maior potência econômica e militar do
planeta. Todos somos responsáveis pela fome na África. Todos optamos, e somos responsáveis
pelo que fazemos, pelo que deixamos de fazer, pelo que escrevemos, pelo que silenciamos. São
responsáveis pela invasão do Iraque tanto os intelectuais norte-americanos que a defenderam,
quanto os que nada fizeram para impedi-la; tanto os que silenciaram diante de sua consumação,
quanto os que silenciam diante da ocupação.
Como se diferencia o intelectual de esquerda?
POPPER, Karl(Open Society and Its Enemies, volume ii, pp. 164165, apud MAGEE, Brian. As idéias de Popper. São Paulo. Editora
Cultrix, 1979, pp. 13-14).
20
ECO, Umberto, Cinco escritos morais. Rio de Janeiro. Editora
Record. 1998.p. 37
19
8
Vimos anteriormente a impossibilidade de uma negação universal, intemporal, anistórica da
Guerra ou a defesa inespecífica da Paz. Na cobertura da guerra ao Iraque as tropas invasoras
são identificadas pela imprensa internacional (e, portanto, pela imprensa brasileira) como
agentes da democracia e da liberdade, e os iraquianos, que resistem à invasão, são identificados
ora como ‘rebeldes’, ora como terroristas21 e sempre como inimigos da democracia, uma
‘democracia’ ocidental sobre cuja imposição pelas armas estrangeiras ninguém lhes perguntou
se era de seu interesse, de sua cultura, de sua vontade. O mundo ocidental, que justamente
deplora as vítimas dos atos de sabotagem--, e todas as vítimas civis devem ser deploradas,
conquanto nem todas se possam dizer ‘inocentes’-- não conta as vítimas produzidas pelas tropas
de ocupação. Muito menos considera que os exércitos invasores, sejam tropas angloamericanas sejam tropas israelenses, praticam ‘terrorismo de Estado’, para lembrar a expressão
grafada por Eric Hobsbawm. A questão não se reduz à pura recusa moral e denúncia política do
ato de guerra que é a ação do homem-bomba (talvez o mais desesperado dos atos de guerra e
ao mesmo tempo revelação do escandaloso desnível de força dos oponentes), mas
simplesmente que essa recusa dos liberais e dos pacifistas também ignore as motivações do
agressor (e o fato moral em si que é a agressão ou a invasão ou a anexação de territórios) e as
circunstâncias dramáticas que levam à formação de um guerrilheiro suicida (os camicases
japoneses eram heróis em seu país e, apesar de temidos, respeitados pelos adversários que
viam no gesto extremo uma demonstração de coragem e desprendimento) ou de um povo
suicida, de uma coletividade que decide imolar-se assestando pedras contra tanques de guerra
de um exército poderosíssimo.
O intelectual de esquerda denuncia a vileza do atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos.
Todos os intelectuais norte-americanos e todos os intelectuais de todo o mundo não muçulmano
também o denunciam. Quantos porém silenciaram e silenciam diante dos crimes cometidos no
Afeganistão, em Guantânamo e no Iraque? Quantos liberais norte-americanos condenaram a
invasão do Vietname antes de os féretros de seus marines começarem a chegar aos milhares?
Quais os que condenaram essa guerra ainda quando a vitória parecia sorrir para o invasor?
Quantos dos que justamente se indignaram com os atentados de 11 de setembro se haviam
omitido diante do ataque terrorista às instalações de fábrica de remédios do Sudão, e tantos e
tantos outros atentados que escrevem o prontuário de crimes cometidos contra o direito
internacional?
A responsabilidade do intelectual (de qualquer intelectual) – ser privilegiado em face dos
demais, decorrente do nível de informação superior que sua situação de classe possibilita -- é
inumeráveis vezes maior que a do homem comum, porque, como resultado de seu papel
destacado na sociedade, sua tomada de posição exerce forte influência sobre a opinião pública e
a vida política. O intelectual de esquerda é o que consegue evitar que essa responsabilidade se
transforme em culpa.
O intelectual, Gramsci e Sartre
Na acepção vulgar, o vocábulo intelectual designa ora aquele que possui formação superior à
média, ora o escritor engajado. Houaiss, registra-o como (i) aquele que vive predominantemente
do intelecto, dedicando-se a atividades que requerem um emprego intelectual considerável, (ii)
aquele que demonstra gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das
artes etc. e (iii) aquele que domina um campo de conhecimento intelectual ou que tem muita
21
Essa semântica não é nova. Pelas mesmas razões, eram chamados
de ‘terroristas’ os maquis e os que na França atuaram na Resistência;
também terroristas eram os que lutaram pela fundação de Israel e
são os que lutam hoje pelo Estado palestino; eram para o governo
francês os argelinos que lutavam pela independência de seu país.
