Universidade Federal Fluminense
Instituto de ciências Humanas e Filosofia
Pós-Graduação em História Social
BEATRIZ DE MORAES VIEIRA
A PALAVRA PERPLEXA:
EXPERIÊNCIA HISTÓRICA E POESIA NO BRASIL
NOS ANOS 70
Niterói
2007
BEATRIZ DE MORAES VIEIRA
A PALAVRA PERPLEXA:
EXPERIÊNCIA HISTÓRICA E POESIA NO BRASIL
NOS ANOS 70
Tese apresentada ao Curso de Doutorado
do Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial à
obtenção do grau de Doutor. Setor de
História Contemporânea, linha de pesquisa
Cultura e Sociedade.
Orientador: PROF. DR. PAULO KNAUSS DE MENDONÇA.
Niterói
2007
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
V658 Vieira, Beatriz de Moraes.
A palavra perplexa: experiência histórica e poesia no Brasil
nos anos 70 / Beatriz de Moraes Vieira. – 2007.
379 f.
Orientador: Paulo Knauss de Mendonça.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2007.
Bibliografia: f. 340-353.
1. Ditadura militar - Brasil. 2. Memória – Aspectos sociais. 3.
Repressão política. 4. Poesia. I. Mendonça, Paulo Knauss de. II.
Universidade Federal Fluminense. III. Título.
CDD 981.06
BEATRIZ DE MORAES VIEIRA
A PALAVRA PERPLEXA:EXPERIÊNCIA HISTÓRICA E POESIA NO BRASIL NOS ANOS 70
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do
Programa de Pós-Graduação em História
Social da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial à obtenção do grau de
Doutor. Setor de História Contemporânea,
linha de pesquisa Cultura e Sociedade.
Aprovada em setembro 2007.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Prof. Dr. PAULO KNAUSS DE MENDONÇA – Orientador
UFF
______________________________________________________
Profa.Dra. ADRIANA FACINA
UFF
_____________________________________________________ _
Profa. Dra. CÉLIA PEDROSA
UFF
_____________________________________________________
PROF. DR. KARL ERIK SCHOLLHAMMER
PUC-RIO
_____________________________________________________
Prof.Dr. MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
UNICAMP
Niterói
2007
Para minha mãe,
que calou o seu piano
e manteve o brilho dos olhos.
Para meu pai,
que sempre preferiu o futuro e lutou.
Para nosso amigo Sérgio Moliterno (in memoriam),
que gostava de parafrasear Rimbaud:
“Par délicatesse j’ai ‘gagné’ ma vie”...
AGRADECIMENTOS
É reconhecido que raramente fazemos justiça, na hora de agradecer, a todos aqueles que
contribuíram para o bom termo de uma tese. Com estes, desde já me desculpo, na esperança de que
saibam receber minha gratidão desprovida de palavras.
Isto claro, agradeço primeiramente a meu orientador, prof. Paulo Knauss de Mendonça, porque
desde o início acreditou no valor deste trabalho e soube dosar, com sabedoria incomum, o momento da
interlocução e da liberdade na orientação. Sua amizade, sensibilidade e conhecimentos foram de
grande valia. Aos demais professores do PPGH, agradeço a possibilidade de aprofundar o aprendizado
e ampliar minhas leituras, em especial: a Guilherme Pereira das Neves e Magali Engel, cujos cursos
freqüentei; a Adriana Facina, por sua tão bela generosidade e valiosas sugestões na banca de
qualificação; aos professores membros da Comissão Editorial da Revista Tempo, sobretudo Maria de
Fátima Gouveia e Laura Maciel, bem como as secretárias, Margret Engel e Cristiane Maria Marcelo,
pela boa acolhida e compartilhamento durante os dois anos que participei dessa comissão como
representante discente; a Carlos Addor, pela boa-vontade em conversar e me emprestar os livros
esgotados de Alex Polari; a Sônia Mendonça, por não esquecer de sua velha aluna; a Denise
Rollemberg, amiga que desde a graduação me incentivou a mergulhar no estudo do período da
ditadura militar no Brasil. Sua pesquisa sobre os exilados, bem como o trabalho do prof. Daniel Aarão
Reis, a quem também agradeço o interesse, são basilares para quem se dedica a conhecer a época.
À Célia Pedrosa, professora da pós-gradução em Letras/UFF, meu especial agradecimento, por
me acompanhar desde o mestrado, por sua disponibilidade para o diálogo interdisciplinar e por ter-me
franqueado as portas do seu grupo de estudos “Poéticas do olhar na modernidade e na
contemporaneidade”, cujos debates frutificaram em muitos momentos desta tese. Aos colegas deste
grupo também, muito obrigada! Igualmente agradeço a Heloisa Buarque de Hollanda e Beatriz
Rezende, pelas sugestões quando assisti seu curso na pós-graduação da ECO/UFRJ, em 2003. Uma rica
interlocução me foi propiciada por colegas e professores do GT História e Linguagem, da ANPUH-MG
e ANPUH-Nacional, a quem estendo meu reconhecimento por meio de Rosângela Patriota, professora
da Universidade Federal de Uberlândia. Desta mesma universidade, recebi precioso incentivo das
equipes editoriais da revista ArtCultura e da revista eletrônica Fênix, às quais registro meu apreço;
mas sobretudo, envio meu beijo agradecido à profa. Dilma de Paula, por poder contar com sua
amizade e grandeza de espírito.
Obrigada ainda aos poetas que gentilmente me concederam entrevistas ou informações,
oferecendo-me belos relatos de suas experiências, especialmente Paco Cac, Vicente de Percia, Brasil
Barreto e Zé Luis Oliveira, a quem fico devendo um trabalho específico, que não foi possível realizar
aqui sem retalhar sua riqueza. Também a Débora Racy Soares, pesquisadora da obra de Cacaso, e a
Leilah Landim, que me presenteou com um já raro exemplar de Não quero prosa, agradeço a
solicitude e as informações sobre o poeta.
No meu universo familiar e amoroso, de certo não disponho dos recursos expressivos que
gostaria para dizer minha gratidão. A meu companheiro Marildo Menegat, que restituiu em mim a
confiança na força do amor e do conhecimento, ao insistir, a cada gesto, no valor inestimável da
dignidade humana. Em seu agudo olhar sobre o mundo e idéias instigantes, elucidando caminhos,
como em sua profunda generosidade intelectual e afetiva, encontrei o mais fértil solo para pensar,
escrever e ser quem sou.
À minha mãe, Berenice de Moraes, por tudo. Sem sua integridade ética, sua luta diária e
dedicada, seu apoio material e psíquico ao longo de toda a vida, eu não teria chegado aqui. Do mesmo
modo, agradeço a meu pai, Liszt Vieira, cujo entusiasmo e exemplo me contagia. A meus irmãos,
Elisa Diniz Reis Vieira e Ivan de Araújo Vieira, porque me propiciam a experiência de uma
fraternidade muito especial, por termos colhido o fruto da seara paterna em momentos tão distintos. A
Maria das Dores Campos Machado, José Carlos da Matta, Marcio Erthal de Moraes, América
Ungaretti, pelas mais diversas formas de carinho e contribuição, todas fundamentais.
A Tânia Izquierdo, cuja mão competente e afável me orienta nas sendas, nem sempre fáceis, do
autoconhecimento e da saúde, nos claros-escuros da vida. A ela, como a Norma Lannes, Luciana
Thomás e Flávia Biondi que cuidam tão bem de mim, meu grato carinho.
A meus tios, primos e cunhados, que me acolheram em seu seio, no qual a solidão não graça.
Em particular, a Elizete Menegat, por sua admirável capacidade de renovação e tenacidade, além da
interlocução que sempre me ensina; e a Maria da Glória Kopp, com quem tive a chance de
compartilhar as inquietações de historiadora. E a meus sobrinhos, Marcela, André, Bernardo,
Leonardo, Fernanda, Vitor, Juliano, Sofia, Francisco, Ângelo, Cirilo, cujos olhos vislumbram um
futuro que não sei. Que tenham sabedoria e sorte!
A meus amigos da Universidade Candido Mendes de Niterói (RJ), Cristiane Brandão, Diana
Pichinini, Eline Deccache, Sylmar El-Jaick, Antônio Escobar, os membros do Cesucam e, em especial,
Luciane Moás, pelo trabalho nosso de cada dia que sua presença torna mais suave. À aluna Andréa
Mirati devo grande ajuda na pesquisa e organização dos Quadros Informativos do Apêndice, sua
vontade de saber é recompensadora! Também a Ana Cristina Sá de Souza e Cláudia Vianna agradeço
a contribuição na busca e trato de textos.
A Sergio Rizek, andarilho de alma particularmente sensível, e a todos meus amigos sufis,
porque nunca desistem. Aos que partiram no meio deste percurso, deixando em mim sua marca
indelével: Wal, Vitória Perez, Omar Ali-Shah, Sérgio Moliterno, Dr. Jaime Treiger.
Por fim, à banca examinadora e todos aqueles que de uma forma ou outra se interessaram por
esta história.
RESUMO
Este trabalho busca compreender a experiência histórica no Brasil nos anos 70, propondo a
poesia escrita sob a ditadura militar então vigente como fonte de pesquisa. Trata-se de um
estudo de história da cultura que mergulha dentro da dicção poética para dali extrair indícios
acerca da experiência e do modo como a história foi vista e sentida. As reflexões teóricas se
fazem em torno de conceitos pertinentes e questões problemáticas da relação entre poesia e
história na modernidade, bem como do significado de experiência histórica. Cruzando as
características do contexto histórico com a interpretação de poemas, o estudo discute o ano de
1968 como um marco especial na cultura brasileira e analisa as principais vozes poéticas do
período: a voz interrompida e subterrânea dos poetas que fariam a transição do tropicalismo à
poética da experiência, em meio a uma efervescência cultural cortada de forma traumática e a
novas questões colocadas aos sujeitos e à linguagem a partir do endurecimento do regime
militar; as vozes sufocadas do que se chamou de poesia “marginal”, marcada pela produção e
distribuição alternativa de libretos poéticos, numa resistência problemática contra a indústria
cultural e o regime político, encontrando na metáfora da asfixia uma das principais imagens
para designar o sofrimento vivido por diversos setores sociais, em diálogo com a crise do
nacional-desenvolvimentismo e da modernidade no Brasil; as vozes presas daqueles que
foram calados, encarcerados e torturados, cuja poesia testemunha a ruptura ética ocorrida no
país sob o terrorismo de Estado e a dialética da memória e do esquecimento em situações
derivadas de traumas históricos. Em linhas gerais, as imagens poéticas apontam a condição
intervalar desta lírica, a incomensurabilidade do processo de mudança na experiência
histórica ao longo da década e a perplexidade dele decorrente, deixando rastros na cultura
brasileira.
Palavras-Chave: experiência histórica – poesia – ditadura militar – modernidade brasileira –
memória traumática
ABSTRACT
This work seeks to understand the historical experience of Brazil under military dictatorship
in the 1970s by proposing written poetry as the research source material. It is a historical
study of culture that delves into poetic diction to extract signs of how the experience of
history was seen and felt. Theoretical reflections are made on the pertinent concepts and
problematic questions of the relationship between modern poetry and History. Also, the
significance of historical experience is taken into account. Crossing from the characteristics
of historical context to poetry interpretation, this study discusses 1968 as the year that left a
special mark on Brazilian culture and analyzes the main poetic voices of the period: the
interrupted and underground voice of the poets who made the transition from Tropicalismo to
the poetics of the experience, since the cultural effervescence of 1968 was traumatically
throttled and new questions were put to subjectivity and to language when the military regime
hardened. The suffocated voices of what is called “marginal” poetry are marked by the
alternative production and distribution of poetry books, in their problematic resistance against
the cultural industry and the political regime. Asphyxia became then a major to describe the
suffering experienced by diverse social sectors in dialogue with the crisis of the national
development and modernity in Brazil. The arrested voices of those who were silenced,
imprisoned and tortured are manifest in this poetry that testifies to the rupture occurring in the
country under State terrorism as well as to the dialectic of memory and forgetting in situations
derived from historic traumas. By and large, the poetic images point to the “interval
condition” of this lyric, facing to the incommensurability of changes in historical experience
throughout the 1970s together with the general perplexity that left wakes in Brazilian culture.
Keywords: historical experience – poetry – military dictatorship – Brazilian modernity –
traumatic memory
Não nos peças a palavra que acerte cada lado
de nosso ânimo informe, e com letras de fogo
o aclare e resplandeça como açaflor
perdido em meio de poeirento prado.
Ah o homem que lá se vai seguro,
dos outros e de si próprio amigo,
e sua sombra descura que a canícula
estampa num escalavrado muro!
Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos,
e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo.
Hoje apenas podemos dizer-te
o que não somos, o que não queremos.
(Eugênio Montale, sem título, em Ossos de Sépia)
Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Um granito açoitado por ondas de assombro.
(Charles Baudelaire, segundo poema da série Spleen,
em Flores do Mal)
SUMÁRIO
Introdução
p.10
1. Ecos e ressonâncias: para pensar a relação entre poesia e história
1.1. De poesia e história na modernidade
1.2. A experiência como elo
1.3. A poesia lírica como fonte
Excurso: Para ler a experiência histórica no Brasil nos Anos 70
p.20
2. Vozes Interrompidas e Subterrâneas I
Em torno de 1968: um grito e tantos (m)ais
2.1. O significado de 1968 no Brasil
2.2. O grito tropicalista
2.3. Um marco historiográfico
p.75
3. Vozes Interrompidas e Subterrâneas II
Palavras e ciladas, vazio e fim de mundo (1968-1972)
3.1. Dos trópicos à margem... passagem à experiência
3.2. O “vazio cultural” e a palavra subterrânea
3.3. Efervescência cultural interrompida
3.4. No campo das palavras minadas – trauma e reação na linguagem
p.104
4. Vozes Sufocadas I
Tempo de cal, indagação e asfixia: um surto de poesia nos anos de chumbo (1972-74)
4.1. A poética da “curtição” e da precariedade
4.2. Sinais de surto poético: o Jornal de Poesia e a Expoesia I
4.3. Ares anti-intelectuais: “cuidado, Capitão”...
4.4. Asfixia: o vazio-cheio
p.151
5. Vozes Sufocadas II
Entre eficiência e resistência: de dedo em pé, de mão-em-mão... (1974-1977)
5.1. Lamento e crise do “milagre”
5.2. Efeitos da Política Nacional de Cultura: da serventia à revelia
5.3. Grupos, coleções e revistas: poesia em ação
5.4. Experiência cotidiana e subjetiva: uma resistência límbica
p.194
6. Vozes Sufocadas III
p.238
A Espiar o Mundo: três ou quatro poetas e um punhado de questões
6.1. Chico Alvim: devoração do sujeito no espaço-tempo – mudança na relação com a história
6.2. Cacaso: “o espantoso baile dos seres” na crise da modernidade – a condição intervalar
6.3. Chacal: tempo histórico, alegria e experiência no meio-fio
7. Vozes Presas : o interregno de Alex Polari (1970-1979)
7.1. A ruptura ética
7.2. Experiência violenta e voz testemunhal
7.3. Da (im)possibilidade de esquecer e lembrar
p.288
Conclusão: Mudança de Voz e Perplexidade
p.321
Bibliografia Consultada e Fontes
p.340
Apêndice e Anexo (2º volume)
p.354
ERRATA
PÁGINA LINHA
p.4
31
ONDE SE LÊ
José Luis Oliveira
LEIA-SE
José de Oliveira Luiz
Haroldo Costa
Costa, Haroldo
Horácio Costa
Costa, Horácio*
...participou das
barricadas em 1830 e
assistiu horrorizado os
massacres parisienses
em 1848
...em cheque
Schiller
participou das
barricadas e assistiu
horrorizado os
massacres parisienses
em 1848
em xeque
Schelling
...tradições filosóficas
de base estóica, cristã
ou budista –, elidindo
sua dimensão política e
histórica
...o governo militar não
reprimira propriamente
o meio cultural
Costa, Horácio
(Agradecimentos)
p.14
16
06 (notas no pé
de pág)
p.25
12-13
p.40
p.128
19
05 (notas no pé
de pág)
p.140
2-3
...tradições filosóficas de
base estóica, cristã ou
budista –, dimensão
política e histórica
p.151
2
...o governo militar não
reprimira propriamente
o meio
*Costa, Haroldo
p.341;343 bibliografia
Introdução
Um dos momentos mais belos de minha vida foi haver descoberto o quanto foi
necessário para Primo Levi, dentro do horror de um campo de concentração nazista, o esforço
de se lembrar de alguns versos de Dante:
Considerate la vostra semenza:
Fatti non foste a viver come bruti,
1
ma per seguir virtude e conoscenza.
Desde então, o interesse que sempre mantive pela relação entre poesia e história só
aumentou e estes anos de doutorado foram dedicados a pesquisá-la. Inicialmente, o projeto
consistia em comparar a poesia brasileira das décadas de 70 e 90, almejando compreender a
problemática da experiência histórica na modernidade tardia ou “pós-modernidade” no Brasil
vista do prisma da arte poética, isto é, pesquisar a experiência e a consciência (ou não) do
tempo histórico na lírica dos últimos trinta anos do século XX. No entanto, ao longo do
processo de pesquisa, o surgimento de um imenso volume de fontes poéticas da década de 70,
ao lado de questões não previstas, impuseram mudanças de rumo. Primeiramente, a reflexão
teórica em torno do significado de “experiência histórica”, bem como de sua relação com a
literatura/poesia e sua especificidade na modernidade tardia, adquiriu um vulto maior do que a
princípio imaginado, uma vez que diversas correntes da filosofia e da crítica literária tratam
há muito a questão, oferecendo um vasto material ao historiador interessado em seus nexos
interdisciplinares. O assunto se torna particularmente relevante por ter sido projeto de estudo
de alguns dos principais poetas e críticos da época, como se verá. Ademais, uma série de
elementos indicados pelas fontes poéticas tornaram necessárias reflexões a respeito da
dimensão traumática da modernidade, do modo variado como a literatura pode tratá-la,
recalcando-a ou elaborando-a criticamente, e do significado disto para a história social e
cultural do país.
Em segundo lugar, o fato de a produção dos anos 70 ser caracteristicamente uma
“poesia de experiência”, em virtude do valor atribuído à vivência subjetiva e comportamental
1
“Considerai vossa semente:/Não fostes feitos para viver como animais,/mas para buscar virtude e
conhecimento” [tradução livre]. São versos do canto de Ulisses, no XXVI Canto do Inferno da Divina Comédia.
Na tradução brasileira de Cristiano Martins: “Relembrai vossa origem, vossa essência:/criados não fostes como
os animais, mas donos de vontade e consciência.” DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia. v.1. Trad. e notas
Cristiano Martins. 2.ed. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1979, p.328. Este relato de Primo LEVI
encontra-se no livro É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p.116.
11
como matéria poética, tornou-a um testemunho qualificado e uma fonte privilegiada para este
trabalho que busca o conhecimento sensível de um momento histórico, conforme configurado
pela palavra poética dos que o viveram. A ocorrência de uma verdadeira explosão de poesia
em todo o país naquela década – com grande número de poetas, conhecidos ou não,
publicações, acervos e editoras alternativas, livros, folhetos, fortuna crítica de muitos tipos,
registros de performances, debates nos meios de comunicação, eventos e manifestações
poéticas de diversos tipos, em diversos estados brasileiros –, além de ampliar o corpus de
sujeitos-autores, textos e acontecimentos que constituem o objeto da pesquisa, enriquecendo e
dificultando ao mesmo tempo o trabalho de seleção e avaliação a ser realizado, instigava
novas perguntas e hipóteses: o que significa tal pujança poética no contexto da ditadura
militar? que tipo de sensibilidade predomina naqueles textos? como vêem e sentem o processo
histórico em que se inserem? o que tem a nos dizer esta “geração” poética? o que significam
também os silêncios?
Diante disto, dois procedimentos foram seguidos para a seleção das fontes: sendo
inviável trabalhar com aquela imensidade de textos, procurei organizar um apêndice contendo
Quadros Informativos que permitam melhor visualizar dados referentes a autores, obras,
eventos/manifestações poéticas, publicações alternativas, matéria jornalística etc., relativos à
produção poética da “Geração 70”. Tais Quadros apresentam um levantamento inicial, com o
fito de servir a futuras pesquisas, que espero venham a ser desenvolvidas um dia. Isto feito, a
segunda providência consistiu em priorizar, mas não exclusivamente, os textos já
selecionados na própria época, isto é, a poesia organizada e comentada pelos próprios poetas
e/ou pela crítica especializada nos anos 70, em antologias, periódicos ou obras afins, como se
vê nos trabalhos de Heloisa Buarque de Hollanda, Antônio Carlos Ferreira de Brito (Cacaso),
Carlos Alberto Messeder Pereira, Flora Sussekind, Roberto Schwarz, entre outros. Foi
utilizada, em especial, a antologia 26 poetas hoje, que, elaborada por Hollanda e publicada em
1976, cumpre a função deste tipo específico de obra na história literária, como mostra Janaína
Senna2: construir nexos que dêem unidade a um corpus, garantindo uma visão de conjunto e
criando um cânon, que ao servir de texto básico do trabalho historiográfico vai-se tornando
fundador de uma tradição, ainda que isto pareça incoerente com o veio contracultural e
“marginal” da poética aqui em pauta.
Trata-se, portanto, de um trabalho de história da cultura que mergulha dentro da dicção
poética para dali extrair indícios acerca da experiência indissociavelmente subjetiva-objetiva e
2
Cf. SENNA, Janaína. Uma tradição persistente: antologias como rascunho da história da literatura. In:
Gragoatá, Revista de Programa de Pós-Graduação em Letras da UFF, Niterói, n.11, p.99-108, 2° sem. 2001.
12
do modo como a história foi vista e sentida. Isto inclui os debates com as tradições literárias,
nacionais e estrangeiras, as discussões prático-teóricas de diferentes correntes da literatura, a
relação dos poetas com a política, grupos, instituições culturais e com o Estado, além da
indústria cultural que se afirmava no momento, havendo sido um dos principais pontos de
estímulo, e conflito, da produção e distribuição “alternativa”. No entanto, o diálogo
intertextual não se faz apenas com a sociologia da cultura ou a interpretação sociológica da
literatura, mas primordialmente com a análise de discurso e a crítica literária de perfil
filosófico. Em outras palavras, a voz aqui ouvida e analisada não é propriamente a do
indivíduo autor, mas a do sujeito-lírico colocado no texto, que não são a mesma coisa, ainda
que interligadas, como sempre lembram os críticos ao destacar que a vida material e psíquica
de um poeta pode influir, mas não determinar de modo absoluto seus versos, que consistem
em uma transfiguração do real, produzindo ressonâncias que vão para além da intenção inicial
do autor. A experiência lírica, nesta perspectiva, abarca o desejo do poeta se refletir
idealmente em sua obra, ao mesmo tempo em que repercute o tumulto do mundo que o
obriga, mediante a linguagem, a calar e a dizer, reconstruindo as presenças e ausências de sua
interioridade e exterioridade. Na colocação de Jean-Michel Maulpoix:
Por mais pessoal que seja, o sujeito lírico se vê constrangido, se não a se
despersonalizar, ao menos a traduzir sua própria experiência em traços gerais e
universais. Porque a vocação do lirismo é exprimir ‘o que há de mais geral, de mais
profundo e de mais elevado nas crenças, representações e conhecimentos
humanos...’ (Hegel).//Ele se inclina, então, ao mesmo tempo a generalizar o
particular e a particularizar o geral.3
Assim, é a voz do sujeito lírico a fonte primária deste estudo, seguida das vozes críticas,
depoimentos e entrevistas como fontes complementares, ainda que algumas informações
acerca da vida pessoal dos poetas e da vida cultural do país apareçam em algumas páginas ou
pés-de-páginas com o intuito de melhor situar o leitor. A interpretação analítica de alguns
poemas é, pois, um movimento necessário dessa leitura e foi realizada sobretudo no plano
semântico, buscando desvendar dinâmicas de significação presentes nos textos de maneira
explícita ou implícita e, quando possível, recorrendo à análise das componentes formais que,
como se sabe, também fazem parte da construção dos sentidos4. Em diversos momentos do
3
MAULPOIX, Jean Michel. L’Expérience lyrique. In: Du lyrisme. Paris: José Corti, 2000. p.373-402, citação à
p.376: “Si personnel soit-il, le sujet lyrique se voit contrait, sinon de se dépersonnaliser, du moins de traduire sa
propre expérience en traits généraux et universels. Car la vocation du lyrisme est d’exprimer ‘ce qu’il y a de plus
général, de plus profond et de plus élévé dans les croyances, représentations et connaissances humaines...’
(Hegel).// Il tend donc à la fois à généraliser le particulieret à particulariser le général.” [grifo do autor].
4
Embora não seja este o foco central nem o ponto forte do trabalho historiográfico, procurei fazê-lo com o
melhor empenho, recorrendo algumas vezes à ajuda de outros autores ou da crítica especializada. Mas, no todo, a
leitura realizada é predominantemente semântica. Esta questão é tratada no cap.1, com base em Carl Schorske.
13
texto se encontrarão, portanto, leituras mais longas e complexas, ou menos, e, por vezes, os
poemas aparecerão ainda de modo meramente ilustrativo da atmosfera geral.
De toda forma, as interpretações foram realizadas com o sentimento que Dominick
LaCapra denomina de “desassossego empático do historiador”, isto é, uma compreensão ao
mesmo tempo cognitiva e afetiva, derivada de um processo de identificação heteropática.
Esta, compreendida como resposta emocional ao objeto que guarda, porém, cuidados éticos,
procura manter a distância exigida para o respeito à alteridade da experiência passada,
especialmente no que se refere ao transtorno traumático provocado por grandes sofrimentos,
bem como sustentar critérios de verdade que impeçam a diluição da história na ficcionalidade.
O trabalho historiográfico se torna assim um processo de indagação, investigação e
intercâmbio dialógico com o passado e com outros autores que, por sua vez, também o
indagaram5. Em tal diálogo, funcionam como parâmetros comparativos as fontes
complementares mencionadas e os enquadramentos contextuais.
Nestes, há uma recorrência significativa da idéia de “geração” como termo explicativo
da movimentação política e artística que se tornou característica desde final dos anos 60.
Poetas, críticos ou comentadores em geral se referiam à “geração 68”, “geração AI-5”, e para
a poesia, “geração mimeógrafo”, “geração marginal”, “geração 70”... demonstrando ser esta
uma categorização importante para os acontecimentos do período. Pesquisando o tema,
mediante entrevistas centradas na experiência sócio-política de participantes ativos dos
movimentos dos anos 60/70, especialmente de 1968, Gilberto Velho observou que o fato de
terem vivido vinte anos sob um regime autoritário e repressivo marcou profundamente sua
percepção de mundo, a ponto de sempre enfatizarem seu pertencimento à geração, que os
distingue de seus pais e seus filhos. A nova cultura subjetiva em processo de formação,
incluindo o ethos do indivíduo e de uma sociabilidade mais intimista, trazia este selo
indelével6. Ao lado disto, a proeminência assumida pela juventude naquelas décadas, como
principal força ativa nas sociedades ocidentais, questionando tradições e comportamentos
estabelecidos pelos mais velhos, conferia relevância à categoria de “geração” para tratar dos
conflitos que possuíam também um perfil geracional.
De modo a explicar e compor o quadro da poesia que começou a ser criada na década de
70, diferentemente dos anos anteriores, Heloisa Buarque de Hollanda recorreu inicialmente à
idéia de poesia jovem ou da nova geração, cuja experiência e expressão foi verdadeiramente
5
Cf. LA CAPRA, D. Escribir la historia, escribir el trauma. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005, p.62-63.
Cf. VELHO, Gilberto. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1986. O conceito de cultura subjetiva e objetiva é trabalhado pelo autor com base em Simmel.
6
14
atravessada, na origem, pelos acontecimentos políticos e conjunturais daqueles anos,
diferentemente dos poetas já consagrados, cujo estilo se moldou na forja de momentos
históricos anteriores, embora, evidentemente, também fossem atingidos pelos novos tempos.
Diz a autora que a “literatura de permanência” não dava conta, naquele momento, da
extraordinária efervescência cultural, do nível de mobilização e atuação jovem – jovens de
classe média querendo aglutinar-se, segundo ela –, de modo que cedia terreno para a
“investigação da literatura jovem”, isto é, setores que sofriam e procuravam responder “talvez
mais diretamente aos impasses gerados no interior do processo cultural brasileiro, com a
frustração dos projetos de revolução do início dos anos 60, a crise do populismo, a
modernização reflexa, a consolidação da dependência e as novas táticas de atuação política do
Estado, especialmente no período pós-68”7. Ainda que esta ênfase na juventude tenha sido
depois revista, pois que os poetas marginais apresentavam as mais diversas idades e somavam
no mínimo duas gerações, a noção de uma poesia de corte geracional permaneceu.
O quanto esta categoria é ao mesmo turno problemática e útil, reunindo diferenças
sociais que não podem ser elididas, tem sido destacado por uma série de autores8. Os próprios
poetas de então o sublinham, como Haroldo Costa na abertura de um seminário
comemorativo, em que resume:
Por um lado, assumimos uma condição geracional, despidos de qualquer intento ou
desiderato homogeneizador. Os que aqui participamos nascemos na década de 50 ou
ao redor dela e crescemos à sombra de uma guerra fria cujo reflexo nos acarretou
uma obrigatória convivência com sistemas políticos limitantes e antidemocráticos
em nossos países. Vitimados direta ou indiretamente por essa difícil convivência,
muitos dos que aqui deveriam estar já ficaram pelo caminho, como, para citar os
primeiros nomes que me ocorrem, os brasileiros Paulo Leminski e Ana Cristina
César. Chegamos àquela idade em que contamos com os mortos para estreitar nossos
vínculos com os vivos. Nesse sentido, [...] produzimos poesia a contracorrente,
contra uma pervasiva ordem de silêncio que parecia sair de quase todos os cantos da
realidade dita “objetiva” [...] – e a poesia que escrevemos se distingue pela
diversidade: de formas e de dicção, de posições estéticas que revelam múltiplas
aproximações ou apropriações da tradição e da cultura, do horizonte sensível e da
experiência vivencial. Somos uma geração que aprendeu com a história recente tanto
a desconfiar da ordem das palavras – como o fizeram, diga-se de passagem, desde
sempre os poetas, – quanto das palavras de ordem, sejam elas ideológico-políticas,
estético-formais ou comportamentais [...]9
7
8
HOLLANDA, H.B.Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde 1960/70, p.13 e 36.
O tema tem sido bastante tratado pela história do tempo presente francesa, de que o trabalho de Sirinelli é
expoente. Cf. SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. in: REMOND, R. (org). Por uma história política. 2.ed.
Rio de Janeiro: FGV, 2003. Mas a abordagem aqui priorizada será a de Koselleck, que discute a questão da
geração juntamente à da teorização da experiência histórica, conforme se verá no cap.1.
9
COSTA, H. O centro está em toda parte: significado deste encontro. In: COSTA, Haroldo (org). A palavra
poética na América Latina, avaliação de uma geração. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina,
1992, p.18-27, citação à p.25-26.
15
Assim, diz o poeta Júlio Castañon Guimarães ser melhor falar em “tendência poética
dos anos 70”, marcada pela diferenciação em relação à linhagem da poesia construtiva e
aproximação do modernismo, mas composta de projetos poéticos distintos10, sendo esta a
idéia que norteia as discussões que se seguem acerca de alguns desses projetos, ainda que por
facilidade ou conveniência se use o termo “geração”.
O mapeamento do contexto da década de 70, no Brasil, especialmente o contexto
cultural-poético, o que compõe evidentemente um dos eixos da experiência histórico-sensível,
demanda que se efetive uma espécie de sub-periodização que permita acompanhar as
modulações experimentadas pela sociedade, pelo Estado e pelas artes. Em grandes linhas,
para as ondulações da poesia na década foram seguidas as sugestões de periodização de
Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves11, justapondo-a, dentro do possível, à
divisão de fases do governo militar estabelecida pelos historiadores. Assim, temos o período
1968-72 marcado pelo que foi chamado de “vazio cultural”, e os anos 1972-74 demonstrando
uma forte revitalização da produção poética, ambos na fase de afirmação do regime ditatorial,
com a combinação de crescimento econômico e repressão política que lhe foi característica.
No período subseqüente, de 1974 a 1977, o surto de poesia dá resposta às ingerências do
processo de modernização conservadora consolidado durante a ditadura, ou seja, à crise do
“milagre econômico”. Os últimos anos, de 1977 a 1979, viram o engajamento da poesia nas
novas manifestações políticas, sobretudo no movimento estudantil que ressurgia, mas também
nos movimentos de organizações de base ou de politização do corpo e da sexualidade, e nas
pressões pela anistia, acompanhando o processo de descompressão política, até o fim da
ditadura militar. O mapeamento contextual foi realizado, prioritariamente, com a leitura
efetuada por historiadores, jornalistas e críticos literários, buscando cruzar suas perspectivas,
às vezes distintas, às vezes convergentes, de modo a ir compondo um mosaico de época o
mais coerente possível. Neste trabalho, as numerosas metáforas utilizadas por tais autores
para qualificar as experiências ou a própria década chamaram-me bastante a atenção, de modo
que também elas passaram a ser consideradas, como parte do mosaico contextual. Como a
datação dos períodos do regime e da produção poética não coincide exatamente, foram
priorizados os cortes temporais baseados na poesia.
A divisão dos capítulos desta tese apresenta, assim, uma certa ordem cronológica
procurando tratar dos assuntos, livros, eventos conforme eles foram surgindo. Cabe sublinhar
10
Cf. GUIMARÃES, J. C. Gerações e heranças: algumas indagações. In: COSTA, idem, pp.188-196.
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Tudo é
história, 41), epílogo.
11
16
que esta não é a preocupação central, voltada para compreender a experiência histórica e os
problemas a ela colocados, cujas discussões podem vir a extrapolar os limites temporais da
seção na qual se inserem. Assim, o primeiro capítulo é eminentemente teórico, tratando de
conceitos pertinentes e questões problemáticas da relação entre poesia e história na
modernidade. Ao propor a lírica como fonte da pesquisa historiográfica, sugere a noção de
experiência como elemento de ligação das duas esferas e o conceito de teor testemunhal,
desenvolvido por Marcio Seligmann-Silva12, como principal instrumento de leitura, embora
não exclusivo. Um excurso final contém considerações introdutórias sobre as principais
correntes de pensamento que, vigentes à época no Brasil, contribuíram para os debates
travados e, ainda hoje, para elucidação do leitor.
O segundo capítulo gira em torno do significado do ano de 1968 para a experiência
política e poética de então, bem como para a história da cultura brasileira, que tem nesta data
um marco especial. As informações apresentadas não pretendem aprofundar o vasto assunto,
que envolve o auge do movimento estudantil no país, a luta armada e a estética tropicalista,
mas apenas situar acontecimentos que foram importantes para os artistas e intelectuais que
surgiram em seu seio. O capítulo 3, deste modo, apresenta aqueles poetas que fariam a
transição das experimentações do tropicalismo à poética da experiência (1968-1972), no
momento que foi caracterizado como “vazio cultural” decorrente do Ato Institucional n° 5, no
qual só restara espaço para a “palavra subterrânea”. A figura exemplar de Torquato Neto,
junto a Waly Salomão e Paulo Leminski, poetas que sentiam próximos à estética concretista,
mas que por força das circunstâncias e de suas opções se tornaram “pós-tropicalistas”, como
também a revista Navilouca, que apesar de lançada em 1974 é expressão deste grupo,
fornecem os textos poéticos em que se observam a problemática do sujeito em crise, em meio
a uma efervescência cultural interrompida de forma traumática e a novas questões colocadas à
linguagem a partir do endurecimento do regime militar.
O quarto capítulo abriga o surgimento do que se chamou de “poesia do sufoco” ou
poesia “marginal”, quando despontou a atividade de impressão em mimeógrafo e distribuição
de libretos poéticos de mão-em-mão, que depois se disseminaria. Trata dos livros surgidos em
torno de 1971-72, recebidos como uma nova poética, caracterizada pela “curtição” e pela
precariedade, e do surto de poesia que se configurou no país com o lançamento dos quatro
números do Jornal de Poesia, dentro do Jornal do Brasil, e do evento Expoesia I, realizado na
PUC-Rio, ambos em 1973. Também se discute o problema do anti-intelectualismo – que tanto
12
Cf. SELIGMANN-SILVA, Marcio (org). História, Memória, Literatura. O testemunho na era das catástrofes.
Campinas: UNICAMP, 2003.
17
foi assumido por certos grupos de poetas quanto foi impingido como uma pecha a toda a
poesia da década, e cujos efeitos para a cultura não são animadores – e a metáfora da asfixia
como uma das principais imagens encontradas para designar o sofrimento vivido por diversos
setores sociais. O capítulo 5, por sua vez, aborda a intenção de resistência à ditadura,
especialmente no projeto estético-político desenhado por Cacaso, que a poesia marginal
procurava manter, por meio de sua matéria cotidiana e subjetiva. A relação com a crise do
“milagre econômico”, a ideologia da eficiência e os efeitos cooptadores da Política Nacional
de Cultura deram a tal resistência um cunho geral ambíguo e difícil, colocando-a numa
situação que se pode chamar de límbica. O sexto capítulo dedica-se particularmente a analisar
poemas de alguns nomes expoentes dessa época, em especial Chico Alvim, Cacaso e Chacal,
em diálogo com outras vozes também, como as de Afonso Henriques Neto, Ana Cristina
César, Roberto Schwarz, cujo conjunto compõe imagens bastante instigantes acerca da crise
do nacional-desenvolvimentismo e da modernidade no Brasil. Fruto de constelações históricas
de curta e de longa duração, estas crises afetaram, conforme mostram os poemas, a
experiência histórica em profundidade, seja na dimensão da subjetividade e das relações
sociais, seja na relação com o espaço e o próprio tempo histórico. As diversas cisões sociais
em andamento, inferidas das imagens poéticas e textos críticos, bem como o grande
sentimento de espanto e o misto de tristeza e alegria apontam para o locus especial ocupado
por esta lírica, que aqui se denominou de condição intervalar, experimentada por aqueles que
nela viveram de modo ainda incomensurável, salvo por alguns traços percebidos pelas antenas
sensíveis da poesia, o que configura um veio traumático de representação.
O sétimo capítulo versa sobre o interregno de Alex Polari, o estudante e militante
político que, preso praticamente durante toda a década (1970-1979), quando viu e sofreu
torturas, as suas próprias e a de companheiros, que eventualmente enlouqueciam, morriam ou
eram assassinados, escreveu poesia como verdadeira forma de elaboração da dor e do luto e,
por conseguinte, de sobrevivência psíquica. Embora estivesse na prisão, fora da
movimentação “marginal” que agitou a vida cultural do país, sua dicção é assemelhada,
tratando coloquial e diretamente de sua experiência diária, de forma que muitas vezes seus
poemas soam como relatos ou confissões. Os textos aqui trabalhados pertencem sobretudo ao
livro Inventário de cicatrizes, cuja temática permite três grandes eixos de análise: a ruptura
ética ocorrida no país sob vigência do terrorismo de Estado; o problema da expressão da
experiência violenta por meio do testemunho literário; a difícil dialética da memória e do
esquecimento em situações derivadas de traumas históricos. Talvez coubesse ainda nesta parte
um excurso sobre as vozes poéticas exiladas, o que não foi incluído, no entanto, por uma série
18
de razões: Ferreira Gullar, o poeta brasileiro representante da voz exilada por excelência,
pertence a gerações anteriores, teve uma trajetória bastante distinta daquela que predominou
nos novos poetas, surgidos nos anos 70, e seu estilo é totalmente diverso. O Poema Sujo, sua
obra escrita no exílio, quando se encontrava na Argentina, não trata desta experiência de
desterro, que ele repetidamente afirma haver tanto detestado, mas consiste em um fluxo
caudal de memórias da infância na cidade de São Luis do Maranhão13. Sem dúvida
interessante, este movimento realizado por Gullar permite diversas considerações acerca da
relação entre poesia e experiência histórica, bem como uma rica comparação com o tom
inteiramente distinto dos poetas marginais que, imersos em outras circunstâncias
atmosféricas, trataram da sensação de “exílio em terra natal”, imagem de mal-estar que
acompanha uma linhagem de poetas brasileiros desde os remotos tempos da “Canção do
Exílio” de Gonçalves Dias, texto fundador de uma tradição imagística de brasilidade da qual o
exílio, em diversas ressonâncias, é uma vertente integrante14.
Por fim, na Conclusão não se efetua um apanhado geral, mas se apresentam os
acontecimentos poéticos que marcaram os últimos anos da década (1977-1979), período em
que os poetas sofreram maior repressão e acompanharam as movimentações de repolitização
da vida pública, e se realiza um balanço do tema pesquisado, considerando a especificidade
do processo de mudança na experiência histórica ao longo dos anos 70 e a perplexidade dele
decorrente, deixando rastros em nossa cultura.