Terroristas eram os que entre nós optaram pela luta armada como
meio de enfrentar a ditadura militar.
9
cultura geral; erudito, pensador, sábio22. Nenhuma conotação política.
Embora D’Alembert, um dos philosophes iluministas, redator da Enciclopédia, já tivesse escrito
em 1753 o seu Essai sur le gens de lettres, deve-se ao russo Bogorykin, na metade do século
XIX, o emprego do termo inteligencija, que rapidamente passa a ter curso em toda a Europa
traduzido como designativo de classe culta, categoria de pessoas que, independentemente de
sua atividade profissional, possuem instrução ou formação superior.
O primeiro registro da palavra intelectuel chega-nos, na França, e já politizado, marcando a partir
daí toda a trajetória do vocábulo, com o Manifeste des intellectuels, liderado por Zola, exigindo a
revisão do processo contra o capitão Dreyfus. Publicado por Clemenceau no Aurore de 14 de
janeiro de 1898, transforma-se logo, o Manifesto, em divisor de águas entre conservadores e
progressistas23. Desde então deixa de significar, tão-só, uma condição social ou profissional, ou
um nível de informação ou cultura, para sugerir ação polêmica derivada de alinhamento
ideológico.
Se aquele fato histórico, a edição do Manifesto, contribuiria para comprometer o ser intelectual
com posições progressistas, Marx e Engels considerariam os intelectuais divididos entre
progressistas e conservadores, estes constituindo a porção majoritária. Como não via na classe
operária condições de produzir seus próprios intelectuais, Lênin, assim, como Plékhanov,
indicava como um dos papéis revolucionários do militante marxista servir como intelectual para
os trabalhadores. Para Max Weber o intelectual vive dividido entre a dedicação ao objeto de
suas reflexões e a necessidade de definir-se em face dos problemas de seu tempo.
Gramsci critica, nos esforços por fixar a acepção de ‘intelectual’, o erro metodológico de procurar
um critério de distinção “no que é intrínseco às atividades intelectuais, em vez de buscá-lo no
conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as
personificam) se encontram no conjunto geral das relações sociais. Na verdade, o operário ou
proletário, por exemplo, não se caracteriza especificamente pelo trabalho manual ou
instrumental, mas por este trabalho em determinadas condições e em determinadas relações
sociais (sem falar no fato de que não existe trabalho puramente físico, e de que mesmo a
expressão de Taylor, do ‘gorila amestrado’, é uma metáfora para indicar um limite numa certa
direção: em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe um mínimo
de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora). E já se observou que
o empresário, pela sua própria função, deve possuir em certa medida algumas qualificações de
caráter intelectual, embora sua figura social seja determinada não por elas, mas pelas relações
sociais gerais que caracterizam efetivamente a posição do empresário na indústria24”. Em
resumo: se todos os homens são intelectuais, nem todos têm na sociedade a função de
intelectuais, sejam operários, empresários ou, digamos, filósofos.
Todo grupo social cria para si, organicamente, “uma ou mais camadas de intelectuais que lhe
dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas
também no social e político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o
cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc.25. De
outra parte, “Todo grupo social ‘essencial’, contudo, emergindo na história a partir da estrutura
econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura encontrou –-pelo
menos na história que se desenrolou até nossos dias-- categorias intelectuais preexistentes, as
quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não foi
interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
Rio de Janeiro. Editora Objetiva. 2001.
23
BOBBIO, Noberto; METTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de política. Brasília. Editora Universidade de Brasília. 5ª
edição. 2000. Pp-637-40.
24
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro.
Civilização Brasileira. 2004. Vol.2 . P.18.
25
Idem. Idem. P 15.
22
10
políticas. […] A categoria dos eclesiásticos pode ser considerada como a categoria intelectual
organicamente ligada à aristocracia fundiária; era juridicamente equiparada à aristocracia, com a
qual dividia o exercício da propriedade feudal da terra e o uso dos privilégios estatais ligados à
propriedade”26.
Consabidamente, Gramsci não divide os intelectuais, do ponto-de-vista funcional, entre
progressistas e conservadores, mas entre ‘orgânicos’ --progressistas ou não— e ‘tradicionais’: “a
burguesia tem seus intelectuais ‘orgânicos’ assim como há intelectuais ‘tradicionais’ (por
exemplo padres ou professores) ligados às lutas do proletariado27”.
Os intelectuais ‘orgânicos’ são o elemento pensante e organizador de uma classe social
particular. Distinguem-se menos por suas profissões, que pode ser qualquer trabalho
característico de sua classe, do que por seu papel em dirigir as idéias e aspirações da classe à
qual pertencem organicamente. Observa ainda Gramsci que os intelectuais ‘orgânicos’ – cujo
surgimento deriva da emergência de uma nova classe (emergência que exige e elabora aquele
surgimento)— “são, na maioria dos casos, especializações de aspectos parciais da atividade
primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz28”.
Intelectuais ‘tradicionais’ são os profissionais tradicionais, literatos, cientistas e assim por diante,
que, tendo sido no passado intelectuais ‘orgânicos’ de outras classes, ocupam, com o
desaparecimento delas, um papel como de independência e autonomia, cuja posição nos
interstícios da sociedade possui uma certa aura interclasse derivada de relações de classe
passadas e presentes e diz respeito a varias formações históricas de classe. Se, de um lado,
entre um grupo e outro, funciona o partido político, procedendo a uma soldagem entre os
intelectuais ‘orgânicos’ de um dado grupo, o dominante, e intelectuais ‘tradicionais’, o papel
desses intelectuais, sejam ‘orgânicos’, sejam ‘tradicionais’, é também de partido político, dando
forma homogênea à consciência da classe a que estão organicamente ligados (ou, no caso dos
intelectuais ‘tradicionais’, às classes a que dão sua adesão) e, desse modo, preparam a
hegemonia dessa classe sobre o conjunto dos seus aliados. São, em suma, agentes de
consolidação de uma vontade coletiva, de um ‘bloco histórico’”29.
Sartre dirá que os philosophes podiam ser considerados ‘intelectuais orgânicos’ porque
representavam os interesses da classe de que eram originários – pelo que Keynes seria um
paradigma de sua representação moderna, pela direita30-- e porá de manifesto a contradição
representada, em face de sua classe, pelo intelectual de esquerda. Escreve: “Os ‘filósofos’
aparecem assim como intelectuais orgânicos, no sentido que Gramsci dá à palavra: nascidos da
classe burguesa, encarregam-se de exprimir o espírito objetivo dessa classe”31, já o intelectual
moderno, “se ele se origina das classes trabalhadoras, só pôde ter sucesso pela única razão de
que num sistema de seleção complexo e jamais justo eliminou a maior parte de seus
26
Ibidem.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci, um estudo sobre seu
pensamento político. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1999. P.
175, nota 20.
28
GRAMSCI. Ob. Cit. P.16.
29
COUTINHO. Ob. Cit.Pp.175-6.
30
“Quanto à luta de classes como tal, meu patriotismo local e
pessoal, como os de qualquer um, exceto uns poucos desagradáveis
entusiastas, liga-se a meu próprio ambiente. Posso ser influenciado
pelo que me parece ser a justiça e o bom senso, mas a guerra de
classes vai me encontrar do lado da burguesia educada”(KEYNES,
John Maynard. ‘Am I a Liberal ?’, 1925 in Essays in Persuasion. P.
324).
31
IN Em defesa dos intelectuais. Ed. Cit. P. 21.
27
11
camaradas”32. Os filósofos modernos são homens da classe-média, uma contradição social
contra a qual nada podem.
A negação da origem de classe
Herdeiro dos philosophes das Luzes, o papel do intelectual de esquerda não é mais explicar o
mundo, mas transformá-lo. Isso quer dizer que o intelectual, ao tomar consciência de si e do
mundo, e do ser no mundo, tem que dar as costas a seus próprios interesses, pessoais,
burgueses e de classe. Ou seja, o intelectual de esquerda se desfilia de sua origem de classe,
rompe com os interesses da classe dominante, se investe nas funções de mandatário e portavoz dos oprimidos, entra em contradição com o establishment. Quanto mais outsider, mais livre
será, e melhor exercerá seu papel de intelectual de esquerda, isto é, de aríete da muralha do
sistema; quanto mais livre e independente, mais outsider; e a medida de sua liberdade é contada
pelo seu distanciamento do establishment, distanciamento cada vez mais difícil nos países
pobres, de alta concentração de renda, nos quais o pequeno círculo do poder compreende
também os intelectuais, os cientistas, os jornalistas, a universidade, professores, juristas,
magistrados, imbricados todos numa malha de interdependência que confunde sociedade civil e
Estado.
Certamente nessa característica histórica radica a explicação para a sistemática adesão dos
nossos intelectuais aos interesses das elites brasileiras, descomprometidas com o povo, a
nação e o país. Daí a adesão majoritária ao pensamento dominante, conservador, a absorção
como sua da ideologia das metrópoles dominantes; daí o passivismo, o sentimento de
inferioridade, o modismo ideológico, o embasbacamento em face do que vem de fora –utensílios, novidades, idéias, modo de ser e pensar. Daí a ausência de auto-estima. Daí,
certamente, a adesão ao neoliberalismo, ao discurso oficial e único, à política de
desnacionalização do país, da concentração interna de receita, renda, poder, cultura, ciência e
tecnologia. Em síntese: da introjeção, como nacional, dos interesses forâneos.