Alguns autores e obras, como é comum, foram reiteradamente utilizados como alicerce
de pensamento, por oferecerem uma plêiade de sugestões que se mostram muito ricas para a
interpretação dos textos e da história mesma. Entretanto, certos recursos talvez precisem ser
melhor elucidados, como a presença do Adorno de Mínima Moralia, mais do que de suas obra
estéticas, o que possui uma dupla explicação: por um lado, é fonte de reflexões consistentes
acerca da relação entre ética, arte, subjetividade e modernidade que se mostraram muito
valiosas para compreender determinadas reverberações daquela poesia, cujas preocupações
éticas foram sempre ressaltadas por Cacaso; por outro, sendo um livro escrito na década de 40
– período atravessado pelos horrores do nazismo e da Segunda Guerra Mundial, assim como
13
Este poema, como toda a obra de Gullar, possui uma vasta fortuna crítica. P.ex., cf. Revista Poesia Sempre.
(Dossiê Ferreira Gullar). Ano 12, n. 18, set. 2004, p.12-61.
14
Sobre as imagens de brasilidade construídas pela rede intertextual derivada do poema de Gonçalves Dias, cf.
VIEIRA, B. Intertextualidade poética e memória: o Brasil das Canções do Exílio. Trabalho monográfico.
(Mestrado em Literatura Brasileira). ICHF, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1995. [mimeo]. Duas
versões resumidas se encontram em: Intertextualidade poética e memória: o Brasil das Canções do Exílio, In: V
Congresso da ASSEL-RIO, 1995, Niterói, Anais.... Niterói: ASSEL-Rio, 1996. 1v. p.193-205., e no artigo “Onde
Canta o Sabiá” publicado na Revista Nossa História, ano 1, n. 5, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, mar. 2004,
p.68-71. (obs.: no sumário da revista o artigo consta com o título “O país do exílio”).
19
pelo desenvolvimento maciço da sociedade tecnológica avançada, aí incluída a indústria
cultural – traz as marcas de um contexto de violência e modernização simultâneas,
produzindo interações complexas e nem sempre facilmente explicáveis, semelhante ao que
ocorria no Brasil dos anos 60-70. Torna-se propício, então, um pensamento dialético que leva
em conta a liberdade e a criatividade humanas, preocupado com o desenvolvimento de formas
fecundas de sociabilidade, em oposição a um sistema opressor, seja em termos econômicos,
políticos ou culturais, combatendo o nazi-fascismo, o stalinismo, a guerra fria, a sociedade de
consumo e falsa opulência, ao mesmo tempo em que lida com as ingerências da revolução não
realizada, as correntes filosóficas antigas e contemporâneas, a arte de vanguarda, a tecnologia,
a psicanálise, a indústria cultural e o problema do indivíduo nas sociedades contemporâneas,
nas quais todos estes temas se interligam15. Em outras palavras, trata-se de uma filosofia que
permitiu aqui um pequeno exercício de história comparada, para o qual foram igualmente
valiosos outros autores que, ao se abismar com o mundo do entre-guerras e pós-guerra,
criaram novas perspectivas filosóficas e historiográficas, como Benjamin, inaugurando
caminhos, ou Raymond Williams, modificando a visão teórica marxista sobre cultura.
Também permitiu uma leitura comparativa profícua o trabalho de Dolf Oehler acerca da
literatura criada na França sob o trauma dos massacres de 1848; evidentemente, as condições
econômicas, políticas e históricas em geral que envolvem os poetas em um país capitalista
periférico e “subdesenvolvido”, conforme o termo da época, não eram as mesmas que
envolviam Baudelaire, Flaubert, Heine e tantos outros16. Mas ainda que Rio de Janeiro e São
Paulo não sejam Paris e que o golpe de Luis Napoleão em 1851 na França não seja
equivalente ao golpe civil-militar de 1964 no Brasil, analogias são plausíveis, uma vez que
semelhanças e diferenças se estabelecem exatamente por estarmos pensando a criação poética
em meio ao progresso capitalista e à censura estatal, a sensibilidade poética afogada ou
resistente no seio da modernidade, os recursos estéticos para se dizer ou calar a dor de existir
em um mundo tão controverso.
Em tudo, o objetivo deste trabalho foi norteado pela intenção que encontra sua melhor
formulação novamente em Mínima moralia17: “o pensamento aguarda que, um dia, a
lembrança do que foi perdido venha despertá-lo e o transforme em ensinamento”.
15
Cf. REALE, G. e ANTISIERI, D. História da filosofia. 3v. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1990, p.839-840.
Cf. OELHER, D. O Velho mundo desce aos infernos. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
17
ADORNO, T. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. 2.ed. São Paulo: Ática, 1993, p.70.
16
1. Ecos e Ressonâncias: Para pensar a relação entre poesia e história
[...]
olhe:
de onde vem esse perfume de florestas
de cedros ou diamantes esquecidos?
olhe ainda mais perto
do que os próprios olhos suportarão mirar
aproximar-se
sem cuidados
da infindável mágica
de que você é agente e testemunha
entidade e abstração [...]
(Afonso Henriques Neto, “Das construções”,
in: Restos & Estrelas & Fraturas)
1.1. De poesia e história na modernidade
Irmãs em seu nascimento mítico, História e Poesia têm uma extensa trajetória
compartilhada. Na Grécia antiga, na tradição mitológica que se constituiu desde Hesíodo,
Mnemosyne e Zeus deram à luz nove musas, que inspiravam o canto, possibilitando o ato de
cantar e contar. Desde então, sua longa história é a da gradual separação dessa unidade
fundamental, passando pela formação de um campo histórico específico no mundo grecoromano e pela construção de uma consciência temporal – cujo marco é o pensamento de Sto.
Agostinho – e mito-poética durante a Idade Média. As principais questões correlatas à
interseção de poesia e história, que desde sempre realizaram sua ligação como fios de uma
costura mais atada ou mais frouxa, dizem respeito à memória subjetiva e coletiva, sempre
fundamental para as duas áreas; às discussões da retórica e dos limites da linguagem; ao
eterno problema da referência ao real e da verdade; à ambigüidade dos testemunhos orais e
imaginados a exigir um trato cuidadoso das fontes; às múltiplas dimensões do tempo humano,
especialmente o tempo qualitativo1.
Todo o quadro de transformações que caracteriza o mundo moderno – acirrando-se no
contexto do século XIX, com a consolidação do modo de existência da sociedade burguesa
(pós-Revolução Francesa e Industrial), trazendo consigo mudanças na experiência humana, no
1
Esta longa história está desenvolvida em VIEIRA, Beatriz de Moraes. Apontamentos sobre a origem e pequeno
histórico da relação entre poesia e história. Trabalho monográfico. (Doutorado em História Social). ICHF,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003. [mimeo].
21
sentido da velocidade e volatilidade que vão caracterizar o que chamamos de modernidade e
os constantes embates entre o arcaico/velho e o moderno/novo que ela abriga – evidentemente
afetaram o conjunto de questões concernentes à história e à literatura, bem como à sua
relação. De modo abrangente, observa-se que um corte profundo se fez então sentir naquilo
que já era um longo movimento de separação entre os âmbitos da história e da poética. A
primeira se ocuparia, por bastante tempo, prioritariamente das questões políticas e econômicas
concernentes ao Estado; a segunda ficaria aos cuidados das literaturas nacionais também em
formação (com todas as controvérsias que este processo acarreta2), como um dos seus itens
constitutivos e fundantes.
Contudo, não se trata de uma ruptura total, pois ambas as áreas convergem e se
interceptam em diversos momentos. Cabe lembrar como Dante, na construção da Divina
Comédia, pôs dois poetas – ele mesmo e Virgílio3 – a cruzar o tempo divino e o tempo
histórico, passando a limpo, ao lado de sua própria experiência existencial e mundana, a
história do cristianismo e a história política da Itália renascentista. E no início do século XIX,
historiadores românticos, como Thierry e Michelet4, buscavam responder anseios de cunho
poético, também caros aos poetas e romancistas da época, envolvendo o arrebatamento diante
do passado, a busca de evocá-lo e fazê-lo reviver em todos os seus detalhes e cores próprios, e
com ele o rosto do povo anônimo e idealizado como a unidade de um corpo vivo. Assim
como estas, outras obras literárias e historiográficas mantêm vestígios do que foi um dia um
elo primordial. Sobretudo, aquelas questões que ao longo de todo o tempo tangenciaram e se
imiscuíram na interação entre história e poesia permanecem válidas como elementos de
diálogo e reflexão.
É inegável, no entanto, que no seio da vasta questão da modernidade, o lugar da poesia
e suas relações com a história se tornaram mais complexas. Entre as inúmeras abordagens
possíveis, três questões imbricadas se mostram recorrentes e imprescindíveis para a
compreensão da temática: a) o problema da afirmação do indivíduo e da subjetividade, como
dinâmica civilizatória, conforme mostra Norbert Elias5, que atinge seu momento de auge e
2
Cf. JOBIM. História da Literatura. In: Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.127-150.
Para Ariès, a figura de Virgílio na obra dantesca representa a tendência ocidental de anexar Roma Antiga à
tradição cristã, refletindo o tipo de sensibilidade temporal e religiosa que se desenvolveu na cristandade
ocidental após a queda do Império. Cf. ARIÈS, Philippe. O Tempo da História. Lisboa: Relógio d’Água, 1992, p.
82.
4
Ibidem, p. 209.
5
No livro A Sociedade dos indivíduos, Elias busca analisar o que chama de “os problemas da autoconsciência e
da imagem do homem”, apresentando um apanhado geral de diversos pensadores e obras a respeito do
significado da individualização no processo de desenvolvimento da espécie humana e no processo social da
modernidade. Como tudo, as imagens que o ser humano faz de si próprio – seja do “eu”, seja do homem
(compreendido no sentido abstrato e abrangente de humanidade) – são históricas, mudam ao longo do tempo e
3
22
crise na modernidade, quando se criaram imagens cindidas da relação homem-naturezasociedade, como resultado de profundas contradições e tensões entre os processos de
individualização e de civilização. Desdobram-se daí os movimentos de individualização
solipsista ou narcisista da voz poética, como um sintoma da época, ou até mesmo processos
de decadência cultural, uma vez que a experiência cumulativa de centenas de gerações não é
enraizada biologicamente e pode vir a ser revertida, jazendo sempre latente um risco de que
conquistas civilizatórias se percam.
Imersa neste quadro, e dialogando intensamente com ele, a criação poética sofreu
transformações. O impulso épico se esvaiu e restou anacrônico, uma vez que a memória
coletiva que o sustentava, buscando no passado os prenúncios de uma grandeza presente ou
futura, e proporcionando ao público o prazer de se reconhecer em mitos coletivos ou como
membro de uma nação heróica, já não mais existe, resume Paulo Henriques Britto. As
mudanças em curso requereram mecanismos de legitimação bastante diversos do canto épico
e o gênero lírico se tornará o poético por excelência no mundo moderno. Assim, à medida
que se desenvolve o sujeito moderno, o poeta lírico afirmará, nas palavras de Britto, “uma
subjetividade única e inconfundível”, que forja um “mito individual” ao elaborar “um
conceito integrado do eu” alicerçado na concepção de condição humana, tida como um
conjunto total de experiências compartilhadas pela humanidade, de modo que “o prazer
proporcionado pela poesia lírica depende dessa paradoxal coexistência entre identificação e
diferenciação.”6
b) a mudança na experiência do tempo, afetando profundamente a concepção de tempo
histórico e as manifestações estéticas, residindo o ponto central na mutabilidade, na
transformação das coisas cada vez mais velozmente, o que confere ao mundo moderno a
qualidade do que é fugaz e fluido, instável e potencialmente moldável. Dissemina-se a
vertiginosa sensação de se estar vivendo a aceleração do tempo histórico e a velocidade e o
progresso passam a ser valorizados socialmente. Além das dimensões temporais que
do espaço e conforme as relações sociais estabelecidas. ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001, p. 79, 113-119.
6
BRITTO, P.H. Poesia e memória, In: PEDROSA (org.), Mais Poesia Hoje, Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p.124125. “Tal como épico, o poeta lírico tenta forjar um mito, só que o mito em questão é individual e não coletivo:
ele busca nos diversos momentos do seu passado individual elementos que permitam elaborar uma história
pessoal que tenha coerência e sentido [...] que inclui desde um mito de origem até uma teleologia. Para retomar a
analogia com o poeta épico, [...] também o poeta lírico elabora um conceito integrado do eu onde antes havia
pulsões incoerentes e mesmo contraditórias. [...] a base comum ao poeta lírico e ao fruidor de poesia lírica é a
condição humana, configurada numa seqüência de vivências que formam um todo compartilhado pela
humanidade. [...] ao mesmo tempo, o mito do poeta lírico destaca que aquela combinação específica de
elementos comuns a toda a humanidade perfaz uma singularidade inconfundível, a persona do poeta [...] O
prazer proporcionado pela poesia lírica depende dessa paradoxal coexistência entre identificação e
diferenciação.”
23
integravam o quadro antigo e medieval do mundo e do homem haverem entrado em colapso, a
ciência moderna adota a medida fragmentária e quantitativa do tempo, fundando-se no
paradigma galileico abstrato-matemático, o que repercute tanto nas idéias filosóficas quanto
nos processos sociais de produção e consumo7. O próprio conceito de tempo não ficou isento
às transformações do período. A temporalidade moderna, mesmo que herdeira da concepção
cristã, investiu-se numa nova imagem ao trazer consigo, pela primeira vez, uma concepção
que exalta a mudança e a transforma em seu fundamento. Não se cultua tanto o passado, nem
a eternidade, nem o tempo que é, quanto o futuro, o devir que se acredita trazer sempre
melhores condições de vida. Em decorrência, a busca do diferente, o senso crítico e a
mudança constante se tornaram princípios do pensamento e comportamento social. Ao lado
do novo, então, a modernidade valoriza o heterogêneo, o estranho e o diverso; o tempo é visto
como uma “teia de irregularidades”, cuja regra é a variação8.
Mas a modernidade suscita também um movimento quase contrário quanto ao tempo.
Em contraponto à valorização do futuro, a fugacidade traz o sentimento de perda e
instabilidade e o conseqüente desejo de recuperar “o tempo perdido” por meio da memória.
Nesta vertente situam-se a obra de Proust, Baudelaire, e a leitura que deles fazem diversos
autores. Estudando o tempo em Walter Benjamin, Gagnebin observa que ele tentava pensar
um tempo histórico pleno, em que a relação entre passado e presente não se dá ao modo de
uma cronologia linear, numa sucessão contínua de momentos, nem tampouco ao modo de
uma repetição, em que o passado assomaria intacto no presente; antes, o passado ressurge se
reatualizando, quando as semelhanças (e não identidades, repetições) entre passado e presente
afloram e criam uma nova configuração entre ambos. Nesta chave, a presença da lembrança e
da melancolia na poesia baudelairiana significaria a tentativa de opor à temporalidade
moderna um tempo outro, “luminoso e espesso como mel, o tempo de uma harmonia ancestral
[...] o tempo devorador e vazio da modernidade e o tempo pleno e resplandecente de um
lembrar imemorial”9. A este último corresponderiam a experiência no sentido forte do termo,
o sentido de culto da arte e a harmonia dos símbolos; às corrosões do tempo moderno, por sua
vez, correspondem a experiência individual e isolada, a arte sem aura, os objetos
desvalorizados porque transformados em mercadoria, a alegoria como a figura possível da
7
Cf. PAZ, O. Os Filhos do Barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.11-35;
MEYERHOFF, H. O Tempo na Literatura. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976, p.75-90., e GINZBURG, C.
Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p.165,
nota 79.
8
Cf. PAZ, idem.
9
GAGNEBIN, J.M. Baudelaire, Benjamin e o moderno. In: Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio
de Janeiro: Imago, 1997, p.151. Ver também “O conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin”,
idem, p.101-102.
24
dispersão dos sentidos, a devoração da vida e da beleza. Na leitura benjaminiana, este tempoinimigo, tão dolorosamente cantado por Baudelaire, não remete apenas à meditação sobre a
vaidade e a fugacidade da vida humana, mas também à alienação do trabalho no mundo
capitalista, submetido ao tempo abstrato e inumano dos relógios, bem como às ingerências
dominantes e reificantes das relações de troca econômica, que reduzem o leque de vivências
possíveis do indivíduo às mãos estreitas, mas férreas, do mercado, de onde resulta uma
individualidade abstrata e empobrecida, ao passo que as benesses da modernidade haviam-na
prometido rica e concreta10. Isto posto, o tempo da modernidade se caracteriza pelo embate
com a memória e a morte, pela constante tensão entre a força e a fragilidade da lembrança, o
desejo de um retorno “redentor” do passado e a impossibilidade desta volta, a vitalidade do
presente e sua morte iminente. Se esta tensão define a modernidade de Baudelaire conforme
interpretada por Benjamin, define também, como conclui Gagnebin, a própria modernidade
benjaminiana e a de tantos outros contemporâneos.
c) a mudança na experiência poética pelo olhar em movimento do poeta sobre o mundo
circundante, também em constante mutação, transformado em matéria móvel de experiência e
poesia. Os versos de Baudelaire diante das obras modernizadoras na cidade de Paris se
tornaram canônicos a este respeito: “A forma de uma cidade/Muda mais rápido – ai de mim! –
que o coração de um mortal”11. Como observa Dolf Oehler, pela janela do trem que devora
quilômetros – imagem-matriz do progresso material do mundo industrial, precipitando a
experiência da rapidez e do desfrute panorâmico – se vê o mundo em movimento, os olhos
consomem paisagens que mudam velozmente, os horizontes se oferecem vagos, impossível
fixá-los nas retinas. Processaram-se mudanças no olhar, que se acostuma à instabilidade e à
nebulosidade, torna-se disperso, incapaz de se concentrar; o pensamento, correlatamente,
torna-se impreciso, incapaz de mergulhar em questões abissais. A velocidade se traduz numa
falsa profundidade de experiência, que na realidade tende a se abstrair do tempo, do espaço e
das contradições da lógica social neles imersa12.
O surgimento da multidão nas cidades modernas, e nelas a flâneurie, conforme
Benjamin observou nos contos de Edgar Allan Poe e nos poemas e textos críticos de
Baudelaire, modificava as relações sociais e trazia um elemento complicador à dinâmica da
individualidade, do olhar intersubjetivo e, conseqüentemente, da lírica. Na multidão, o
10
Cf. GAGNEBIN, idem, p.151-154 e MENEGAT, M. Civilização em excesso. In: O olho da barbárie. São Paulo:
Expressão Popular, 2006, p.47-82.
11
No poema “O Cisne”, aqui na tradução de GAGNEBIN, “Baudelaire, Benjamin e o moderno”, In: op.cit.,
p.150.
12
Cf. OEHLER, D. O Velho mundo desce aos infernos. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p.339-340.
25
indivíduo ao mesmo tempo se dissolvia e se constituía, com-formando-se aos processos de
massificação e mercantilização, trazendo ao poeta a perda de sua aura de sujeito
individualizado, inspirado e genial, bem como as aporias entre representação criativa,
mimética-reprodutiva e comercial, até hoje insolúveis.
Assim, reunindo estas três questões e acompanhando as modulações históricas e
estéticas, a figura-flâneur de Baudelaire foi-se tornando prototípica, sendo construída pela
crítica literária e filosófica como a imagem do poeta moderno por definição, aquele que é
marcado pelas feridas provocadas pelas rupturas da modernidade e que dialoga com elas
mediante sua poesia, seja respondendo, denunciando, anunciando ou lamentando.
Imerso nos acontecimentos políticos que marcaram a história da França na primeira
metade do século XIX, Baudelaire acompanhou as reformas urbanísticas de Haussman, que
modernizaram a velha Paris sob seus olhos, participou das barricadas em 1830 e assistiu
horrorizado os massacres parisienses em 1848, que resultaram por fim no golpe de estado de
Luis Napoleão, restaurando o III Império francês, de caráter autoritário. No pathos da poesia
baudelairiana, sem sujeição nem sentimentalismo, a modernidade é apresentada em sua
intensa brutalidade, não havendo espaço para o culto ao progresso nem para a empatia
filantrópica de um Vitor Hugo, por exemplo. Na leitura de Oehler, a ironia e o satanismo que
deram a Baudelaire um lugar especial na história da literatura se devem à sua capacidade de
figurar a própria impotência, perante a violência da história dos vencedores, como algo
revoltante, e ao decorrente desejo de instigar nos leitores um sentimento de incômodo diante
da trivialização do mal no cotidiano burguês e da mentira oculta sob a imagem dos homens
cândidos que impõem sua ordem ao mundo com práticas brutais. A violência poética e
simbólica de Baudelaire se insurgia contra a violência repressiva, não apenas aquela da
censura e despotismo do 2° Império, “mas a violência exercida por um esprit de perversité
que atua tanto no indivíduo quanto na sociedade, violência que ameaça destruir a sede de
conhecimento, a razão, o propósito de salvação moral do Renascimento e do Iluminismo e
consagra a humanidade ao ocaso.”13
Seminal neste gesto de analisar criticamente a modernidade através dos olhos do poeta,
a obra de Walter Benjamin – especialmente os textos reunidos no volume intitulado em
português Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo – abriu a via para inúmeros
outros trabalhos que foram adensando uma vertente que procura resgatar a experiência do
homem moderno, encontrando nela elementos traumáticos significativos. Deste modo, a
13
OEHLER, idem, p.281.
26
poética de Baudelaire se consagrou como modelar para a compreensão da poesia moderna e
contemporânea, especialmente em sua vertente crítica, e o olhar do poeta passou a contribuir
para o aprendizado da história sobre a modernidade.
Com efeito, todos as grandes movimentações da modernidade evidentemente afetaram
os conceitos literários construídos pela crítica para interpretar seu objeto poético. De variados
prismas – a crítica materialista, formalista, existencialista, sociológica etc. – os conceitos
críticos foram revistos, sobretudo o conceito de mímese/representação estética e a questão da
função social da arte, recentemente instigados pelas proposições da assim chamada virada
lingüística. Muito sumariamente (o tema será melhor desenvolvido nos próximos itens),
tratou-se de discutir o tipo de referencialidade abrigada na palavra poética e sua
expressividade específica, bem como o lugar de fala do poeta como indivíduo e as – que se
releve a simplicidade – “causas e conseqüências” sociais do seu dizer, como uma voz
resistente às tendências hegemônicas da sociedade burguesa moderna, ou antes, aderente a
elas. De todo modo, a questão da experiência, cada vez mais concebida em sua dimensão
cotidiana, não deixou de permanecer relevante, mais latente ou mais expressamente, conforme
o contexto literário e histórico, adquirindo uma força renovada nos anos recentes.
Paralelamente,
também
as
concepções
historiográficas
sofreriam
necessárias
modificações. Em busca de apreender e conferir sentido(s) à experiência humana no espaço e
no tempo, a historiografia passou a valorizar crescentemente a memória e as artes, como
fontes históricas que configuram movimentos de registro, associação e ordenação dos
elementos temporais experimentados. A escrita da história dos dois últimos séculos (XIX e
XX), como sintetiza Ariès, havia-se tornado tendencialmente abstrata, distanciando-se da
experiência concreta e local dos homens, de suas raízes na cidade e na família, de sua
memória pessoal. Isto não se devera apenas a um movimento “autônomo” da historiografia,
mas ao próprio processo vivido pelas sociedades capitalistas industriais, em que o
desenraizamento esfacelou a experiência local, familiar, e com isso as tradições, e a
concorrência embrutecedora desintegrou o sentido de uma história comum14. Em decorrência,
a historiografia se dedicará ao movimento inverso, acompanhando a onda de preocupação
geral com a experiência que teve lugar a partir da segunda metade do século XX, como bem
demonstram os existencialismos, as releituras marxistas e psicanalíticas, a teoria crítica
frankfurtiana.
14
Cf. ARIÈS, op.cit., p.23 ss.
27
Entre os historiadores, segundo Martin Jay, a preocupação com a experiência se tornaria
dominante em diversos países, nos anos 60-70, em busca de maneiras de dar voz às “classes
subalternas”, conforme denominação gramsciana, ou à história dos vencidos, na linhagem
benjaminiana. O recurso privilegiado à história oral se tornava fundamental, ao lado de
antigos autores que serviam de inspiração para o estudo de existências cotidianas nas culturas
passadas, fossem marxistas, como Henri Lefèbvre, nos anos 30, fossem não-marxistas, como
Fernand Braudel e Lucien Febvre, da Escola de Annales, entre outros que investigaram as
“mentalidades compartilhadas”. Na Grã-Bretanha, a querela dos historiadores marxistas
reunidos na New Left – envolvendo althusserianos em oposição aos assim chamados
“culturalistas” ou “marxistas-humanistas”, liderados por E.P. Thompson e Raymond Williams
– mostra a importância da questão nos anos 70. Os debates se davam em torno da tentativa
destes últimos em conceitualizar a “experiência comum” e a “estrutura de sentimentos” ou
estrutura de experiência como um dado da cultura, e esta, por sua vez, como dinâmica
intrínseca à sociedade, abolindo as determinações que dividem infra-estrutura e
superestrutura, em nome da totalidade da vida social. Em sua visão, a vida cotidiana e
mundana de massas esquecidas de homens e mulheres se tornava objeto valioso para o estudo
da história, sem que se deixe de reconhecer (em resposta às acusações) os limites impostos
pelas condições sócio-econômicas e ideológicas, que constrangem a ação e a reflexão de
camadas sociais cuja experiência ordinária registra sobremaneira o poder desses
constrangimentos, ainda que eles tenham tentado lutar para superá-los15.
Nos anos 80, este debate da esquerda foi migrando para um novo terreno, que veio a
constituir a área dos estudos culturais, adquirindo novas configurações. Ainda na mesma
época, autores como Agnes Heller, na filosofia; Yi-Fu Tuan, na geografia; Michel de Certeau,
dialogando com Foucault; e toda a “nova história cultural”, tendo por base a “descrição
densa” advogada por antropólogos da cultura, como Clifford Geertz e Victor Turner, de certa
forma substituíram a história social dos anos 60 e se aprofundaram na esfera da vida diária,
bem como na auto-reflexão sobre a própria experiência do historiador em relação a seu
trabalho e nos complexos laços que unem passado e presente16. Ao que tudo indica, a tônica
na experiência era uma questão de época – partícipe do que hegelianamente se chamou de
15
Cf. JAY, M. Politics and experience. In: Songs of experience., especialmente os itens “Raymond Williams and
the Marxist humanist version of experience”, “E.P.Thompson and history from below” e “The quarrel over
experience in British Marxism”, p.190-215. Vários trabalhos relativos à querela, de Terry Eagleton, Perry
Anderson, E.P.Thompson e R.Williams encontram-se traduzidos em português. Para o esforço de R.Williams em
constituir teoricamente um materialismo cultural, ver CEVASCO, M.E. Para ler Raymond Williams. São Paulo:
Paz e Terra, 2001.
16
Cf. JAY, M. History and experience. In: Songs of experience, p.242-243.
28
Zeitgeist ou o espírito do tempo, ou do que autores mais recentes têm chamado de Stimmung,
uma “sensibilidade cultural comum”, segundo Traverso, ou uma vaga “impressão de inscrição
existencial no mundo das coisas”, nos termos de Grumbrecht17 – que se manifestava de
múltiplas formas, certamente em correspondência ou contraponto aos efeitos da velocidade
moderna e o que ela faz escapar por entre os dedos.
Assim, a historiografia encontrou seus meios para se aproximar e resgatar a dimensão
experiencial, em grande medida voltando-se para a literatura, no seio da qual a experiência foi
preferencial e tradicionalmente acolhida. O texto literário – no caso desta reflexão, o poético –
, portanto, torna-se um lugar privilegiado para a história pensar, analisar e narrar as
experiências humanas no mundo e no tempo.
1.2. A Experiência como elo
uma difícil conceituação
A palavra experiência, do latim experientia relativo ao verbo experiri, conforme os
dicionários quer dizer prática de vida, vivência; habilidade ou perícia adquirida com o
exercício constante de um ofício ou arte. Etimologicamente, diz Agamben, ex-per-iri tem o
sentido de “provir de” e “ir através”, mantendo uma correlação possível com o grego dialégesthai (dialética) que significa “reunir e dialogar atravessando”. Em termos filosóficos,
traduz em linhas gerais o conhecimento que nos é transmitido pela faculdade perceptiva dos
sentidos, consistindo também no conjunto de conhecimentos individuais ou específicos que
constituem aquisições acumuladas historicamente pela humanidade18.
Diferentemente da filosofia, que se dedica à experiência procurando defini-la e
conceituá-la, os historiadores – salvo poucas exceções, como no caso da querela mencionada
17
Cf. TRAVERSO, Enzo. La historia desgarrada, ensayo sobre Auschwitz y los intelectuales. Barcelona: Herder,
2001, p.56. Por sua vez, Hans Ulrich Gumbrecht, na mesa de abertura do X Congresso Internacional da
Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), de 31 jul a 4 ago 2006, na Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ), dedicou parte de sua preleção à discussão do significado do termo alemão Stimmung,
como proposta para o desafio epistemológico de traduzir o discurso literário em conceitos filosóficos: como a
experiência estética na modernidade oscila entre efeitos de sentido, mais estudados, e efeitos de presença, estes
poderiam encontrar abrigo na idéia de Stimmung, palavra cuja raiz significa “voz”, e que designa a velocidade de
uma peça musical, o clima de um dia, uma paisagem geral, o humor da bolsa de valores. É algo que nos rodeia e
abrange, como parte da experiência humana, mas independente da intenção. Logo, possui um sentido mais
existencial do que político, porém não se confunde com o sentimento, que tem um objeto intencional,
diferentemente do Stimmung, mais vago, como uma “impressão de inscrição existencial no mundo das coisas”,
que a literatura é capaz de produzir mas não de formular.
18
Cf. verbete “experiência”, no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2.ed. revista e ampliada. E
AGAMBEN, Giorgio. Enfance et histoire. Destruction de l’experience et origine del’histoire. Paris: Payot &
Rivages, 2002, p.62-63.
29
– não investem prioritariamente na explicação do conceito, mas no seu uso prático para a
historiografia, ou na maneira como a experiência humana se dá no tempo-espaço e como a
história pode tratá-la, descrevendo-a e analisando-a.
O extenso trabalho de Martin Jay19 demonstra, contudo, o quanto uma conceituação de
experiência é espinhosa, não havendo jamais chegado a uma definição unânime, mesmo entre
os filósofos. O tema, carregado de paixão e abordado por pensadores das mais diversas
tradições e escolas – Jay o pesquisou entre os gregos, renascentistas, empíricos, idealistas,
entre teóricos da religião, da estética, da política, da história, da epistemologia, entre
pragmáticos, marxistas, frankfurtianos, pós-estruturalistas –, tornou o termo impreciso e
rodeado de uma aura que disfarça sua obscuridade. A ubiqüidade e infinitude de significados
e contextos de experiência, além das variações que o conceito pode sofrer em virtude de
mudanças na experiência vivida dos autores, impedem a composição de uma história única do
termo, de modo que Jay estabeleceu como recorte a indagação acerca da autoridade que a
idéia adquiriu ao longo de um vasto percurso histórico e da perda de sua força na recente
crítica pós-estruturalista. O valor quase absoluto que a experiência havia adquirido sob o
Iluminismo e a crença na possibilidade de experiências compartilhadas no tempo e através
dele passam a ser questionados após a chamada “virada lingüística”: à imediatez da
experiência são contrapostos processos impessoais de formação da subjetividade, que
apontam para as mediações culturais e discursivas do sujeito, não mais concebido como autosuficiente.
Em conclusão, o autor propõe – e sua proposta fica aqui assumida – que se mantenha a
frutífera “tensão criada pelo paradoxo” da experiência, isto é, trata-se de uma noção coletivalingüística, mas que escapa a qualquer homogeneização, residindo no “ponto nodal de
interseção entre linguagem pública e subjetividade privada, entre instâncias comuns
expressáveis e a inefabilidade da interioridade individual”, entre o que parece mais
“autêntico” e “genuíno” e as mediações dos modelos culturais. Quando dolorosa, pode ser
compartilhável por narrativas, mediante processos de elaboração secundária no sentido
freudiano, ou se manter impronunciável pela ação de um bloqueio traumático. Pode tratar de
uma mudança ou de um acontecimento restrito a um momento, referindo situações sincrônicas
ou diacrônicas. E ainda que seja concebida como uma possessão pessoal, é “inevitavelmente
19
Cf. JAY, Martin. Introduction. Songs of Experience, p.1-8.
30
adquirida mediante um encontro com a alteridade, seja humana ou não”, sendo portanto
relacional20.
Mas a carga normalmente positiva que se conferiu à idéia, concebida como não
fungível, não transferível e não comunicável, preocupou uma série de autores, diz ainda Jay,
que então se dedicaram a mostrar, inversamente, a crise e o peso da experiência no mundo
moderno, com fizeram Walter Benjamin, Theodor Adorno, Peter Bürger, Giorgio Agamben21,
entre outros. A base dessas reflexões decorre em geral do trabalho de Benjamin, que havia
buscado compreender a experiência em relação aos processos modernizadores do capitalismo,
a cidade moderna, os diferentes tipos de memória, a perda da aura poética, a linguagem. Em
“Sobre Alguns Temas em Baudelaire”, ele discorrera sobre o treinamento dos sentidos
realizado pela técnica, afetando a experiência: como na indústria se perde a conexão entre as
etapas do que se faz, cindindo-se o trabalho corporal e o pensamento, produz-se uma perda
igualmente da capacidade de estabelecer nexos e relações complexas. O movimento uniforme
e autômato promove adestramento, mas não experiência. Esta exigiria uma aquisição
processual, o estabelecimento de relações mediante um tempo de maturação e labor que a
voragem da vida urbana moderna já não permite, bem como exigiria memória, desejo e a
devolução do olhar do outro. Ao invés disto, as características do adestramento consistem na
automatização, o condicionamento, rapidez e especialização, degradação maquinal,
comportamento reativo e movimento reflexo, repetição e disciplina como uma “selvageria
automatizada”. A imagem do homem que segue uma estrela cadente é substituída, na
modernidade, pela ávida destreza do jogador22. Derivam também dessas considerações as
duas noções de experiência que serão desenvolvidas pela troca de idéias entre Adorno e
Benjamin, a partir de conceitos da hermenêutica e da filosofia germânica: Erlebnisse,
anunciando uma vivência única e irrepetível, próxima da filosofia da vida, cuja memória
jamais seria automática ou involuntária, mantendo com o passado uma relação simbólica; e
Erfahrung, de corte mais kantiano, relativo ao que se repete para os sentidos no espaçotempo, remetendo ao mesmo e envolvendo uma memória capaz de traduzir traços do passado
no presente de modo alegórico, reconhecendo a distância e a memória, sem mergulhar nela. A
20
JAY, M. idem, citações da p.6-7: “‘Experience’, we might say, is at the nodal point of the intersection between
public language and private subjectivity, between expressible commonalities and the ineffability of the
individual interior. […] it is inevitably acquired through an encounter with otherness, whether human or not.”
21
Sendo objetivo desta tese mostrar como a poesia se relacionou com a experiência histórica nos anos de
chumbo no Brasil, tais autores se mostram particularmente relevantes. Suas concepções, em linhas gerais,
aparecerão ao longo dos capítulos, conforme se mostrem elucidativas, mas não me deterei em expô-las
seqüencialmente e analisá-las, o que exigiria por si só uma outra tese. Para JAY, ibidem.
22
BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.
Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.125-128 e 139.
31
partir de ambas, decorrem modalidades distintas e interpenetráveis de formas estéticas e
linguagem23.
De maneira abrangente, não é esta a via priorizada por historiadores quando pensam a
experiência. No capítulo de Jay referente à relação entre esta e a historiografia, destacam-se as
preocupações com o conhecimento do passado enquanto tal, sempre mediado pela visão do
historiador imerso em seu presente, de modo que se dá um inevitável entrelaçamento entre
subjetividade e objetividade, julgamento e construção, temporalidades passadas e presentes,
cuja irredutível interação exige negociações complexas e uma tensão que preserve o máximo
de espaço possível para a alteridade do que foi, mas já não se mantendo mais a crença na idéia
de re-atualização ou reconstrução fiel de outro tempo. Isto que Jay chama de “paradoxo da
experiência histórica” é tratado de variadas maneiras pelos historiadores, derivando em
diversos caminhos, como a vasta discussão teórico-política que se engendrou à volta das obras
dos “marxistas-humanistas” ingleses, já mencionada, ou o modo engenhoso como alguns
pesquisadores – como Le Roy Ladurie, Carlo Ginzburg, Roger Chartier, Natalie Davis,
Robert Darnton et al. – desenvolveram métodos para trabalhar com o cotidiano medieval e
moderno.24
Não consta da obra de Jay, entretanto, o esforço teórico de Reinhart Koselleck para
compreender o que seja a experiência histórica. Em L’Expérience de l’Histoire, este autor
procura discutir como se organiza a experiência na história e pela história, ou seja, quais as
principais características disto que podemos chamar de experiência humana e sua
transformação, e como a historiografia se relaciona com o tema, sendo também ela
experiência e fruto de mutações de experiência. As linguagens conferem memorabilidade à
experiência (“mise en memoire”), e embora estejam ambas, sensibilidade e formas
lingüísticas, submetidas à mudança histórica, seus ritmos de transformação são
manifestamente diferentes. Por isso, para além da volubilidade da modernidade, constata-se
que é difícil a transmissão de experiências entre gerações, para o que são necessárias
instituições sociais que garantam esta transmissão sensível25.
23
Não pretendo esgotar a longa discussão sobre estas duas noções, cuja história envolve uma série de autores,
mas apenas apontar sua existência como parte dos embates da conceituação da experiência, e mesmo da
vivência. Cf. JAY, M. Lamenting the crisis of experience: Benjamin and Adorno, in: idem, p.336-341.
24
Restam em qualquer dessa vias, diz Jay, os problemas sempre atuais de saber como os construtos do presente
se relacionam com o passado; o quanto do passado pode ser compreendido pela categoria de “experiência”; qual
a história ou as histórias da própria experiência, já que tampouco seu passado é homogêneo; e se a capacidade
mesma para a experiência teria mudado nos tempos modernos. Cf. JAY, M. History and experience, op.cit.,
p.222. Para o restante dos comentários, passim.
25
Cf. KOSELLECK, R. L’expérience de l’histoire. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, p.118; 158. Os parágrafos que se
seguem, expondo o pensamento de Koselleck, seguem especialmente as reflexões contidas nos capítulos “Les
32
Na Grécia antiga o termo experiência significava exploração, pesquisa, verificação, num
sentido próximo ao do verbo historein. O sentido moderno tende a restringir a acepção ativa
do termo, concentrando-se no domínio da percepção sensível e do vivido, a simples percepção
sensorial das coisas, de modo que se dissocia a experiência como realidade vivida e como
atividade intelectual. Seria, entretanto, no conceito moderno de história, a partir de fins do
século XVIII, que se reuniria novamente a antiga duplicidade do termo, de informação
sensível e exploração cognoscitiva da realidade. Assim, traduzindo uma realidade dada em
enunciados historiográficos, a história se mantém uma “ciência da experiência”, na qual
conhecimento e experiência são articulados um sobre o outro, a efetuação de um pressupondo
a aquisição do outro, numa imbricação recíproca de vivência e pesquisa no cotidiano.
Contudo, os desenvolvimentos metodológicos ocorridos a partir do século XIX exigiram
separá-las no plano analítico, para efeito de melhor compreensão. Com base nestas
considerações, o autor estabelece sua hipótese, de que há traços comuns mínimos (que ele
chama de dados antropológicos), anteriores a toda mutação de experiência e a toda mudança
de método historiográfico, e que permitem estabelecer um laço entre estes dois níveis, sem
que se abandone a unidade da história (Geschichte). Trata-se, portanto, de descobrir as
condições antropológicas – características comuns que atuam como fundamento – das
experiências, de seu enriquecimento e de seu estudo metódico26.
Para narrar e poderem ser narradas, as histórias precisam se descolar das próprias
experiências dos protagonistas – condição prévia da mise en récit –, as quais são efetuadas,
coletadas e transformadas, diz Koselleck, segundo três modos possíveis, tanto de experiência
quanto de fazer historiográfico:
1. a experiência original ou única, tem origem na diferença temporal mínima entre o que foi
antes e o depois, é o acontecimento que sobrevém como que de surpresa e se impõe de um
modo que marca o indivíduo.
2. a repetição ou consolidação das experiências, que são adquiridas e recolhidas como
resultado de um processo de acumulação, que rearranja as existências individuais do
nascimento à morte. Entretanto, nenhuma experiência se transmite diretamente a uma pessoa,
pois embora os indivíduos singulares a granjeiem, ela depende de um conjunto de outras
pessoas à volta, envolvidas nesse processo de estabilização das experiências acumuladas.
monuments aux morts, lieux de fondation de l’identité des survivants”, “Histoire, droit e justice”, “Mutation de
l’expérience et changement de méthode”.
26
Cf. Ibidem, p.202-206.