Em nossas sociedades, ao contrário, o intelectual de esquerda recusa-se a representar seu
interesse de classe. Isso ocorre porque ele, o intelectual, é necessariamente um produto da
classe dominante, e nesses termos não pode ser engendrado pelos excluídos33. Por isso,
mesmo quando assume o ponto-de-vista das massas populares para entender a sociedade, o
intelectual não consegue resolver as contradições que o constituem. Recusa sua classe sem
conseguir livrar-se inteiramente dela e sem jamais conseguir integrar-se ao proletariado; será
sempre suspeito às classes trabalhadoras e um traidor para as classes dominantes. O intelectual
pequeno-burguês poderá, até, fazer-se teórico da classe trabalhadora, jamais um seu intelectual
32
Idem. P. 25.
Escreve Sartre: “[…] as classes desfavorecidas, como tais, não
produzem intelectuais, pois é justamente a acumulação do capital
que permite às classes dominantes criar e fazer crescer um capital
técnico. Certo, acontece (10% na França) de o ‘sistema’ recrutar
alguns técnicos do saber prático nas classes exploradas; mas, se a
origem desse técnico é popular, nem por isso deixam de logo ser
integrados às classes médias, por seu trabalho, seu salário e seu
nível de vida. Em outros termos, as classes desfavorecidas não
produzem representantes orgânicos da inteligência objetiva que é a
delas. Enquanto a revolução não for feita, um intelectual orgânico
do proletariado é uma contradição in adjecto ; demais, nascendo nas
classes que, por sua própria situação, reivindicam o universal, ele
não seria, se pudesse existir, esse monstro que descrevemos e que se
define por sua consciência infeliz” (Idem. Ibidem. P. 43).
33
12
orgânico. Pode recusar sua classe, mas jamais consegue livrar-se dela por completo.
Não basta ao intelectual de esquerda condenar a injustiça; cumpre-lhe agir concretamente,
combatendo a sociedade de classe que secreta a injustiça.
Quando o intelectual, em face de uma questão concreta, responde com uma regra moral de
pretensa vigência universal, não está simplesmente se omitindo. Está tomando partido por uma
das partes. Quando diz que é contra a Guerra, toda e qualquer guerra, está pondo num mesmo
plano a guerra do invasor e a guerra do invadido, a guerra do colonizador e as guerras de
independência. Quando o intelectual é, ao mesmo tempo, contra a violência do invasor e a do
invadido, e em nome de um sistema de valores, condena igualmente a ambas, porque condena
a violência em si, na verdade ele está tomando o partido do agressor. Para ser contra a
categoria Guerra, isto é, para ser a favor da Paz, é preciso que o intelectual antes se defina
diante de cada uma das guerras e guerrinhas particulares que se espalham no mundo à sombra
da Pax americana.
O homem é suas opções
O ofício de escritor é uma função social e o intelectual, um militante. Escrever é um meio de
ação. Como na ciência: não há separação entre ciência pura ou fundamental, de um lado, e
ciência aplicada, de outro; não há descontinuidade valorativa entre os estudos sobre a fissão
nuclear e a fabricação do artefato bélico. Todo cientista, quando chamado a envolver-se com
armas de destruição em massa, é igualmente chamado a escolher-se. Enquanto muitos
cientistas alemães, Heisenberg à frente34, colocaram acima da fidelidade à pátria em guerra seus
compromissos com a humanidade, tentando impedir a construção de bombas atômicas, sob os
riscos óbvios da repressão totalitária, seus colegas físicos nas democracias dos países Aliados,
muitos deles emigrados judeus, concentravam todos os esforços na produção da nova arma, e
assim tornaram-se moralmente também responsáveis pelo massacre das populações civis de
Hiroshima e Nagasaki, ainda que para seus gestos pudessem argüir o abono da luta moral
contra o fascismo, que também perseguia o artefato atômico. Tanto sob o fascismo quanto na
democracia, os cientistas e os intelectuais tiveram oportunidade de escolha. E escolheram.
Porque não há a indiferença moral da técnica, nem da ciência. Assim, Sakarov se definiu (optou)
quando assumiu a responsabilidade de pai da bomba H soviética. Na mesma medida se
definiria mais tarde, assumindo a defesa dos direitos humanos em seu país, contra o silêncio de
seus colegas. Isso ficou didaticamente claro para os brasileiros na resistência ao regime militar:
Gustavo Corção, Nelson Rodrigues e David Nasser, exemplos de um lado, e Alceu Amoroso
Lima, Antonio Callado e Carlos Heitor Cony, exemplos de outro lado, exerceram, na mesma
medida, seus papéis de militantes sociais, intelectuais contemporâneos. Os primeiros
defendendo o regime militar e os outros denunciando o ‘terrorismo cultural’, a ‘revolução dos
caranguejos’ e a tortura. Naquela época, aliás, os campos estavam claramente dispostos,
cobrando opção. De um lado a ditadura militar, de outro a resistência civil. Tratava-se de
escolher-se, optando entre combater a ditadura ou a ela aliar-se, neste caso defendendo-a ou
silenciando diante de seus crimes. O mesmo se colocara para os intelectuais franceses sob a
ocupação: resistir (de mil formas, incluindo a subversão, a sabotagem e a ação armada) ou
colaborar (de mil formas, incluindo o silêncio e a omissão).