33
Deste modo, alguns tipos de experiência dependem de gerações, o que se pode observar em
dois grandes planos:
a) o dado biológico: a diferença temporal entre pais e filhos marca as histórias individuais,
que se formam pela tensão reinante entre educação e emancipação, entre a palheta de
experiências disponíveis num determinado momento histórico e a experiência pessoal.
b) o peso dos eventos políticos: as experiências acumuladas podem empalidecer ou se
intensificar conforme estes eventos sejam vividos mais ou menos ativamente. As “ondas de
experiência política” são percebidas de formas muito diversas em função da idade ou de
posição social. Mas, ao mesmo tempo, essas ondas suscitam características comuns mínimas
que transcendem grupos etários, de sorte que, para além da idéia de geração no sentido
biológico e social, pode-se falar de unidades políticas geracionais. Não obstante haver fatos
únicos diferenciais (as experiências originais), cada experiência pode ser aproximada de
experiências semelhantes vividas pelos contemporâneos, pois existem ritmos e limiares de
experiências específicas a gerações que, uma vez institucionalizados ou ultrapassados,
engendram histórias comuns. Formam o conjunto de homens que vivem uma mesma época
reunidos no que se pode chamar de “comunidades de ação”: famílias, corporações
profissionais, cidadãos de uma mesma cidade, soldados de um exército, membros de diversas
camadas sociais, de partidos políticos, credos, círculos, conselhos etc. Estabelecem-se assim
unidades geracionais políticas e sociais, tendo por traço comum o fato de haver efetuado e
recolhido experiências únicas ou repetidas, mas de ter regulado ou provado estas ondas de
experiências coletivas. Estas, contudo, são percebidas e assimiladas distintamente pelos
diferentes grupos e indivíduos, sobretudo pelos vencedores e vencidos dos processos
políticos.
Toda história que se constitua a partir da experiência tem, por conseguinte, um duplo
aspecto: os indivíduos têm experiências únicas e estas se articulam em função de gerações, ou
seja, existem condições e desdobramentos históricos que se dão em torno da história dos
indivíduos, mas que remetem a ritmos mais amplos, os quais fundam um espaço de
experiência comum. A história social moderna recorre a estes traços comuns concretos que
delimitam, no tempo, as unidades de experiência condicionadas pelas gerações. Por isso, diz
Koselleck, “qualquer que seja o espírito do tempo, é aqui que o encontramos”27.
3. a mutação das experiências na longa duração, atravessando a vida de pessoas e gerações, e
que apenas uma reflexão histórica pode apreender retrospectivamente. Trata-se de um
27
Ibidem, p.206-211, citação à p.210.
34
processo que se apresenta na forma de uma “experiência de pano de fundo”, e que, lentamente
ou por golpes, substitui inteiramente o capital de experiências tornadas constantes e aceitas
por gerações. A título de ilustração, temos a dissolução do império romano, a cristianização
de cultos pagãos, o surgimento de um novo sistema econômico mundial, quando a totalidade
do sistema social conheceu mutações tais que foi praticamente impossível aos sujeitos sociais
traduzi-las senão em termos metafóricos (como declínio ou espera escatológica de redenção).
Uma mutação sistêmica de longa duração é estritamente diacrônica, pois se baseia em
seqüências que vinculam gerações e se subtrai à percepção direta dos indivíduos, não podendo
então ser transmitida oralmente, de avô a neto, por exemplo, porque isto pressupõe certa
sincronia. Assim, do ponto de vista antropológico, este processo consiste em um conjunto de
experiências feitas por outros, atravessando gerações e sendo incorporado por mediação ao
capital de experiência de cada um, ou seja, por meio do passado que é solicitado tanto para
explicar as particularidades do presente, quanto para tematizar a alteridade específica da
história recente. Do ponto de vista da experiência histórica, estritamente, a mutação
transgeracional – antigamente conservada nas imagens míticas – apenas pode ser tratada pelos
métodos de investigação histórica que recorram ao raciocínio analógico, ou melhor, àqueles
que se estabelecem segundo o princípio da analogia de experiências, como já fora feito por
Heródoto, Tucídides, Tácito...
Estas três modalidades permitem concluir que os diferentes ritmos de experiência
correspondem à curta, média e longa duração e tornam possível a existência de histórias. Em
outras palavras, os homens vivem e agem sob pressão da experiência, que se estrutura no
tempo em profundidades variáveis, o que também atua sobre os métodos historiográficos, os
quais apresentam em si uma estrutura de experiência temporal28.
A partir disto, Koselleck propõe três grandes tipos de história, ou de “condições
minimais de métodos historiográficos”, que organizam seu modo de narração, de
representação escrita e de tratamento metódico em função das estruturas temporais da
experiência histórica:
1. a história que registra: trata dos acontecimentos primeiros, cujo caráter incomensurável é
vivido como único; relata a singularidade dos eventos, as realizações e sofrimentos dos
homens, tendo como motivo principal o ganho de experiência que convém lembrar. Neste
sentido, aproxima-se do historismo em sua busca pela unicidade dos fatos históricos, das
experiências originais que são julgadas dignas de registro. Pelo fato de contar ou escrever,
28
Cf. Ibidem, p.211-213.
35
constitui-se como uma história impregnada pela experiência direta do historiador, de onde a
predominância disto que se chama história contemporânea ou crônica do presente.
Contudo, não se trata apenas do relato de experiências, mas de colocá-las em questão
mediante procedimentos de pesquisa, sem o quê não há método nem conhecimento. O único
modo de converter cada experiência singular em conhecimento passível de sobreviver ao fato
de origem consiste em interrogar explícita ou implicitamente como as coisas se passaram e
como foi que se tornaram possíveis. Perguntar como uma realidade pôde dar-se e como pôde
provar-se excepcional, como fazem os historiadores desde a Antigüidade, exige uma dupla
abordagem, que opera a distinção entre os elementos detonadores de uma situação, que dão
conta de um evento singular, e as causas relevantes da longa duração. As diversas camadas
temporais determinam diversas modalidades de experiência, que por sua vez permitem a
pluralidade de abordagens metodológicas. Todavia, há uma condição mínima, constante
antropológica de todo método, base da argumentação sem a qual não há conhecimento
histórico: a distinção temporal entre a singularidade das situações e as causas que remetem
à longa duração. Dos deuses à ambição pelo poder, da fortuna às condições de produção ou
determinações institucionais, os historiadores sempre buscaram princípios de experiência
repetíveis, ou instâncias que garantem a repetibilidade das experiências e que permitem sua
interpretação, encontrando na longa duração as causas estruturais que as tornaram possíveis29.
2. a história que desenvolve: uma vez que o acúmulo quantitativo não significa acréscimo de
experiência – pois “os homens são esquecidos e facilmente tendem a tornar as coisas que
viveram pessoalmente como a fonte única de sua experiência”30 –, para que este se proceda é
necessário um método histórico que disponha o desenrolar diacrônico dos acontecimentos de
forma sistemática. Este consiste na história que recopila e amplia histórias já existentes,
organizando-as num quadro geral que permita uma visão de conjunto, com uma tendência à
sincronização de diversos lugares e histórias particulares num mesmo todo, seguindo-se daí
uma “história mundial”, como fez Políbio ao integrar a geografia de diversas províncias à
história de Roma. Esta prática permite o desenvolvimento das comparações e dos paralelos
como instrumentos de pesquisa, isto é, da busca dos elementos regulares estruturais inerentes
a histórias semelhantes ou análogas. Decorre daí uma dupla leitura histórica, que considera o
particular e o geral ao mesmo tempo, dada a projeção dos casos particulares num diagrama de
desdobramentos históricos a mais longo prazo, sem que desapareça a particularidade do casos
em questão. Essa dupla leitura, urdindo intrincamentos geográficos e concordâncias
29
30
Cf. Ibidem, p.215-220.
Ibidem, p.220.
36
temporais, constitui a história como tal, pois “a tais abordagens corresponde um acréscimo
real de experiência que se volatilizaria se não fosse transformado em conhecimento por um
mínimo de método, e se não adquirisse, com isto, uma duração potencial”31. Assim, a história
não é objeto de uma só transcrição, mas é recopilada e desenvolvida por ocasião de cada
acréscimo de conhecimento, correspondente ao afinamento metodológico.
3. a história que reescreve: trata-se de um olhar crítico retrospectivo que reconstitui o que foi
feito antes, opondo-se deliberadamente à história já relatada ou escrita e estabelecendo uma
nova seleção e articulação de fatos. O ato da revisão e da reescrita resulta de mudanças
experienciais em virtude de uma mutação do sistema e dos limiares epistemológicos no
conjunto do capital da experiência, equivalendo a uma nova experiência histórica que se
afirma, e se dá conforme as três durações que organizam os ganhos e perdas sócio-culturais. O
modelo “clássico” de reescrita da história – o autor lembra a relação entre Tucídides e
Heródoto – fundamenta-se no desencantamento com o quadro vigente, na análise estrutural e
diacrônica, no modo como as vivências pessoais são assimiladas e na maneira, específica a
novas gerações, de tratar as experiências multisubjetivas a partir de novas condições políticas
e formulações lingüísticas. Segundo Koselleck, o dado antropológico prévio, que possibilita
que se reescreva a história, é a consciência da contradição entre o real e sua interpretação32.
A reinterpretação remete à procura de novos testemunhos, projetando novas luzes sobre
a tradição, ao estabelecimento de novas questões e interrogações, com maior acuidade no trato
das fontes, e à nova leitura dos testemunhos já existentes. Em geral, a reescrita da história será
feita segundo os interesses existenciais e ideológicos dos vencedores ou vencidos nas
contendas políticas, sendo que os primeiros tendem a se concentrar na curta duração para
legitimar os eventos que lhes deram a vitória, enquanto os últimos dedicar-se-ão à longa
duração para procurar provas que expliquem sua derrota imprevista. Desde modo, diz
Koselleck, as perdas pessoais ou geracionais permitem, e permitiram ao longo da história
ocidental, julgamentos, inovações de métodos e interpretações históricas capazes de conferir
àquele singular ganho de experiência imposto aos vencidos – que consiste no aprendizado da
derrota – uma existência durável33.
31
Ibidem, p.224.
Cf. ibidem, p.229-230. Esta questão, hermenêutica por excelência, vai além do que Koselleck discute neste
capítulo: a percepção desse hiato e as novas interpretações dependem também do horizonte de visão possível do
historiador em sua época; os limites de seu olhar mudam conforme o acúmulo ou o decréscimo de experiência e
conhecimento, pois isto delimita o que se pode ou não ver em cada momento histórico.
33
Cf. Ibidem, p.225-241. Pode-se observar no trabalho realizado por autores que deram configuração à “poesia
marginal” dos anos 70, como Heloisa Buarque de Hollanda, Marcos Augusto Gonçalves, Carlos Alberto
Messeder Pereira, o primeiro tipo de historiografia de que fala Koselleck, a história que registra, dá à luz uma
32
37
três trabalhos historiográficos acerca de experiências históricas34
Estas considerações teóricas de Koselleck encontram ressonância, e talvez tenham sido
elaboradas justamente a partir disso, na forma inovadora ou peculiar como diversos
historiadores trabalham suas temáticas. Em um capítulo intitulado “Tensão geracional e
mudança cultural”, Schorske35 analisa a mudança na experiência e o conflito entre gerações
criadoras da alta cultura em Viena, na passagem do século XIX para o XX, observando como
o fracasso do liberalismo austríaco na era da unificação e depressão germânica, sobretudo na
década de 1870, altera o que denomina de “centro geracional de gravidade dos criadores de
cultura”. Uma definição de Dilthey para “geração” é útil ao autor, para quem as verdades
eternas não se expressam de modo uniforme na vida histórica, sendo sucessivamente
submetidas a alterações formais conforme as novas gerações experimentam novas condições
sociais, políticas e econômicas: “[Uma] geração é constituída por um círculo restrito de
indivíduos que estão ligados a um todo homogêneo por sua dependência dos mesmos grandes
eventos e transformações que aparecem em sua época de [máxima] receptividade, apesar da
variedade de outros fatores subseqüentes.”36
Marcados por um senso de identidade geracional e por uma tensão e mesmo hostilidade
edipiana contra a derrota política dos seus pais liberais, os autodenominados Die Jungen (Os
Jovens) do final do século XIX viveram situações de decepção com a geração anterior e com
a sua própria, e por causa da desilusão trilharam um caminho de deriva existencial,
despolitização ou recolhimento na vida psíquica – de onde o próprio Freud vai retirar as
forças motrizes da psicanálise –, passando em muitos casos a romper com a história e a pensar
sem ela: “a subordinação do social ao psicológico como arena onde se deveria encontrar o
sentido foi a contribuição especial da geração dos Jungen de Viena à cultura liberal tardia.”37
A geração seguinte, dos jovens expressionistas, mostra menos coesão geracional e tensão
edipiana, pois à sua revolta coube dar uma formulação final e drástica à experiência de
desestruturação social e abandono psicológico que seus predecessores já haviam proclamado,
como o fundamento possível do ser no mundo liberal em desintegração.
experiência e a torna passível de conhecimento, ao passo que esta tese se incluiria no terceiro tipo, a história que
reescreve, reinterpretando aquelas experiências desde outro ângulo.
34
Estes trabalhos/autores foram selecionados por sua importância para a análise do contexto histórico-poético
que se seguirá.
35
SCHORSKE, C. Pensando com a história: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Cia. das
Letras, 2000, p.162-178.
36
Apud SCHORSKE, op.cit., p.177.
37
Ibidem, p.178.
38
Em E.P.Thompson se encontram algumas reflexões de cunho semelhante. Empenhado
em compreender uma crise na cultura inglesa no século XIX – quando se configura a cisão
entre experiência e linguagem “letrada”, por um lado, e “popular”, por outro, ao que se
associa a difícil relação entre consciência intelectual e sentimento intenso –, o autor vê a
primeira eclosão dessa crise no romantismo dos fins do século XVIII, quando, sob o impacto
da Revolução Francesa, dos Direitos do Homem e das reivindicações políticas por igualdade,
a idéia de subordinação cultural às tradições foi radicalmente posta em questão. Até então, o
arcabouço cultural inglês se alicerçava numa espécie de paternalismo realista, que “presumia
uma diferença qualitativa essencial entre a validade da experiência educada – cultura refinada
– e a cultura dos pobres”, de modo que “a cultura de um homem, exatamente como seu
prestígio social, era calculada de acordo com a hierarquia de sua classe”38. A visão de mundo
romântica, especialmente a manifesta na criação poética, é um divisor de águas nesta tradição,
afirmando-se, se nem tanto pelo que é dito, pela intensidade com que as coisas são ditas.
Em Wordsworth, por exemplo, a frivolidade e vulgaridade dos “educados” são
denunciadas e o sentimento de fraternidade universal, como uma sorte de transmutação em
vida interior das reivindicações políticas da igualdade, o aproxima do homem comum,
afastando-o da cultura refinada e da estrutura paternalista. Sua experiência o levou a uma crise
intelectual, em que rejeitava as postulações iluministas abstratas e a psicologia mecânica de
um Godwin, mas não o ardor republicano. Wordsworth, assim como Coleridge, foram
colhidos no vórtice das contradições entre os ideais revolucionários e a realidade; haviam
rompido com a cultura tradicional mas ficaram horrorizados com alguns aspectos da nova
cultura, desejavam abraçar a causa do povo, mas receavam que a multidão se voltasse contra
homens de seu tipo. Uma “busca de síntese em um momento de suspensão dialética; uma
centelha de idéias que surge a partir dessa tensão”39 alimentou sua criatividade poética por
algum tempo, enquanto o impulso criativo surgia da tensão entre uma aspiração ilimitada –
por liberdade, razão, igualdade, perfectibilidade – e uma realidade agressiva e incorrigível.
Assim, diz Thompson, não foi a desilusão, mas o conflito que os impulsionou; quando este foi
substituído pelo completo desencanto político, sobreveio aos poetas um fracasso moral e
imaginativo que os conduziu à apostasia, o que significa esquecer ou mutilar, por
manipulação inadequada, a autenticidade da experiência existencial anterior. Interrogando o
que aconteceu para tal, o autor os situa num contexto histórico mais limitado – recorrendo ao
38
THOMPSON., E.P. Os Românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, p.17.
39
Ibidem, p.56.
39
que chama de “fragmentos de tempo” que marcam a vida das pessoas e são instrumentos úteis
aos historiadores – e encontra entre os anos de 1797-1798 e 1800 uma série de situações de
desapontamento pessoal e político que conduziu os poetas jacobinos à capitulação diante da
tradicional cultura paternalista. Gradualmente, estes homens desapontados foram empurrados
para dentro de si mesmos, para a autocontemplação. Quando os ideais engendram seus
opostos – a fraternidade, o fratricídio; a igualdade, o império; a liberdade, o liberticídio – e se
perde a esperança de inserção em um mundo real comum a todos, então as aspirações se
transformam numa espécie de fé interior invertida e a decepção engendra a interiorização.
Contudo, este processo é uma faca de dois gumes, pois se pode permitir o aprofundamento da
sensibilidade, também pode gerar um autocentramento nocivo, com o conseqüente declínio da
capacidade de observação, menor receptividade ao mundo e maior obsessão com a perda da
inspiração poética.
O fato de a Revolução Francesa haver-se distanciado de seus próprios princípios
produziu conseqüências traumáticas no jacobinismo internacional, e na Inglaterra pouca coisa
sobrou além da derrota de um dos impulsos mais generosos da cultura ocidental. Derivou
disso um padrão cultural em que a cultura humanista foi depreciada, as gerações seguintes das
esquerdas caíram em precipitada rejeição do passado, os poetas se tornaram capazes de passar
rapidamente a um repúdio irrefletido da política e do mundo sem propriamente sofrer as
etapas de desencantamento anterior.
De todo esse movimento poético romântico, dois impulsos se estendem pelo século XIX
e XX, marcando a cultura européia: primeiramente, a valorização da experiência do homem
comum, cuja possibilidade de igualdade repousa em atributos morais e espirituais,
desenvolvidos mediante experiências no trabalho, no sofrimento e nas relações humanas
básicas. O conhecimento que daí deriva é menos fundado em impulsos racionais e na
educação formal do que num desenvolvimento calcado na experiência, o que levou os
românticos a superestimar a sensibilidade e o sentimento em detrimento do intelecto,
confundindo-os com o conflito entre educação letrada/refinada e a experiência. O segundo
impulso envolve o conjunto de reações provocadas pelo medo do potencial revolucionário da
gente comum, derivando tanto em ondas contra-revolucionárias quanto em movimentos de
reformadores educacionais apoiados na disciplina social e na recuperação moral, passando
pelas atitudes cerceadoras dos homens instruídos em relação aos hábitos e divertimentos
tradicionais do povo. O temor ante as espontaneidades populares e a perda de controle social
produziu políticas de educação, cultura e impostos voltados aos pobres, nutrindo o desejo de
moldar o desenvolvimento intelectual e cultural do povo na direção de objetivos
40
predeterminados e seguros, da época vitoriana até hoje. Nenhuma das duas atitudes, porém, se
mostra assaz conveniente e é necessário manter e ampliar um intercâmbio dialético40 entre
educação letrada e experiência comum se quisermos conservar os ganhos culturais que as
sucessivas gerações, a duras penas e a despeito de tudo, conquistaram.
Preocupando-se justamente com estas questões, Carlo Ginzburg se dedicou a estudar
parâmetros de conhecimento da experiência por parte da história. Já em 1986, no conhecido
ensaio “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, discutia o quanto o paradigma galileano
havia, desde o Renascimento, impresso as ciências naturais com uma tendência
antiantropocêntrica e marcado a epistemologia com a primazia das abstrações matemáticas e a
exclusão da dimensão sensível dos odores, cores, sons, promovendo um “rasgo no saber” que
só se alargaria com o tempo. A tradicional concepção de verdade, associada à autenticidade
de uma experiência inimitável, e contrariamente, de falsidade atribuída à imitação/repetição –
clara nas artes plásticas que valorizam o original em detrimento da cópia – foi invertida na
modernidade: com a possibilidade de reprodução técnica, inicialmente com a imprensa, o
caráter irrepetível das experiências sensíveis, bem como a singularidade irreprodutível das
escritas individuais, foram postos sob suspeita como fonte de conhecimento em prol daquilo
que é reproduzido e disseminado socialmente, e portanto, mais passível de mensuração e de
significância social pela quantificação. Os traços individuais presentes na experiência singular
põem em cheque o conhecimento científico rigoroso, visto que o saber individualizante é
sempre antropocêntrico e alicerçado nos órgãos sensoriais. Especialmente o olhar, sobre o
mundo e os outros seres humanos, é um canal privilegiado dessa experiência e conhecimento
individuais e irredutivelmente qualitativos, no qual as disciplinas humanísticas, às quais
estava vedado “o olho supra-sensível da matemática”, se mantiveram ancoradas a despeito de
tudo. Assim, afirma Ginzburg, com base em sintomas e sinais, desenvolveram-se formas de
saber indiciário que
eram mais ricas do que qualquer codificação escrita; não eram aprendidas nos livros
mas a viva voz, pelos gestos, pelos olhares; fundavam-se sobre sutilezas certamente
não formalizáveis, freqüentemente nem sequer traduzíveis em nível verbal;
constituíam o patrimônio, em parte unitário, em parte diversificado, de homens e
mulheres pertencentes a todas as classes sociais. Um sutil parentesco as unia: todas
nasciam da experiência, da concretude da experiência. Nessa concretude estava a
força desse tipo de saber, e o seu limite – a incapacidade de servir-se do poderoso e
terrível instrumento da abstração.41
40
41
Para as observações de Thompson, cf. especialmente p.25, 31-38, 41-44, 52-61, 89-98.
GINZBURG, C. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, op.cit., p.167.
41
Desde o século XVIII, porém, a experiência e os saberes qualitativos adquirem um novo
estatuto, uma vez que a burguesia, em sua ofensiva cultural, apropria-se e codifica grande
parte do saber, indiciário ou não, dos camponeses e artesãos, organizando uma coletânea
sistemática desses “pequenos discernimentos”. Em especial, o romance fornecerá à burguesia
um meio substitutivo, e uma espécie de rito de iniciação, de acesso à experiência em geral42.
Isto alimentou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, as novas formulações de antigas formas de
conhecimento que incluíam o individual e o qualitativo – as quais, conforme o contexto,
podem ser intituladas de venatórias, divinatórias, indiciárias ou semióticas –, compondo um
novo modelo epistemológico de cunho mais concreto-descritivo do que abstrato-matemático,
mais alinhado à tradição baconiana de ciência experimental43, e permitindo novos
desenvolvimentos para as ciências humanas que, por lidarem com causas não reproduzíveis,
só podem inferi-las a partir dos efeitos, como na psicanálise, na arqueologia, na paleontologia
e na história, entre outras.
Se este modelo concreto-descritivo-experiencial foi utilizado para elaborar formas sutis
e minuciosas de controle social – como os sistemas de identificação de assinaturas ou
registros policiais que serviram ao controle dos analfabetos e presidiários, acompanhando a
tendência à criminalização da luta de classes44 –, ele também pode converter-se, ressalva
Ginzburg
num instrumento para dissolver as névoas da ideologia que, cada vez mais,
obscurecem uma estrutura social como a do capitalismo maduro. Se as pretensões de
conhecimento sistemático mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso
a idéia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário: a existência de uma
profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio
momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é
possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que
permitem decifrá-la.45
Por este motivo se desenvolveu, nos dois últimos séculos, uma literatura aforismática,
que Ginzburg percebe de Nietzsche a Adorno, traduzindo-se como tentativa de formular
juízos sobre o homem e a sociedade com base em sintomas e indícios: os de um mundo que
está em crise, doente na dimensão individual e social. O resgate do valor da experiência e de
formas de conhecimento que lhe sejam pertinentes possui, enfim, um forte conteúdo político
cujo papel, seja no campo epistemológico ou pragmático, não convém à história esquecer.
*
42
Cf. Ibidem, p.167-168.
Cf. nota 79 referente ao capítulo, ibidem, p.269.
44
Cf. ibidem, p.172-173.
45
Ibidem, p.177.
43
42
Em suma, pesquisar a experiência histórica que se encontra testemunhada na poesia
implica observar nos textos os diversos tipos de tempo e de experiência; os diversos vetores
que se cruzam compondo o quadro delimitador das experiências possíveis para os indivíduos
e grupos num determinado contexto sócio-cultural, tendo em vista que num espaço-tempo
dado se cruzam vetores econômicos, políticos, éticos, sociais, estéticos, as tradições herdadas,
as expectativas de futuro, e tantos mais. Portanto, tratar historicamente dessa experiência,
quer priorizando a sensibilidade, quer o legado cultural da espécie humana, significa
considerar o conjunto de situações que envolvem a relação dos seres humanos consigo
mesmos e com o universo circundante, logo, as dimensões da espacialidade, da temporalidade
(onde se inclui a memória), da sociabilidade (que abrange a linguagem em todas as suas
formas) e, como desdobramento, a dimensão do aprendizado e sua expressão e transmissão.
Deste modo, como ponto de condensação de situações vividas em diversos âmbitos, a
experiência requer ser considerada nestas quatro dimensões interpenetrantes46:
a) espacialidade: o local de situação do fazer poético, incluindo as imagens da cidade,
da natureza ou cultura regional e do país. Inclui-se aqui a problemática pertinente à dimensão
nacional da literatura e às fronteiras do fenômeno literário, a dialética do localismo e
cosmopolitismo, da terra natal e do exílio, bem como o grande número de imagens poéticas e
trabalhos críticos acerca da relação entre o poeta e a urbe, uma vez que a modernidade, sob a
pena da figura exemplar de Baudelaire, introduziu as experiências da urbanidade no traçado
poético. O tema diz respeito, igualmente, aos processos de criação de lugares e monumentos
comemorativos, ao modo como os diferentes grupos sociais se relacionarão com eles, bem
como aos desdobramentos culturais e afetivos promovidos pelas transformações dos lugares
de memória ocorridas nas obras de modernização.
b) temporalidade: diz respeito a todas as possibilidades de vivência temporal, a tradição
como herança do passado, o presente cotidiano, os projetos de futuro ou sua falta. Portanto,
inclui temporalidades diversas e que podem apresentar-se em inúmeras combinações nos
textos: as três durações do tempo histórico e a cronologia; o tempo interno-psíquico do fluxo
ou fragmentos de consciência; os tempos da memória; o tempo objetivo da ordenação social e
o tempo físico da natureza.
No contexto literário da modernidade, como apontado, foi marcante a valorização
constante do novo, freqüentemente em detrimento da experiência acumulada pela tradição, do
valor do passado e da memória social, mas não individual. Quanto à história recente, cabe
46
Faço aqui tanto um mapeamento conceitual quanto um levantamento de questões pertinentes à temática
específica da pesquisa.
43
perguntar em que medida há uma mudança na relação dos sujeitos sociais, na figura dos
poetas, com a temporalidade, apontando para a passagem de um tempo com perspectiva de
profundidade, dada por linhas de horizonte no passado e no futuro, para um tempo imediato,
apenas presente, achatado no agora, sem preocupações com as tradições, a memória coletiva e
os projetos de futuro47.
Com respeito a estes, interroga-se a experiência de derrota dos projetos utópicos, cujos
desdobramentos se vêem em vários autores que tratam das ditaduras militares latinoamericanas, e a frustração dos projetos socialistas de revolução. É preciso indagar,
igualmente, acerca da relação entre as manifestações estéticas da modernidade tardia e essa
experiência de derrota; da crise das utopias estéticas e políticas e o abandono das discussões
sobre a função social da arte, o que influi (e vice-versa) no modo como se dá a percepção do
teor político dos textos e do poeta como agente histórico imerso numa formação coletiva e, ao
mesmo tempo, capaz de inventar novas possibilidades e sentidos por meio de sua expressão, o
que remete à dimensão da sociabilidade. Em decorrência, dois conjuntos de questões se
colocam à análise: a) as conseqüências do sentimento coletivo de derrota: da (auto)censura e
esquecimento à predominância simbólica da ironia e da melancolia na contemporaneidade; b)
a tendência à presentificação e a perda da noção/sentimento de pertencimento a uma tradição
coletiva, sua memória e seu legado, disso derivando certa espacialização e imediação da
experiência em detrimento da profundidade temporal.
c) sociabilidade: abrange o modo como as relações sociais se manifestam nos textos, em
especial as questões da subjetividade/objetividade e individualidade/coletividade. Em grandes
linhas, remete às experiências do pertencimento e da solidão, que por sua vez se desdobram
nas temáticas da integração e rejeição do sistema social, da participação ativa ou
contemplativa na dinâmica política etc. À guisa dos “quadros sociais da memória”, como uma
moldura em que se movem as lembranças pessoais, de que falava Halbwachs, pode-se falar
nos quadros sociais da experiência, fazendo desta, assim como da memória, um cruzamento
de vivências que são simultaneamente individuais e coletivas.
No que concerne à cultura contemporânea recente, duas questões demandam trato
cuidadoso: a) a fratura do pertencimento e o paroxismo da vivência subjetiva, com a
inclinação simultânea dos sujeitos ao narcisismo e à dissolução, e o decorrente processo de
“intimidação” da voz lírica, que se torna tímida ante a esfera pública e se volta para o
47
Cf. PAZ, O., idem. Considerações teóricas sobre a relação entre tempo, poesia, memória e modernidade foram
por mim trabalhadas no mestrado em literatura brasileira. Cf. VIEIRA, B. Itinerários da memória na poesia de
Manuel Bandeira. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Instituto de Letras, Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 1997. [mimeo].
44
universo privado, gerando crescente desinteresse pela história e pela memória social; b) a
deslegitimação do conceito de formação cultural, social e nacional, no contexto das
sociedades de massas, o que tende a destruir valores éticos e empobrecer a vida pública como
um todo.
d) materialidade e imaterialidade da cultura: nas três dimensões anteriores, há uma
possibilidade de experiência mais propriamente material ou mais simbólica (“espiritual”,
como se costuma dizer na tradição hegeliana), assim como mais imediata e circunscrita ou em
perspectiva temporal mais ampla, segundo a concepção de cultura que se esteja adotando.
Tem sido bastante sublinhado, a partir da Escola de Frankfurt, o quanto se reduziu na
contemporaneidade a compreensão e vivência da cultura a uma materialidade reificada, em
que os valores de troca mercantil se sobrepõem a quaisquer outras formas culturais,
dominando inclusive o mundo das manifestações simbólicas, delas retirando crescentemente o
teor abstrato-espiritual, num processo que se traduz como a faceta cultural do capitalismo
tardio e se agrava com o império das políticas neoliberais no mundo globalizado, a partir dos
anos 1970.
Neste contexto situa-se o problema do impacto da indústria cultural na literatura e do
aprofundamento do processo de utilização do poema como mercadoria, cabendo analisar em
que medida isto repercute sobre a qualidade do fazer poético e sobre a expressão de uma
experiência humana por meio do poema – no sentido benjaminiano-adorniano, de uma
experiência não reificada pela repetição mimética e maquinal do mundo mecânico e
mercantilizado. Ao lado disto, situa-se também neste terreno o problema da perda da
dimensão espiritual da cultura contida no conceito de formação (em relação com a Bildung
alemã, ou a paidéia grega) e a conseqüente desvalorização do patrimônio cultural não
material. Trata-se da dificuldade ou impossibilidade de restituir à cultura seu papel de
qualificação da vida humana como tal. Para que o poema, como testemunho da mais sensível
experiência humana, possa quem sabe ser, como queria o poeta Mario Quintana, como um
gole d’água bebido no escuro, ferido de mortal beleza.
1.3. A poesia lírica como fonte
Ao estudar as condições da história da linguagem, Pocock observa que não se separam a
história da linguagem e a história da experiência, mas ambas se conectam, uma vez que as
linguagens usadas por atores sociais produzem informação acerca do que essa sociedade
experimenta, e podem ser vistas, na maior amplitude possível, como desdobramento dessa
45
experiência. Ainda que se atribua certo grau de autonomia à linguagem, isto não significa
abstração com respeito ao vivido. Todavia, o fato de as linguagens se formarem ao longo do
tempo, em resposta a muitas pressões internas e externas, não significa que sejam reflexo
direto ou efeito denotativo da experiência do momento. Antes, a linguagem “interage com a
experiência; proporciona as categorias, a gramática, e a mentalidade através das quais a
experiência deve reconhecer-se e articular-se”48. Estudá-la permite ao historiador se inteirar
de como os habitantes de uma sociedade puderam conhecer a experiência, o que foram
capazes de conhecer e que repostas foram capazes de articular e, em continuação, efetuar. Ou
seja, pode-se aprender o que se passou no discurso de modo articulado ao que passou na
experiência.
Mas ambos transformam-se, e o historiador sabe que as coisas sucedem aos seres
humanos antes que estes possuam os devidos meios de verbalizá-las, bem como sabe que o
processo de responder a novas experiências leva tempo e se decompõe em muitos outros
processos com diferentes modulações e velocidades, de modo que a relação entre linguagem e
experiência é ambivalente e problemática, exigindo que se observem diversos ângulos, tanto
sincrônicos quanto diacrônicos. Dois tópicos são de especial utilidade para a compreensão
desses processos: “a percepção de que o novo se leva a cabo no tempo e na forma de um
debate sobre o tempo”49, de maneira que estes debates são boas fontes de informação, e a
conseqüente constatação de que as linguagens de segundo grau – os discursos críticos, por
exemplo –, em sociedades complexas o bastante para tê-las, também respondem à nova
experiência com a realização de debates sobre os problemas que surgem em seu discurso.
Assim, para compreender as experiências predominantes de uma época, bem como as
novidades que introduzem transformações, a enunciação poética, sua fortuna crítica, e os
debates que ambas – e outras disciplinas e instâncias, como a filosofia, o discurso jornalístico
etc. – estabelecem sobre o tempo, no mais lato sentido do termo, e sobre seus problemas
discursivos são fontes úteis ao historiador. Deste modo, vale trazer aqui algumas
considerações específicas da crítica literária, para colocá-las em contato com a historiografia,
buscando intercambiar estas duas formas de ler o mundo e trabalhar com o texto.
As questões teóricas e metodológicas modernas, concernentes à relação entre poesia e
história, inserem-se evidentemente no amplo leque dos diálogos entre literatura e história, mas
por definição centram-se nas discussões sobre o que é específico à linguagem poética-lírica,
48
Cf. POCOCK. Historia intelectual: un estado del arte. In: Prisma. Revista de historia intelectual, Buenos Aires,
n.5, p.145-173, 2001. p.168.
49
Ibidem, p.169, grifo meu.
46
isto é, o caráter peculiar de sua mímese, digamos mais “apresentativo” que representativo, e o
problema da legitimidade da voz subjetiva, individualizada – característica distintiva da lírica
quanto à épica e ao drama – como testemunho sócio-histórico. Em última instância, trata-se
da problemática originária da verdade dos testemunhos artísticos, discutida desde Tucídides,
Platão, Aristóteles, mas com as renovações necessárias de sua roupagem moderna e
contemporânea.
a questão do real e do imaginário: o problema da referencialidade e da mímese
De modo resumido, as visões predominantes na crítica literária a respeito da
peculiaridade do dizer poético o distinguem das formas prosaicas e narrativas por ser uma
forma de expressão intrinsecamente polissêmica, reiterativa e mais próxima da dimensão
vivencial, visto que busca diminuir a distância entre a palavra e a experiência a que se refere.
Desde Platão, a despeito de suas ressalvas à poética, diversos autores concebem a
linguagem poética como linguagem inaugural, no sentido de primordial, pelo que mantém da
relação entre a palavra e a dimensão originária da experiência. No século XVIII, Giambattista
Vico concebeu uma história da linguagem dividida em três momentos sucessivos e
recorrentes, indo da expressão motivada para o signo institucional: a era divina, a era heróica
ou poética e a era civil-racional. Comentando a obra de Vico, Alfredo Bosi50 aponta como se
instaura, nos tempos mitopoéticos, uma conaturalidade entre palavra e cosmos, configurando
interjeições, onomatopéias, metáforas, metonímias e fábulas antropomórficas que guardam,
entretanto, sua lógica peculiar de transformações internas ditadas pela imaginação. A relação
pouco convencional e polissêmica que assim se estabelece entre significante, significado e
referente sofrerá um processo de ajustes e restrições, à medida que se consolidam as praxes
semânticas do sistema social e se estabilizam as normas de comunicação, para se adequar à
produção dos universais abstratos ou gêneros lógicos, que marcam o saber das eras ditas
racionais. Buscando entender a natureza da linguagem poética, cuja ordem imanente reúne os
sentidos, a memória e a imaginação, Vico assume a hipótese de que os tropos classificados
pelos retóricos, metáfora, metonímia, antonomásia, etc., seriam modos necessários e
primeiros de explicação, de modo que o falar do verso seria anterior ao falar da prosa. Deriva
daí uma concepção teórica da poesia como linguagem múltipla que se abre ao dinamismo da
expressão motivada primordial: sendo por si só conotativo e polissêmico, o uso poético da
50
Cf. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia, p.202-215.
47
linguagem abarca modos diferentes de significar, desde o selvagem/sacral – que irrompe no
gesto, no tom, no olhar, no corpo que fala –, passando pelo mitopoético de teor analógico, até
o institucional, unívoco e denotativo. A convivência que Vico postula de sistemas
assimétricos de expressão na poesia, segundo Bosi, é a base dos traços de ambigüidade,
desvio e estranhamento que as teorias de hoje conferem à palavra poética.
Sob essa convivência, a diversidade da expressão é dada, entre outras coisas, pela
relação mais ou menos íntima que estabelece com a experiência primeira, que se pode chamar
de dimensão vivencial, o hálito e o ritmo da existência, dos pequenos movimentos da vida
que, em silêncio, fazem os passos do tempo. Para Ricoeur51, esta realidade pré-conceitual a
que todos pertencemos originalmente é o ser referente de toda linguagem – uma dimensão
experiencial que constitui uma reserva ou excesso de sentido, cujas potencialidades
semânticas jamais se deixam esgotar pelas tentativas humanas de nomeação –, e a linguagem
poética articula essa referência antepredicativa e pré-categorial, capaz de dar expressão a
modos de ser que a visão comum oblitera, suspendendo os valores referenciais da linguagem
ordinária e científica.
De modo semelhante se constituem as concepções de Bosi e Octávio Paz sobre a
linguagem poética. Nas palavras de Paz, a poesia lida com o paradoxo fundamental da
linguagem, com o fato de que “a realidade é irredutível à palavra e, no entanto, somente a
palavra a exprime”52. Por isso, mesmo que tudo já tenha sido dito, o poeta retoma o ato
originário de criar através do verbo, buscando superar a insuficiência da palavra e apresentar a
“essência viva” das coisas. Por meio da imagem, o poeta busca recuperar a riqueza original da
palavra, a vida das palavras, a palavra viva, e esta volta da linguagem à sua natureza
fundamental é o primeiro ato da operação poética. Mais do que servir-se das palavras, o poeta
é aquele que sabe como servi-las, devolvendo-as ao seu estado original de pluralidade de
sentidos, dada por seus valores plásticos e sonoros, afetivos e significativos. A linguagem em
si, por conseguinte, tem natureza polissêmica e poética, e a poesia é a operação lingüística de
retorno a esta sua condição, de (re)construção do estado “natural” da linguagem, de imersão
nas águas originais da existência, da inseparável existência do homem e da palavra.
No dizer de Bosi53, a diferença é constitutiva do signo e, conseqüentemente, a distância
que se coloca entre a palavra e a coisa está inscrita desde sempre na língua. A linguagem não
é filha da plenitude e da unidade, mas da falta e do desejo de suprir a ausência, existindo a
51
Cf. RICOEUR, P. A metáfora viva, passim.
Cf. PAZ. O arco e a lira; especialmente p.31, 58 e 133.
53
Cf. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia, p. 21-29, 61 e 114.
52
48
poesia justamente em função dessa distância. O modo imagístico e o modo discursivo de
acesso ao real se reúnem na poesia para presentificar o mundo, sendo que à imagem é
permitida a simultaneidade das coisas, a representação da estabilidade das figuras ou da
espacialidade das cenas, enquanto o modo encadeado do dizer discursivo, extensivo no tempo,
vai urdindo gradualmente os significados. No texto poético, por conseguinte, o discurso serial
busca a imediatez da matriz “atemporal”, mediante a constituição de imagens através de jogos
de reiterações e analogias: a recorrência, que nos distrai da consciência do tempo e da
contradição, que são presos à serialidade, torna-se ferramenta da memória; as figuras de
linguagem, por sua vez, como procedimentos que evocam aspectos materiais e sensíveis do
referente, contribuem para observarmos a relação sensível do homem com o mundo. O modo
poético de falar das experiências vitais do homem ficou na “memória infinitamente rica da
linguagem” como um modo que subverte o senso comum, uma vez que o belo poético é o que
deixa entrever, pela novidade da aparência, o originário e o vital da essência. Nessa
perspectiva, conclui Bosi,
a instância poética parece tirar do passado e da memória seu direito à existência; não
de um passado cronológico puro – o dos tempos já mortos –, mas de um passado
presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de ser da infância e do
inconsciente. A épica e a lírica são expressões de um tempo forte (social e
individual) que já se adensou o bastante para ser evocado pela memória da
linguagem.54
O jogo temporal que as composições poéticas realizam permite um entrelaçamento dos
tempos que vem a remodelar a fixação moderna no tempo só futuro ou só presente. Diz
Octavio Paz que a modernidade é uma época para a qual o homem é tempo, e essa
temporalidade quer “contemplar-se a si mesma”: por isso o homem se imagina e, ao se
imaginar, se auto-revela. Partindo da situação humana original e de sua precariedade, dada
por sua contingência e finitude, qualquer que seja o conteúdo expresso do ato poético, ele é
mais que uma interpretação da existência humana, pois é uma revelação de nossa condição
original: “O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente”.55
Para diversos críticos literários, portanto, há uma íntima relação entre poesia e a
condição humana. Schiller dizia que o conceito de poesia “não é outro senão o de dar à
humanidade a sua expressão mais completa possível”, pois que a arte pode ser expressão de
uma natureza humana plena, concebida como desenvolvimento de todas as suas
54
55
Idem, p.112.
PAZ, O. O arco e a lira, p. 165-183. A citação encontra-se na p.133.
49
potencialidades, racionais e sensíveis56. Distante do contexto romântico de Schiller, o olhar de
historiador contemporâneo de Paul Zumthor vê a poesia como um discurso social
diversificado, porém homogêneo e coerente em suas profundezas, que “engloba e representa
todas as práticas simbólicas do grupo humano”, por ser eminentemente “uma arte da
linguagem humana, independente de seus modos de concretização e fundada sobre estruturas
antropológicas profundas.”57
Isto se explicaria pelo fato de a poesia, ainda segundo Bosi, poder ter – mas nem
sempre, como qualquer realização humana – a virtude de instigar nas pessoas uma
consciência mais aguda do mundo, do outro, de si mesmas:
Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais
vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma
outra existência, mais livre e mais bela. E aproximando o sujeito do objeto, e o
sujeito de si mesmo, o poema exerce a alta função de suprir o intervalo que isola os
seres.58
Deste prisma, retoma-se a função social da poética, de pôr em relação sujeitos e mundo.
É assim que Merquior – de maneira paralela, mas menos “essencialista” – vê a poesia lírica
atravessar, no quadro de racionalização da vida que caracteriza a cultura ocidental moderna,
um processo crucial em que adquire autonomia intelectual, passando a interpretar a realidade
por conta própria, sem subordinação às correntes filosóficas da época. Na visão do autor, isto
que seria um amadurecimento da reflexão lírica permitiu que a poesia do século XX
alcançasse penetração problematizadora, configurando-se como uma “poesia do mundo”,
voltada a uma interpretação do real que muitas vezes se fez contra a corrente geral, em
resposta às transformações sociais e culturais do Ocidente, bem como ao quadro interno do
discurso artístico59.
Esta poesia seria ainda uma resposta contemporânea ao que Weber chamava de
“desencantamento do mundo” trazido pela modernidade. Se, como pensa Luís Costa Lima, o
racionalismo instrumental moderno é tão restritivo que restringe até mesmo o campo dos
sentidos possíveis e acaba por instituir o controle do imaginário, num processo que inibe a
liberdade da imaginação e a criatividade das composições mnêmicas e artísticas60, então a
poesia se torna um bastião de “descontrole” do imaginário ao buscar a constante pesquisa
formal e ao trabalhar com procedimentos construtivos de imagens e sentidos.
56
SCHILLER. Poesia ingênua e sentimental, p.61 e notas de Márcio Suzuki, p.122.
ZUMTHOR, P. A letra e a voz. p.147; e Performance, réception, lecture. p.13.
58
BOSI, A. O ser e o tempo da poesia, p.192.
59
Cf. MERQUIOR. Formalismo e tradição moderna, p.56-64.
60
Cf. LIMA. Pensando nos trópicos, p.58, 74-76.
57
50
As duas últimas visões apontam para um certo teor político da linguagem poética, no
sentido de sua capacidade de “resistência” às ingerências estéticas, ideológicas e históricas
como um todo, do contexto de produção e recepção da poesia. De modo diverso se apresenta
a concepção de mímese, no início da obra de Adorno. Segundo o estudo de Gagnebin, acerca
do conceito em Benjamin e Adorno, este e Horkheimer teriam partido da censura política de
Platão à poiesis, da psicanálise e da etnologia para caracterizar a mímese como um
comportamento regressivo, uma vez que promove a identificação entre sujeito-objeto, isto é,
para se liberar do medo e se salvar de perigos, o sujeito renuncia a se diferenciar do outro que
teme para aniquilar a distância ameaçadora e, ao fazê-lo, desiste de si e se perde, num
mecanismo de identificação perversa. A razão ocidental teria nascido da recusa desse tipo de
pensamento mítico-mágico, que em última instância também ameaça o processo de
construção e formas civilizatórias, sendo por isso simultaneamente prazeroso e perigoso61. A
civilização ocidental, dizem estes autores, havia substituído a magia pelo trabalho e pela
reflexão, mas não conseguiu erradicar de todo a lembrança originária da mímese arcaica, que
se manteve de modo recalcado e eventualmente retorna, quando o medo/prazer de retorno ao
amorfo engendra em determinados momentos históricos uma regressão coletiva, cujo exemplo
mais acabado é o fascismo, quando a identificação social e dissolução dos sujeitos, dadas pela
repetição automatizada e inconsciente por parte dos indivíduos de comportamentos marcados
pela reificação, à maneira anímica dos rituais das sociedades primitivas. A concepção
adorniana sofrerá inflexões, no final de sua obra, diz Gagnebin, quando o autor, a partir de um
diálogo com Benjamin e do desenvolvimento de sua “dialética negativa”, vê a possibilidade
de uma mímesis redimida que escapa tanto à magia quanto à regressão, indicando uma
dimensão essencial do pensamento, metafórica e lúdica, quando capaz de manter a distância e
a delicadeza exigidas pelo mais profundo respeito à alteridade62.
A filosofia benjaminiana, por sua vez, desdobraria uma teoria da mímese que é
simultaneamente uma teoria da linguagem, com base na idéia aristotélica de que o homem não
apenas reconhece como produz semelhanças, reagindo àquelas já existentes no mundo. Como
estas mudam no decorrer do tempo, a capacidade mimética também mudará, de modo que as
leis de similitude se transformam historicamente: havendo determinado outrora o saber da
astrologia, da adivinhação, das práticas rituais, não chegaram a desaparecer na maneira de
pensar abstrata e racional do mundo moderno, mas se refugiaram e concentraram na
61
A idéia de dissolução prazerosa é desenvolvida por Freud, de onde os autores a retomam. Cf. GAGNEBIN.,
“Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin”, in: op.cit., p.81-104.
62
O tema será retomado no cap.7.
51
linguagem e na escrita. Benjamin tenta pensar a semelhança ou correspondência, não como
uma comparação entre elementos iguais, mas sim como “uma relação analógica que garanta a
autonomia da figuração simbólica”63, de modo que a atividade mimética funciona como uma
mediação simbólica, não se reduzindo è mera imitação. A imagem de um relâmpago, que
ilumina e desaparece num instante doador de sentido, caracteriza, além da linguagem, a
experiência histórica, em que se mantém uma dimensão mimética da relação entre passadopresente, pois – se pensamos o tempo pleno, já mencionado, e não a cronologia linear – as
semelhanças afloram e permitem a reconfiguração de ambos.
Deste conjunto de concepções, a poesia sai pronta a dialogar com a história. Justamente
por sua especificidade como forma de expressão, organiza sentidos sobre o real e para o real,
muitas vezes sentidos até então inéditos, dada sua capacidade de estranhamento do mundo
conhecido, abrindo sendas para novos possíveis. Constituindo imagens fundadas na
experiência, no tempo-espaço vivido e na memória, a linguagem poética contribui para tornar
significativo o mundo; a organização sensível do conhecimento que daí advém é
compreensível para o leitor em virtude de um repertório cultural compartilhado, de uma
experiência prévia do mundo e seus signos, permitindo a interpretação.
Neste ponto em especial, como aponta Schorske, reside o interesse do historiador que,
diferentemente do crítico literário, não busca tanto na poesia seus aspectos formais
autocontidos, mas sua significação, observando o poema em sua relação com outros objetos
numa série temporal. A análise da particularidade do objeto-poema interessa até o ponto em
que fornece elementos para tecer um padrão coerente de mudança histórica64. Não se trata de
cair na dicotomia forma/conteúdo, mas de priorizar o aspecto significativo e significador da
linguagem poética, como instância de revelação – ou ainda melhor, de testemunho – seja da
condição humana em geral, seja das mais diversas situações e experiências humanas, no plano
real ou imaginário.
De maneira um pouco diversa, Lemaire destaca o caráter histórico do texto literáriopoético que, visto como mise-en-forme da realidade, apresenta uma verossimilhança,
imaginável, imaginária ou imaginada do fato estudado; como processo de organização da
realidade, oferece uma coerência, na qual se podem descobrir relações e conexões entre os
dados representados, isto é, oferece a plausibilidade de uma significação possível, que talvez
se traduza melhor no que “poderia ter sido” do que propriamente “no que foi”65. As palavras
63
GAGNEBIN, idem, p.98.
Cf. SCHORSKE. Pensando com a História, p.242.
65
Cf. LEMAIRE, L. O mundo feito texto. In: LEMAIRE, L. e DE DECCA, E. Pelas margens. p.9-11.
64
52
da historiadora nos remetem à discussão da poética aristotélica, a respeito da mímese artística,
de sua verossimilhança e caráter geral em contraponto à particularidade da história: o que aqui
vemos, entretanto, consiste num movimento de inversão desta lógica, fazendo a história se
voltar para o geral e o verossímil poético, a engendrar outras possibilidades de diálogo com
seus objetos.
Do ponto de vista da historiografia, o que está em jogo é eminentemente o problema da
referencialidade ao real, desdobrando-se em dois eixos temáticos, sobre os quais se
debruçaram inúmeros autores: as indagações sobre o referente das diversas linguagens, aí
incluída a da história, e sobre a abrangência do conhecimento histórico, sua particularidade ou
universalidade. Koselleck, debatendo o problema dos conceitos históricos, tece sugestões que
em diversos momentos se aproximam das discussões filosófico-literárias acima mencionadas:
se não há experiência, não há palavra ou conceito; todo termo tem um referencial histórico, de
modo que a experiência humana, histórica por definição, é o referente último de toda
linguagem. Os conceitos históricos, assim, mantêm uma relação tensa com seu conteúdo, com
aquilo que se quer tornar inteligível e compreender. Com o objetivo de “dar conta das
experiências de vida”, o historiador as identifica com a “história concreta” e estipula a
necessidade de separar e analisar cuidadosamente a diferença entre esta e as afirmações
lingüísticas presentes nas fontes textuais, para as quais se pergunta então o que indiciam em
relação à história concreta. O próprio conceito de história é, assim, “altamente sofisticado do
ponto de vista teórico, capaz de articular experiências individuais numa totalidade abstrata”,
pelo motivo de que contém tantos aspectos sincrônicos, relativos a situações temporais e
espaciais específicas, quanto aspectos diacrônicos, relativos à longa duração, de modo que “a
compreensão de fatos históricos únicos demanda o estabelecimento de relações múltiplas com
outros fatos, constituindo-se num todo altamente agregado de partes, cuja inteligibilidade
escapa à experiência individual particular”.66
A concepção de Koselleck aponta para uma visão de história que supera qualquer
unilateralidade e a situa num campo de articulação dialética entre diacronia e sincronia,
particular e geral, experiência e linguagem conceitual. Esta articulação se torna ainda mais
fundamental em se considerando que a tensão entre o real e sua interpretação é constitutiva
não só da reflexão historiográfica, como também da própria experiência histórica. Em outros
termos, esta tensão estaria presente em três níveis: na experiência concreta e cotidiana dos
sujeitos sociais, ou seja, naquilo que vivenciam; na experiência da linguagem, também
66
KOSELLECK, R. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v.5, n.10, 1992. p.143. Cf. também p.135-36 e 145.
53
cotidiana, em que estes sujeitos elaboram o que vivem, como sentem e vêem o que foi
experimentado, estabelecendo uma interpretação sensível, no que se insere a dicção poética;
na experiência historiográfica, em que a linguagem interpretativa de teor conceitual e racional
busca compreender e explicar os níveis anteriores, articulando-os.
De forma esquemática, pode-se imaginar estes níveis como as três partes de um
triângulo ou cone: A) na base, o nível dos acontecimentos, o chamado real, da materialidade
do mundo e da efetividade das relações sociais, que existe por si objetivamente, sem sentido
ou razão teleológica obrigatória, a história-vivida que os alemães denominam Geschichte; B)
no meio, o nível da ordem simbólica, das representações lingüísticas e artísticas, dos sentidos
e imagens constituídos pelos sujeitos sociais para refletir-se no mundo e refletir sobre os
acontecimentos. Composto de discursos e composições imaginárias, muitas vezes em
fragmentos, constitui um nível também real, porque também vivido, compartilhado e
experimentado, mas consiste em um outro teor de realidade e experiência, talvez menos
tangível. É prioritariamente subjetivo na sensibilidade, na apreensão dos fatos, na
interpretação imaginativa e na atribuição de sentidos, racionais ou não; mas tem a
objetividade do que é comum, socialmente compartilhado, e a objetividade necessária para o
historiador, que o trata como objeto; C) por fim, no topo, o nível da historiografia, que quer
conhecer o acontecimento objetivo de (A) e atribuir-lhe sentido histórico; quer conhecer as
representações imaginárias e simbólicas de (B) e compreender suas articulações, funções e
porquês; e conhecer também as construções da própria historiografia, consistindo na Historie
alemã. Neste esquema, portanto, o nível (A) apenas acontece; o nível (B) remete a (A) e
circunstancialmente a si mesmo; e o nível (C) remete obrigatoriamente aos dois anteriores e a
si próprio67.
C
B
A
67
Esta esquematização em forma de triângulo que proponho não pretende estabelecer níveis de importância, mas
uma diferença qualitativa nas relações de experiência-linguagem, até mesmo em função do número de pessoas
que as articulam. Em recente entrevista, Fernando Novais formulou algo semelhante: “Toda esfera de existência
pode ter vários níveis de realidade. [...] a história trata sempre de todos os níveis de existência, não só de um”.
Não que o historiador precise tratar todos os níveis em seu trabalho, mas é atento a eles porque está em busca de
reconstituir acontecimentos humanos, e não só fenômenos econômicos, ou políticos, ou religiosos em separado.
“A história, porque quer reconstituir, sempre fala da totalidade.” NOVAIS, Fernando. No meio do caminho, uma
colônia. Nossa História, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Vera Cruz, ano 1, n.6, abr. 2004. Entrevista. p.55.
54
Imersa no segundo nível de realidade e experiência, a linguagem poética se revela rica
fonte textual para a história pela referencialidade que comporta, dizendo respeito tanto a
experiências humanas concretas, sensíveis e objetivas, e por isso reais, quanto a experiências
simbólicas e representativas, também elas reais. Em recente entrevista, o escritor uruguaio
Benedetti ilustra esta questão ao responder porque se dedica tanto à poesia nos últimos
tempos:
Sinto-me mais cômodo, sou mais eu mesmo. A poesia é o gênero no qual o escritor
intervém com sua vida. Os outros gêneros são ficção; a poesia, não. [...] Na poesia, o
que se inventa é a forma, se adota uma ou outra forma para dizer a verdade. Às
vezes o soneto funciona melhor, às vezes o verso livre.68
Invertendo a preocupação platônica, a verdade poética é reafirmada como uma
expressão do real. Claro está que não se trata de considerar a representação poética como
espelho dos acontecimentos – questão já por demais contestada nos meios literários e já
incorporada pelas discussões historiográficas69 –, mas de compreender que a mímese, ainda
que transformadora, contém em si e é por si mesma uma experiência humana significativa e
necessariamente histórica, uma vez que suas condições de realização, material e imaginária,
são delimitadas pelos horizontes de possibilidade de um tempo-espaço. Logo, não se espera
que o poema tenha obrigatoriamente que “refletir” o real, nem falar diretamente da história ou
da vida social, mas que – por ser uma linguagem de aguda sensibilidade – permita uma
compreensão de vivências históricas, mais cotidianas ou menos, a partir daquilo que
Raymond Williams procurou definir mediante o conceito de “estrutura de sentimentos”, ou
estruturas de sentido, remetendo a “significados e valores tal como são vividos e sentidos
ativamente, e as relações entre eles e as crenças formais ou sistemáticas”70, que, como parte
de um processo social vivo, emergem de uma relação tensa entre sentimento e pensamento, e
de todos os fatores constitutivos entre si. As estruturas de sentimento se articulam mediante as
68
69
BENEDETTI, M. [Entrevista]. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jul. 2003. Ilustrada, p.E6.
A imagem ótica da “refração”, em oposição ao “reflexo”, já proposta por Bakhtin, é retomada por diversos
historiadores. Ver, p.ex. BURKE, P. A história social da linguagem. In: A arte da conversação. p.40, e
GINZBURG, C. Introdução. In: Relações de força. p.44. A própria escrita da história, na expressão de Ginzburg, é
um espelho distorcido da realidade, que cabe ao historiador reconhecer e ajeitar o melhor possível. Burke, por
sua vez, considera a participação da linguagem na construção social da realidade e da sociedade mesma, sem
contudo discutir suficientemente os limites disso, pois construir o real é diferente de interpretar ou imaginar o
real. Como a linguagem constrói o real? Se é interpretando e imaginando, trata-se então de um tipo específico de
criação simbólica e imagética, o que nos remete à discussão dos distintos níveis ou tipos de realidade.
70
WILLIAMS, R. Estruturas de sentimento. In: Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.130-137.
Citação da p.134. O termo “estrutura de sentidos”, que aparece no topo da página deste capítulo, da tradução
brasileira de Waltensir Dutra, talvez seja mais explicativo do que o já consagrado “estrutura de sentimentos”.
Isto provavelmente decorre do termo inglês “sense” designar ambas as coisas, que em português são um pouco
diferentes.
55
formas e convenções artísticas, concebidas como elementos inalienáveis do processo material
social, em que todas as relações estão “engrenadas e em tensão”. Nas palavras de Williams:
Uma definição alternativa seriam as estruturas de experiências: num certo sentido a
melhor palavra, a mais ampla, mas com a dificuldade de que um dos seus sentidos
tem o tempo verbal do passado, que é o obstáculo mais importante ao
reconhecimento da área da experiência social que está sendo definida. [...] uma
experiência social que está ainda em processo, com freqüência ainda não
reconhecida como social, mas como privada, idiossincrática [...]71
É em virtude disto que as imagens poéticas construídas nos textos podem ser lidas como
indícios da sensibilidade de uma época, ou seja, a percepção poética – o que a poesia sente,
vê, ouve, lembra, afirma e nega, isto é, capta, transforma em sua linguagem específica e
manifesta como belo ou como “digno”72 de ser selecionado como matéria de poesia,
registrado e tornado memorável poeticamente – pode ser concebida como experiência
histórica num dado contexto.
Contudo, como todas as linguagens e fontes históricas, o texto poético se insere numa
tradição ou cruzamento de tradições, que cada época e cada estilo legitima ou não, afirmando
ou silenciando os conteúdos experienciais, valorativos ou formais precedentes, estabelecendo
filiações e rupturas que cabe ao historiador investigar e interpretar no seio da cultura que lhe
cabe historiar. O olhar do poeta, assim, é um testemunho sensível de tempos históricos – quer
o passado das tradições, quer o presente da experiência em curso, quer o futuro dos projetos
utópicos, estéticos ou políticos – para o olhar do historiador.
testemunho, testimonio e teor testemunhal
O trabalho de Marcio Seligmann-Silva – História, Memória, Literatura: o testemunho
na era das catástrofes – busca não apenas compreender como operam as formas testemunhais
de pessoas que viveram experiências históricas de grande violência, como também formular o
testemunho como um conceito, que designa ora um tipo específico de gênero literário, relativo
especialmente à América Latina, ora uma função ou elemento literário partícipe de diversos
gêneros, sempre alocado entre a literatura e a história. Duas significações básicas contribuem
para a formação do conceito: o sentido jurídico, e por derivação histórico, derivado do latim
testis, o “terceiro” que viu ou participou de um fato e é capaz de assegurar sua veracidade; e o
71
Ibidem, p.134. Grifo do autor. Estas considerações se coadunam perfeitamente à poesia aqui em questão,
convergindo para observações feitas na época pelo poeta-crítico Cacaso, como se verá.
72
Recorro aqui a uma bela imagem de Pierre Nora, acerca daquilo a que é conferida a “dignidade do
memorável”.
56
sentido de superestes, “sobreviver”, passar por um evento-limite como quem “atravessa a
morte”, o que conforma uma experiência radical que problematiza a relação entre a linguagem
e a realidade, pois “não existe discurso que esgote a dor, [...] não existe explicação para a
animalização do homem”73. Configura-se, em decorrência, uma forma de escritura do trauma
em que se mesclam o estranhamento com o vivido e seu recalque a uma imperiosa
necessidade de narrar e, paradoxalmente, de calar, pois se tem consciência da impossibilidade
de construir um sentido coerente para o horror experimentado, e conseqüentemente, de
transmitir ao outro a realidade daquilo que foi.
Deste modo, continua o autor, o conceito de testemunho possibilita uma nova
abordagem do fato literário, ao levar em consideração a especificidade da experiência (o
“real”, em suas palavras) que o originou, bem como as modalidades de marca, rastro, índice
que essa experiência imprime na escritura. Diferentemente da concepção jurídica de testis,
que precisa eliminar qualquer sentido de ficcionalidade, a literatura de testemunho reivindica
que não se elida sua relação com as ações humanas e o mundo extraliterário, pois tenta
justamente resgatar o que há de mais terrível no real para apresentá-lo. Como a fronteira entre
ficção e realidade histórica não é claramente delimitável, o testemunho subjetivo precisa
freqüentemente dos recursos literários. No entanto, é mister esclarecer, ficção não significa
mentira, mas a especificidade da verdade estética, assim como a narração e a construção do
real não são o mesmo que mera invenção:
Na literatura de testemunho não se trata mais de imitação da realidade, mas sim de
uma espécie de ‘manifestação’ do ‘real’. É evidente que não existe uma transposição
imediata do ‘real’ para a literatura: mas a passagem para o literário, o trabalho do
estilo e com a delicada trama de som e sentido das palavras que constitui a literatura,
é marcada pelo ‘real’ que resiste à simbolização. Daí a categoria do trauma ser
central para compreender a modalidade do ‘real’ de que se trata aqui. Se
compreendemos o ‘real’ como trauma – como uma ‘perfuração’ na nossa mente e
como uma ferida que não se fecha – então fica mais fácil de compreender o porquê
do redimensionamento da literatura diante do evento da literatura de testemunho.74
Isto não quer dizer que se deva “psicanalisar” a literatura, diz o autor, mas de
compreender que o testemunho, reunindo testis e superestes, traz uma reivindicação de
73
SELIGMANN-SILVA, M. (org). História, Memória, Literatura. O testemunho na era das catástrofes, p.15. O
testemunho na literatura e a escritura do trauma são desenvolvidos por diversos autores neste livro. Acompanho
aqui os raciocínio do próprio Seligmann, que, mais do que uma análise de casos, efetua organização teórica do
tema, nos seguintes artigos: Introdução; Apresentação da Questão; Reflexões sobre a memória, a história e o
esquecimento; O testemunho: entre a ficção e o “real”; Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e
Chris Marker: a escritura da memória.
74
Ibidem, p.386-387. Ver também p. 40, 378, 379, 385. A literatura de testemunho exige igualmente o
redimensionamento da historiografia, o que também é discutido por Seligmann em outros momentos. Note-se
que o autor dialoga com as principais correntes modernas e pós-modernas, não se inserindo propriamente em
nenhuma delas, de onde a novidade de seu trabalho.
57
verdade, a qual diversas vezes confere à ficção o caráter de documento. Se o estabelecimento
da relação entre texto e mundo histórico depende da leitura realizada, o que inclui críticos e
historiadores, o comprometimento com a experiência real que é intrínseco ao testemunho
exige de todos, autores e leitores, um compromisso ético para com a experiência passada a ser
formulada75. Tal compromisso, porém, não se refere apenas à veracidade histórica, mas
igualmente à qualidade da mímese realizada, ao modo de tratar os problemas da
representação.
A tendência ao realismo e ao documental é fortemente presente na tradição literária
latino-americana, onde, desde início dos anos 60, a reflexão sobre a função testemunhal da
literatura sofreu uma inflexão em direção à conceitualização de um novo gênero literário
propriamente dito: a literatura de testimonio76. Em linhas gerais, esta é marcada pela “tradição
documental” que se constituiu em reposta à história violenta da América Latina, encontrando
no romance realista e nos textos jornalísticos os recursos expressivos mais afeitos à denúncia
pretendida, sobretudo a partir do momento em que as ditaduras militares se implantam,
elevando a violência a um grau inusitado, como já dito. A estreita ligação que então se
estabelece ente literatura e política, verdade e práxis, faz que o sujeito testemunhal funcione
como sujeito coletivo, traduzindo por meio de sua “voz” – oral ou escrita, ou oral mediada por
um outro que escreva, dado o índice elevado de analfabetismo na região – a verdade de todos.
O tom quase jurídico que essa literatura adquire a vincula ao testemunho no sentido
etimológico de testis, o que se tem mostrado típico de produções literárias efetuadas durante e
75
Esta discussão é desenvolvida pelo autor no artigo O testemunho: entre a ficção e o ‘real’, tendo por base a
comparação entre testemunhos verdadeiros e falsos, isto é, obras ficcionais que se apresentaram – ou foram
assim interpretadas – como memórias verídicas da Shoah ou traduções, como Les Chansons de Billits, de Pierre
Louis (1895), Fragmentos, de Binjamin Wilkomirski (depois revelado Bruno Doessekker, 1995), Yossel Rakover
dirige-se a Deus, de Zvi Kolitz (publicado diversas vezes em periódicos entre 1946 e 1965, só tendo sido aceito
como ficção no final da década de 50, quando Levinas o legitima como “beu et vrai, vrai comme seule la fiction
peut être”). Cf. ibidem. p.382-384. Vale lembrar o texto ficcional de Luciano de Samóstata, em fins do Império
Romano, apresentado como um relato historiográfico, para se perceber a longa trajetória da discussão sobre os
limites entre literatura e história. Quanto à afirmação da leitura como ato que conclui a compreensão da relação
entre texto e mundo, a Teoria ou Estética da Recepção tem desenvolvido bastante este estudo, aqui apenas
mencionado rapidamente.
76
Seligmann mostra como, nesta época, o teor testemunhal ainda era pensado como idêntico ao documental e só
gradualmente se firmou a noção de um gênero, institucionalizada a partir de 1970, quando a revista Casa de Las
Américas, de Cuba, criou o Prêmio Testimonio Casa de las Américas e a literatura chilena de resistência e exílio
realizou um colóquio em que o gênero foi definido, como uma modalidade de contra-história, visando à
denúncia e à busca de justiça. As categorias teóricas e os problemas do testimonio são discutidos por
SELIGMANN, op.cit., p.34-35; 83-85, e por Camillo Penna (neste mesmo livro, p.355-374), no artigo “Este
corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano”. Seligmann observa em nota que a
literatura brasileira não tem sido contemplada pela teoria do testimonio que se desenvolveu na Hispano-América.
No mesmo período, pensava-se no Brasil prioritariamente a teoria do romance e suas relações com o realismo.
Daí sua opção em manter em espanhol o termo testimonio, afirma ele, acrescentando que a teoria da literatura
ainda tem o enorme desafio de pensar o teor testemunhal na literatura brasileira. Cf. nota 32, relativa à
Introdução, p.424.
58
logo após eventos histórico de ruptura77. Entretanto, isto não exclui as características do
testemunho daqueles que atravessam experiências traumáticas e vivem a dificuldade de sua
expressão. Por isso, Seligmann-Silva propõe a noção de “teor testemunhal” como
denominador comum dos dois conceitos, de testemunho e testimonio, uma vez que as
características fundamentais são as mesmas, permitindo paralelos estruturais, semânticos e
históricos, no sentido de uma moldura histórica assemelhada, residindo o diferencial nas
abordagens analíticas que ambos propiciam78. É este teor testemunhal que nos permite
compreender o significado de uma série de elementos literários, poéticos ou prosaicos,
surgidos no Brasil nos anos 70 para tratar da experiência histórico-subjetiva sob a ditadura
militar.
Enfim, sob estes auspícios teóricos, especialmente do “testemunho e do “teor
testemunhal”, o cruzamento de olhares, de horizontes de visão, entre o historiador e o poeta
pode, quem sabe, contribuir para a configuração de uma paisagem – a da interpretação
historiográfica justaposta à interpretação poética da experiência, com direito a todas as luzes e
sombras, cores e sons que compõem as possibilidades do existir humano – em que a poesia
seja também histórica e a história também poética.
a questão da relação subjetividade-objetividade-coletividade
Este segundo eixo é concernente à validade da voz individual como testemunho
histórico, uma vez que a lírica se caracteriza por uma enunciação individual e subjetiva. A
questão torna-se especialmente pertinente na modernidade, quando o gênero lírico adquire
destaque, acompanhando a afirmação da individualidade que foi traço marcante do período.
Estudando A Poesia de Brecht e a História, Leandro Konder busca compreender como
o poeta representava a história de seu tempo, o seu presente como história79, e para tal acaba
por estabelecer um mosaico de observações e constatações que nos permitem ir compondo o
quadro desta relação entre o indivíduo-poeta e a história de seu tempo: percebendo que há
coisas historicamente essenciais que dependem dos indivíduos, o poeta não estava isolado,
pois o sentimento que expressava era similar ao de muitas outras pessoas, de modo que,
debruçando-se sobre si mesmo, procurava analisar desde sua própria experiência o processo
77
Cf. Ibidem, p.40.
Cf. ibidem, p.30.
79
O objetivo do autor não é um estudo biográfico, mas analisar as tensões presentes nos poemas, a percepção da
história que se expressa na poesia; atenta, portanto, às imagens, às representações, tanto da história que o poeta
queria conhecer criticamente, quanto de uma história que ele ansiava por inventar. Cf. KONDER. A Poesia de
Brecht e a História, p.12-14.
78
59
da construção de um ser humano, atento ao movimento contraditório pelo qual os sujeitos
individuais e a sociedade simultaneamente se constituem. Konder reafirma a dialética da
formação individual-social: uma vez que o sujeito adulto que adquire consciência da sua
subjetividade é alguém que toma decisões, suas escolhas determinam seu modo peculiar de se
inserir no mundo, sendo um desafio para os sujeitos individuais confirmar ou recusar os
valores da classe social em que se vêem inseridos. Assumir-se, ajustar contas consigo,
questionar sua própria autenticidade são atribuições existenciais e imperativos éticos que não
se podem delegar à coletividade alguma. No poeta, a dimensão da solidão convive com a
sociabilidade, à moda kantiana de conceber o homem (moderno) como um ser “social
insociável”80, que existe em sociedade mas existe se individualizando, um ser social que não
se dissolve na sociabilidade. A dimensão social, portanto, não atenua mas instiga a
individualidade que, por sua vez, pressupõe decisivamente o social.
Assim, embora o velho Goethe considerasse que toda poesia é poesia de circunstância, a
elaboração da linguagem, social por definição, dá à lírica seu caráter coletivo. Nas palavras de
Konder:
o poeta trabalha suas vivências e lhes confere uma forma capaz de lhes atribuir
densidade significativa. Transfigura suas sensações, seus sentimentos, elevando-os a
um plano no qual outras criaturas podem se reconhecer neles. Realiza, portanto, um
movimento universalizador que parte sempre da circunstância para transcendê-la na
linguagem.81
Na dinâmica histórica em que efemeridade e duração se alternam, o que faz alguns
poemas sobreviverem, preservando sua eficácia poética, não é o fato de estarem
pretensamente situados acima ou fora da história, mas de passarem pelo teste de serem
submetidos a novas leituras, reavaliações, reinterpretações, e conseguirem sensibilizar novos
leitores em novas circunstâncias.
Portanto, diferentes instâncias se articulam na obra poética, formando um movimento
complexo, marcado tanto por rupturas significativas quanto por recorrências sistemáticas, de
valores, comportamentos, ideais etc. A poesia lírica, historicamente o gênero literário que
abre espaço para o testemunho inédito de cada personalidade e, simultaneamente, do seu
tempo, apresenta a vantagem de constituir um espaço de liberdade de pensamento, de
espontaneidade para expressão de sentimentos indefinidos – sejam hesitações, impressões
caóticas, cismas, perplexidades, sensações gratuitas, fantasias “inexplicáveis” do indivíduo
80
81
Cf. Idem, p.102.
Idem, p.87.
60
contraditório – em oposição às crispações doutrinárias que poderiam constranger um poeta
engajado como Brecht.
Um conjunto de questões similares preocupa Gadamer, que se indaga acerca da
necessidade ou possibilidade da arte na civilização contemporânea – se há ainda tempo e
lugar para a arte numa época em que por toda parte se vê desconforto com a vida social, em
uma sociedade de massas anônimas, e que demanda urgentemente o restabelecimento de
verdadeiras solidariedades. Perguntando se a arte poética é ainda possível, se mantém o poder
e a possibilidade de criar comunicação social, o autor busca o substrato que ainda permite o
“espírito comum” ser expresso em versos, ou como se dá a relação entre o verso e o todo82.
Gadamer parte de uma questão geral, que diz respeito diretamente à temática aqui em pauta:
na composição do gênero lírico, não se encontra propriamente o eu do poeta, mas uma voz em
que o eu de todos nós se reconhece, o mesmo ocorrendo para o tu a quem o eu se dirige, um
“tu” que são todos. Isto porque o poeta sempre lida ansiosamente com a questão de obter, ou
não, que da profundeza da experiência humana, sedimentada na linguagem, eleve-se e perdure
a palavra radiante que ilumine tudo, o poema. Logo, aquilo que o poeta capta tem um alcance
para além da experiência poética particular:
O poeta é o arquétipo do ser humano. Esta é uma das metáforas centrais mais
poderosas dos tempos modernos. Portanto, o mundo que o poeta capta [...] também
representa a essência de experiência humana possível. Isto permite que o leitor seja
o eu do poeta, porque o poeta é o eu que todos nós somos.83
Assim, o poema é uma expressão de todos; ler, dizer, ouvir versos é entrar em uma
relação em que cada qual tem sua parte a fazer para que o poema seja completo.
No ensaio “Lírica e Sociedade”, Adorno retoma estas questões e estabelece uma espécie
de síntese dialética que tem sido fundamental para a crítica contemporânea: como já indicado,
as formações líricas trazem simultaneamente algo de social e de pessoal, pois o conteúdo de
um poema lírico não é mera expressão de emoções e experiências individuais, dado que estas
só se tornam artísticas, tomando forma especificamente estética, quando “adquirem
participação no universal”. Tampouco a poesia é mero reflexo da sociedade, pois a sua
referência ao social revela, ao contrário, algo do fundamento de sua qualidade, de sua
essencialidade:
82
Gadamer vai encontrar este elemento comum na “discrição indescritível” de que falava Rilke, a voz poética
cada vez mais discreta que é preciso saber ouvir. Cf. Are the poets falling silent? e The verse and the whole. In:
MISGELD e NICHOLSON (ed). Hans Georg Gadamer on education, poetry and history, NY: State of University
New York Press, Albany, 1992. p.75-79.
83
Idem, p.77.
61
Não que aquilo que o poema lírico exprime tenha de ser imediatamente aquilo que
todos vivenciam. Sua universalidade não é uma volonté de tous, não é a da mera
comunicação daquilo que os outros, simplesmente não são capazes de comunicar.
Ao contrário, o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal porque
põe em cena algo de não desfigurado, de não captado, de ainda não subsumido, e
desse modo anuncia, por antecipação, [...] o universal humano. Da mais irrestrita
individuação, a formação lírica tem esperança de extrair o universal. [...] Essa
universalidade do conteúdo lírico, todavia, é essencialmente social.84
Preocupando-se em manter e defender a complexidade da relação entre arte e sociedade,
o autor explica porque o pensamento está autorizado a perguntar pelo conteúdo social da arte:
porque a composição de linguagem, intrínseca à arte, é por definição social e ideológica, e
porque “a própria solidão da palavra lírica é pré-traçada pela sociedade individualista”, a qual
promove a individuação com tal intensidade que vem alimentar, inversamente, a postulação
de validade universal do lírico. Então, para se estabelecer uma interpretação social da lírica, é
preciso pensar não apenas a obra de arte por dentro, mas também a sociedade fora dela – e
sendo a sociedade considerada como um todo contraditório que aparece na obra artística, é
necessário mostrar em que aspectos esta a obedece ou a ultrapassa. Assim, para Adorno, a
obra de arte participa da ideologia não tanto por escamotear interesses particulares, mas por
deixar falar aquilo que a ideologia esconde, e nisto reside sua grandeza.
A própria exigência de individualidade feita à lírica é em si mesma social: a
idiossincrasia do espírito lírico se deve à reificação dominante no mundo moderno, configura
um protesto contra um estado social hostil em que se sente a coisificação do mundo, uma
reação ao valor dominante da mercadoria sobre os homens que se difundiu e apoderou da vida
desde a revolução industrial. Na concepção adorniana, a subjetividade da voz lírica é, então,
expressão de um eu em oposição ao coletivo reificado, e o animismo que se lhe associa é a
mediação de quem busca restabelecer a perdida unidade com a natureza. Aquilo que sugere
ausência de ruptura, unidade e harmonia nas formações líricas atesta seu justo contrário: o
amor e o sofrimento por uma existência alheia ao sujeito. Deste modo, o espírito subjetivo da
poesia lírica é a materialização de uma relação histórica – “exatamente o não-social no poema
lírico seria agora seu social”85 –, sem que se perca a espontaneidade individual.
Considerando-se, como já fizera Hegel, que o individual é mediado pelo universal e viceversa, a resistência às pressões sociais não é um fenômeno estritamente individual, mas
impelido por forças de conjunto que se resolvem artisticamente através do indivíduo e sua
espontaneidade.
84
ADORNO, T. Lírica e sociedade. In: Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.p.194. (Os
Pensadores). Grifos meus.
85
Idem, p.197.
62
Pode-se falar, então, em conteúdo lírico como “conteúdo objetivo em virtude da
subjetividade que lhe é própria”, pois o afastamento do gênero lírico em relação à superfície
social foi historicamente motivado, além de ter sido permitido pela duplicidade da função da
linguagem, que se presta à configuração de emoções subjetivas, garantindo a preeminência e o
retorno sobre si mesma da forma lingüística na lírica, ao mesmo tempo em que mantém “a
referência irrenunciável ao universal e à sociedade”. É assim que a linguagem estabelece uma
mediação intrínseca, se cabe a expressão, entre lírica e sociedade. Longe de anular-se ou
sacrificar-se a um ser abstrato (Adorno é contra as teorias ontológicas que “absolutizam” a
linguagem, conforme se vê em Heidegger e Staiger86), o sujeito está presente e soa na
linguagem, pois a espontaneidade de sua expressão e seu auto-esquecimento – quando ele se
põe ao dispor da linguagem como de algo objetivo – conformam, em última instância, um
mesmo movimento:
O instante do esquecimento de si em que o sujeito submerge na linguagem não é o
sacrifício dele ao ser. Não é um instante de violência, nem sequer de violência
contra o sujeito, mas um instante de conciliação: só é a própria linguagem quem fala
quando ela não fala mais como algo alheio ao sujeito, mas como sua própria voz.
Onde o eu se esquece na linguagem, ali ele está inteiramente presente [...] No poema
lírico o sujeito nega, por identificação com a linguagem, tanto sua mera contradição
monadológica à sociedade, quanto seu mero funcionar no interior da sociedade
socializada.87
Para além da dicotomia que contrapõe indivíduo e sociedade, portanto, pode-se ver na
poesia lírica subjetiva a expressão de “uma corrente subterrânea coletiva”: participar dessa
corrente subterrânea é inerente à substancialidade da lírica individual. O diálogo da poesia
lírica com a história, assim, é passível de ser palmilhado, sem que a interpretação trate da
psicologia ou da ideologia do poeta, mas sim “do poema mesmo tomado como relógio solar
histórico-filosófico”88 de um tempo-espaço.
Tendo por alicerce esta metáfora, da consideração do texto lírico como medida de
instâncias que também são sociais, porta de acesso a experiências humanas plausíveis, na voz
de um sujeito poético que responde pela relação que um sujeito muito mais amplo e coletivo
mantém com uma realidade social complexa, é possível pensar a incorporação da poesia lírica
no conjunto de fontes para a história, dada sua participação no processo de instauração de
imagens e sentidos que constituem o mundo simbólico e a memória social, no contexto do(s)
imaginário(s) da modernidade.
86
Neste ponto o pensamento de Adorno difere de alguns autores acima apresentados, como Bosi, Gadamer e
Ricoeur, que estão mais próximos da concepção heideggeriana de linguagem.
87
ADORNO, idem, p.199.
88
Idem, p.201-2.