O homem sempre se escolhe
Filhos de classe média-alta em Paris, Raymond Aron e Jean-Paul Sartre nasceram no mesmo
ano (1905), foram colegas de khâgne (escola preparatória ao ingresso na escola normal
superior), colegas na Escola Normal Superior da rua d’Ulm (centro de formação de intelectuais)
entre 1924 e 1928, e ambos estudaram na Alemanha (1933). Lá, Sartre dedicar-se-ia à
fenomenologia de Edmundo Husserl, às teorias existencialistas de Heidegger e Karl Jaspers e à
Cf. CORNWELL, John. Os cientistas de Hitler. Imago. Rio, 2003. pp.
24-5, citando Powers, Thomas, Heisenberg’s War: The Secret History
of the German Bomb. Boston, 1993, p. 482.
34
13
filosofia de Max Scheller; e Raymond Aron se entregaria apaixonadamente à leitura de Hegel,
Marx e Max Weber35. Seriam ainda colegas de Resistência, um na Inglaterra, outro na França,
demarcando a evolução radicalmente divergente que cada um a partir daí viveria. Aron, em
Londres, escreverá na revista La France libre. Ao estourar a guerra, Sartre (como muitos colegas
de geração) é convocado pelo exército, vai servir como meteorologista em Lorena, onde, em
1940, cai prisioneiro dos alemães e é internado no campo de concentração de Trier, na
Alemanha, de onde escapará um ano mais tarde para, na primavera de 1941, reencontrar-se em
Paris, e organizar o grupo de resistência ‘Socialismo e liberdade’ com a finalidade de lutar contra
a ocupação e os colaboracionistas. Dois anos depois encena a peça As moscas, uma metáfora
sobre a França ocupada e uma exortação à luta contra os alemães. Instalada a Guerra-fria,
Sartre se aproxima dos comunistas e se torna deles um ‘compagnon de route’ (‘simpatizante’
diríamos, no jargão brasileiro do Partidão)36. Uns e outros são o objeto da ácida crítica de Aron
em um de seus ensaios mais célebres, l’Opium des intellectuels. Estarão separados em seguida
nos anos 50-60 pelas guerras coloniais, pela guerra do Vietname e pela irrupção estudantil de
1968. Sartre morre em 1980 em meio à crise do marxismo, e Aron em 1983, festejado pela
ascensão do liberalismo, de que se tornara a mais importante expressão francesa. Sartre transita
do apoliticismo dos primeiros anos da École para transformar-se no mais importante pensador e
ativista da esquerda francesa no século passado. Raymond Aron, que já chega politizado à
École, seria o mais festejado pensador da direita francesa. Sartre, o intelectual outsider,
estilingue à mão a desmistificar todos os valores do ‘humanismo’ capitalista. Aron, o intelectual
orgânico’ por excelência, pilar do pensamento conservador, o ‘humanista’ das elites francesas,
dedicaria sua vida intelectual a pensar a História em curso. Sartre, a fazê-la. Ambos exerceram,
em toda a amplitude, o papel de intelectuais engajados.
A resistência brasileira
Os reacionários brasileiros de todas as cores, agindo ou silenciando, defendiam o regime militar
de 64, e muitos lutaram mesmo pela sua implantação; todos os progressistas o combatiam, e se
o combatiam, eram progressistas: os socialistas, os comunistas, os liberais, os trabalhistas, os
que faziam oposição parlamentar e os que assumiram a luta armada. Mas, derrotada a ditadura,
reorganizada a vida constitucional do país, retomado o modelo de democracia representativa,
restabelecidas as liberdades civis, o intelectual passou a ser chamado a definir-se a cada
momento, em face de cada eleição, de cada governo, de cada decisão. Definir-se diante do
ensino público e do ensino privado, do crescimento e da distribuição ou da concentração de
renda, definir-se entre os interesses do capital financeiro e os interesses da sociedade, entre a
recessão e o crescimento, definir-se em face da fixação do valor do salário-mínimo, e assim por
diante, pois é preciso definir-se diante de tarefas imediatas, no dia a dia de um mundo
fundamentado na exploração do homem pelo homem, no desemprego, na fome e na exclusão
das grandes massas. Um mundo de opressão, condicionando a vida de todos e construindo os
papéis de opressores e oprimidos.