63
Desse conjunto de concepções, por fim, depreendem-se alguns pontos centrais para uma
metodologia qualitativa da história. Todas apontam para a interação dialética entre os âmbitos
individual e coletivo, entre subjetividade e objetividade, de modo que o indivíduo pode ser
visto como cruzamento de experiências cotidianas ao mesmo tempo subjetivas e sociais,
solitárias e coletivas, únicas e comuns. Por sua vez, a objetividade, tão desqualificada
hodiernamente, sobretudo em certas leituras pós-modernas, pode ser compreendida como
aquilo que é socialmente compartilhado, ou seja, não uma objetividade dada pela natureza
humana ou dos objetos, que fala por si, mas em virtude do que é comum a todos, seja a
dimensão da condição humana historicamente condicionada, sejam os valores e visões de
mundo implícitos aos comportamentos dos sujeitos sociais, sejam as ingerências econômicas,
políticas e institucionais herdadas e reatualizadas. Trata-se, como discute Gadamer, do
fenômeno do “pertencimento” que se traduz como o fator-tradição que interfere no
comportamento histórico e nas antecipações – noções, conceitos e pré-conceitos – que todos
compartilhamos e que nos permite divisar um “significado unitário”, mas não unívoco, para
os acontecimentos, no sentido de referência comum às coisas, o que resulta para o historiador
numa relação de tensão entre a familiaridade e a estranheza que seu objeto lhe oferece89.
Assim, ao largo da questão da genialidade, que foi bastante tratada pelos românticos, as
obras poéticas, como obras artísticas, são frutos também de um trabalho coletivo, de várias
tradições que se entrecruzam entre si e com as novas tendências que se abrem a cada novo
tempo. O poeta, como todo artista, compartilha com seus contemporâneos as tradições e
desejos de renovação que caracterizam uma sensibilidade de época. Deste modo, também o
trabalho poético expressa uma relação tensa entre uma sensibilidade individual e a que
constitui o substrato cultural geral, tanto do criador quanto do receptor da arte. Igualmente, as
mudanças que ocorrem nas formas poéticas correspondem a algum tipo de sensibilidade
social em transformação que cabe à história investigar. Em especial, considerando que a
experiência histórica está presente na expressão poética, que por sua vez nela se embebe, num
movimento complementar e dialético, pode-se buscar, nos textos poéticos utilizados como
fonte, particularmente indícios – quem sabe “um perfume de florestas/de cedros ou diamantes
esquecidos?” – sobre a experiência humana do tempo histórico contemporâneo ao poeta, a
história conforme vivida por aquele que se manifesta poeticamente, mediante as imagens
poéticas que traduzam os debates sobre o tempo-espaço, as curtas e longas durações, e a
relação do sujeito poético-social com seu mundo circundante. É então como “antena”,
89
Cf. GADAMER, H.G. Esboços dos fundamentos de uma hermenêutica. In: O Problema da consciência
histórica, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p.59-67.
64
“sismógrafo”, “relógio solar” ou amostra qualitativa deste processo que a poesia serve à
historiografia à maneira de uma esfinge, uma fonte confiável desde que se saiba decifrá-la –
como de resto ocorre, aliás, com todos os tipos de fonte.
65
Excurso: Para Ler a Experiência Histórica no Brasil nos Anos 1970
Tratar historicamente da experiência significa considerar o conjunto de situações de ser e
estar no tempo-espaço do mundo, as ingerências relacionais, circunstanciais e estruturais que
isto pressupõe, e buscar os sentidos criados para os sofrimentos e alegrias que isto implica. É
compreender a condição do homem imerso na existência, abrangendo desde os aspectos mais
cotidianos e comuns aos mais sublimes ou espantosos; dos mais corporais aos mais etéreos,
abstratos ou espirituais, para lembrarmos apenas algumas designações do que há de
impalpável na experiência. Esta, quer como sensibilidade, intelecção ou como legado cultural
da espécie humana, envolve a relação – escolhida ou não, mais consciente ou menos, mais
traumática e recalcada ou menos – das pessoas com o universo circundante, logo, as
dimensões da espacialidade, da temporalidade (onde se inclui a memória), da sociabilidade
(que abrange a linguagem em todas as suas formas) e, como desdobramento, a dimensão do
aprendizado e sua expressão e transmissão. Pesquisar a experiência histórica que se encontra
testemunhada na poesia implica observar nos textos os diversos vetores que se cruzam,
compondo o quadro delimitador das experiências possíveis para os indivíduos e grupos num
determinado contexto sócio-cultural, tendo em vista que num espaço-tempo dado se cruzam
vetores econômicos, políticos, éticos, sociais, estéticos, as tradições herdadas, as expectativas
de futuro, e tantos mais.
A leitura ou interpretação da experiência, entretanto, é inexoravelmente efetuada
segundo perspectivas que são também elas históricas, isto é, mediante instrumentos
conceituais disponíveis em cada época e mais correntes conforme satisfaçam mais ao gosto
estético, às demandas de ideário e imaginário, ou ao rigor teórico que quer adequar os
conceito à realidade. Nos anos 60 e 70, no Brasil, predominaram – na leitura das fontes
literárias aqui em questão – ao menos cinco grandes meios de configuração conceitual das
visões de mundo e explicação do vivido: a teoria marxista; a psicanálise freudiana; o
existencialismo sartriano; o formalismo e estruturalismo90; o pensamento frankfurtiano, além
da análise literário-sociológica de Antônio Cândido, que seguia um caminho original. Às
vezes se embatendo em virulentas polêmicas, que se faziam sobretudo nas revistas culturais e
nos poucos suplementos literários da imprensa que haviam restado, às vezes se mesclando em
visões sincréticas, estas perspectivas forneciam aos artistas e intelectuais os recursos
90
Formalismo e estruturalismo apresentam convergências e distinções, mas foram freqüentemente confundidos e
são aqui tratados conjuntamente por concentrarem-se ambos nas estruturas formais.
66
interpretativos para sua leitura de mundo e, conseqüentemente, para a discussão de seu lugar
social e do significado de sua obra.
O existencialismo teve grande prestígio no país entre os anos 50 e meados dos 60.
Afirmando-se no período entre-guerras, e sobretudo após a 2ª. Guerra Mundial, a filosofia da
existência (Kierkegaard, Jaspers, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Camus etc.) expressa e
faz ver a situação histórica de uma Europa dilacerada física e moralmente, manifestando a
crise do otimismo romântico que havia dado, por todo o século XIX e início do XX, o sentido
da história em nome da Razão, do Absoluto, da Idéia ou da Humanidade, fundamentando
valores estáveis e um progresso incontível. Enraizado no movimento fenomenológico que
marcou decisivamente a filosofia contemporânea, o existencialismo propunha a análise das
relações da existência com o mundo das coisas e o mundo dos homens, considerando que a
existência não deve ser deduzida a priori, mas conforme se manifestam as variadas formas de
experiência humana efetiva. Na formulação sartriana, que tanto marcou o mundo intelectual,
inclusive o brasileiro, neste período, não há um ser, entendido como essência definida, com
sentido ou destino estabelecido, que preceda a existência humana, mas ao contrário, esta
existência gratuita, de um indivíduo “lançado” no mundo e continuamente dilacerado por
situações problemáticas ou absurdas, só adquire sentido(s) a partir daquilo que este indivíduo
fez ao longo de sua vida com base em suas livres escolhas. Contudo, se nas primeiras obras de
Sartre a liberdade e a responsabilidade são absolutas – não estando o homem sujeito a
qualquer determinismo, é condenado a cada instante a inventar a si mesmo –, a partir de
Crítica da Razão Dialética e da Revista Temps Modernes, quando Sartre modifica a tese da
liberdade em resposta à crítica dos marxistas, passam a ser discutidos os condicionamentos da
liberdade pessoal: tanto a liberdade dos outros quanto as situações objetivas, que dependem
estritamente da realidade social e histórica, constituem limites que é preciso considerar.
Assim, as condições materiais de existência circunscrevem o campo das possibilidades do
homem e este não se define mais por sua liberdade apenas, mas por suas possibilidades; o
campo do possível é o objetivo a atingir, ultrapassando as condições objetivas91. Some-se a
isto a figura de Sartre como intelectual engajado, atuante na esfera pública francesa e
internacional, e certa transformação do existencialismo em moda, na medida que influenciava
comportamentos e atitudes, não apenas como filosofia, mas também literatura e teatro, em que
se questionavam as virtudes, as paixões, a má-consciência e qualquer forma de sentido já
91
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo. In: Jean Paul Sartre. São Paulo: Abril Cultural, 1987. (Os
Pensadores). E também REALE, G. e ANTISIERI, D. História da da filosofia: antigüidade e idade média. São
Paulo: Paulus, 1990. v. 3. p. 553-612.
67
pronto para a existência. Resultava uma recepção ambígua por parte do público que, por um
lado encontrava nesta corrente elementos para a elaboração das questões existenciais e
políticas então prementes e, por outro, escandalizava-se com o que considerava desengano
com o ser humano, imoralidade e dissolução de costumes, inaceitáveis para um certo tipo de
intelectual, alguns conservadores, de direita ou esquerda.
De fato, ao questionar os progressos da história ocidental e problematizar a consciênciaracional e a liberdade, os sartrianos obtiveram a reação também da teoria marxista, que por
sua vez operava um movimento de renovação nos anos 60. Tendo em vista os esforços de
reatualização do marxismo e do movimento comunista internacional – em contraposição ao
stalinismo e à imposição das concepções zdanovistas à cultura –, ao lado da situação
específica da esquerda brasileira, derrotada e perseguida sob a ditadura militar; da crítica à
experiência frustrada dos CPCs92; do combate às tendências de comodismo ou de “desvario”
irracionalista na sociedade, jovens intelectuais comunistas (Leandro Konder, Carlos Nelson
Coutinho, Michael Löwy, entre outros) introduziram Lukács no pensamento brasileiro,
tornado-o referência obrigatória nos debates e resgatando um veio hegeliano do marxismo.
Refugiados na crítica literária, reestudavam a literatura com novo ângulo crítico e pensavam
temas da realidade brasileira. Opondo-se às visões mecanicistas, os lukacsianos recusavam a
relação direta entre a base econômica da sociedade e a produção cultural, destacando a
implicitude entre texto e contexto e o papel central da forma na arte, uma vez que só através
desta se realiza efetivamente a matéria artística, como também a experiência aliás, pois
tampouco podem ser desprovidas de forma a sensibilidade, a memória ou a observação. Deste
modo, a visão formal do artista é um fator da vida espiritual que opera em continuum com o
92
Esta crítica inclui o pensamento isebiano que – calcado nos conceitos de alienação e situação colonial, aos
quais se opunha o nacionalismo em luta contra o imperialismo, e propondo um programa objetivo de
desenvolvimento nacional – fundamentava os CPCs e se havia disseminado a ponto de se tornar senso-comum
nos anos 50 e 60. Cf. ORTIZ, R. Alienação e cultura: o ISEB. e Da cultura desalienada à cultura popular: o CPC da
UNE. In: Cultura brasileira e identidade nacional. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.45-67 e 68-78,
respectivamente. Vale lembrar que também se configurou como crítica ao pensamento político e ideológico do
ISEB a teoria da dependência, desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falleto e posteriormente, Rui
Mauro Marini e Teotônio dos Santos, modificando a tradicional leitura das possibilidades de transição do
subdesenvolvimento para o desenvolvimento, uma vez que as classes dominantes nativas dos países latinoamericanos não seriam vítimas da imposição imperialista, e sim sócias menores do capital internacional, de
modo que uma superação da situação de subdesenvolvimento não exige apenas a conquista da autonomia
nacional, mas também a ruptura das relações internas de dominação. Para os pensadores da cultura que seguem
esta linha, se a dependência é um fator historicamente constitutivo das sociedades latino-americanas, a
“racionalidade de suas ordens institucionais significativas” atinge o processo cultural, cuja compreensão não
pode então prescindir desta teoria. Esta visão, embora não unânime nas esquerdas, está presente em alguns dos
autores aqui considerados, como Cacaso, Roberto Schwarz, Heloisa Buarque de Hollanda. Cf. BRITO [Cacaso].
Tropicalismo: sua estética, sua história. In: Não quero prosa. Org. e seleção: Vilma Arêas. Campinas/Rio de
Janeiro: UNICAMP/UFRJ, 1997, p.139-152. Publicado originalmente na Revista de Cultura Vozes, ano 66,
v.LXVI, nov. 1972.
68
modo como ele se coloca diante das coisas da vida e é por elas afetado. Igualmente estava em
jogo a busca de suporte teórico para a defesa de uma concepção complexa do realismo e do
valor da razão, compreendidos como herança cultural humanista, em oposição ao
irracionalismo que grassava, na sua opinião, com a filosofia existencialista e, posteriormente,
nos anos 70, com o formalismo e estruturalismo. No entanto, neste quadro, deixavam-se de
lado questões importantes, como a liberdade individual, o inconsciente, os problemas
comportamentais, o feminismo, as minorias etc., que preocupavam a juventude e a nova
esquerda. No período pós-68, o realismo dialético lukacsiano perderia espaço para as
correntes estruturalistas, incluindo sua versão marxista, com as proposições de Althusser, as
quais rompiam com o legado hegeliano e suas derivações. No final dos anos 70, com a
descompressão política, uma nova mudança de foco redefinia o olhar e a militância dos
marxistas, que incluíam agora o pensamento de Gramsci, o qual lhes parecia permitir
interpretações mais maleáveis e propícias à reflexão especificamente da esfera política que se
reabria, prescindindo de sua vinculação com a reflexão sobre a cultura, tão necessária nos
tempos mais sombrios da ditadura93. Todavia, jamais se deixou de defender o engajamento
político do intelectual e do artista, o que derivava no debate correlato das questões da
alienação, da desistência e da mudança de opção ideológica ou comportamental, na época
considerada como capitulação ao “desbunde irracionalista” ou ao subjetivismo.
O problema dizia respeito também à voga do estruturalismo nos anos 70. Observando
que todo modismo responde a algum tipo de necessidade, social stictu senso ou artíticaliterária, Costa Lima aponta como o estruturalismo, ao construir modelos a-históricos e
enfatizar o conhecimento da “máquina do texto” em suas diversas combinações, acabou por
servir de “pretexto para o apoliticismo de seus praticantes”, num momento que a paranóia se
apossara do país, onde a tortura, a delação e a insegurança eram constantes cotidianas. LéviStrauss partira do formalismo russo (Jakobson, Trubetzkoy) e da lingüística de Saussure para
pensar as estruturas lógicas presentes em toda sociedade ou cultura, independentemente de
suas construções racionais, aquém da história e da consciência individual. Estudando o mito,
o antropólogo localiza uma lógica inconsciente, uma espécie de infra-estrutura formal que
estabelece o desenho de todas as relações sociais. Isto o levou a pensar o inconsciente para
além do parâmetro freudiano, em que é visto como produto de recalques e repressões sofridos
pelo indivíduo, ampliando-o para identificá-lo com um enquadramento lógico e natural, sobre
93
Cf. FREDERICO, C. A presença de Lukács na política cultural do PCB e na universidade. In: MORAES, J. Q.
(org). História do marxismo no Brasil, v.2. Campinas: Unicamp, 1995, p.193-222., e também COSTA LIMA, L. A
análise sociológica da literatura. In: Teoria da literatura em suas fontes. 2.ed. Rio de Janeiro: F.Alves, 1983,
p.105-133, ver especialmente, p.122-126.
69
o qual se fundam as instituições humanas. Regras inconscientes, portanto, estruturam a
própria rede sintática (relacional), condicionando a língua e todo tipo de linguagem e
pensamento, o que conduziu autores como Barthes, Todorov e Greimas a partir em busca de
uma gramática geral da narrativa e dos elementos estruturantes dos discursos – Barthes, por
exemplo, dizia que a língua é sujeição, não pelo que nos impede de dizer, mas pelo que nos
obriga a dizer94. Com isto, rompe-se com a leitura semântica tradicional, de corte
hermenêutico ou empírico, que considera ser o processo de atribuição de sentido realizado
intencional e individualmente. Ao contrário, porém, a interpretação semântica apreendida pelo
exame da organização estrutural-sintática revela elementos inconscientes alheios à intenção
autoral e ao receptor que crê reviver o propósito do autor. Em decorrência, questionava-se
também o processo de seleção e interpretação dos fatos operados pela historiografia
tradicional e, por conseguinte, a sua objetividade. Entretanto, ao abrir fogo contra a história
linear e factual, problematizando a questão sempre crítica da consciência histórica, os
estruturalistas fecharam as alternativas à compreensão da historicidade, e não chegaram a
resolver satisfatoriamente as próprias indagações formais que levantaram. Deste modo, a
moda estruturalista no Brasil cumpria um papel especial – não isento de severas críticas por
todos, fossem os conservadores (as demonstrações complicadas e o jargão especializado
substituíam as leituras intuitivas e esmagavam o prazer); a direita (o indivíduo perde o rosto e
a espiritualidade nas formações sistêmicas); ou a esquerda (a crítica centrada na obra
minimizava a função social e raramente alcançava articular bem a sociedade e o texto) –, qual
seja, o papel de acompanhar a própria função da literatura que se modificara. No caso
brasileiro, o poeta tradicionalmente via sua rebeldia neutralizada em nome da aceitação pela
classe dominante, o estado-mecenas, os padrinhos, a carreira pública, a cátedra, quando então
se cumpria como cultor da língua e formulador dos sentimentos nacionais. Contudo, a
racionalização capitalista e seu uso utilitário do tempo deslocaram este lugar do poeta,
tornando a literatura um instrumento como outro qualquer. Ante a perda de seu prestígio e a
necessidade de se sustentar por si só, os literatos têm que estabelecer sua função contra as
funções legitimadas pela sociedade capitalista, assumindo uma postura de negatividade. É
deste modo que “o favor que o estruturalismo em literatura recebeu está ligado ao
94
BARTHES, R. Aula. 6.ed. São Paulo: Cultrix, 1992, p.14. Para toda a discussão sobre estruturalismo, cf.
COSTA LIMA, L. Estruturalismo e crítica literária. In: op.cit., p.217-254. Segundo Costa Lima e Silviano
Santiago, o estruturalismo foi uma corrente bem mais difundida no Rio de Janeiro do que em São Paulo, onde se
desenvolviam os estudos de Antônio Cândido e seus alunos, Roberto Schwarz, Walnice Galvão, Davi Arriguci
Jr. etc. Cf. entrevista de ambos In: NOVAES, A. (org). Anos 70: ainda sob a tempestade. 2.ed. revista. Rio de
Janeiro: Aeroplano/Senac Rio, 2005, p.139-145.
70
desaparecimento da função que a burguesia assegurava ao objeto literário”95, ou seja, era
preciso conhecer a estrutura do objeto porque este já não contava com o devido respaldo
social, logo, a escolha do poeta precisava se apoiar em sua própria força argumentativa, o que
torna a teoria da literatura também um exercício político, um pensar sobre a sociedade.
Na concepção de Antônio Cândido, este quadro era fruto de um longo processo, em que a
literatura perdia, em torno dos anos 40-50, a função sociológica e cognitiva que
tradicionalmente ocupara na cultura brasileira, como meio prioritário de pensar e produzir
conhecimento no, do e sobre o país. As melhores expressões do pensamento e sensibilidade
quase sempre assumiram no Brasil a forma literária, de modo que a literatura foi fenômeno
central da vida do espírito, mais do que a filosofia e as ciências humanas, propriamente ditas,
que aqui surgiram tardiamente e também elas imantadas pelo literário, originando um gênero
misto de ensaio como forma bem brasileira de investigação. Deste modo, o verbo literário foi
o padrão de cultura durante muito tempo. Quando este padrão mudou, reagindo ao
crescimento da divisão de trabalho intelectual e do conhecimento especializado, surgiu um
conflito no interior do campo literário, que então veria a diferenciação de papéis dos cientistas
sociais e literatos. A literatura se voltou sobre si mesma, retraindo sua ambição de dar forma à
realidade nacional e buscando configurações puramente estéticas. Logo, deixou de ser viga
mestra da cultura para se alinhar em importância com outras atividades do espírito. As
“modernas tendências estetizantes”, com inclinação ao formalismo, à gratuidade ou mesmo ao
solipsismo literário, significavam uma reação de defesa e delimitação do campo, que se fez
acompanhar da gradual elaboração de novos meios expressivos e da consciência artesanal.
Assim, diante dos acirrados debates da crítica literária dos anos 60-70, opondo a análise
sociológica e a estruturalista, Cândido defende reiteradamente uma crítica dialética, que
considere tanto os problemas internos quanto externos à obra, e propõe um método reversível
em que se estabeleça o circuito do texto à sociedade e vice-versa, realizando “a passagem do
dois ao três”, isto é, superando uma visão dicotômica. Em “A literatura e a formação do
homem”, uma bela conferência na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em
1972, o autor expunha as motivações em que radica seu pensamento: a função humanizadora
da literatura consiste na sua capacidade de confirmar a humanidade do homem, o que inclui
uma função psicológica (que responde à necessidade de ficção, mediante formas diversas de
sistematizar a fantasia); uma função formadora da personalidade (em que a arte atua sobre o
inconsciente, para além da pedagogia oficial, como uma força indiscriminada de iniciação à
95
COSTA LIMA, idem, p.227. O grifo é do autor.
71
vida, que tratará tanto do bem quanto do mal, nem corrompendo, nem edificando, mas
humanizando “porque faz viver”); e uma função cognitiva do mundo e do ser, porque a
literatura é também, em alguma medida, representação do real, que está presente seja na
forma de expressão pessoal do artista, seja na construção de objetos semiologicamente
autônomos. Em qualquer desses planos, a literatura como experiência humana, do autor e do
leitor, exige que se conheça a história/contexto e a estrutura da obra, buscando a dialética
entre a expressão e a formação96.
Nestas chaves, a compreensão intelectual da experiência foi fortemente marcada pela
tensão entre subjetividade e objetividade, liberdade e necessidade, responsabilidade e
alienação, estrutura e historicidade, inconsciente e consciência, cujas correlações de forças se
compõem numa gama de variações. Mas a violência que caracterizou o século XX, com tantas
guerras, genocídios, barbaridades cometidas em nome do progresso e da razão, trouxe
elementos complicadores não só às concepções de experiência como à vivência mesma e sua
expressão. A compreensão psicanalítica de trauma e recalque, em que as dinâmicas do
inconsciente e do esquecimento se urdem junto ao consciente e à memória, se tornou, neste
quadro, elementar para o entendimento do que se passa com a vida humana na modernidade
tardia, embaralhando ainda mais a tensão acima apontada. Na análise da arte, os esboços de
leitura estética realizados por Freud, tendo como modelo o sonho, vê a obra como um enigma
a decifrar, porque o sentido, embora sempre postulado, nunca está presente em sua plenitude,
mas só se dá mediante mecanismos de deslocamento e deformação, através de uma cadeia de
significantes substitutivos. Deste modo, todo texto é ao mesmo tempo lacunar e tecido para
esconder as lacunas, num jogo em que a continuidade e o sentido falam da descontinuidade e
do não-sentido, e vice-versa, dissimulando e protegendo aquilo que não se apresenta: o desejo
censurado, a transgressão e o castigo-culpa correspondente. Em outras palavras, “todo texto é
produto de um conflito de forças”, diz Kofman97, resultado de um compromisso entre as
forças de Eros, pulsões de vida, de ligação, e as pulsões de morte, sombra em que habitam as
rupturas de sentido. Logo, toda obra é sintomática, e não apenas representação simbólica,
visto que representação e afeto, assim como forma e conteúdo, são indissociáveis. Nas
formações substitutivas, como a arte e o sonho, se estabelece uma relação complexa entre
conteúdo manifesto, como imagem-lembrança-encobridora, e conteúdo latente, como
96
Cf. CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade. 8.ed. São Paulo: T.A.Queiroz/Publifolha, 2000 (Grandes nomes do
pensamento brasileiro), p.119-125; e também Duas vezes a ‘passagem do dois ao três’; A literatura e a formação
do homem. In: CÂNDIDO, A. Textos de Intervenção. (seleção e notas Vinícius Dantas). São Paulo: Duas
Cidades/Ed.34, 2002, p.51-76 e 77-92, respectivamente.
97
Cf. KOFMAN, Sarah. O Método de leitura de Freud. In: A infância da arte: uma interpretação da estética
freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996, p.67-125. Citações p.69; 79.
72
impressões vividas: a lembrança é “uma construção do sentido da experiência vivida a partir
de traços que são tudo o que resta do passado e que a censura tenta fazer desaparecer”, e,
portanto, o recalcado só pode ser lido indiretamente, como uma revelação em negativo desses
traços frágeis e obscuros como pistas a serem seguidas por um detetive, nos detalhes do texto.
Entretanto, a arte funciona como uma memória específica, em que não apenas se dá o retorno
do recalcado, pela reelaboração de material psíquico arcaico-universal ou fantasmáticoindividual mediante a tradução de conteúdos latentes – e o caráter enigmático ou de
estranheza inquietante, como característica de toda a arte, é sinal de retorno do recalcado –,
como também é uma elaboração originária mesmo, ou seja, uma construção de conteúdos
latentes ou fantasmas, pela escrita figurativa que lhes dá forma, da mesma maneira como a
tensão realidade-fantasia se constrói nos jogos infantis, que a poesia substitui. Neste caso, a
obra de arte é inscrição originária de uma história pessoal, como se vê em Leonardo da Vinci,
e não a projeção de um fantasma; ao contrário, é um substituto que permite que ele se
estruture e se liberte, liberando o artista da neurose.
Mas a psicanálise participava da vida cotidiana nos anos 70 igualmente no que tange ao
comportamento. Se por um lado se tratava de buscar instrumentos para lidar com a dor e os
enganos da memória, por outro se tratava de resguardar-se do sofrimento provocado pelo
estado catastrófico do mundo no refúgio aparentemente seguro do universo subjetivo.
Pesquisando o ethos e as representações da assim chamada geração 68, especificamente a
classe média da zona sul do Rio de Janeiro que havia participado ativamente da esfera
política, Gilberto Velho observa a tendência à crescente constituição de uma cultura subjetiva,
pois à medida que a vida pública se tornava cada vez mais difícil sob a ditadura, as pessoas se
voltavam para a esfera privada, não sem conflitos e auto-acusações. Crendo na possibilidade
de realização genuína de um indivíduo, era preciso encontrar um ponto intermediário entre ser
revolucionário ou apolítico, entre o comodismo e o sacrifício em nome de causas coletivas,
posto que a valorização da felicidade ou do bem-estar individual não chegava a torná-los
conservadores nem cínicos. A aflição daí decorrente encontrava na psicologia,
particularmente na psicanálise, um meio privilegiado de reflexão e expressão, ao qual se
associavam também os discursos contraculturais, num sincretismo que podia ir do trotskismo
ao zen-budismo. Fosse como fosse, buscava-se uma auto-coerência, que impedisse, ou
tentasse, a fragmentação interna, em contraposição à descontinuidade externa, institucional,
profissional etc. Revelava-se certa nostalgia de uma unidade perdida, ao lado de novas auto-
73
imagens, que passavam a incluir os temas do hedonismo responsável, da paixão e do
aperfeiçoamento pessoal, quase sempre via elaboração psicanalítica98.
Na verdade, a questão é de fato mais vasta, uma vez que Benjamin já via, desde o século
XIX, um caráter contraditório e traumático próprio ao mundo moderno, cujas configurações
são, em meio ao progresso, destruidoras e violentas, a tal ponto catastróficas que a história se
torna ruína de si mesma; os sujeitos se vêem perdidos, destituídos das bases referenciais de
sua formação e vivência; os laços sociais de tal forma esgarçados que a transmissão cultural é
afetada e, por conseguinte, as possibilidades de experiência se empobrecem99. Num Brasil que
se modernizava aceleradamente, sob a violenta bandeira nacionalista da ditadura militar, num
contexto internacional terceiromundista, de dependência econômica e dominação política
imperialista, o pensamento da Escola de Frankfurt – unindo a psicanálise ao hegelianomarxismo para tratar dos problemas do homem contemporâneo, desde a crise da subjetividade
a novas formas de sexualidade, desde a relação trabalho-natureza ao domínio da indústria
cultural e à mercantilização dos valores – tornava-se um bem-vindo meio de leitura de mundo,
ganhando terreno crescentemente à medida que a problemática da experiência moderna e suas
violentas contradições ficava mais clara para os intérpretes da vida social e artística, mesmo
para os adeptos de outras correntes que, na ânsia de compreender a modernidade brasileira,
dialogavam com as concepções que aqui chegavam, primeiramente de Marcuse, depois de
Benjamin e Adorno.
Até hoje importantes no mundo intelectual – embora anteriores à “virada lingüística” no
Brasil, quando outras linhas de pensamento se tornaram predominantes, mais voltadas à
linguagem propriamente e aos condicionamentos lingüísticos da experiência, e críticos das
formulações anteriores100 – estas cinco vertentes teóricas marcaram a época em estudo,
deixando seus fortes traços nos artistas e críticos que a viveram e expressaram, e ao fazê-lo,
contribuíram para criar e embasar tais vertentes, de modo que as encontraremos
reiteradamente nas páginas que se seguem, misturadas aos poemas, às polêmicas e às visões
de mundo, dos quais são inextrincáveis.
98
Cf. VELHO, G. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986,
passim.
99
Cf. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza; O narrador. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
história da cultura. Obras escolhidas I. Cf. também SELIGMAN-SILVA, M. (org). História, Memória, Literatura.
O testemunho na era das catástrofes. p.130-137.
100
Martin Jay mostra como as preocupações com a experiência perderam espaço a partir da “virada lingüística”,
cujas preocupações centram-se na linguagem, salvo nas obras de Foucault, Bataille e Barthes, que, em sua visão,
realizaram uma reconstituição pós-estruturalista da experiência, à qual ele dedica seu último capítulo. Cf. History
and experience. In: JAY. Songs of experience: modern American and European variations on a universal theme.
Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 2005, p.247.
74
Assim, esta pesquisa se volta para a poesia e sua crítica como antenas sensíveis para
captar e dizer vivências sociais de mundo e tempo, dando forma e expressão a vivências e
percepções informes ou de difícil delineamento em um determinado contexto. Trata-se, em
termos simbólicos, de pôr a voz poética em praça pública e ouvir o que ela tem a dizer a partir
daquilo que sente e vê deste lugar, operando um deslocamento na maneira como, grosso
modo, a poesia costuma ser considerada pela historiografia, ou seja, como voz líricaindividual, sem maior vinculação com o universo coletivo. Inversamente, contudo, podemos
considerá-la como uma das vozes sociais – que mesmo em sua subjetividade, está
simultaneamente a falar de si e do corpo social, uma vez que compreendamos que as
dimensões do ser pessoal e social são indissociáveis. Como mostra Antônio Candido, o que se
torna matéria de poesia em determinada sociedade e período, garantindo seu valor e impacto
emocional, é algo singularmente prezado pelo grupo a que pertence o poeta, cuja expressão
pessoal adquire sentido genérico à medida que ele passa de sua estrita emoção a uma
concepção de vida. É mister, insiste o autor, superar a visão dicotômica entre texto e contexto,
para buscar compreender sua interpenetração numa forma orgânica, averiguando como a
realidade social e histórica se torna componente mesma de uma estrutura literária, ou seja,
compreender a dialética pela qual fatores sociais e psicológicos são constituintes intrínsecos
da estrutura da obra, e como tal, fatores estéticos101. Neste caso, é evidente, não se trata de
repetir a já tão contestada tese da linguagem artística como reflexo especular da história102,
mas, antes, afirmar uma qualidade imanente, um intrincamento entre sujeito e sociedade que
se estabeleceu desde os primórdios da modernidade, criando em decorrência inúmeras formas
de enredamento e enredos, em prosa ou verso...
Pôr a poesia em praça pública, então – mesmo que ali ela não se tenha intencionalmente
proposto, pois isto varia conforme o grau de maior ou menor politização do poeta –, significa
resgatar este ato de ouvir/ler a historicidade na voz lírica e a subjetividade na visão histórica,
em busca de uma melhor apreensão das formas de expressão e silêncio assumidas pela
sensibilidade na época em questão.
101
Cf. CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade, passim.
E talvez nem mesmo como refração, como propõem diversos autores. Cf, p.ex., BURKE,P. A história social da
linguagem. In: A arte da conversação, p.40 e GINZBURG C. Introdução. In: Relações de força. p.44.
102
2. Vozes Interrompidas e Subterrâneas I:
Em torno de 1968: um grito e tantos (m)ais
Já é de praxe dizer que a década de 1970 iniciou-se em 1968. Um ano vertiginoso em
muitos sentidos, um marco no contexto histórico internacional, tanto do ponto de vista
político quanto cultural. Vivia-se a guerra fria, a guerra do Vietnã, o macartismo, os golpes
militares na América Latina; atos de terrorismo internacional; a decepção com os rumos do
socialismo soviético-stalinista, com a atuação submissa dos partidos comunistas europeus e
com as notícias de repressão às artes em Cuba, após o fim da guerrilha boliviana e a morte de
Che Guevara em 1967. Vivia-se também uma certa euforia com a Revolução Cultural Chinesa
e, paralelamente, com a proposta de um novo modelo comportamental e político dos
movimentos pacifistas, estudantis e contraculturais. Embora estes principiassem a fenecer
naquele fim/início de década, haviam disseminado entre os jovens de quase todo o mundo um
senso crítico quanto aos valores da cultura ocidental, naquele momento identificados com o
racionalismo cientificista, o capitalismo e a institucionalidade liberal; um senso de liberdade
contra qualquer forma de autoritarismo e disciplina; um desejo de obter, no presente imediato,
uma forma de vida diferente dos seus pais e avós, livre das amarras da cultura preestabelecida
e defendida pelos “quadrados” e “caretas”, fora daquilo que então se chamava “o sistema” e
“o establishment”1. Desde os anos 50, mas sobretudo ao longo dos 60, o rock havia-se
afirmado, mais do que como gênero musical, como um ritual que oferecia às novas gerações
uma sensibilidade outra e outra postura diante do mundo; os escritores beatnicks e os hippies
haviam semeado uma “cultura psicodélica” que, misturando o uso de drogas para “ampliação
da consciência”, estética pop, misticismo oriental, amor livre, produção e consumo
comunitários, acabou por disseminar um certo estilo político, o flower power, gay power,
black power, women’s lib2, aos quais veio se somar uma Nova Esquerda que se formava,
1
Segundo Messeder Pereira, tratava-se da “filosofia do drop-out”, ou do “cair fora”, fugindo aos limites
espaciais, institucionais e lógicos do mundo ocidental, numa rebeldia com três eixos de fuga: da cidade/máquina
para o campo/natureza; da família para a vida comunitária; do racionalismo para o psicodelismo. Significava
uma busca por vezes desesperada e nem sempre consciente de um novo espaço e jeito de viver. Ver MESSEDER
PEREIRA, C.A. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983 p.82; e também Retratos de Época, do
mesmo autor; artigos diversos de jornais e revistas sobre cultura pop e rock.
2
Para Messeder, a cultura hippie-psicodélica, jovem e branca, era simpática a qualquer movimento de grupos
étnicos ou culturais em posição de desvantagem ou marginalidade ante as promessas da sociedade industrialocidental, cuja luta fora dos espaços políticos tradicionais os unia, além de exigir de todos grande inventividade.
Cf. O que é contracultura, p.42.
76
especialmente a partir do movimento estudantil, buscando, como se dizia à época, mais
envolvimento pessoal do que “idéias abstratas”, de acordo com o clima anti-institucional e
anti-acadêmico da época. Fornidas de uma utopia revolucionária, em nome da liberdade e do
prazer, questionando os benefícios da sociedade industrial, a corrida armamentista, as lutas
raciais, a guerra do Vietnam, realizavam-se ondas de protesto, passeatas, marchas pacifistas,
manifestações em que se sentava na rua (sit-in) e se ocupavam órgãos públicos europeus e
americanos. Entre todos, destacaram-se os movimentos estudantis e operários de maio de 68,
na França, na Itália, em Praga, na Cidade do México3, nas universidades alemãs e norteamericanas, cujos desdobramentos se fizeram sentir em toda parte. Um manifesto, afixado na
entrada principal da Universidade Sorbonne, em Paris, apontava a amplitude das intenções:
a revolução que está começando questionará não só a sociedade capitalista como
também a sociedade industrial. A sociedade de consumo tem que morrer de morte
violenta. A sociedade da alienação tem que desaparecer da história. Estamos
inventando um mundo novo e original. A imaginação está tomando o poder.4
A estruturação política e econômica tanto do mundo capitalista quanto do socialista
demandava revisão, bem como o campo epistemológico, o ensino universitário, o
comportamento pessoal, as repressões psíquicas e corporais, a consciência de si e do mundo, a
forma de apreender o outro, a realidade, a arte... Transformar o mundo, naquele contexto e
prisma, significava transformar o indivíduo e a cultura, além de (e por vezes em detrimento
de) relações sócio-econômicas estruturais. A proposta de ampliação do significado da
revolução havia marcado os movimentos de 1968, vistos pelo ângulo da contracultura como
uma germinação revolucionária comme il faut. Nas palavras de Marcuse, cujos escritos
críticos sobre a natureza da sociedade ocidental eram vistos como fundamento da rebelião
estudantil, tratava-se potencialmente de
um protesto total [...] uma recusa a continuar aceitando e a se conformar com a
cultura da sociedade estabelecida, não só com as condições econômicas, não só com
as instituições políticas, mas com todo o sistema de valores que eles sentem estar
apodrecido no âmago. Penso que a esse respeito pode-se de fato falar também de
uma revolução cultural.5
Mas o ano de 1968, como já dito, trazia também os limites destes projetos, junto com o
assassinato de Martin Luther King, a Primavera de Praga, a derrota dos movimentos
3
Cf. FUENTES, C. Los 68, Paris, Praga, México. Buenos Aires: Debate, 2005. p.14-20.
Citado por MESSEDER PEREIRA,. idem, p.92.
5
MARCUSE, H. Herbert Marcuse fala aos estudantes. In: LOUREIRO, I. (org). A grande recusa hoje. Petrópolis:
Vozes, 1999, p.64. Entrevista. Trata-se de um relato que Marcuse, tendo testemunhado as primeiras barricadas
estudantis em Paris, fizera a estudantes nos EUA, em 23 de maio de 1968.
4
77
estudantis6, o arrefecimento do movimento hippie – cujo enterro simbólico foi realizado em
1967 em São Francisco, Califórnia, onde havia justamente surgido –, a crescente repressão
por parte dos governos liberais àqueles cabeludos que confrontavam “o sistema”. Os
movimentos pacifistas e contraculturais respondiam, reavaliando o pacifismo (dos estudantes
ao movimento anti-racista dos Panteras Negras norte-americanos se discutia a necessidade de
certa agressividade ante a truculência sistêmica) e intensificando a crítica política e
comportamental contra a burocratização da vida social. Um desejo de responsabilidade
existencial parecia surgir, diz Messeder, onde antes só havia uma linguagem contestatória um
tanto anárquica. Em dezembro de 1970, em entrevista à revista Rolling Stones, John Lennon
fazia o balanço das – relativamente pífias – mudanças contraculturais, afirmando que “o
sonho acabou”7. E em 1971, entrevistado por Tarik Ali e Robin Blackburn para a New Left
Review, Lennon reavaliava as pressões sofridas pelos Beatles para que se mantivessem
calados sobre a política internacional, e como ele e George Harrison se rebelaram e se
pronunciaram contra a Guerra do Vietnam, por perceberem a existência de uma opressão
generalizada e desejarem fazer algo a respeito:
É muito difícil escapar disso e dizer: ‘Bom, não quero ser rei, quero ser real’. [...] A
terapia afastou tudo isso e me fez sentir minha própria dor. A arte é apenas uma
maneira de expressar a dor. [...] O que estou tratando de fazer é influenciar a todos
os que posso, a todos que seguem sonhando, e sozinho provocar um grande sinal de
interrogação em suas mentes. Já passou o sonho ácido, é o que trato de lhes dizer.
[...] Quando comecei, o próprio rock and roll foi a revolução para as pessoas da
minha idade e situação. Precisávamos de algo forte e claro para irromper através de
toda a falta de sentimento e a repressão que haviam caído sobre nós quando éramos
pequenos [...]8
São claros os indícios neste discurso de que se iniciavam tempos de sentir e, no melhor
dos casos, se os devidos recursos fossem encontrados, expressar a dor daquela experiência
pessoal-histórica de derrota de um projeto, talvez ainda diáfano como as imagens oníricas,
mas que alimentara grande parte da juventude ocidental, de uma transformação tão profunda
na existência que alcançasse não apenas a esfera política e econômica, mas também a
estrutura dos afetos e da libido, das relações sociais mais cotidianas, do trabalho e do amor,
integrando corpo e espírito de modo a esperar superar a tradicional dicotomia que os separava.
6
Para Fuentes, entretanto, trata-se de uma “derrota pírrica” (jogando com a expressão “vitória de Pirro”), ou
seja, uma derrota imediata, mas, a longo prazo, os efeitos de Maio de 1968 ter-se-iam feito sentir. Cf. FUENTES,
op.cit., p.11.
7
A conhecida frase de Lennon é citada integralmente por MESSEDER PEREIRA, idem, p.50: “Eu acordei pra isso
também. O sonho acabou. As coisas continuam como eram, com a diferença que eu estou com trinta anos e uma
porção de gente usa cabelos compridos”.
8
Entrevista reproduzida no jornal Brasil de Fato, LENNON, J. [Entrevista]. Brasil de Fato, são Paulo. p.16, 1218 jan. 2006.
78
2.1. O significado de 1968 no Brasil
Aqui estão os arcanjos:
o nome dele, sacrifício; o meu, clemência.
E eu grito entre meu gesto e o precipício.
Por que não digo
E não exalto a vertigem?
Por que não digo
que minha juventude se fecha atrás do refúgio
de um poema?
(José Carlos Capinan, trecho de “Anima”)
Outros tempos traziam outras exigências e o peso da violenta história do século XX se
fazia sentir – também na história brasileira. Além das questões que assolavam o contexto
internacional, foi o momento em que o regime militar ditatorial implantado no Brasil em 1964
controlou as resistências políticas e reforçou a coerção e violência do Estado, através do Ato
Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que conferia ao Executivo poderes
excepcionais para reprimir quaisquer manifestações políticas, sociais e culturais que
considerasse subversivas à ordem vigente, afetando profundamente o modo de vida:
No Brasil, a década de 70 pede licença poética e começa, de fato, a 13 de dezembro
de 1968 com a edição do AI-5. [...] Falava-se dos erros daqueles que viveram o
grande sonho dos anos 60, agora silenciados, exilados, desencantados. Falava-se da
precipitação da juventude radicalizada na guerrilha, da viagem da loucura e do
desbunde, da incompetência, da inércia e da alienação da geração AI-5. Falava-se,
sobretudo, do silêncio de um “vazio cultural” que teria dado o tom da época na área
das artes e da literatura. [...]9
A introdução do “quinto ato”, como foi então apelidado, considerava “imperiosa a
adoção de medidas” contra aquilo que frustrasse “os ideais superiores da Revolução”, que
preservavam a segurança, o desenvolvimento e “a harmonia política e social do país,
comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária”. A presidência recebia
poderes para suspender as casas parlamentares em nível federal, estadual e municipal; nomear
interventores nos estados e municípios; assumir a função legislativa em caso de recesso;
suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos e cassar mandatos; suspender
garantias constitucionais de funcionários públicos; decretar o estado de sítio e prorrogá-lo,
entre outros. Além disto, conforme o texto legal10, colocavam-se as medidas de segurança
aplicadas fora da apreciação do poder judiciário e a garantia de habeas-corpus, instrumento
9
HOLLANDA, H.B. e MESSEDER PEREIRA, C.A. Poesia Jovem Anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982.
(Literatura Comentada), p.11, nota 1.
10
Documento reproduzido e comentado em BITTAR, E. História do direito brasileiro, p.269-271. e CASTRO, F.
História do Direito, p.552-557.
79
essencial – e tão duramente conquistado – de defesa do cidadão moderno contra a violência de
Estado, foi suspensa “nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem
econômica e social e a economia popular”, excluídos também da apreciação judicial todos os
atos praticados em conseqüência do Ato, o que abria precedentes e respaldava legalmente o
(ab)uso da força estatal, deixando os opositores do regime em situação totalmente frágil. Três
meses após a edição do AI-5, foi estabelecido que os encarregados de Inquéritos Policiais
poderiam prender qualquer indivíduo por 60 dias, dez dos quais em regime de
incomunicabilidade, tempo suficiente para facilitar a prática da tortura... Um novo momento,
de grande violência, acrescentava-se à já violenta história do Brasil.
No seio da guerra fria, em nome do desenvolvimento econômico e dos ideais ocidentais
– liberdade republicana e livre iniciativa capitalista, contra os “perigos” do comunismo –
criminalizava-se a atividade política, quer sindical-popular, quer das classes médias
intelectualizadas, ou seja, os setores estudantis, universitários e de divulgação cultural11.
Desde o golpe civil-militar12 de 1964, a reação social – daqueles que não haviam articulado
e/ou apoiado o golpe – havia-se apresentado de duas formas prioritárias: a maior parte da
população, trabalhadora em geral, acomodou-se à nova situação, devotando-se à luta pela
sobrevivência e ao entretenimento nas horas de lazer, encantando-se sobretudo com os
programas de televisão, que iniciava sua trajetória de sucesso como meio de comunicação de
profunda penetração nas massas (com suas novelas, festivais musicais, shows humorísticos ou
de variedades), e, como tal, capaz de produzir uma integração cultural em âmbito nacional13.
Já aqueles setores que haviam sido mais participantes nas lutas anteriores pelas reformas de
base, agora desorientados e desmoralizados pela desestruturação de suas referências
partidárias e sindicais, cujas lideranças haviam sido presas ou exiladas, quedaram-se
inicialmente “mudos, atomizados, envolvidos na amargura das ilusões perdidas”, derrotados.
Com efeito, o Estado protetor do período 1930-1964 agora se tornava algoz, suspendendo as
lutas sindicais e criando uma nova legislação restritiva para a greve, estipulando o arrocho
salarial e revogando a estabilidade e o poder normativo da Justiça do trabalho. Confusos com
a nova situação e reprimidos, tendo sua luta criminalizada, os trabalhadores tornaram-se
atores secundários na resistência molecular que sobreveio, liderada pelos estudantes
11
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES. idem.
Utilizo o conceito de R. Dreyfuss, já consagrado pela historiografia, para destacar que os movimentos
políticos, em especial os da envergadura dos golpes militares da América Latina, não se dão sem um apoio
social. A análise sobre os atores sociais da reação ao golpe que se apresenta neste parágrafo segue em geral o
trabalho de AARÃO REIS, D. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. e
também 1968, o curto ano de todos os desejos. Acervo, op.cit., p.25-38.
13
Sobre o papel integrador da televisão, cf. ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e
indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001.
12
80
universitários que acompanhavam a grande onda de renovação política e comportamental
realizada pela juventude internacional (a despeito de todos os problemas que isso implicava),
contando com a colaboração dos meios de comunicação de massa, jornais e televisões que
veiculavam imagens de todo o mundo, sensibilizando o público para o que ocorria de novo e
criando um mal-estar difuso; com a colaboração de setores progressistas da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), inspirados pelo processo de atualização que a Igreja
Católica então experimentava; da atuação subterrânea das “vanguardas” dos partidos
revolucionários, clandestinos, que debatiam a conjuntura, nem sempre acertadamente, e
tentavam preparar focos guerrilheiros; e de artistas e intelectuais que recusavam o Brasil
oficial e incentivavam a crítica e a rebeldia. Esta reação da sociedade civil se subdividia em
grupos mais radicais – cuja vontade e/ou necessidade de agir conduziu à luta armada – e
aqueles que permaneceram exercendo uma resistência pacífica, com os instrumentos de que
dispunham por profissão ou habilidade. Em sua maioria, foi o caso dos artistas e intelectuais,
cujas manifestações críticas ao governo também variavam de uma certa complacência à
resistência engajada, passando pela arte de protesto. Em especial, entre estudantes e artistas se
criou um chão comum de interesses e gostos, levando-os a compartilhar a experiência de
formular novos valores, concernentes não apenas ao poder, mas aos costumes e práticas
cotidianas. Eivados de insatisfação, todos se envolveram nos protestos dos anos 1967-68, em
apoio aos últimos movimentos públicos de operários e estudantes anteriores ao AI-5.
Desde que o general Costa e Silva tomara posse, em março de 1967, uma Nova Lei de
Segurança Nacional fora promulgada, atendendo a corrente dos militares “linha-dura” que
agora chegavam ao poder, em substituição aos chamados “sorbonistas” ou “castelistas” do
período 1964-67, no governo Castelo Branco, que faziam questão de manter uma aparência de
legalidade democrática. Depois, sob a chefia do general Emílio Garrastazu Médici, o Serviço
Nacional de Informação (SNI) mudava de função, sendo o órgão e suas representações nos
ministérios civis remodelados e fortalecidos para se tornarem uma ampla rede de espionagem.
Embora a comunidade de segurança e informações não se envolvesse diretamente nas
“operações de segurança”, seu anseio punitivo gerava um “ethos da segurança” que passava a
orientar as instâncias repressivas já existentes ou que seriam criadas em breve14.
14
As operações de segurança eram o eufemismo usado para designar as prisões, interrogatórios, torturas,
extermínios praticados pelos departamentos de ordem política e social estaduais, pelos órgãos de informação dos
ministérios militares (CIE, CISA, Cenimar) e pelo “sistema DOI-CODI” implantado em 1970 em unidades
militares no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Brasília; em 1971 em Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Belém
e Fortaleza; em 1974 em Porto Alegre. Cf. FICO, C. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar.
Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH, v.24 (Brasil: do ensaio ao golpe - 1954-1964), n.47, p.29-60,
jan./jun. 2004.
81
Conforme o regime endurecia, as reações ditas subversivas aumentavam e, junto com
elas, os conflitos com a polícia e a repressão. Operários de Osasco (SP) e Contagem (MG)
lograram fazer greves; manifestações de estudantes na Universidade de Brasília (UNB) davam
vivas a Che Guevara; em todo o país ocorriam protestos estudantis contra o Acordo MECUSAID, que propunha uma reforma universitária de caráter técnico e a desarticulação política
do movimento estudantil. No mundo judicial, a Lei de Segurança Nacional dificultava os
trâmites processuais para a defesa daqueles que respondiam Inquéritos Policial-Militares
(IPMs) e crescia uma campanha de setores de direita para o “expurgo no Judiciário”, como
clamava o jornal Estado de São Paulo, o que significava cassar do Supremo Tribunal Federal
os ministros favoráveis à concessão de habeas-corpus e resistentes às arbitrariedades do
regime, em especial Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, bem como Peri Constant
Bevilacqua, do Supremo Tribunal Militar15. Em 28 de março de 1968, a invasão pela polícia
do restaurante universitário Calabouço, no Centro do Rio de Janeiro, com a morte imediata do
estudante Edson Luis de Lima Souto, provocara comoção geral e o apoio, aos estudantes e
contra a ditadura, de setores progressistas da Igreja Católica e juristas e parlamentares
insubmissos, além de intelectuais, artistas e numerosos cidadãos comuns que acompanharam
o enterro. Nos dias posteriores, sucederam-se passeatas de protesto no Rio, São Paulo,
Brasília, Goiânia, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Curitiba. Os protestos do 4°
aniversário do golpe, em 01 de abril de 1968, tiveram como saldo um estudante morto em
Goiás, dois mortos e muitos feridos e presos no Rio de Janeiro. O dia de 21 de junho foi
apelidado de Sexta-Feira Sangrenta devido a um sério confronto entre estudantes e policiais,
ao longo de todo o dia, nas ruas do Centro do Rio de Janeiro, quando ocorreram mais de mil
prisões e 4 mortes (na versão oficial) ou 28 mortes (segundo informações dos hospitais aos
estudantes), além das dezenas de feridos. Dias depois, a Passeata dos Cem Mil paralisava esta
cidade durante quase todo o dia de 25 de junho, congregando não apenas as entidades
representativas dos estudantes universitários, mas toda uma série de categorias descontentes,
tais como escritores/poetas, religiosos, professores, músicos, cantores, cineastas, estudantes
secundaristas, comerciários, bancários, políticos, em protesto contra a violência policial, as
prisões, as mortes. Em praça pública foi escolhida uma comissão, a “comissão dos 100”, para
uma reunião com o presidente da república em uma semana, que resultou infrutífera16.
15
Cf. FERNANDES, F. A. Voz humana, a defesa perante os tribunais da república. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
p.217-220. Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Vitor Nunes Leal foram aposentados compulsoriamente em
janeiro de 1969, logo após o AI-5.
16
A comissão era composta pelo psicanalista Hélio Pelegrino, Irene Papi como representante das mães, o padre
João Batista Ferreira e dois estudantes, Marcos Medeiros e Franklin Martins. Reivindicavam a libertação dos
82
É esta espécie de movimento de respiração dos setores politicamente ativos da
sociedade brasileira – que Aarão Reis qualifica como um oásis em meio ao deserto17 – que
será duramente golpeada pelo maior endurecimento do regime a partir de 1968. Em agosto
deste ano, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) era fechada e a UNB, tomada pela
polícia pela primeira vez. Em outubro, o 30° Congresso da União Nacional dos Estudantes
(UNE), realizado num sítio em Ibiúna, interior de São Paulo, para eleição da nova diretoria da
entidade, foi invadido pela polícia, havendo a prisão de mais de 700 delegados. As principais
lideranças foram levadas ao Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS18
SP) e, posteriormente, banidas do país . No segundo semestre de 1968, os movimentos de
resistência já arrefeciam, dominados pela repressão ao embates travados, cuja desproporção
de forças era brutal. Sem apoio social mais amplo e diante do projeto militar de aprofundar o
estado de exceção, a oposição ficou “na contramão da história”, como diz Aarão Reis.
Mudavam as reações perante a repressão: indignação e ira cediam à intimidação e ao medo.
“O curto ano de todos os desejos”, na bela expressão deste autor19, de fato terminava mais
cedo.
A partir 1968 e nos anos que se seguiram, a legislação recrudesceria os instrumentos de
censura e repressão, fechando de vez os canais de articulação política civil. No que se refere
ao setor cultural, além da Lei de Imprensa nº 5.250 de fevereiro de 196720, que em nome de
regular “a liberdade de manifestação do pensamento e de informação” estipulava forte
censura nos meios de comunicação, a universidade, o grande foco de resistência no período
anterior, era profundamente atingida a partir de 1968: a tão combatida reforma universitária se
presos, a reabertura do restaurante Calabouço, que fora fechado, o fim da repressão policial e da censura
artística. O governo pedia em troca que as passeatas cessassem. Não houve acordo e a repressão continuou.
Sobre o movimento estudantil, cf. Romagnoli e Gonçalves. A volta da UNE, de Ibiúna a Salvador. Ver também:
Oliveira, Gil Vicente. Fotojornalismo subversivo, 1968 visto pelas lentes do Correio da Manhã. In: Revista
Acervo, op.cit., p.117-136.
17
AARÃO REIS, In: Acervo, op.cit., p.29.
18
Entre os líderes, Luís Travassos, Wladimir Palmeira e José Dirceu foram banidos no ano seguinte, em
setembro de 1969, trocados pelo embaixador norte-americano, Charles Elbrick, seqüestrado por organizações de
luta armada. A UNE ficaria na clandestinidade por alguns anos. O presidente clandestinamente eleito, em abril
de 1969, foi Jean Marc van der Weid, preso em setembro do mesmo ano e banido em 1971, em troca do
embaixador suíço, Giovani Bucher, também seqüestrado (pela VPR, com a participação de Alex Polari). Para
substituir Jean Marc, assume a presidência da entidade Honestino Guimarães, da Federação dos Estudantes de
Brasília. Honestino foi preso mais de uma vez, torturado, e recebeu diversas ameaças de morte depois de
libertado. Antes de ser preso, em outubro de 1973, deixou uma carta intitulada “Mandado de Segurança
Popular”. Segundo dados da Anistia Internacional, foi visto pela última vez na OBAN (Operação Bandeirantes,
depois DOI-CODI), em abril de 1974, e depois sumiu. Seu nome consta das listas de desaparecidos de várias
organizações de luta por anistia. Cf. Romagnoli e Gonçalves, op.cit., p.11-18. Para a invasão da UNB e o caso de
Honestino, ver também o documentário Barra 68, de Wladimir Carvalho.
19
AARÃO REIS, idem, p.25 e 36.
20
Trechos das leis aqui tratadas podem ser encontrados em CASTRO, Flavia. História do Direito. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004. Diversos textos legais também se encontram no sítio eletrônico <htpp://planalto.gov.br/>
83
efetivou (lei nº 5540/68), reduzindo sua função à formação de quadros técnicos burocráticos,
para o setor produtivo da economia e para a administração estatal ou empresarial. Além dos
expurgos, demissões, aposentadorias compulsórias, proibições de leituras e discursos críticos,
espionagem policial nas salas de aula, delações e desarticulação da UNE e do movimento
estudantil em geral, o Estado obtém êxito em atrair setores da massa de estudantes para o
projeto de ascensão social via uma melhor remuneração do trabalho técnico21. Ademais, o
decreto-lei 477, de fevereiro de 1969, ao definir “infrações disciplinares praticadas por
professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou
particulares”, proibia a atuação política e penalizava severamente os “infratores”, o que
incluía as longas listas de cassação de professores universitários e a suspensão por três anos
de alunos e professores considerados subversivos. Nas palavras do ex-padre João Batista
Ferreira, integrante da comissão dos 100 mil,
Quatro anos haviam-se passado desde o golpe de 1964; mas 68 já tinha uma larga
consciência diante de 64. Foi o tempo do arrocho salarial, da desmobilização
sindical, das cassações, do fantasma da tortura. Tudo isso fez 68 encontrar um forte
anseio popular. Na realidade, 68 foi um grito. Ousado, desorganizado. Mas foi um
grito congregador. Foi também um grito ufânico, porque de jovens que, jogando
apenas a palavra contra as armas, tornaram autêntico um movimento que, em
essência, era nacionalista. E esse movimento se expandiu de tal maneira que, não
sendo fácil lidar com tanta força, o Governo precisou adotar medidas extremas como
o AI-5, e o decreto-lei 477 e a Lei de Imprensa.22
Certamente 1968 era um grito, em muitos sentidos. No entanto, malgrado esta visão do
recrudescimento repressivo como resposta da ditadura à movimentação social tenha-se
tornado comum, o historiador Carlos Fico demonstra que o endurecimento não decorria
circunstancialmente dos episódios políticos, nem de um “golpe dentro do golpe” derivado das
disputas internas nas Forças Armadas, mas era fruto do amadurecimento de um processo há
muito iniciado, em que a doutrina de segurança nacional se aliava à velha tradição do
pensamento autoritário brasileiro para reafirmar um projeto de nação baseado numa “utopia
autoritária”, a qual unia as diferentes correntes militares e cimentava sua ideologia, ou seja, “a
crença de que seria possível eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo, ‘subversão’,
‘corrupção’) tendo em vista a inserção do Brasil no campo da ‘democracia ocidental
cristã’.”23 Tal era a perspectiva do General Golbery do Couto e Silva que servia como diretriz
21
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES, op.cit., p.94-95.
Depoimento de 1978, reproduzido em ROMAGNOLI e GONÇALVES, op.cit., p.7.
23
FICO, C. Versões e controvérsias..., p.34.
22
84
à Escola Superior de Guerra (ESG), que formava tanto militares quanto civis, em cursos
externos24.
No embate de forças e projetos, vencia e se impunha a ordem autoritária militar.
Gerava-se um novo momento de apatia, sentimento de derrota e confusão, e uma nova
tentativa de reação e resistência, desta vez reunindo também uma parte do grupo que apoiara
o golpe como medida cirúrgica, mas não concordava com a continuidade dos militares no
poder e os rumos da ditadura. A partir de então, porém, as condições eram mais difíceis. Por
um lado, desenvolvera-se desde o golpe um tipo de “ethos persecutório” não apenas entre os
militares, mas na própria sociedade, em que se disseminara a prática da delação. Primava uma
obsessão pela vigilância, como forma de prevenir aquilo que se denominava, com base na
Doutrina de Segurança Nacional, de “propaganda subversiva” ou “guerra psicológica contra
as instituições democráticas e cristãs”, criando um fenômeno típico das sociedades
autoritárias, em que a lógica da produção da suspeita importa mais que a informação
propriamente25. Com efeito, o aparato repressivo acolhia acusações de subversão sem
investigar a veracidade dos fatos ou a confiabilidade dos informantes, bastando-lhes
enquadrar o testemunho do delator anônimo no conceito de opinião pública, vaga e indefinida,
como convinha. As delações, por vezes com escusas motivações, haviam sido alvo
privilegiado dos humoristas, como se vê nas crônicas satíricas de Stanislaw Ponte Preta, entre
1964-68, cujo Febeapá (Festival de Besteiras que Assolam o País, vol.1, 2 e 3) narrava
histórias de denúncias infundadas e adesismo cego. A esfera da cultura era especialmente
atingida, posto que tida a priori como suspeita, meio de atuação de comunistas e
“subversivos”. Informantes pertencentes aos setores de informação do Estado infiltravam-se
nos meios culturais e elaboravam relatórios sobre eventos e artistas, sobretudo os da MPB, em
que reuniam peças acusatórias que mobilizavam toda uma estratégia discursiva para
representar o inimigo interno. A corrupção, a delação, o oportunismo, a alienação revelavam o
autoritarismo impregnado na tessitura social. Acompanhavam esta atmosfera sentimentos de
intimidação e paranóia, tanto por parte de civis quanto de militares. Como exemplo, o
jornalista Inimá Simões relembra o papel das esposas de coronel como sentinelas avançadas
na censura de filmes que não apreciavam, ou ainda o policial que interrompeu, em Londrina
(PR), uma declamação de “Vou-me embora para Pasárgada”, de Manuel Bandeira,
24
Cf. SCALERCIO, M. A Têmpera da espada, os fundamentos do pensamento das lideranças do Exército em
1968. In: Acervo, op.cit., p.101-116.
25
A respeito da suspeição na esfera da cultura, ver NAPOLITANO, M. A MPB sob suspeita: a censura musical
vista pela ótica dos serviços de vigilância. Revista Brasileira de História, op.cit., p.103-126. Neste artigo, a idéia
de “ethos persecutório” é desenvolvida a partir dos trabalhos de Carlos Fico e a de “lógica da suspeição” a partir
de Marionilde Magalhães.
85
desconfiado das intenções subliminares do poeta... que em 1966 já havia recebido a Ordem do
Mérito Nacional das mãos do presidente marechal Castelo Branco, quando das festividades de
seus 80 anos, antes de falecer, naquele turbulento 196826.
Por outro lado, aumentavam as listas de cassação e a suspensão do habeas-corpus
dificultava a atuação dos advogados dispostos a atuar politicamente, isto é, em defesa dos
direitos civis. Como as prisões passaram a ser executadas nos moldes de um seqüestro, com
brutalidade e sem vestígios, impetravam como recurso extremo um “habeas-corpus de
localização”, alegando que a prisão não fora feita por motivos de segurança nacional, e
pediam que ofícios fossem expedidos a todos os órgãos de repressão, para localizar o cliente
preso. Era comum que obtivessem respostas mentirosas, como no caso dos desaparecimentos
de Rubens Paiva e Stuart Angel, por exemplo27.
Além disto, como observam Hollanda e Gonçalves, o debate político na intelectualidade
crítica e/ou de esquerda se pulverizaria por um bom tempo, oscilando entre a inércia e o
voluntarismo, e o que restava só podia se manter de modo restrito e subterrâneo. Imperava a
dispersão e o isolamento. Registrou-se um bloqueio crítico e criativo no cotidiano cultural28.
Experimentava-se, as gerações mais jovens em especial, um momento de desânimo, muitos se
auto-exilavam ou eram obrigados a tal, outros preferiam o silêncio. Em um rico artigo, que
não deixa de ser depoimento, o poeta e crítico literário Antônio Carlos de Brito, o Cacaso,
dizia:
... a melhor porção da juventude brasileira é induzida a uma despolitização gradativa
e segura das paixões e das ambições. Pressionada por todos os lados e desalojada de
sua função costumeira, a intelligentsia brasileira se desorganiza e entra em crise
26
Para a crítica de Stanislaw Ponte Preta ao discurso oficial e ao autoritarismo social, ver Moraes, D. Z. “E foi
proclamada a escravidão”: Stanislaw Ponte Preta e a representação satírica do golpe militar. Revista Brasileira
de História, op.cit., p.61-102. A autora cita trecho dos manuais de orientação dos agentes de informação:
“Quando o fato é notório, este independe de provas, conforme preceito geral do direito, que aboliu o sistema de
certeza legal, libertando o julgador de preconceitos textuais”. De SIMÕES, I. ver Sessenta e oito começou bem
antes. Acervo, op.cit., p.39-56; os fatos mencionados constam na p.49. Quanto à premiação de Manuel Bandeira,
cf. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.26 (Cronologia).
27
Cf. FERNANDES, op.cit., p.224. Tratava-se de um grupo relativamente pequeno de advogados, reunidos em
torno de Heleno Fragoso, que testemunha a sensação de impotência e a coragem deste grupo que não se recusava
a denunciar a tortura, “numa época em os mais fortes silenciaram” e muitos bacharéis se tornaram coniventes.
Destacam-se os nomes de Lino Machado, que defendeu Alex Polari, Augusto Sussekind de Morais Rego,
Evaristo de Morais Filho, Técio Lins e Silva, Marcelo Cerqueira, Nélio Machado, Nilo Batista, entre outros. Em
pequeno depoimento sobre sua rápida detenção, quando visitava um cliente na prisão da Ilha das Flores, Evaristo
de Morais Filho argumenta que isto ocorreu por haverem estranhado o fato de ele não cobrar este serviço
profissional, quando ele apenas seguia uma tradição da advocacia política brasileira, vinda de seu pai, de Sobral
Pinto, de Evandro Lins e Silva, que compreende a defesa do preso político como um serviço à nação, para ajudar
a deter a violência desencadeada pelo Estado. In: idem, p.223.
28
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES, idem. O historiador Aarão Reis também vê ineficácia nos debates da
esquerda, sobretudo das vanguardas dos partidos clandestinos, que teriam tido dificuldade para analisar as bases
históricas da derrota, passando a caçar culpados internos, especialmente o PCB e o PTB, o que resultou no
estilhaçamento da esquerda em múltiplas frações hostis entre si. Cf. “O curto ano...”, op.cit., p.33.
86
profunda. O desprestígio do esforço e do trabalho intelectuais será um dos traços
mais salientes desse período. O desmoronamento de tantas expectativas alimentadas
mais o endurecimento atual da vida favorecem um clima ideológico que combina
frustração e medo; descrença em relação aos projetos de antes e às chances futuras.
Daqui e dali vão surgindo os primeiros hippies; o pessoal começa a emagrecer; a
vaga irracionalista toma corpo; o consumo de drogas faz carreira fulgurante e se
instala; proliferam grupos e seitas orientalistas; um vocabulário novo e cifrado é
posto em circulação; tudo em consonância com o clima evasivo e de introspecção
que reina. Muitos da geração mais moça abandonam a universidade; outros nem
chegam a tentar; parte considerável dos que se formam esbarra com a falta geral de
oportunidades e perspectivas.29
Salvo a luta armada – vista com um misto de admiração pelo heroísmo daqueles jovens
e profundo desalento pelo sacrifício inútil (?) das suas vidas –, não parecia haver “alternativa
ao sistema”, e a tradicional política de esquerda não se oferecia mais como opção30. Todo este
quadro vinha fortalecer, no contrapé do refluxo internacional, o florescimento da
contracultura brasileira após 1968: o recurso às drogas como experiência possível de
alargamento da sensibilidade; a transgressão comportamental, no campo da vestimenta, do
sexo, do gosto estético; uma busca de alteridade e sinceridade nas relações sociais,
valorizando o que se considerava uma “marginalização”; a crítica à família tradicional (em
grande parte adepta do novo regime que lhe oferecia os ganhos do milagre econômico); a
recusa do discurso teórico-intelectual, que se tornava tecnicista e vazio; o desejo de “viajar” e
“ir fundo em si mesmo” como uma valorização da experiência existencial, que muitas vezes
se tornou dramática, atingindo a situação-limite da loucura e do desajuste – tudo isto dava o
tom contracultural do que se apelidou na época de “desbunde”, “udigrudi” e cultura
underground.31
Haviam-se cerrado os caminhos, inclusive os “espaços de dizer a dor”. Mas estranhas
cintilações luziam em meio à derrota, como testemunham personagens da época: aquelas
pessoas tinham uma inusitada auto-confiança, uma forte crença em sua capacidade de
29
BRITO, A. C. Tudo da minha terra. In: BOSI, A. Cultura Brasileira, temas e situações. 4.ed. São Paulo: Ática,
2004, p.129-150. Citação na p.132-133. O artigo foi publicado originalmente na Revista Almanaque, n.6, São
Paulo: Brasiliense, 1978 e encontra-se também no livro póstumo de Cacaso, Não quero prosa. (org e seleção:
Vilma Arêas). Campinas/Rio de Janeiro: Unicamp/UFRJ, 1997. p.18-43.
30
No premiado romance Em liberdade, do final dos anos 70, o escritor e crítico Silviano Santiago discute de
forma muito interessante tais questões. O livro é construído em três planos, que tratam da relação entre arte e
autoritarismo: as fictícias reflexões de Graciliano Ramos ao sair da prisão nos anos 30; o suposto suicídio na
cadeia do poeta árcade e membro da Inconfidência Mineira, Cláudio Manuel da Costa, no século XVIII; e as
inúmeras questões políticas enfrentadas pelos artistas sob a ditadura militar. Na verdade, estas não aparecem
explicitamente, mas como temas de discussão imbricados nos outros dois planos, o que foi um inteligente
artifício do autor para discutir as questões de sua época. O tema do sacrifício heróico e inútil é um dos problemas
abordados.
31
HOLLANDA e GONÇALVES, ibidem.
87
transformar suas condições de vida e a si próprias...32 Estratégica ou intuitivamente, novas
sendas foram abertas, agora não mais na esfera da política, mas na da cultura, que se tornou o
locus de resistência da década de 70 por excelência. Não sem dificuldades, porém.
A área da produção cultural assistia ao crescimento da indústria cultural no país, em
sintonia com um projeto de modernização cuja meta era atingir o valorizado “padrão
internacional de qualidade”. Haviam-se desenvolvido os meios de comunicação de massa:
brotaram as redes de televisão, especialmente a Rede Globo, os fascículos semanais vendidos
nas bancas de jornal, a indústria fonográfica; as marchinhas exaltativas da nação, o “sambãojóia embranquecido e repetitivo”, as reportagens propagandísticas de obras governamentais e
riquezas naturais do Brasil, a literatura ligeira e pausterizada criavam um “misto de
entertainement e ufanismo” que era peça fundamental do “espetáculo da superficialidade e do
consumo” 33 que começava a ganhar espaço por aqui.
Paralelamente, via-se a articulação institucional da cultura mediante dois fatores: a
criação e ação de empresas privadas, que incrementavam o conceito e a concreção do
mercado cultural, e as agências estatais, cuja atuação era intrinsecamente contraditória – como
aponta Ventura, ao mesmo tempo em que tentavam incentivar, amparar e oficializar a cultura
por meio de diversos institutos (começavam a aparecer o Instituto Nacional do Livro, Instituto
Nacional de Cinema, Comissões de Teatro), promoviam a censura que a estreita; ao mesmo
tempo em que objetivavam “descolonizar” a cultura (era uma das bandeiras de discurso do
ministro Jarbas Passarinho), abriam espaço para as produções externas, sobretudo norteamericanas, e não conseguiam garantir a reconquista do mercado interno para a produção
nacional. Dados mencionados por Ventura indicavam que cerca de 50% dos livros editados no
Brasil consistiam em traduções; mais de 50% das músicas lançadas eram estrangeiras; apenas
10% do cinema veiculado era nacional34. Configurava-se no Brasil um quadro cultural
complexo: ao lado do analfabetismo em massa, dos baixos índices de escolarização e de poder
aquisitivo, a emergência de uma cultura industrializada e mercantilizada, condicionada pelas
leis da produção (fabricação em série, consumo em massa, altos custos) e propiciadora de
“ilhas de consumo”. O processo cultural sofria as vicissitudes de buscar acompanhar as
32
Cf. SILVA, Francisco Carlos Teixeira, “Memórias, esquinas e canções” [uma espécie de artigo-depoimento do
autor, sobre o fechamento “dos espaços de dizer a dor” e a cultura como resistência], e sobre as cintilações da
resistência, AARÃO REIS, “O curto ano...”, ambos na Revista Acervo, op.cit., p.14 e 36, respectivamente.
33
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES, idem, p.95-96.
34
Para a discussão deste parágrafo e do que se segue cf. o artigo de Zuenir Ventura, “O vazio cultural”, que saiu
na revista Visão em julho de 1971. O artigo encontra-se reproduzido na coletânea de Gaspari, E., HOLLANDA,
H.B. e VENTURA, Z. 70/80 Cultura em trânsito. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. Para os dados mencionados,
ver p.49, Ventura não menciona sua fonte.
88
alterações estruturais que se afirmavam com o modelo capitalista de desenvolvimento
fortalecido pelo regime militar, mas mantendo resquícios artesanais das épocas anteriores.
A resposta dos artistas e intelectuais seguiria as ambigüidades do processo:
manifestando em comum uma grande perplexidade, alguns se adaptariam melhor às novas
contingências da massificação; outros, considerando-se criadores e não produtores de cultura,
combateriam o novo processo em nome da qualidade e da liberdade de criação, que
acreditavam incompatíveis com a subordinação às demandas do mercado. Ao longo dos anos
60 e 70, as discussões se polarizavam entre o industrialismo ou o marginalismo; a gratuidade
ou o consumo; as manifestações de vanguarda ou do “nacional-popular”; a expressão lógica
ou a expressão intuitiva-surreal; racionalismo ou irracionalismo; o underground ou a
comunicação de massa; arte ou indústria; som “universal” ou ligado às raízes brasileiras... até
que explodiu em 1968 o movimento tropicalista, que embaralhou estes temas e complicou as
discussões.
2.2. O grito tropicalista
...Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena
etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar
o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua
poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer
tudo [...] E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação:
leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do
perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.
(Torquato Neto, coluna Geléia Geral, jornal Última Hora, 14/9/1971)
Não obstante as controvérsias em torno da origem e significado sócio-cultural do
tropicalismo, parece predominar a idéia de que o movimento, iniciado de forma não planejada
em torno de 1967, trouxe à tona uma nova forma de sensibilidade e de relação entre arte e
política, diversa das tendências culturalmente hegemônicas até então, embora esta poesia
continuasse a manter vínculos com as vanguardas estéticas e, sobretudo, com a música (o que
não deixa de ser um retorno à origem histórica da poesia), seguindo uma tendência da cultura
popular – lembremos, por exemplo, Cartola – que se sistematiza com o que passou a se
chamar de MPB, com a Bossa Nova nos anos 50, e posteriormente com a passagem do poeta
Vinícius de Morais ao mundo musical. O tropicalismo teria um de seus marcos precursores
em 1967, na exposição de artes plásticas em que de Helio Oiticica apresenta a série de
instalações-parangolés, um dos quais intitulado “tropicália”, no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro (MAM-RJ), e no Manifesto Nova Objetividade Brasileira, também redigido por
Hélio para o catálogo da exposição de mesmo nome. Outras fontes residiriam na
89
contracultura; no cinema novo de Glauber Rocha a partir de Terra em Transe; no teatro de
José Celso Martinez, recuperando O Rei da Vela de Oswald de Andrade; na música popular
de Caetano, Gil, Capinam, Torquato Neto, Tom Zé... Em todos, uma recuperação da proposta
antropofágica oswaldiana para conceber a cultura brasileira, ao lado de uma atitude de
carnavalização diante do mundo, seja em seu próprio comportamento, seja em sua expressão,
gerando inicialmente bastante incompreensão. Em um artigo no Jornal do Brasil, Affonso
Romano de Sant’Anna35 avaliava que o jovem brasileiro, “impossibilitado de participar da
vida política nacional a seu modo e com uma carga vital desperdiçada”, descobria o
tropicalismo, criando um movimento ainda meio confuso, mas autêntico, cuja ideologia e
estética ainda estavam em elaboração.
Em 1968, José Carlos Capinam e Torquato Neto escreveram um programa para a rede
Globo de televisão intitulado Vida paixão e banana do tropicalismo, em que definiam:
Tropicalismo é o nome dado pelo colunismo oficial a uma série de manifestações
culturais espontâneas surgidas durante o ano de 1967 e portanto logo destinadas à
deturpação e à morte. [...] é uma forma antropofágica de relação com a cultura,
senhores e senhoras. Devoramos a cultura que nos foi dada para exprimirmos nossos
valores culturais. Não tem nada a ver com doces modinhas, nem surgiu para
promover o xarope Bromil. Isso é que é. A estrutura desse programa se assemelha a
um ritual de purificação e modificação. E utiliza, para isso, as formas mais fortes da
comunicação de massa, tais como: missa, carnaval, dramalhão, candomblé, teatro,
cinema, sessão espírita, poesia popular, Chacrinha, inauguração, discurso,
demagogia, sermão, orações, ufanismo, revolução, transplante, saudosismo,
regionalismo, bossa, americanismo, turismo, getulismo, construção e destruição tipo
Judas em sábado de aleluia. [...] grande patrono do tropicalismo, inesquecível e
soberbo escritor Oswald de Andrade e a filosofia espontaneamente tropicalista do
pára-choque de caminhão nacional.36
Estava explicado!... Mas a imprensa daria sua contribuição, cumprindo um papel
relevante na própria construção do movimento enquanto tal, o que foi atestado diversas vezes
por Caetano e Gil em entrevistas a jornais e revistas de então, afirmando que respondiam a
uma demanda que os transformava em sucesso após o III Festival da Canção, realizado pela
35
Cf. SANT’ANNA, A. R. Música Popular e Moderna Poesia Brasileira, p.88-95. [a 1ª edição é de 1978]. Este
artigo de 1968 encontra-se reproduzido no livro, p.88, não há menção à data precisa.
36
Roteiro do programa, In: TORQUATO NETO. Os últimos dias de paupéria (Do Lado de Dentro). Ed. póstuma,
organizada por Waly Salomão e Ana Maria Silva de Araújo Duarte. São Paulo: Max Limonad, 1982, p.296-297.
No texto “Tropicalismo para principiantes”, do mesmo ano, Torquato complementava: “... à procura de um
movimento pop autenticamente brasileiro, um grupo de intelectuais reunidos no Rio – cineastas, jornalistas,
compositores, poetas e artistas plásticos – resolveu lançar o Tropicalismo. O que é?// Assumir completamente o
que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto,
apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido. Eis o que é. [...] os ídolos
continuarão os mesmos: Beatles, Marilyn, Che, Sinatra. [...] como adorar Godard e Pierrot Le Fou e não aceitar
Superbacana? Como achar Fellini genial e não gostar de Zé do Caixão? Por que o Mariaaschi Maeschi é mais
místico do que Arigó?//O Tropicalismo pode responder: porque somos um país assim mesmo. Porque detestamos
o Tropicalismo e nos envergonhamos dele, do nosso sub-desenvolvimento, de nossa mais autêntica e
imperdoável cafonice. Com seriedade.” Idem, p.309-310. Não há no livro informações sobre a publicação prévia
deste texto.
90
TV Record, de São Paulo. Quer estivessem unidos por uma proposta política, quer por
afinidade estética, os tropicalistas certamente tinham algo mais a dizer do que frases-feitas de
pára-choque de caminhão, por mais que elas revelassem toda uma dimensão da cultura
popular a resgatar, como se vê neste poema-canção de Torquato, musicado por Gilberto Gil:
um poeta desfolha a bandeira
e a manhã tropical se inicia
resplandente cadente fagueira
num calor girassol com alegria
na geléia geral brasileira
que o jornal do brasil anuncia
ê bumba iê, iê boi
ano que vem mês que foi
ê bumba iê, iê iê
é a mesma dança meu boi
“a alegria é a prova dos nove”
e a tristeza é teu porto seguro
minha terra é onde o sol é mais limpo
e mangueira é onde o samba é mais puro
tumbadora na selva-selvagem
pindorama, país do futuro
[...]
é a mesma dança na sala
no canecão na TV
e quem não dança não fala
assiste a tudo e se cala
não vê no meio da sala
as relíquias do brasil:
doce mulata malvada
um elepê de sinatra
maracujá mês de abril
santo barroco baiano
superpoder de paisano
formiplac e céu de anil
três destaques da portela
carne seca na janela
alguém que chora por mim
um carnaval de verdade
hospitaleira amizade
brutalidade jardim
[...]
um poeta desfolha a bandeira
e eu me sinto melhor colorido
pego um jato viajo arrebento
como roteiro do sexto-sentido
foz do morro, pilão de concreto
tropicália, bananas ao vento [...]37
“Geléia Geral”, um dos expoentes da estética tropicalista, realiza na forma o que sugere
no título: superpõe uma miríade de elementos arcaicos e modernos constitutivos do Brasil
contemporâneo, num tom ao mesmo tempo pungente e alegremente-irônico que acentua as
37
TORQUATO NETO, Geléia Geral., In: Os últimos dias de paupéria., página não numerada.