35
Aron: “Alors que je lisais passionnément Hegel, Marx e Max
Weber, j'ai conçu le projet qui est resté le mien, penser l’Histoire en
train de se faire” in SIRINELLI, Jean-François. Deux intelectuells dans
le siècle. Sartre et Aron. Ob. Cit. p. 14.
36
Sartre chegou a filiar-se ao PCF em 1952, mas dele se desligaria
em 1956, como resposta à invasão da Hungria. Escreveria então O
fantasma de Stálin, no qual denuncia os desvios do marxismo pelo
sistema soviético. Cf. ‘Le Fantôme de Staline’ in Les Temps
Modernes. nºs 129-130-131, novembro-dezembro, 1956, janeiro1957, posteriormente incluído em Situations VII – problèmes du
marxisme, 2. Éditions Gallimard. Paris, 1965.
14
Assim, muitos resistentes da luta contra a ditadura, cessada essa, fizeram novo caminho de
definições. Simbólica é a opção do sociólogo Fernando Henrique Cardoso (simbólica da opção
de tantos outros intelectuais de esquerda, mais ou menos insignes, como Giannotti e Serra),
transitando da esquerda para a direita, e desta forma realizando seu projeto de intelectual
pequeno-burguês. Originário da esquerda, convivendo na área de influência intelectual do
Partido Comunista ou a ele mesmo filiado, Fernando Henrique conclui sua trajetória política
como exemplar intelectual orgânico da direita, pondo-se a serviço da hegemonia de classe,
fazendo o caminho inverso de Alceu Amoroso Lima, Hélder Câmara e San Thiago Dantas, que
transitaram da direita para posições progressistas. Já Antônio Houaiss transitou da resistência
democrática desde o Estado Novo ao projeto de construção de uma sociedade socialista. Aliás,
seu papel como intelectual de esquerda, comprometido com a revolução socialista, carregou
sempre esse caráter de contradição com seus interesses de classe. Como Caio Prado Júnior ao
optar pelo marxismo e filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro. Mas ao contrário de Francisco
Campos, Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões, exemplares paradigmáticos de
intelectuais orgânicos da direita, que jamais entraram em conflito com seus interesses de classe,
ou com os interesses da classe que adotou, como é o caso de Roberto Campos. Ao contrário,
fizeram-se seus representantes. Raquel de Queirós, ao optar pela militância de direita, supera o
conflito da juventude e entra em harmonia com sua origem e interesses de classe. Defenderia a
conspiração de que emergiu o regime castrense, e silenciaria em face de seus crimes, como a
prisão, a tortura e o assassinato dos adversários.
Todos se definiram.
Liberdade é escolha
O homem escolhe o ser e escolhe a situação, porque deriva de sua liberdade fazer com que uma
situação exista, modificando-a. O elemento transformador do sofrimento do operário em
mobilização para a revolução é o fato de essa revolução ser possível, isto é, ser possível ao
operário optar por ela, ainda que ela não se realize. Em outras palavras, o êxito não é condição
absoluta de liberdade, até porque mesmo o suicídio é escolha, é execução e afirmação do ser.
Por este ser que lhe é dado, a liberdade participa da contingência universal do ser e, daí, do que
Sartre chama de absurdité37, absurdo no sentido de contrário à razão, ou seja, algo fora de
propósito. A escolha é absurda não porque careça de razão, senão porque inexiste possibilidade
de não haver, e se o homem escolhe (mais precisamente, é ‘condenado’ a escolher, isto é, a
exercer sua liberdade), ele é responsável pela sua escolha, porque, mesmo quando não escolhe,
está se escolhendo38. O homem é responsável por si, como autocriação que é; o ser autocriado
determina sua própria existência e nela se escolhe. O processo contínuo de escolha é o
processo contínuo de fazer-se.
A escolha é possível ainda que nas condições as mais extremas e desfavoráveis. Neste sentido
podemos afirmar que mesmo o cativo, o prisioneiro –- e relembramos nossas observações a
propósito da diversidade de comportamentos à disposição do judeu encarcerado nos campos de
concentração nazistas — é livre para escolher, pois lhe é dado optar entre resignar-se à prisão e
lutar para evadir-se; para ser livre não é necessário que a evasão seja possível, porque a
liberdade está em escolher lutar pela evasão. Mesmo no gueto de Varsóvia houve os que se
escolheram revolucionários e os que se escolheram colaboracionistas e os que se escolheram
37
FERREIRA, Vergílio. ‘Da fenomenologia a Sartre’ in SARTRE, O
existencialismo é um humanismo. Lisboa. S/d. 2º edição, traduz por
absurdidade.
Jean-Paul. L’être et le néant (Essai d’ontologie
Paris.
Librarie
Gallimard.
1943.
Cf.
Nomeadamente a Quarta parte, Capítulo 1, Ser e fazer: a liberdade.