91
contradições da vida brasileira. Entre as numerosas citações de que lançava mão, Torquato
repetia insistentemente a imagem do meio nacional como “geléia geral” – retirada de Décio
Pignatari, em um dos manifestos do concretismo: “Na geléia geral brasileira, alguém tem de
exercer as funções de medula e de osso” –, tanto como crítica política e cultural, quanto como
busca de explicação de suas crises pessoais. Entre a forma e o informe, a ordem e o caos, o
passado e o futuro, o poeta de sentimentos ambíguos procura sinais reveladores de uma
dimensão mais originária de si próprio e do país (o sol mais limpo, o samba mais puro),
desfolhando insígnias, não restritas e oficiais, mas aspectos corriqueiros da vida brasileira
transformados em riqueza (relíquia) por um olhar baseado em valores plurais (“me sinto
melhor colorido”), capaz de prezar nos signos mais cotidianos uma mistura complexa e não
maniqueísta de fatores, compondo uma sensação de estranha beleza: é doce e malvada a
mulata, que rima com sinatra, que não rima com maracujá nem o céu do mês de abril... o
paisano [militar] abusa de seu poder, alguém chora, o samba desfila, o carnaval é real, como
as amizades, e no cômputo final, vive-se num jardim de girassóis e brutalidade, que se repete
ao longo da história (“é a mesma dança meu boi”)... É plausível também associarmos o verso
de abertura, depois repetido, com o episódio das bandeiras vivido por artistas plásticos,
amigos do poeta: movidos pela preocupação com a comercialização da arte e pelo projeto de
um contato mais estreito com o público, os paulistas Flávio Mota e Nelson Leirner
produziram uma série de bandeiras para expor em plena rua, em fins de 1967, quando foram
confundidos com camelôs sem alvará e confiscados. Resolveram então trazer a proposta para
o Rio, convidando uma série de artistas para criar bandeiras, que desta vez foram apresentadas
sem problemas num happening na praça General Osório (18/2/68), animado pela Banda de
Ipanema e passistas da Mangueira, amigos de Oiticica. Nesta ocasião, Cláudio Tozzi fez a
bandeira “Guevara, vivo ou morto” e Hélio homenageou o bandido carioca Cara de Cavalo
com a frase “Seja marginal, seja herói” – estas bandeiras provocariam grande celeuma quando
utilizadas, em outubro de 1968, nos cenários de um show de Caetano, Gil e os Mutantes38. As
bandeiras desfolhadas na canção de Torquato, efetivamente, desdobravam-se em muitos
sentidos. Mas se outras interpretações são possíveis, não é provável que difiram muito deste
conjunto geral de idéias, bem características do polêmico movimento que lançou “bananas ao
vento” no final dos anos 60.
Talvez a imagem da geléia geral seja mesmo a mais propícia para figurar a própria
Tropicália, ressalvando-se que esta não era homogênea – as diferenças já principiavam,
38
Cf. PEDROSO, F.E. e VASQUEZ, P.K. Questão de ordem, vanguarda e política na arte brasileira. In: Acervo,
op.cit., p.76.
92
preparando rupturas –, tendo em Hélio Oiticica e Torquato Neto seus formuladores mais
empenhados39. As principais tendências se delineavam aos poucos, consistindo exatamente
em justapor, de modo propositalmente festivo, elementos diversos da cultura, assim obtendo,
no dizer de Celso Favaretto, uma suma de caráter antropofágico em que as contradições
históricas, ideológicas e artísticas eram expostas e desmistificadas. Em outras palavras,
realizava-se uma mistura de gêneros, referências culturais, índices político-sociais, elementos
eruditos e populares, imagens da cultura de massa e da história nacional – associando, por
exemplo, moda e psicodelismo, música pop e comportamento hippie, sons e cores, arte
moderna e arcaísmos brasileiros, que se denominaram de “cafonismo” –, utilizando-se
procedimentos plásticos, cinematográficos, poéticos, teatrais e de música contemporânea,
provenientes das experiências de vanguarda (cubistas, dadaístas, surrealistas e concretistas), o
que resultava em um processo de composição híbrido e de grande impacto. Empregando
habilmente a paródia, a sátira e o humor, os tropicalistas produziam uma figuração alegrealegórica até então desconhecida no Brasil. O momento tropicalista efetuava, na visão deste
autor, o que havia sido obstado pelas polarizações e preconceitos políticos e estéticos dos anos
50 e 60, isto é, “a realização da modernidade cultural, da atualização das artes, de renovação
dos modos de significação do social e de questionamento do seu uso político”40. A
singularidade do tropicalismo advinha, além dos procedimentos alegóricos, da maneira
inovadora como se aproximava da realidade nacional, pois não tratava referencialmente deste
tema e operava uma descentralização cultural que acabava por esvaziá-lo. Ou seja, a “mistura
tropicalista” inseria-se de forma sui generis no processo de revisão cultural que se
desenvolvia desde o início dos anos 60 no Brasil – quando nossas vanguardas artísticas
mantinham a polêmica acerca da oposição entre arte alienada e arte participante, em acirrados
debates em que se indagava até que ponto o imperativo de falar do país podia suplantar a
pesquisa estética –, e esta diferença ocorria na medida que o tropicalismo enfrentava certa
39
Diz Décio Pignatari que criou a expressão em 1963, numa discussão com Cassiano Ricardo, e que Torquato a
tornou “num mini-programa crítico criativo” e a disseminou, utilizando-a na letra da canção e na coluna que
manteve no jornal carioca Última Hora, entre 1971 e 1972, de um modo programático, pois “Torquato não
confundia Oswald de Andrade com Zé Celso[...] Seu repertório cultural era mais amplo, seus roteiros mais
seguros. [...] Seu modo de proceder na montagem/colagem/bricolagem tinha uma certa orientação, não era
errático”. Entrevista ao poeta Regis Bonvicino em 4/8/1982, in: Os últimos dias de paupéria, páginas iniciais não
numeradas.
40
FAVARETTO, C. [Sessão de entrevistas.] Cult, Rio de Janeiro: Lemos Editorial, ano 5, n.49, ago. 2001 p.4-9.
Entrevista. Citação na p.8. O trabalho de Favaretto, considerado basilar para a compreensão do fenômeno,
retoma e amplifica trabalhos anteriores de leitura do tropicalismo, tanto de seus próprios agentes quanto de
críticos da hora, como Cacaso, Augusto de Campos, Mário Chamie, Walnice Galvão, Affonso R. Sant’Anna,
Silviano Santiago, Roberto Schwarz, entre outros. Cf. para as questões aqui tratadas, FAVARETTO. Tropicália:
alegoria, alegria. São Paulo: Kairós, 1979. passim.
93
agressividade existente contra a experimentação estética e se lançava a tentar novos ritmos e
estilos.
Para tal, contava com o apoio das vanguardas, especialmente do concretismo. Segundo
o poeta Armando Freitas F°41, em torno de 1968 a poesia brasileira havia chegado a um
impasse, insatisfeita entre o “populismo” desgastado da poesia engajada, por um lado, e o fim
da palavra, para o qual tendiam as vanguardas, por outro. Em janeiro daquele ano, os
defensores do poema-processo, para o qual a poesia é semiótica, imagem-útil dos meios de
comunicação de massa subvertida em contexto poético, haviam até mesmo realizado um
happening nas escadarias do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quando rasgaram livros de
poemas discursivos. O impasse remontava a antigas questões.
Desde os anos 50, a arte brasileira havia-se engajado nos debates acerca da
modernização do país e do caráter, ou ilusão, libertário da industrialização e dos movimentos
de massa contra o poder remanescente das oligarquias agrárias e suas manifestações culturais
típicas, como diz Marcelo Ridenti42. Antes de 1964, o meio artístico se ramificara em dois
grandes grupos: primeiramente, os do movimento nacional e popular – ligados ao CPC,
Teatro de Arena, Cinema Novo em sua primeira fase –, também chamados pejorativamente de
“populistas”, empenhavam-se em combater o arcaísmo oligárquico do campo brasileiro,
identificando-se ao camponês explorado, cuja figura encarnava, a seu ver, a genuína arte e
sabedoria do povo. Numa interpretação política demarcada pelo PCB, vinculavam o progresso
técnico à libertação popular, entendida como superação do imperialismo norte-americano e
das relações “feudais” oligárquicas. No campo poético, foi expoente nos anos 60 a coleção
Violão de Rua: poemas para a liberdade, composta de três livros-de-bolso com poemas
organizados pelo poeta e filósofo Moacyr Félix; eram edições extraordinárias da coleção mais
ampla e bem sucedida, Cadernos do Povo Brasileiro, editada pela Civilização Brasileira,
editora pertencente ao comunista Ênio Silveira. Naqueles tempos em que o tema da revolução
estava na pauta do dia, este grupo amalgamava a utopia marxista com a utopia romântica da
identidade nacional, afinando-se com o “romantismo revolucionário”43 que fundamentava o
41
Cf. FREITAS F°, A. Poesia vírgula viva. In: NOVAES, Adauto (org). Anos 70..., op.cit, p.161-203.
Para as vertentes estético-políticas ver os seguintes trabalhos de RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro,
p.113-121; O fantasma da revolução brasileira, p.77-86; Cultura política: os anos 60-70 e sua herança. In:
FERREIRA, J. e DELGADO, L. (org). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura: regime militar e movimentos
sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (O Brasil republicano, v.4). p.135 ss.
43
A visão de Ridenti é baseada em concepções de Michael Löwy a respeito do teor romântico-libertário e anticapitalista de certos pensadores de esquerda. Quanto ao pré-capitalismo no Brasil e sua substituição pelo
capitalismo em sua completude, a discussão é vasta e não cabe aqui. Sigo a linha que vê a modernização
brasileira, e seus problemas, como um lento processo de maturação ao longo da República, tendo nos anos 60-70
sua estabilização nos moldes capitalistas.
42
94
projeto de emancipação social nos princípios de dignificação do humanismo. Após o golpe de
64, os defensores desta corrente tenderam a uma postura defensiva em relação à
modernização industrial-tecnológica e seus desdobramentos culturais impostos pelo regime
militar, mantendo as propostas estéticas anteriores e se apegando às “tradições populares précapitalistas” como forma de resistência política. Diversamente pensava a outra ramificação
dos debates estético-políticos, a vertente dos formalistas, composta pelos concretistas e outras
vanguardas. Eram adeptos de uma estética modernizante, segundo eles, cuja prática política
consistia na própria renovação formal, uma vez que conteúdo e forma na linguagem são unos
e, por conseguinte, não seria possível uma prática política transformadora sem uma nova
estética, como se aprendia do poeta russo Maiakovski: “sem forma revolucionária não há arte
revolucionária”. Empunhavam inicialmente a bandeira do moderno sem restrições, vendo no
avanço técnico e industrial um valor positivo intrínseco, independentemente de seu caráter de
classe ou das injunções de poder e dominação que portasse. Cabia à linguagem artística se
modernizar, pois uma revolução estética formal carregada em si mesma de uma mensagem
politicamente rebelde e anárquica se fazia necessária diante da nova realidade do mundo. O
transe na filmografia de Glauber Rocha (o filme Terra em Transe, discutindo o populismo e o
lugar do intelectual-poeta, é de 1967), a antropofagia do modernismo oswaldiano retomada
pelos concretistas – de onde os tropicalistas a beberam –, seja na música, teatro, artes plásticas
ou poesia, tornavam-se instrumentos para tentar ler os paroxismos e paradoxos da sociedade
brasileira. Para isto, o poema concreto deveria seguir “exato, preciso, industrialmente
projetado. Um poema reluzente, limpo, objeto industrial de padrão internacional: um produto
nacional para exportação”, como sugerira Haroldo de Campos um dia, numa frase que
renderia muitas críticas no futuro.
Nascida destas discussões, que inclusive já se exauriam, até mesmo por força da
repressão, a tropicália propunha um tipo diverso de debate e tática cultural, ao assumir outros
matizes ideológicos e se relacionar com o público de forma mais definidamente
artística/formal, rompendo com o discurso explicitamente político para retomar a tradição de
pesquisa do modernismo e olhar o país com novos olhos.
Este novo olhar exigia novos procedimentos estéticos e novas categorias para
compreendê-los, de onde o recurso dos críticos aos conceitos de carnavalização (Bakhtin) e de
alegoria (Benjamin), que se tornariam muito adequados, talvez mesmo necessários, para as
leituras da cultura brasileira a partir do final dos anos 70. Em especial, o conceito
benjaminiano de alegoria se tornaria útil, visto que seu autor, ao ampliá-lo de uma categoria
do barroco alemão para toda a modernidade, apresentava-o como uma figura de linguagem e
95
pensamento composta de fragmentos e colagens, em que a imagem modelada adquire
múltiplos sentidos possíveis, numa forma estética típica da arte moderna, diversa dos sentidos
únicos derivados da soma harmônica das partes que caracteriza o símbolo, não mais possível
nestes tempos44. Em artigo de 1970, em meio a uma das primeiras leituras críticas do
tropicalismo, Schwarz já o considerava como eminentemente alegórico, sendo
justamente neste esforço de encontrar matéria sugestiva e datada – com a qual
alegorizam a ‘idéia’ intemporal de Brasil – que os tropicalistas têm o seu melhor
resultado. [...] A imagem tropicalista encerra o passado na forma de males ativos ou
ressuscitáveis, e sugere que são o nosso destino, razão pela qual não cansamos de
olhá-la.45
A imagem tropicalista, que amalgama alegoricamente elementos técnicos, sociais e
históricos, rasgando uma face idealizada do Brasil e recompondo-o em facetas fragmentadas,
em que arcaico e moderno formam um fluido mosaico nacional, relaciona-se com uma
experiência espacial-temporal de profundas raízes na cultura brasileira, e latino-americana em
geral, sucessivamente retomada e revista, ao menos desde que os modernistas a explicitaram:
como observa Antônio Cândido, em razão da sua história, que teve que lidar com a
colonização e a descolonização, esta cultura-literatura foi desde sempre marcada pela
heterogeneidade de relações sociais, materiais e espirituais, tanto nas vivências dentro de uma
mesma geração quanto entre gerações, como é típico de sociedades muito desiguais. As
discussões sobre a superação do passado arcaico e do que significa ser moderno no futuro –
cujo modelo é dado pelos países colonizadores, de onde derivam inclusive as línguas-matrizes
em que se solidificaram as literaturas pós-coloniais –, num presente sempre dilacerado por
contradições em que se cruzam diferentes tempos, espaços de convivência e formas de
sobrevivência, de sociabilidade e leitura de mundo, imprimem em tais culturas um traço não
linear, que prepara as descontinuidades cronológicas e formais quando o momento cultural é
propício.
Tal dinâmica se relaciona com a dialética do localismo-cosmopolitismo, que Antônio
Cândido considerou como elemento fundante dos sistemas literários na América Latina, os
quais têm, estruturalmente, que lidar com valores e formas dos colonizadores, ao mesmo
tempo em que buscam ser e expressar suas peculiaridades nacionais. Daí derivam dois
44
BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. Ver também o trabalho de
Gagnebin, Sete aulas sobre linguagem, história e memória citado no cap.1, sobre o conceito de modernidade em
Benjamin.
45
SCHWARZ, R. Cultura e política 1964-1969. In: Cultura e política: 1964-1969. In: Cultura e política. São
Paulo: Paz e Terra, 2001, p.34. Trata-se também de uma das primeiras recepções de Benjamin no Brasil. Cf.
resenha de PINTO, M. C. Benjamin nos Trópicos. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 out. 2006, Ilustrada, p.E2.
Note-se que Celso Favaretto, ao tratar da música, e Ismail Xavier, estudando o cinema tropicalista, também
recorrerão aos conceitos benjaminianos.
96
aspectos componentes dessas literaturas, particularmente a brasileira: primeiro, a problemática
da expressão, pelo fato de que, num país de contrastes, “onde tudo se mistura e as formas
regulares não correspondem à realidade”, a possibilidade dos autores se manifestarem com
mais propriedade é a expressão livre, de forte traço poético46. Segundo, uma consciência de
atraso, que por sua vez se subdivide em dois tipos: uma espécie de consciência amena, surgida
nos momentos iniciais da independência e conduzida pela idéia de país novo e promissor,
onde a pátria e a natureza se fundem num desejo de grandeza e manifestações exóticas,
tentando-se compensar o atraso com uma ideologia, ou ilusão, de ilustração; e uma
consciência catastrófica do atraso, pessimista e pouco eufórica, correspondente à noção de
país subdesenvolvido, criando uma visão agônica e politizada, afeita à idéia de revolução para
superação dos problemas econômicos e da debilidade da cultura. Discutindo a ambivalência
do escritor latino-americano diante da dependência cultural e do público iletrado, que no
século XX passou rapidamente da dinâmica oral para a cultura de massas, muitas vezes estes
pensadores do atraso – entre os quais muitos poetas e intelectuais do período em estudo –
incorreram em equívocos, substituindo a dialética do nacional-estrangeiro pelo dilema do
domínio imperialista, desconsiderando que a práxis revolucionária demanda uma visão
matizada do desenvolvimento cultural, compreendendo em amplitude as relações culturais
com o mundo, europeu sobretudo, e as relações estruturais internas a serem superadas47.
A busca de superação dos problemas culturais por via de uma luta nacionalista contra o
imperialismo havia selado fortemente a arte engajada brasileira, entre as décadas de 40 e 60.
Em decorrência, formaram-se grupos defensores de uma (imaginária) identidade culturalnacional, que comumente apresentava uma visão dualista do Brasil, partido entre um país
rural, matriz da identidade nacional, e um país urbano, onde a cultura se descaracterizava por
conta da invasão da mídia internacional. Isto era recusado pelos tropicalistas, em nome de
uma noção mais pluralista, às vezes confusa, das relações culturais, nacionais e internacionais.
Era o caso, então, de resgatar o Brasil macunaímico e a proposta antropofágica de Oswald de
Andrade – análoga, por exemplo, ao conceito de transculturação desenvolvido pelos
uruguaios Fernando Ortiz e Angel Rama –, que havia lidado (nos limites de seu contexto,
46
Cf. Antônio Cândido, nos diversos artigos de Literatura e sociedade, frase citada, na p.112. Este raciocínio
pode ajudar a compreender também o realismo fantástico latino-americano. Um comentário sobre o tempo não
linear da literatura brasileira aparece também em artigo de Ettore Finazi-Agró, Caderno Mais!, Folha de S.Paulo,
9/5/2004. Sobre a literatura latino-americana, uma visão abrangente é oferecida na obra do uruguaio Angel
Rama, A cidade das letras. O trabalho de Mario de Andrade, especialmente Macunaíma, também é importante
para se entender este processo; embora fosse menos aludido que Oswald, estava presente no Cinema Novo,
tendo sido filmado por Joaquim Pedro de Andrade, na crítica de Cacaso e em diversos poemas.
47
Cf. CÂNDIDO, A. Literatura e subdesenvolvimento. In: Educação pela noite e outros ensaios. 2.ed. São Paulo:
Ática, 1989, p.140-162.
97
evidentemente) com tais questões, o que o tornava candidato eleito a patriarca do
tropicalismo: este, diz Ismail Xavier, operava uma montagem de signos extraídos de diversos
contextos, linguagens e tradições, efetuando em suas colagens uma contaminação mútua do
nacional e do estrangeiro, da alta e da baixa cultura, do moderno e do arcaico, numa dinâmica
cultural feita de incorporações do Outro, em contraposição a uma idéia mítica de raízes
nacionais. Ao fazê-lo, e ao mobilizar o dinamismo do mercado – para usar o poder deste em
dissolver tradições indesejáveis, ao mesmo tempo em que introduzia neste dinamismo uma
leitura das tradições, por irreverente que fosse –, apresentava uma modernização do
entendimento da questão nacional48.
No entanto, esta modernização da experiência histórica – com base no processo
substitutivo de importações e no nacional-desenvolvimentismo ocorrido entre os anos 30 e 60
– e de sua compreensão era problemática. Na visão de Roberto Schwarz, endossada por
Cacaso, as contradições da imagem tropicalista, somando o novo e o arcaico nacional,
figuravam um abismo histórico real, mas as tensões e indefinições do estilo oscilavam entre a
crítica ao conservadorismo patriarcal-subdesenvolvido e a integração à modernidade,
percebendo, sem propriamente entender, que esta pressupõe e exige a coexistência do
arcaico/subdesenvolvido e do novo/moderno de forma indissolúvel, posto que isto é funcional
para o capitalismo em âmbito internacional e, nos países periféricos, tal coexistência adquire
força central e emblemática. Como na imagem tropicalista a oposição dos termos é insolúvel,
sem haver possibilidade de uma superação dialética – que poderíamos chamar de Aufhebung –
fixa-se uma imagem de Brasil de contradições irreconciliáveis. Apenas um pensamento
descolonizado e descolonizador poderia conceber um país distinto, mas o tropicalismo não o
fez, uma vez que se encantava pelo modelo técnico internacional e o estabelecia como
parâmetro comparativo para toda a América Latina, enxergando a história, portanto, com a
lente do colonizador. Em última instância, os tropicalistas assumiam a visão de mundo das
teorias desenvolvimentistas, já muito criticadas à época pelas concepções da teoria da
dependência. Em suma, ao sugerir um destino imutável para este Brasil multifragmentado,
determinado pela reatualização dos males do passado, e cuja superação só se daria segundo
um modelo desenvolvimentista de história, marcado pela cópia do parâmetro técnico do
primeiro mundo, o movimento se revelaria mais conservador e mais ligado ao “populismo” do
que gostaria.49
48
Cf. XAVIER, I. Cinema brasileiro moderno. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.30-31.
Cf. SCHWARZ, R. Cultura e política 1964-1969, op.cit., passim. No artigo Tropicalismo: sua estética, sua
história, supracitado, Cacaso retomava e explicava as críticas que Roberto Schwarz fizera ao tropicalismo neste
49
98
A despeito desta crítica, contudo, para o grande público o tropicalismo parecia oferecer
uma saída, nem populista nem vanguardista, segundo os termos da época. Por sinal, as
vanguardas, acusadas de elitistas por conta de sua linguagem e pressionadas por uma
necessidade de maior comunicabilidade e participação política, modificavam-se em certa
medida, aliando-se à nova movimentação, de setores do cinema novo (mais próximos da
poesia-práxis), da MPB, do tropicalismo, com o fito – diz Armando Freitas F°50– de ampliar
seu público e acessar os meios de comunicação de massa.
Para além dessa demanda, porém, cabe perguntar se não há um “algo a mais” contido na
busca de melhor comunicar: não se trataria, também, de tentar encontrar meios de dizer o que
não se sabia ou conseguia dizer? Como indicam as epígrafes acima, de Torquato Neto e
Capinam, que eram significativas personagens poéticas da Tropicália, esta era um grito, e as
pessoas gritam quando não mais cabem nas formas convencionais ou polidas de falar. O grito,
dizem os dicionários, resulta de um esforço para se fazer ouvir ao longe, é um brado de
socorro, um protesto, um clamor por atenção, um modo de exprimir dor, raiva ou qualquer
forte emoção. O grito é um rasgo da voz. O grito “entre o gesto e o precipício” de Capinan,
que tenta expressar o fechamento de toda uma geração “atrás do refúgio de um poema”.
A espécie de poética decorrente, gritante, rasgada e caleidoscópica, era então concebida,
por seus próprios atores, como um modo “marginal”, tanto pela sua diferença estilística
quanto por seu vínculo com a contracultura em geral. Tal “marginalidade” era valorizada
positivamente, em consonância com as leituras que os artistas brasileiros principiavam a fazer
de Herbert Marcuse, cujos livros estavam sendo traduzidos no país51. Em correspondência de
1968, Hélio Oiticica, sentindo-se “sufocado” e reclamando da “barra pesada” e do “terrorismo
de direita” que censurava suas obras, bem como da “gente mesquinha e idiota” que sabotava a
vanguarda artística, compreendia o comportamento marginal como aquele em que ocorre o
descondicionamento burguês e a incorporação do princípio do prazer. O momento era “de
síntese e reposição de valores”, havendo que se buscar a autonomia da arte e uma expressão
própria em contraponto às pressões do mercado e dos rivais, uma vez que compreendia a arte
como “outro ‘plá’ [...] Não somos comerciantes de arte para termos competição, nem
trabalho, cuja primeira publicação se deu em Paris, em Les Temps Modernes, n.288, 1970. Cf. BRITO/CACASO,
Não quero prosa, p.139-152.
50
Cf. FREITAS F°, op.cit., p.167-178. Sobre a “nova poesia” ver o próximo capítulo.
51
Ente 1968 e 1973 publicaram-se no Brasil: A ideologia da sociedade industrial, O homem unidimensional,
Eros e civilização, Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade, Contra-revolução e revolta, O fim da utopia, O
marxismo soviético, Razão e revolução. Há divergências acerca desta recepção de Marcuse no Brasil, pois
alguns autores discordam que haja no próprio Marcuse uma relação com a idéia de cultura e comportamento
“marginal” do modo como certos intelectuais brasileiros o interpretaram, especialmente Luis Carlos Maciel,
considerado um dos gurus daquela geração.
99
ideólogos”. Entre inúmeras considerações sobre arte contemporânea e arte no Terceiro
Mundo, retomava de Marcuse a idéia de que a liberação de forças imprevisíveis era um
problema central da atualidade e que, portanto, a especificidade da arte brasileira se constituía
pela dramaticidade de se lidar com a violência e as pesadas dificuldades, derivando daí uma
projeção de futuro anticapitalista em que o artista autêntico seria um “desclassificado” como
um marginal marcuseano52.
Na leitura de Cacaso, o significado do marginal era um conflito com os valores e
comportamentos representativos do mundo oficial, com o qual se sentia incompatibilizada boa
parte da juventude, intelectuais e artistas – a propaganda ideológica, que lançava mão de
refrões como “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Este é um país que vai p’ra frente, com uma gente
amiga e tão contente” eram especialmente irritantes para a oposição. A tensão que se
experimentava se traduzia na forma de dispersão e espontaneidade imediata de cada um, já
que se havia interrompido a comunicação com as camadas populares e a vida cultural se
represara “nos limites de classe da pequena burguesia e em setores médios ilustrados. Mas até
69, por aí, o tom predominante era crítico, a vivacidade era grande, as áreas intelectuais e
artísticas se procuravam e interligavam, as pessoas trabalhavam e pensavam juntas. O
tropicalismo, por exemplo [...]”. Assim, estar em contraposição era estar “marginal”, e esta
marginalidade se manifestava em duas esferas, no que concerne à produção cultural e
artística: torna-se vigente na cultura uma ideologia de contestação, ensaiando valores e
atitudes alternativos e assumindo formas variadas e mesmo contraditórias, ao lado do
problema material de fechamento do mercado editorial aos novos autores, que se viam na
situação de assumir a edição e distribuição de seus trabalhos com risco próprio53.
Ao longo da década de 70, a situação decorreu em iniciativas culturais que se tornaram
conhecidas como “marginais”, a despeito da imprecisão ou inadequação desta nomenclatura,
como se verá. Tais iniciativas se traduziram tanto numa imprensa “alternativa” (Pasquim,
Movimento, Opinião, entre inúmeros outros), quanto no teatro, na literatura, no cinema e, de
certo modo, nas artes plásticas. No entanto, se alguns setores do cinema, mormente os
afinados com os primórdios do Cinema Novo, dos anos 60, sintonizaram com este veio mais
marginal (o “cinema do lixo”, do período 1969-73, com Bressane, Ivan Cardoso, Sganzerla
etc.), a produção cinematográfica em geral era mais obrigada às exigências da indústria e do
52
Cartas de Hélio Oiticica para Lygia Clark, de 15/10 e 8/11/1968. In: LEMOS, R. (org). Bem Traçadas Linhas: a
história do Brasil em cartas pessoais. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004. p.410-431. Vale lembrar que é de Hélio
a autoria do termo “tropicália” e do lema “seja marginal, seja herói” (usado na bandeira já mencionada e em um
bólide) que encantava os jovens de então. Parte da correspondência entre Torquato e Helio, também discutindo o
tema, encontra-se reproduzida em Os últimos dias de paupéria.
53
BRITO, A.C. Tudo de minha terra, op.cit., p.134, ver também nota 4 para a citação.
100
mercado em virtude dos custos e da complexidade de sua produção e divulgação, e o que mais
cresceria na época seria a cinematografia pornográfica. Igualmente nas artes plásticas o
mercado daria o tom, com o crescimento dos leilões e galerias de arte54, malgrado a pujança
da “antiarte” de Hélio Oiticica, da estética pop-crítica de Rubens Gershman, Antônio Dias,
Carlos Zílio e outras correntes afins ao tropicalismo.
Entre o mercado e a autonomia estética e política, a derrota e a festa, o passado
tradicional e a modernização, os desdobramentos e significados de 1968 têm sido
continuamente reinterpretados e ressignificados. Por diversos motivos, este ano parece ser
mesmo uma vertigem e um grito, um grito na vertigem, que tanto propicia a imagem do
tempo curto demais para todos os desejos ali postos, como sugere Aarão Reis, quanto a
imagem inversa do “ano que não terminou” que intitula o livro de Zuenir Ventura. Seja como
for, o grito vertiginoso adentrou os tempos que se seguiram com suas línguas de fogo e, ainda
os dias de hoje, com sua verve desconstrutiva.
2.3. Um marco historiográfico
No caso do Brasil, à data “1968” é conferida uma importância historiográfica especial,
uma vez que se entenda uma data histórica não estritamente como um dia, mês ou ano, mas
como um processo complexo em que interagem questões sociais, políticas, econômicas e
culturais, nacionais e internacionais, cujas tensões convergem em um dado contexto, do qual a
data é expressão. Em outras palavras, é o signo de uma constelação histórica, como diria
Benjamin, e seus desdobramentos. No 1968 brasileiro, como apontado, convergem influxos
do movimento contracultural internacional, da Nova Esquerda, das ditaduras militares latinoamericanas e sua relação com a política internacional, especialmente o projeto norteamericano para a América Latina, da violência de Estado atingindo índices inusitados, do
processo de modernização nacional-desenvolvimentista e suas teorias econômicas, dos
instrumentos jurídicos envolvidos, das ações e reações dos movimentos sociais, das propostas
estéticas de atualização cultural e seus embates, do estado das artes em todos estes itens...
Dentro dos vinte anos da ditadura militar brasileira, como se procura mostrar neste capítulo e
nos que se seguem, 1968 simboliza este ponto de confluência de tensões de diversa ordem –
ainda que a ditadura date de 1964, o processo sócio-político-cultural desses quatro primeiros
anos desemboca posteriormente – e, como tal, pode ser visto como uma baliza histórica.
54
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES, op.cit., p.96-97 e VENTURA, loc.cit. Para o cinema marginal, cf. XAVIER,
op.cit., p. 67-72.
101
Especialmente no que concerne à história da cultura, o momento foi marcante. O Ato
Institucional n°5, de final de 1968, aumentando o nível de repressão estatal sobre o processo
político que vinha dos anos anteriores e derivando em violência crescente nos anos seguintes,
tem sido continuamente citado como divisor de águas na experiência cultural brasileira, de
modo que o conjunto “1968/AI-5” se configura como um marco. Nas palavras do poeta e
crítico Cacaso, referindo-se a este momento,
Entre 64 e fins 68, por exemplo, polemizou-se ardorosa e fartamente. A vida
cultural, nos primeiros cinco anos de ditadura, manifestou-se pra valer.Uma cultura
de esquerda, não sendo impedida, floresceu e radicalizou-se num regime de direita.
Foi a partir de fins de 68, com o AI-5, que a coisa mudou. Do ponto de vista da
cultura, de certa forma, a ditadura começou de 69 em diante. É este o momento da
brutalidade, do esmagamento. Por questões de cultura, corria-se perigo de vida.
Durante mais ou menos cinco anos, nossa vida cultural silenciou, cessaram as
divergências, as diferenças foram momentaneamente suspensas.55
Ou ainda:
Nossa vida cultural, cheia de viço e ideais, foi, do dia pra noite, reduzida a
escombros. O período que se abre a partir daí inaugura um capítulo novo em nossa
história cultural, que ainda não se esgotou nos dias que correm. É o tempo do
56
grande desbunde.
A percepção de que ocorreram, no passado recente, transformações profundas a ponto
de reorientar a vida e a cultura chama a atenção do historiador. A história do tempo presente,
desenvolvendo-se na segunda metade do século XX, tem seu marco na 2ª. Guerra Mundial,
cujas decorrências provocaram tão grande impacto que permaneceram por um tempo
invisíveis, até se tornarem objetos de numerosas investigações, que procuram compreender
seu caráter social traumático, além do econômico e político. A necessidade de lidar com tais
questões trouxe uma série de modificações à historiografia, que se viu chamada à construção
de novas percepções e novos conceitos, como já havia ocorrido com a arte e a filosofia.
Um processo semelhante se deu no Brasil, com respeito ao significado da ditadura
militar e seu momento de consolidação da violência, sobretudo a partir do AI-5. Carlos Fico
observou o quanto foi notável, no ano de 2004, o amplo interesse despertado pelos eventos de
reflexão sobre os quarenta anos do golpe militar no país, “diferentemente de dez anos atrás,
quando seminários acadêmicos sobre os trinta anos do golpe de 64 tiveram que ser cancelados
ou contaram com baixa freqüência de público”.57 Durante quarenta anos permaneceram pouco
visíveis para a sociedade brasileira, com exceção dos meios especializados ou particularmente
55
BRITO/CACASO. Você sabe com quem está falando? (As polêmicas em polêmica). In: Não quero prosa,
p.104. A visão de uma cultura tendencialmente de esquerda florescendo no regime ditatorial encontra-se em
SCHWARZ, Cultura e política 1964-1969, op.cit., e será retomada adiante.
56
BRITO, Tudo de minha terra, op.cit., p.131. Grifo meu. Vale lembrar que o texto é de 1978.
57
FICO, C. Versões e controvérsias..., op.cit., p.30.
102
interessados, os acontecimentos históricos que haviam criado impasses e exigido mudanças
deveras significativas na arte e no pensamento crítico, assim como no comportamento e na
ação política.
Isto nos convida a pensar seriamente sobre a dimensão traumática que tal momento
significou entre nós, compreendendo-se o trauma como uma cesura na experiência que tem
repercussões tardias. Mais especificamente, derivado do termo grego para designar “ferida”, o
trauma é o desdobramento tardio de um acontecimento ocorrido quando os sujeitos não
estavam preparados para sentir angústia, uma desorganização psíquica que viola a capacidade
de enfrentamento e domínio prático e simbólico do que foi dolorosamente vivido. Deste
modo, produz-se um “apagamento” da dinâmica mental que permitiria a elaboração
“cicatrizante”, por assim dizer, reduzindo então o poder de ordenar, estabelecer ligações,
suportar afetos e representar o acontecido, seja pela memória ou expressão. Individual ou
coletivo, o trauma como uma “experiência impronunciável” ou obscura é difícil de ser
apreendido, pois sua condição tardia (todo trauma compreende um período de latência e uma
repetição, como uma resposta traumática) e sua irrepresentabilidade estrutural frustram a
possibilidade de formação subjetiva e social (Bildung), vista como aprendizado experiencial,
bem como o processo de normalização contextual58.
Assim, coloca-se para os historiadores uma dupla questão: lidar com os numerosos
problemas advindos daquilo que Dominick La Capra denomina “trauma histórico”59, e, como
condição para a história do tempo presente, estipular os fatos balizadores de uma
transformação que tenham atingido o plexo de uma geração, afetando sua experiência e
transmissão. Em ambos os casos, a ditadura militar, em especial os influxos de 1968,
merecem ser, e têm sido, cuidadosamente considerados, isto é, trata-se de investigar a
58
Cf. DA POIAN, C. A psicanálise, o sujeito e o vazio contemporâneo. In: Formas do vazio: desafios ao sujeito
contemporâneo. São Paulo: Via Lettera, 2001, p.15-16; LA CAPRA, D. Escribir la historia, escribir el trauma.
Buenos Aires: Nueva visión, 2005, p.100 ss.; JAY, M. Songs of experience, modern American and European
variations on a universal theme. Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 2005. p.259.
Jay, La Capra e quase todos aos autores que tratam da relação história-trauma, remetem ao trabalho de Cathy
Caruth. Unclaimed experience: trauma, narrative and history (Baltimore, 1996), ao qual não consegui ter acesso
no período deste trabalho.
59
Dominick La Capra sugere a distinção entre trauma estrutural, como uma perda ou ausência universal, que
encontra sua formulação no mito (como Édipo, ou a Queda do Paraíso), e trauma histórico, que é específico no
tempo e no espaço, e produz vítimas cujo testemunho obscuro, como uma espécie de simulacro virtual do
acontecimento traumático, cabe ao historiador investigar. Neste ponto La Capra diverge de Caruth, para quem
esta experiência é inexprimível. Cf. LA CAPRA, op.cit., p.96-97. Para a sugestão de 1968 e suas derivações como
marco da história do tempo presente no Brasil, ver TEIXEIRA, F.C. Memórias, esquinas..., op.cit., p.10.
103
importância daquele momento como marco, traumático, da história cultural do tempo
presente60 no país.
E como recordar o passado recente é particularmente difícil, pois que pede o
enfrentamento de memórias dolorosas, nem sempre já cicatrizadas, bem como um
posicionamento político assumido e equilibrado, nem sempre já encontrado, cabe a este
processo de compreensão historiográfica, lembrar, registrar e novamente lembrar de “quem
não dança [e] não fala/assiste a tudo e se cala”, no coração do Brasil.
60
Para as discussões sobre os marcos e problemas da história do tempo presente, ver CHAVEAU, A. e TÉTARD,
PH. (org). Questões para a história do tempo presente. Bauru: EDUSC, 1999. E também: Uma história presente,
de René Remon, e Os intelectuais, de Jean-François Sirinelli, In: Remond. (org). Por uma história política. 2.ed.
Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 13-36 e p.231-270, respectivamente. O artigo supra citado de Francisco Carlos
Teixeira também discute a questão.
3. Vozes Interrompidas e Subterrâneas II:
Palavras e ciladas, vazio e fim de mundo (1968-1972)
Tude a paranóia os assaxinatos têm me persg
Timamente não sei razão não devo deixar pis
Ercito principmente a insegurança a total fal
Tias polítiquis mínimis no mais nu sem sol
Emos partir viver no exilis
(Luis Olavo Fontes, “Fug 42”)
3.1. Dos trópicos à margem... passagem à experiência
A dura tarefa de estabelecer o divisor de águas entre a Tropicália e a poesia que se
seguiu se revela até na dificuldade de nomeá-la, e todos que o fizeram ressalvaram que se
tratava mais de um nome, na falta de algo melhor, do que de uma classificação: “poesia póstropicalista”, para Heloisa Buarque de Hollanda; “nova poesia” para Armando Freitas F°;
“marginália” ou “pós-vanguardas marginais”, para Affonso Romano de Sant’Anna. Este,
entre os primeiros críticos desta transição, a partir de 1968 veria sobrevir, a uma poética
tropical e solar, “uma música e uma literatura underground, mais mórbida, esotérica,
penumbrista e decadentista, onde não faltam os orientalismos hippies”, efetuando uma
apologia da “curtição do momento” e do “lado sujo e sórdido da vida” como modo de se opor
ao sistema e se diferenciar da limpeza característica da bossa nova1. As opiniões de
Sant’Anna acerca desta “lixeratura”, como ele a chamou, recebidas como desabonadoras ou
pouco sensíveis ao fenômeno em questão, acarretou inúmeras reações por parte de poetas,
leitores simpáticos e críticos mais afins com sua linguagem, que passaram a procurar
compreender e legitimar aquela nova forma de fazer poesia. Ao longo da década de 70, os
jornais alternativos, como Opinião, Movimento, Gam etc., e mesmo a grande imprensa,
veicularam entrevistas, depoimentos, artigos e matérias diversas, de Cacaso, Silviano
Santiago, Bernardo Vilhena, Ana Cristina César, Eudoro Augusto, Leila Míccolis, entre
outros tantos, que, como Hollanda e Messeder Pereira, trabalharam “no sentido de demonstrar
como essa poesia, desmentindo o senso comum, foi extremamente atenta às crises político-
1
SANT’ANNA, A. R. Música Popular e Moderna Poesia Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980.p.180 e 246.
105
existenciais da história de seu tempo, e ainda como se empenhou, em verso e prosa, em
redefinir a maneira de pensar e viver a poesia”2.
Naquele quadro, contudo, sob o jugo da censura política e das contradições e respostas
polêmicas à emergência da indústria cultural, as transformações do processo cultural não se
davam de maneira imediata, tampouco linear. Armando Freitas F° vê, neste momento em que
as vanguardas se desmontavam, articulando-se com a música tropicalista e o cinema novo, o
surgimento da “nova poesia” mediante a atuação de poetas que, ao participar dessa discussão,
transformaram-se e, como “mutantes em transe e em trânsito”, realizaram a transição do
tropicalismo para a poesia marginal, ou melhor, prepararam o terreno para esta à medida que
abriam os jogos formais à experiência. Se o “eixo drummond-cabral” que referenciava as
vanguardas já começara, com os tropicalistas, a ser mudado para o eixo da “lição de 22” dos
primeiros modernistas – especialmente a obra oswaldiana que, junto com Luis Aranha, trazia
para o texto escrito as técnicas cinematográficas do corte e montagem, além da rapidez do
poema-minuto e do poema-piada –, agora se retomaria ademais a lição de outros modernistas,
como Jorge de Lima, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, e ainda João Cabral de
Melo Neto e Cecília Meireles, e, sobretudo, Manuel Bandeira3. Paulo Leminski sintetizaria,
muitos anos mais tarde: “isso de querer/ser exatamente aquilo/que a gente é/ainda vai/nos
levar além”4
Três conjuntos de questões se desdobram neste ponto, merecendo atenção. Em primeiro
lugar, a (re)tomada da experiência como matéria de poesia. A modernidade, diz Martin Jay5,
estabeleceu uma diferenciação entre forma e conteúdo e produziu uma espécie de fetiche da
forma auto-suficiente como lugar privilegiado da significação e do valor da arte.