38
SARTRE,
phénoménologique).
15
conformistas39.
O homem é livre
O homem é livre, por isso escolhe (a liberdade é eleição, repetimos) e jamais está pronto (o
homem é o futuro do homem, e este futuro está livre), porque lhe é imposto o dever de optar, de
definir-se, de escolher, escolhendo-se a cada momento, e cada escolha é um instante de sua
construção; mas não é livre para não escolher, nem para escolher as condições em que essa
escolha se dá, porque o homem não é livre para deixar de ser livre. Retornamos à absurdité
sartriana. Sartre dirá que o homem é um invento de si mesmo, e Marx mostrou os limites
históricos condicionando o papel do indivíduo: “Os homens fazem sua própria história, mas não a
fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que
se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”40. Não se conclua daí, porém,
qualquer sorte de determinismo, pois, se não escolhe as condições em que é chamado a
escolher-se, determinadas pelo processo histórico, como assinala Marx, cabe ao indivíduo
escolher-se nas circunstâncias dadas. Cabe-lhe, inclusive, intervir no processo histórico,
cumprindo com seu papel de sujeito, e alterar as circunstâncias, construindo alternativas
favoráveis, embora sempre possa escolher, mesmo quando as circunstâncias são
desfavoráveis41.
O mundo é produto do homem
Marx, em passagem conhecida, lembrava que o papel do intelectual não é mais, tão-só, o de
compreender o mundo, mas o de transformá-lo42. O grande trabalho do homem é melhorar-se
(por isso ele é um invento incompleto, um processo permanente de criação) e melhorar o mundo,
onde está o reino de sua vida. Como o homem, o mundo está sempre por fazer-se.
Qual o significado da afirmação: o homem atua (portanto, faz História) de acordo com o tempo e
o mundo em que vive?
Que seu papel é alterar as circunstâncias. Melhorar-se permanentemente e melhorar o mundo,
Sugestão de leitura: MARK, Bernard. O levante do gueto de
Varsóvia. Rio. S/d. Editorial Vitória Limitada.
40
MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte e Cartas a
Kugelmann. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1974. P. 17.
41
“A história mundial seria na verdade muito fácil de fazer-se se a
luta fosse empreendida apenas em condições nas quais as
possibilidades fossem infalivelmente favoráveis. Seria, por outro
lado, coisa muito mística se os ‘acidentes’ não desempenhassem
papel algum. Esses acidentes mesmos caem naturalmente no curso
geral do desenvolvimento e são compensados outra vez por novos
acidentes. Mas a aceleração e a demora são muito dependentes de
tais ‘acidentes’, que incluem o ‘acidente’ do caráter daqueles que de
início ficam à frente do movimento”. Carta de 17 de abril de 1871
de Karl Marx a Kugelmann, in O 18 brumário de Luís Bonaparte e
Cartas a Kugelmann. Ed. Cit. P.293
42
Marx, 11ª Tese contra Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a
interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”, in ‘Teses
contra Feuerbach’ apud Marx—Manuscritos econômico-filosófios e
outros textos escolhidos. Editora Abril. Col. Os pensadores. S. Paulo.
1985. p. 53.
39
16
num processo permanente e irreversível de melhoria individual e coletiva. Esse processo
contínuo, todavia, não se realiza por si só, não se move por energia própria, impulsionado seja
pelo acaso, seja por leis históricas autônomas da vontade humana. Ao contrário, o mundo é um
produto do homem, o ser que recusa a submissão de sua vida às forças do destino. Por isso, o
homem livre, isto é, aquele que assumiu sua liberdade, é responsável por si e pela
humanidade43, em face da História, script que lhe cabe escrever, produzir, elaborar, criar e
encenar. Essa é sua forma de viver sua época.
O homem é responsável por si próprio. Quando faz tal afirmação, Sartre não quer dizer, apenas,
que o homem é responsável pela sua estrita individualidade, mas que é responsável por todos
os homens44. Quando o homem escolhe a si próprio, ele escolhe todos os homens: ‘Quando
dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si
próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe
todos os homens”45, porque o ato individual envolve toda a humanidade, porque o que
escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos. Sua
fonte é o imperativo categórico kantiano, segundo o qual meu ato só será útil a mim se o for
igualmente para toda a humanidade46.
43
Para Sartre o homem é plenamente responsável. Com isso ele
quer afirmar que o homem não é responsável, apenas, pela sua
estrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens,
porque o que escolhemos é sempre o bem, e “rien ne peut être bon
pour nous sans l’être pour tous” (L’existencialisme est un
humanisme. Idem. Pp.25-6.). Sua fonte é o imperativo categórico
kantiano, segundo o qual meu ato só será útil a mim se o for
igualmente para toda a humanidade: “O imperativo categórico é
portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima
tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal”. O imperativo universal do dever, é ainda Kant, pode
exprimir-se ainda como “Age como se a máxima da tua ação se
devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza”(KANT, Immanuel. ‘Fundamentação da metafísica dos
costumes’ in Textos selecionados, II. Col. Os pensadores. São Paulo,
1984. Abril S.A. Cultural. Pp. 129-130).
44
IN L’existencialisme est un humanisme (Ed. Cit.), p. 25
45
Idem. P. 26
46
“O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age
apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo
querer que ela se torne lei universal. Ora, se deste único imperativo
se podem derivar, como do seu princípio, todos os imperativos do
dever, embora deixemos por decidir se aquilo a que se chama dever
não será em geral um conceito vazio, podemos pelo menos indicar o
que pensamos por isso e o que é que este conceito quer dizer. Uma
vez que a universalidade das leis, segundo a qual certos efeitos se
produzem, constitui aquilo a que se chama propriamente natureza
no sentido mais lato da palavra (quanto à forma), quer dizer, a
realidade das coisas, enquanto é determinada por leis universais, o
imperativo universal do dever poderia também exprimir-se assim:
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Somos chamados a nos inventarmos todo o dia, a cada dia. O homem nasce proletário
independentemente de sua escolha; mas não nasce intelectual. Pequeno burguês, porém, pode
optar, entre ser intelectual ou empresário. Intelectual, pode comprometer-se com os interesses
de sua classe, pode afastar-se desses interesses e pode optar por servir a outra classe.
Ninguém nasce proletário com consciência de classe ou intelectual ou de esquerda ou de direita,
ninguém nasce revolucionário ou conformista, não se nasce covarde ou herói, vítima ou
torturador, honesto ou corrupto. O homem é o que, nas circunstâncias de sua vida, escolhe ser,
e por essa escolha, é solitariamente responsável.
Diante da ditadura, tanto os operários quanto os intelectuais tiveram condições de escolha,
escolhendo entre a passividade e a luta, como têm agora, optando, entre mudança e
continuidade. Só que a margem de escolha se elasteceu. Desapareceram os ‘catecismos’
ideológicos, as cartilhas, e os manuais doutrinários não funcionam mais, feneceram as certezas
absolutas, caducou o maniqueísmo do a favor ou contra facilitatório das decisões. Não há mais o
Partido decidindo pelo militante. E não há mais decisões em bloco. A tomada de posição é tarefa
de todo momento e de cada indivíduo, e na maioria dos casos o intelectual é chamado a decidir
no abandono de sua solidão.
Não basta a condição de classe para definir o papel do agente histórico; não basta ser
operário/trabalhador/assalariado ou ser intelectual ou ser burguês. O operário, condicionado por
sua origem, condicionado por seu salário, condicionado pelo emprego flexível e pela ameaça
constante de desemprego, pela formalidade apontando diariamente para a informalidade,
condicionado pela exploração do capital, condicionado finalmente pela sua condição de vida, isto
é, pela sua maneira de ser no mundo, pode definir-se, ao optar, seja por resignar-se, seja pela
revolução. No Brasil, temos operários na CUT e na Força Sindical. Já tivemos operários no
Partido Comunista (quando este foi revolucionário), nos Círculos Operários Católicos, de direita,
e ao mesmo tempo nas ante-salas do Ministério do Trabalho como meros pelegos, prontos para
a cooptação. Sabemos, e Frantz Fanon47 o disse, que o colonizado pode expressar a vontade
do colonizador, e Paulo Freire lembrava que o oprimido pode reproduzir o opressor. Sabemos
que o discriminado pode reproduzir os valores do discriminador. Ao definir-se, isto é, ao
escolher-se em face da realidade, ao optar entre a cooptação pelo capital ou a simples
resignação em face do ‘imperativo’ da opressão, de um lado, e, de outro, pela revolta, pelo
conflito, pela luta, o operário -– qualquer que seja o conceito segundo o estágio de
desenvolvimento do capitalismo--, está definindo o futuro do proletariado. Neste momento o
homem escolhe e é responsável por sua escolha. E não tem opção, senão escolher-se,
transformando o grito de dor num canto de dor, que a denuncia. Denuncia este mundo e propõe
outro mundo, porque, sempre, outro mundo é possível construir.
Exatamente por esta razão, o homem é construtor de seu destino e o único responsável pelo
papel que desempenhará na história. Finalmente: o homem é o único responsável pelo homem.
(2005)
Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua
vontade, em lei universal da natureza”. (KANT, Immanuel.
‘Fundamentação da metafísica dos costumes’ in Textos selecionados,
II. Col. Os pensadores. São Paulo. 1984. Abril. Cultural. PP. 120-130.)
47
FANON, Franz. Os condenados da terra. Editora Civilização
Brasileira. Rio. 1968
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Não há escolha: o homem é obrigado a escolher-se