Acompanhando este movimento, o próprio discurso crítico centrou-se nas questões formais,
de modo que a história da estética modernista (no mundo europeu/norte-americano) foi
freqüentemente escrita como o triunfo da forma sobre o conteúdo, ou o tema ou a experiência.
Problematizando esta configuração, Jay discute a existência do amorfismo e do disforme
como contra-tendência moderna – com base nos trabalhos de Georges Bataille, Rimbaud,
fotógrafos surrealistas e na música atonal, em que se apresenta o que não é comumente
2
HOLLANDA, H. E MESSEDER PEREIRA,C.A. Poesia Jovem Anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982.
(Literatura Comentada), p.11, nota 1.
3
Cf. FREITAS F°, A. Poesia vírgula viva. In: NOVAES, A. (org). Anos 70, ainda sob a tempestade, p.167-178.
Para a transição, ver esp. p.172.
4
Incenso fosse música., In: Distraídos Venceremos. 5.ed. 3.reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2002, p.93.
5
JAY, M. El modernismo y el abandono de la forma. In: Campos de fuerza, entre la historia intelectual y la
critica cultural. Buenos Aires: Paidós, 2003, p.273-291. Cf. também BÜRGER, P. Theory of the Avant-guarde 10.
impressão. Minneapolis/EUA: University of Minnesota Press, 2002 (Theory and History of Literature, v.4). Há
uma edição em português: Teoria da Vanguarda. Trad. Ernesto Sampaio. Lisboa: Vega Universidade, 2003.
106
formalizável no âmbito da tradição ocidental – e defende o modernismo como um campo de
tensões entre os impulsos formais, que têm como parâmetro “o olho do espírito”, e os
impulsos amórficos ou disformes, cuja referência é o corpo realmente existente, perecível e
marcado pela experiência do tempo, da deformação e da dor, que não é representável. Além
disto, como mostram os estudos de Peter Bürger, as vanguardas européias de início do século
XX, em contraposição ao formalismo modernista, voltaram-se ativamente para a experiência,
em sua dimensão existencial e política. Deste modo, uma arte que afirma a experiência
encontra-se perfeitamente dentro do conjunto de problemas da modernidade tanto quanto da
estética modernista. No caso do Brasil, há distinções a serem sublinhadas. Em virtude de
nossa história (pós)colonial, como já observado, o modernismo brasileiro não se mostrou, ao
contrário do europeu, adepto do formalismo ou da arte-pela-arte, mas, em busca da face
nacional, pensou com vigor a relação entre arte e experiência histórica. Inversamente, foram
nossas vanguardas estéticas dos anos 50-60 que, em nome da atualização das artes para
acompanhar o processo de modernização do país, tornaram-se mais propriamente esteticistas,
isto é, promotoras de um desenvolvimento da linguagem artística como um setor mais isolado
de outros setores da vida. Assim sendo, um movimento de reaproximação da experiência
significa, no Brasil, estabelecer laços com modernismo local, especialmente em sua primeira
geração, e com as vanguardas européias onde nossos modernistas beberam.
Entretanto, como já observado, uma preocupação generalizada com a experiência, teve
lugar a partir da segunda metade do século XX6, revelando-se uma questão de época ou
Stimmung, correlacionada aos efeitos da fugacidade moderna. Os poetas brasileiros teriam-no
sentido e partido em busca de referências que os permitisse elaborar poeticamente – com
variadíssimos níveis de qualidade – o que viviam, encontrando-as especialmente em Manuel
Bandeira e seus “alumbramentos”, ou seja, nas pequenas iluminações dos fatos cotidianos que
os tornavam imantados de carga poética e sentido vital.
Um segundo ponto se desdobra das reflexões de Antônio Cândido sobre o modernismo
brasileiro. Este movimento teria significado um novo, e particularmente forte, momento da
dialética universal-local que marca nossa cultura, pois ao realizar uma pesquisa lírica,
temática e formal, e indagar sobre os destinos humanos, sobretudo no Brasil, retomaram
temas que haviam até então ficado no ar, mas num plano diverso, de onde deriva seu teor de
ruptura: reconheceram a ambigüidade fundante da cultura brasileira, sua herança “latinaeuropéia” ao mesmo tempo que “mestiça-tropical”, derivada de culturas ameríndias e
6
Cf. comentário no cap.1, com base em Songs of experience, de Martin Jay. O mesmo vale para o Stimmung,
com base em Traverso e Gumbrecht.
107
africanas, e ao fazê-lo, moveram camadas profundas do inconsciente coletivo e pessoal e
culminaram por criar uma consciência literária liberta de recalques históricos, sociais e
étnicos. As tradições populares que antes eram vistas como “deficiência” da cultura local,
eram agora valorizadas e adquiriam estado de literatura7. Assim sendo, pode-se indagar se a
possibilidade de um desrecalque promovido pela literatura não estaria, sutil ou obscuramente,
compreendida no bojo da lição que os poetas dos anos 70 aprendiam com os modernistas? E
neste caso, o que havia a desrecalcar naquele novo momento?
Em terceiro lugar, trata-se de discutir os poetas da transição à poesia marginal, a “linha
média”, diz Armando8, para quem Torquato Neto, Waly Salomão (que por vezes assinava
Sailormoon, o navegante da lua) e Chacal seriam os mais representativos, junto com a revista
Navilouca organizada pelos dois primeiros. Chacal, porém, embora tenha feito algum poema
concreto e participado da revista, está entre os iniciadores da “geração mimeógrafo” e os mais
atuantes poetas marginais de meados dos anos 70, de cuja linguagem é um dos grandes
representantes. Menos conhecido no Rio de Janeiro no início daquela década, o curitibano
Paulo Leminski, no entanto, aproxima-se da linha média, por sua afinidade com os
concretistas de São Paulo, com os músicos tropicalistas e, sobretudo, por seu modo particular
de ver a poesia, optando por uma via transversal “entre a precisão da forma e a descompressão
do verso, a consciência do dizer e a paixão da palavra”, que o conduziu a uma espécie de
liberdade de linguagem atenta às exigências da construção formal, tanto quanto às
contingências do vivido, permitindo-lhe contaminações diversas e um caráter expressional
marcado pelo humor irreverente e coloquial, de feição oswaldiana9, conforme a necessidade
7
8
CÂNDIDO, A. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e sociedade. p.109-112.
FREITAS F°, idem, p.185. Uma discussão semelhante a esta se encontra em Brito/Cacaso, em artigo publicado
no jornal Opinião, junho de 1976, em que comenta a antologia de Heloisa Buarque, 26 poetas hoje, apresentando
a opinião de Silviano Santiago (no artigo “Poesia jovem: roteiro de velhas vanguardas ao Tropicália e ao
marginal mimeografado”, Jornal do Brasil, 20/12/1975), para quem o ponto de inflexão é Chacal, e a visão de
Heloisa, com que Cacaso parece concordar, situando a virada em Torquato e Waly. Armando engloba os três.
Estou aqui “selecionando” Torquato e Waly, aos quais acrescento a figura de Leminski. Cf. BRITO/CACASO,
Não quero prosa, p.46-47.
9
Cf. MACIEL, M. E. Nos ritmos da matéria, notas sobre as hibridações poéticas de Paulo Leminski. In: DICK, A.
e CALIXTO, F. (org). A linha que nunca termina, pensando Paulo Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
p.171-179., citação na p.172. A autora analisa o poema “Limites ao léu” em que o poeta apresenta seu próprio
paideuma. O poeta nasceu em Curitiba em 1944, descente de polacos e negros, motivo pelo qual se autointitulava “mestiço curitibano”. Estudou no mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde conheceu os clássicos
gregos e latinos. Abandonou dois cursos universitários, Letras e Direito, desenvolvendo seu auto-didatismo.
Poeta, judoca, tradutor, letrista de MPB, pai de três filhos, foi professor de Literatura e História em cursinhos de
pré-vestibular durante muitos anos. Também trabalhou em agências de publicidade e no Jornal de Vanguardas,
da TV Bandeirantes (1988). Ligado ao grupo concretista e aos tropicalistas, publicou em numerosos jornais e
revistas literárias, sendo os anos 80 seu período mais profícuo, a despeito do abalo sofrido pelo suicídio de seu
irmão e pela morte precoce de seu filho mais velho. Faleceu de cirrose hepática, em 1989. Uma curiosidade,
acerca da postura “marginal” de Leminski, além do descuido com a aparência e a saúde, é mencionada em sua
108
da época. Desse modo, se por um lado o poeta não se considerava marginal e fazia restrições à
falta de rigor dessa poesia, havendo até mesmo conflitado com Cacaso em uma mesa-redonda
sobre literatura10, por outro lado seu comportamento era caracteristicamente “à margem” e
“contra o sistema”, e suas declarações comportavam os problemas comuns de sua geração –
ele mesmo se afirmava pertencente à “geração 68” –, como se vê:
Já fui marxista. Mas acho que tudo está amarradinho demais na teoria marxista. Hoje
acho a ideologia nociva à poesia. Ela é apenas um dos instrumentos para entender a
realidade. A poesia é algo que deve obedecer apenas à sua sensibilidade e
inteligência […] eu não agüento mais pessoas que têm um estoque enorme de
certezas. Eu quero é a incerteza. […] A boa poesia nunca se impõe num primeiro
momento. Ela tem que se impor depois. A poesia é a surpresa, é o antidiscurso.[…]
Não vejo consistência na poesia marginal. Você pode ser contra a poesia concreta,
mas pelo menos ela tem o mérito de ser clara.11
Leminski, que por essa época escrevia em guardanapos de bar e qualquer retalho de
papel as notas para seu primeiro livro Catatau (1975), só encontraria contudo ampla
ressonância como poeta a partir de 1980, quando publicou uma reunião de seus poemas
escritos até então12, tornando-se uma das tônicas do meio intelectual, com seus poemas,
traduções, resenhas, programas televisivos. Assim, a melhor imagem constelar daquele
momento parece ser a figura controversa, angustiada e fértil de Torquato Neto.
Torquato Neto et al e tal
biografia O bandido que sabia latim., por seu amigo Toninho Vaz, que relata a recusa do poeta em ter carteira de
identidade, o que apelidava de uma bobagem freudiana.
10
Cf. VAZ, T., idem, p.58. A mesa foi promovida e realizada na redação da revista Isto É, em São Paulo, em
9/6/1982, para um balanço da arte de então, integrada por Cacaso, Ana Cristina César, Arrigo Barnabé, Régis
Bonvicino, Buza Ferraz, Carla Camurati, estudantes da USP, além de Leminski, que teria abandonado o debate
abruptamente por seu “baixo nível”. Depois, procurou aparar as arestas declarando que “nenhum lance de dados
abolirá o Cacaso”, numa referência a Mallarmé (“un coup des dés jamais n’abolira le hasard”), que era um dos
poetas do paideuma concretista. É provável que a situação se tenha criado em torno de poemas como “Estilos de
época”, em que Cacaso atacava o concretismo: “Havia/os irmãos concretos/H. e A. consangüíneos/e por
afinidade D.P.,/um trio bem informado:/dado é a palavra dado/E foi assim que a poesia/deu lugar à tautologia (e
ao elogio à coisa dada)/em sutil lance de dados:/se o triângulo é concreto/já sabemos: tem 3 lados.” Cf. também
SALGUEIRO, Wilberth Claython. Forças & formas: aspectos da poesia brasileira contemporânea (dos anos 70
aos 90). Vitória: EDUFES/CCHN, 2002, p.44. Uma opinião diversa encontra-se em SUSSEKIND, Literatura e
Vida Literária, para quem Leminski situa-se entre os marginais, por sua dicção próxima ao cotidiano, sendo mais
semelhante a Cacaso do que ele gostaria.
11
Entrevista ao jovem poeta Rodrigo Garcia Lopes, em 1982, citado por este em Meu encontro com a “besta dos
pinheirais”., p.51, In: DICK e CALIXTO, op.cit., p.49-53. Quanto à clareza, trata-se de uma opinião controversa,
uma vez que há poesia marginal clara e poesia concreta hermética.
12
O livro Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase, de 1980. Anteriormente, foi realizado o livro
de fotopoemas, Quarenta clics em Curitiba, com o fotógrafo Jack Pires, em 1976, pela editora Etcetera, Curitiba.
109
A vida breve deste poeta, diz José Castello, serve de “síntese da grandeza, mas também
dos abismos, que definem a cultura alternativa e rebelde dos anos 60 e 70”13. Nascido no
Piauí, viveu em Salvador, onde integrou o chamado grupo baiano, e depois no Rio de Janeiro;
se auto-exilou em 1968-69 (quando do decreto do AI-5, estava a bordo de um cargueiro, indo
para Londres e Paris, com a ajuda de Helio Oiticica), sofrendo, na volta, diversas internações
em sanatórios por depressão crônica e excesso de álcool e drogas. Um dos principais poetasletristas do tropicalismo, afastou-se após dolorosa desavença com Caetano. Sua coluna
“Geléia Geral”, no jornal Última Hora (RJ), era considerada underground por seu tom
polêmico e iconoclasta. Na verdade, com veemente desejo de chegar ao “osso das coisas”,
criticava com língua ferina a ditadura – tanto a de Estado quanto a da classe média, que dizia
odiar, a indústria fonográfica e seus festivais “inautênticos”, o conformismo e a arte engajada
de modo ingênuo. Sua experiência parecia se alternar entre um entusiasmo vanguardista e
contracultural, por um lado, e uma realidade triste e vazia, por outro: o “poeta da ruptura”,
como gostava de se definir, era também um poeta despedaçado14.
Em diversos poemas e canções, Torquato trazia à tona um sentimento de silenciamento
e incomunicabilidade, como em “literato cantabile”15:
agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado todo movimento
[...]
13
CASTELO, J.T., uma figura em pedaços. No mínimo. Disponível em: <http://www.nominimo.com.br/>. Acesso
em: 18 mai. 2005., resenha da biografia do poeta escrita por Toninho Vaz.
14
Estas informações sobre Torquato derivam de CASTELLO, op.cit., como também de Os últimos dias de
paupéria, obra póstuma do poeta.
15
TORQUATO NETO. In: Os Últimos Dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982. [1ª edição pela editora
Eldorado Tijuca, 1973], p.369-370. Há duas versões deste poema no livro (utilizo a primeira), como de vários
outros, uma vez que a obra foi organizada post-mortem, a partir inclusive de manuscritos. Na antologia de
HOLLANDA, 26 poetas hoje, encontra-se a segunda versão, ainda com ligeira modificação: “toda palavra guarda
uma cidade”.
110
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.
Começando por afirmar a linguagem como uma armadilha no tempo presente, o texto
continua exemplificando, com ironia de teor político e lingüístico, como isto se procede: se
todo gesto pode ser final, fatal, e se toda palavra é um gesto, resta não falar, não mover, não
mudar. Os pássaros anunciam do precipício (na outra versão se lê: “os pássaros sempre
cantam/nos hospícios”) a derrota das tensões, das crises e dos cismas – no duplo sentido – de
outros tempos. Eram certamente difíceis, pois “toda palavra envolve o precipício”, diz um
outro verso, mas eram tensões e cisões oriundas da vida em movimento, eram gesto e palavra,
agora imobilizados em uma cilada. Os versos que iniciam a segunda estrofe indicam
ambiguamente tanto que os derrotados devam agradecer aos vencedores e que não se fale
disto, quanto que a gratidão não é endereçada (o verso não rima, não tem ressonância interna)
e não se deve falar com os vencedores. A retomada dos versos, no final, sublinha com
sarcasmo a relação entre derrota, palavra de gratidão e silêncio. O poema, circular, se fecha
como inicia: com a impossibilidade de dizer, característica de uma condição traumática e
melancólica.
Torquato era um poeta a quem o sentido de um trauma não era estranho, e costumava
associá-lo a seu nascimento a fórceps e à difícil conjugação de um mundo paterno kardecista
com um mundo materno católico, ao que se soma, em certa medida, na sua percepção, sua
migração para os centros urbanos-culturais do país e da Europa, e a lide com o mundo de
todos, vicejante e cão. Mas, neste poema, a incomunicabilidade traumática ultrapassa a
dimensão pessoal, pois a referência político-militar se explicita no signo da guerra e, portanto,
a derrota é coletiva e histórica. Trata-se do âmbito do trauma histórico caracterizado por La
Capra, que, conjuntamente ou para além das condições pessoais e estruturais do humano,
produz cisões específicas em experiências sociais e, conseqüentemente, produz vítimas16
cujas formas testemunhais apresentam um jogo de luz e sombras, necessidades de falar e
simultaneamente calar, de grande complexidade. As sociedades modernas, continua o autor,
não possuem processos sociais e/ou rituais eficazes para elaboração de um trauma mediante o
luto coletivo; as perdas históricas, como qualquer perda, geram fantasmas ou vazios, que
16
Não se trata aqui de criar uma vitimização onde ela não existe, ou de exagerar uma dinâmica traumática que é
comum ao humano. Como diz La Capra, ao trauma estrutural – ausências fundamentais e fundantes do ser
humano – estamos todo expostos. Mas o trauma histórico, sim, cria vítimas específicas, com problemas
específicos, e fazer a distinção entre vítimas e perpetradores é crucial para a compreensão e elaboração do
processo traumático. A categoria de vítima neste caso não é psicológica, mas social, política e ética. Cf. LA
CAPRA, D. Escribir la historia, escribir el trauma, p.98. Para as demais discussões, cf. idem, p.85, 95, 197-198.
A respeito da anomia, cf. DURKHEIM, É. O suicídio. In: Durkheim. (Os pensadores). A questão é tratada adiante.
111
exigem ser nomeados e especificados para que as feridas se sanem. Nesse processo, ou na
ausência dele, as formas de expressar costumam ser confusas e imprecisas, os termos vagos,
os gêneros híbridos, os excessos e as hipérboles adquirem forte apelo, uma vez que significam
uma recusa das normas, sentidas como especialmente restritivas. Seria, possivelmente, mais
uma indistinção característica da reação traumática, visto que não se distingue a regra ética,
legítima e flexível, fundante de qualquer forma de vida em comum, sem a qual o humano se
atrofia e cai numa desorientação anômica, dos limites normativos injustos, que impingem uma
normalização em nome da exploração e de uma falsa conciliação, calando, prendendo ou
matando os transgressores como bodes expiatórios no altar da ordem autoritária. É
interessante notar que Torquato retirou, na segunda versão do poema, os versos sobre a guerra
e o precipício, rearranjando-os de modo mais lapidar e mais concentrado na questão dos
limites: “está vetado qualquer movimento”. Talvez os tenha considerado hiperbólicos ou
excessivamente irônicos ou ainda pouco passíveis de remodelagem poética, mas o fato é que
os calou e, se acentuou a violência contida na impossibilidade de dizer, vigente nos hospícios
e na “república do fundo”, retirou as alusões aos seus porquês e seus abismos. Com isso, o
sujeito lírico, também ele, cai na cilada das palavras...
Uma sensibilidade semelhante se encontra na letra da música “Marginalia II”17, com
Gilberto Gil, em que adquire um tom pungente:
eu, brasileiro, confesso
minha culpa, meu pecado
meu sonho desesperado
meu bem guardado segredo
minha aflição
eu, brasileiro, confesso
minha culpa meu degredo
pão seco de cada dia
tropical melancolia
negra solidão:
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
ou lá
[...]
aqui meu pânico e glória
aqui meu laço e cadeia
conheço bem minha história
começa na lua cheia
e termina antes do fim [...]
No fim do mundo, aqui ou lá (o poema também faz referência ao terceiro mundo), reina
a aflição da vida sem a abundância de suas fontes nutritivas (o pão seco), o desespero e a
17
TORQUATO NETO. Os últimos dias de paupéria, página não numerada, a partir da p.387.
112
incomunicabilidade (segredo) acerca de sonhar uma outra situação, a culpa dos degredados,
cuja condição inativa na pátria mergulha o poeta em melancolia e solidão, ironicamente em
contraste com a pujança dos trópicos (o texto faz referências a cascatas, palmeiras, araçás,
juritis etc.). O pânico e glória (in)confessáveis do brasileiro se abriga num núcleo de
experiência espacial-temporal, eivada de dor e beleza, pois que fortemente marcada pelo
signo do fim: o lugar é o “fim do mundo”, expressão que também significa algo reprovável,
que não tem cabimento; e o tempo é uma história inconclusa...
3.2. O “vazio cultural” e a palavra subterrânea
A percepção melancólica de uma história brasileira que terminava inacabada possuía
ampla ressonância social. O período logo após o AI-5 foi caracterizado à época como um
momento de “vazio cultural” e “falta de ar”. A questão foi nomeada e discutida em artigos de
Zuenir Ventura publicados na revista Visão, em julho de 1971 e agosto de 1973, como um
diagnóstico retrospectivo do estado da cultura brasileira naqueles anos, provocando impacto
no meio cultural. O balanço era realizado em contraposição à grande criatividade artística dos
decênios anteriores e oferecia
uma perspectiva sombria: a quantidade suplantando a qualidade, o desaparecimento
da temática polêmica e da controvérsia na cultura, a evasão de nossos melhores
cérebros, o êxodo de artistas, o expurgo nas universidades, a queda de venda dos
jornais, livros e revistas, a mediocrização da televisão, a emergência de falsos
valores estéticos, a hegemonia de uma cultura de massa buscando apenas o consumo
fácil. [...] Sem germes e sem herança, sem promessas e sem caminhos, sem busca e
sem questionamento crítico, sem o fermento da inquietação e sem a livre disposição
criadora, o que seria da cultura brasileira na década de 1970? 18
O jornalista considerava que a crise da cultura não advinha apenas da censura política,
mas também das próprias contradições, acima expostas, de uma cultura híbrida e em
transição, para as quais os artistas não encontravam saídas e respostas definidas. Transferir a
responsabilidade daquela cultura “anódina e insossa” somente para a censura estatal
denunciava uma certa infantilização e arrefecimento crítico da intelligentsia nacional, que
encobria seu “aviltamento qualitativo” e “descenso estético”, derivados de sua perplexidade e,
quem sabe, de seu próprio movimento de introjeção repressiva e autocensura. Traduzindo as
discussões culturais, os artigos caracterizavam a atmosfera cultural da época como “perplexa
diante de perguntas”, “desencorajada pela censura”, “impotente diante do AI-5”, “dilacerada
por dentro” e “pressionada por fora”. A arte de “fisionomia polimórfica, incrivelmente
18
VENTURA, op.cit., p.41.
113
camaleônica” era criticada em todas as suas formas, o que demonstra a confusão de valores
que imperava no Estado e na sociedade, não só entre os artistas, como entre seus críticos e
entre o público receptor em geral:
Se se apresenta eufórica, conformada, concessionária ou aderente, falando uma
linguagem vulgar, inofensiva, e pensando como uma retardada mental, ainda assim a
arte é acusada: ou de maus modos ou de baixo nível. Se se mostra descabelada,
marginal, distante e alheia, fugindo subterraneamente dos caminhos conhecidos e
sonhando com paraísos artificiais, é olhada como a perdição dos bons costumes. Se
finalmente assume um ar mais sério, crítico e resistente, não submisso, é censurada
como portadora do mal e da destruição.19
Parecia não haver saída e novos tratados teóricos se faziam necessários para dar conta
daquela “inexistente estética do silêncio e do medo”, que se apresentava como sintoma das
dificuldades de expressão, da emergência da censura interna ao lado da externa, da opção pelo
silêncio em alguns casos. O próprio “vazio” era uma metáfora para tentar descrever o quadro
cultural daqueles anos, cujo sentido se revela pelo fato de as correntes críticas dominantes no
período anterior, de imensa politização da cultura (1964-68), haverem perdido em boa parte a
possibilidade de influir diretamente sobre seu antigo público, marginalizando-se na nova
pauta cultural.
Tratava-se, principalmente, da vertente estético-política de cunho nacional-popular – de
matriz romântica e modernista, valorizando e mesmo idealizando “a nação” e “o povo” cujas
tradições buscava resgatar – que não suportava os golpes dos novos tempos modernos,
conservadores e autoritários, e para qual a censura, as prisões e exílios, ao lado da crescente
passividade política do público, significaram uma estocada praticamente fatal. Essa produção
cultural engajada, uma vez fracassada em seus intentos revolucionários e impedida de chegar
aos setores populares, acabou por ter de integrar-se aos circuitos do sistema cultural burguês
(teatro, cinema, disco, TV) e a ser consumida por um público já “convertido” de intelectuais e
estudantes de classe média20.
Sofria-se a desfiguração das utopias emancipadoras, realizada pelo contra-ataque
ideológico do regime militar, que recorria tanto à espionagem, à polícia política e à censura
como à propaganda estatal, utilizando os meios de comunicação de massa para veicular
mensagens “saneadoras” anti-comunistas ou “pedagógicas”, visando a educar a população
moralmente dentro do universo de concepções que a Assessoria Especial de Relações
19
20
VENTURA, idem, p.57.
Cf. SCHWARZ, R. Cultura e Política 1964-1969., op.cit., passim. A questão é retomada em HOLLANDA, H.B.
Impressões de viagem, p.35. Essa discussão da integração/cooptação será aprofundada no cap.5.
114
Públicas (AERP, instalada em 1969) considerava civilizatório21. Mas para tal desfiguração
utópica contribuía também o refluxo da ação política contestatória em todo o mundo após
1968, acompanhado de revisões no pensamento crítico, sobretudo no que concerne às leituras
de mundo marxistas, e suas derivações no campo intelectual.
Afinava-se com esta revisão crítica os princípios gerais das vanguardas, especialmente o
concretismo e o movimento tropicalista. O grande equívoco do esforço político da vanguarda,
diz Hollanda, consistia em ter caído na armadilha desenvolvimentista, acreditando que o
subdesenvolvimento nacional seria apenas uma etapa em fase de superação para um patamar
desenvolvido, cujo modelo de modernização eram as economias capitalistas centrais, o que os
colocava “numa posição colonizada e colonizadora”, embora o movimento tivesse o mérito de
haver discutido a modernidade e ampliado o debate cultural nos anos 50-60. Outro erro
residiria na onipotência da linguagem, em que se supõe que a palavra é de capaz de dizer
fielmente o real e transformá-lo, o que seria um equívoco das vanguardas: “Essa crença no
poder e na onipotência da palavra, quando levada a extremos, termina por revelar-se em
impotência, provocando a chamada ‘crise das vanguardas’, que promove violentas cisões e
revisões em muitos de seus integrantes”.22
Assim, o período sofria o abalo decorrente tanto da retração da vertente popularnacionalista, já mencionado, quanto da vertente oposta, dos concretistas-tropicalistas, que se
via, ademais, atingida pela prisão de Gil e Caetano, o silenciamento de outros companheiros
como Tom Zé, a ruptura de Torquato com o tropicalismo, bem como por sérias críticas, como
a de Schwarz, que os considerava ambíguos e por demais moldáveis às ingerências da
indústria cultural, em nome da modernidade, confundindo democratização com massificação
e conferindo ao seu verbo um poder demasiado: um dos problemas da atitude tropicalista
consistia em não perceber que “os elementos de uma alegoria não são transfigurados
artisticamente: persistem na sua materialidade documental, são como que escolhos da história
real, que á a sua profundidade”23.
Como se vê, o debate sobre o vazio dizia respeito a um inventário de perdas e danos
relativo ao passado recente. Àqueles que viam um esvaziamento da cena cultural se
21
FICO, C. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, J.
e DELGADO, L. (org). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (O Brasil Republicano, v.4), p.193-205. Utilizo o termo utopia com valor
positivo, pois, na linha de ressignificação conceitual realizada pelos frankfurtianos – inspirados em Ernst Bloch
em Princípio Esperança, – é compreendido como projeção futura e coletiva das melhores possibilidades
humanas em uma dada sociedade, e que, como tal, impulsiona a ação presente.
22
HOLLANDA. Impressões de Viagem, p.46-47. Citação da p.53.
23
SCHWARZ, R. Cultura e política..., op.cit., p.33-34. Trata-se de uma questão análoga à onipotência da
linguagem. Outros problemas serão discutidos adiante.
115
contrapunham os defensores da vitalidade e heterogeneidade do campo literário num novo
momento, sobretudo com o florescimento das tendências pós-tropicalistas24 e marginais, que
se colocavam, em graus diversos, mais ou menos próximas das vanguardas, do modernismo,
da contracultura e da questão nacional, mas todas efetuando uma revalorização da
discursividade, ao lado da canção.
Surge o verbo “underground”
Na linha tropicalista e contracultural, os pós-tropicalistas25 buscavam aprofundar a
atualização da linguagem e a relacionavam a uma opção existencial, de modo que a
descontinuidade e o mundo fragmentado, característicos da modernidade, marcavam
visceralmente sua estética e sua experiência de vida. Além da estirpe poética escolhida pelos
concretistas, passava-se a incorporar os poetas beatnicks norte-americanos e autores como
McLuhan, Marcuse, Norman Mailer. Uma “imprensa alternativa” surgia – Pasquim,
Bondinho, Flor-do-Mal – guardando um tom underground. A coluna jornalística de Torquato
louvava tais publicações e procurava enfatizar o significado prefixal (sub, sob) daqueles
qualificativos que entravam em circulação, num tempo em que a palavra necessária havia que
ser subjacente, pois não se podia protestar em voz alta sobre o chão:
Pois é: a palavra subterrânea debaixo da pele do uniforme de colégio que me vestem,
apareceu primeiro no pasquim, num Pasquim do ano passado, lançada às feras e aos
olhares tortos por Hélio Oiticica, o tal. A palavra subterrânea na seção Underground,
de Maciel. Simplifico e explico que subterrânea deve significar underground, só
que traduzido para o brasileiro curtido de nossos dias, do qual se fala tanto por aí.
[...]26
A referência a Luis Carlos Maciel não era fortuita. Utilizando sua formação marxista,
existencialista e contracultural, ele mantinha uma espécie de tribuna em sua página do
Pasquim, e passava a cumprir um papel de divulgador e líder geracional. À preocupação com
o “aqui e agora”, com a “revolução” do corpo e do comportamento, e o decorrente deboche
24
Ambos os termos, pós-tropicalista e marginal, são insuficientes ou inadequados para a compreensão do
fenômeno. Sigo aqui a denominação de Hollanda, que também a fez por mera “conveniência expositiva”, para
tentar dar conta da diferenciação das duas principais tendências novas, após o tropicalismo. Em especial, a
designação “pós-tropicalista” não se tornou muito corrente, mas parece válida para as vozes que vêm
imediatamente depois e ainda bem ligadas à dicção da tropicália e do concretismo. Affonso Romano falaria de
uma “pós-vanguarda”, em que a poesia se soltava tanto da música quanto dos recursos autoritários e
esterilizantes [sic] da vanguarda concretista e retornava à palavra escrita, deixando porém de ser um artefato
erudito para ser “curtição existencial”. Cf. SANT’ANNA, op.cit., p.113.
25
Como os vê HOLLANDA. Impressões de viagem, p.61-77.
26
TORQUATO NETO. A palavra subterrânea. Geléia Geral, Última Hora, 21/09/1971. In: Os Últimos Dias de
Paupéria, p.70.
116
contra os “caretas”, somavam-se agora as drogas, a psicanálise, o rock, gerando um
sentimento de forte recusa dos projetos políticos anteriores, tanto populistas quanto de
esquerda, e um progressivo desinteresse pela política, ou um interesse bastante enviesado,
configurando um dos veios daquela forma de viver que pejorativamente se apelidou então de
“desbunde”27. Na visão de Carlos Nelson Coutinho, à época um combativo lukacsiano, a idéia
marcuseana da “Grande Recusa”, que num primeiro momento servira de estímulo à
“impaciência revolucionária” da luta armada no Brasil, foi rapidamente transformada – graças
sobretudo à peculiar recepção de Maciel – em negação irracionalista de todo o legado da
cultura ocidental, inspirando a contracultura, ou mais precisamente aquela “versão tropicalista
da Kulturkritik romântico-anticapitalista” que vicejou no início dos anos 70 no Brasil28.
Na opinião de outros críticos, diversamente inseridos naquela movimentação juvenil,
tratava-se de uma crise típica da modernidade, que o tropicalismo já expressara e os póstropicalistas aprofundaram. A crise da razão no Brasil, dizia Messeder Pereira, devia-se às
mudanças sofridas, a partir dos anos 60, no projeto desenvolvimentista de nação, que
aglutinara diversos setores sociais num pacto populista que garantiria um certo
compartilhamento social dos ganhos. Os limites desse projeto, e sua ruptura pela instauração
da ditadura militar, trouxeram uma crise de confiança, inclusive na racionalidade tecnológica
que acompanhava a modernização, agora transformada em uma racionalidade estritamente
tecnocrática, em que a técnica se torna mero instrumento de dominação e repressão, num
projeto de desenvolvimento excludente e concentrador, conduzido, com violência, por um
Estado autoritário. Desenvolver-se-ia, a partir de então, de forma nebulosa e muitas vezes
dolorosa, uma nova percepção do processo modernizador como obrigatoriamente
contraditório, onde o arcaico não era mais contingencial e superável, mas contrapartida
estruturante do moderno29. De fato, vivia-se o fim de um mundo, como dizia a letra-poema de
“Marginália II”, cujo título também pode ser lido como referência aos que ficariam de fora
dos novos rumos modernizadores do país, ou àqueles que, na contracorrente, enxergavam o
avesso desastroso deste processo. Em tal quadro, os três eixos do debate cultural no Brasil,
27
A título de exemplo, segue trecho da coluna de Maciel, no Pasquim de 13/11/1969: “2) Se a conversa for sobre
psicanálise, pode ser contra, sem medo. No dia seguinte, você conta ao seu analista e ele próprio saberá
compreender. Ele é tão bacana, não é? Diga, portanto, que a psicanálise é uma invenção do século passado, que
não tem mais sentido no mundo de hoje. Quando lhe perguntarem por uma alternativa [...] responda com
simplicidade que são as drogas alucinógenas. [...] 3) ...Você deve referir-se à maconha, principalmente, como se
fosse coca-cola, tratando-a carinhosamente por ‘fumo’, para revelar seu grau de intimidade. [...] 6) ... Prefira
filosofar sobre a inutilidade histórica do teatro. Condene o cinema à mesma sina. Diga até que Godard já acabou
e que a única coisa que existe é o underground.” Citado por HOLLANDA, Impressões de viagem, p.73.
28
Cf. COUTINHO, C.N. Marcuse e a contracultura tupiniquim. In: Cultura e sociedade no Brasil, ensaios sobre
idéias e formas. 2.ed. Rio de Janeiro, DP&A, 2000, p.84-88. Cf. também Hollanda, idem.
29
Cf. MESSEDER PEREIRA, Retrato de época, p.78.
117
entre os anos 50-70, ainda conforme Messeder, sofrerão uma rotação de ângulo, tendo nos
pós-tropicalistas o ponto medial desse movimento: a) no eixo da relação entre arte e
progresso/tecnologia industrial, a mudança de sentido social do instrumento técnico provocou
uma desconfiança para com a modernidade semelhante ao que se via nas rebeliões
contraculturais de todo o mundo. Deriva daí a experiência chamada de “desbunde”, vista
como crise da juventude ocidental em oposição aos ideais capitalistas. O estilo de vida
baseado no hedonismo, da ludicidade, na erotização das relações sociais, na psicanálise e no
psicodelismo significavam um redimensionamento das formas consagradas de apreensão da
realidade e de experiência; b) no eixo do engajamento político-cultural, a derrota do projeto
político das esquerdas sob a ditadura e o estrangulamento dos canais de discussão e
engajamento pós-68 – restando as situações-limite da clandestinidade e da luta armada –
traziam dúvidas a respeito do encaminhamento e da natureza da luta política. Em resultado,
esta foi redimensionada, tornando-se o cotidiano uma alternativa sentida como concreta, para
ser o vértice da experiência cultural, de sua crítica e da política, de onde a politização do
cotidiano como marca das realizações daquelas gerações; c) no eixo da relação entre arte e
teoria, a derrota do pensamento de esquerda por um lado gerava insegurança e acusações de
“teoricismo” e “vanguardismo”, fazendo muitos jovens se precaverem contra a “retórica
intelectual”; por outro lado, as posturas contraculturais, contrárias a qualquer discurso
institucionalizado, criticando a lentidão no agir implicada pela reflexão teórica e afeitas ao
pensamento místico e ao uso de drogas como estados de consciência alternativos à
racionalidade ocidental, levavam a uma recusa do modo intelectual de leitura do mundo. Em
suma, o anti-intelectualismo, o anti-tecnicismo e a politização do cotidiano eram os três focos
da reorientação cultural ocorrida ao longo dos anos 7030.
Deste modo, diz Hollanda, a valorização da “marginalidade” urbana e psicodélica, a
recepção do pensamento místico e seitas orientais, a liberação erótica incorporando a
bissexualidade, a festa combatendo a seriedade existencial foram percebidas por aqueles
poetas como um comportamento descolonizado e ilegal, e portanto, como um gesto perigoso e
contestatório, assumido como político. Estava em curso uma mudança de foco nos interesses,
bem como um remapeamento na realidade31. De fato, deslocava-se em todo o mundo o eixo
da crítica política de uma idéia-práxis de “revolução” para uma atitude de “rebeldia” diante do
30
Idem, p.85-92. Note-se que a tendência ao anti-intelectualismo merece ressalvas: não se pode dizer que eram
refratários ao mundo intelectual poetas como Cacaso, Leminski, Torquato, Waly Salomão, Armando Freitas F°,
Chico Alvim, Carlos Saldanha, Haroldo Costa, Carlos Ávila, Ana César, entre outros, sem falar dos poetascríticos literários, como Schwarz, Silviano Santiago, Affonso Romano... o tema do anti-intelectualismo será
tratado no cap.4.
31
HOLLANDA, Impressões de viagem, p.75.
118
mundo, conforme os termos sugeridos por Otávio Paz para analisar as transformações sóciopolíticas em curso na época32. Esta questão, desdobrando-se da contracultura e dos
movimentos de maio de 68, associava-se, de um prisma mais econômico, a uma rebeldia dos
intelectuais e profissionais liberais contra sua própria proletarização, gerando como tal
posturas distintas em relação à modernização capitalista, à indústria cultural, ao
comportamento social, sexual e afetivo. Na concepção de Marcuse, as condições objetivas do
capitalismo naquele momento exigiam a incorporação de todos os trabalhadores, inclusive a
intelligentsia, promovendo a integração das diversas classes sociais na sociedade de consumo
e, portanto, arrefecendo a consciência revolucionária. Entretanto, grupos minoritários, mais de
classe média do que operários propriamente em sua composição, mantiveram um espírito de
ruptura em nome da autodeterminação e da emancipação, rebelando-se contra as engrenagens
capciosas da satisfação administrada, do poder brutal – já despido das formalidades,
hipócritas que fossem, da cultura liberal33 que demandava aparência de verdade e justiça –, e
da mercantilização de todos os valores.
Para a compreensão do quadro, contribui ainda a leitura de Hollanda sobre os processos
que afetam o poeta moderno: com base em Benjamin, Auerbach e Otávio Paz, a autora vê as
angústias pós-tropicalistas em relação com a crise do herói moderno, justamente num tempo
de fatalidade e horror que o exigiria; com a crise da figura arquetípica do poeta, como “grande
criatura” de dons especiais, ao mesmo tempo objeto de desejo e ridículo na modernidade,
conduzindo, como se vê em Baudelaire, a uma luta desesperada e à mescla do desprezível
com o sublime; com a crise dos sujeitos e dos significados dada pela fragmentação da imagem
do mundo, uma vez que o progresso técnico rompeu a continuidade de tempo e espaço,
acarretando também a desagregação do eu, que, obstinado em si mesmo, separou-se do outro
como elemento constitutivo da consciência, de modo que a poesia moderna se lançaria em
busca da alteridade, para reunir o que foi separado, e para isso tentaria devolver à linguagem
sua capacidade metafórica, como figura necessária para dar presença ao outro. No entanto, a
chave das representações artísticas modernas, já mostrara Benjamin, residiria no
procedimento alegórico, que, mostrando profunda desconfiança tanto da realidade quanto da
imagem, apresenta o mundo, o sujeito e seu outro – vários outros – em fragmentos, mas não
no todo34.
32
Cf. observações de Otávio Paz em diversos textos, como Convergências.
Cf. MARCUSE, H. A esquerda sob a contra-revolução. In: Contra-Revolução e revolta. Rio de Janeiro: Zahar,
1973, p.14-23. Ver também RIDENTI, M. a partir de Mandel, O fantasma da revolução brasileira, p.98-99.
34
HOLLANDA, Impressões de viagem, p.64-67. Heloisa diverge da crítica de Schwarz ao tropicalismo, para
quem a nova proposta sensível-formal, em última instância, não superava os impasses do populismo que
33
119
Embora a figura da alegoria sirva para melhor compreender o que se fazia, é preciso
lembrar que o caráter fragmentário e fragmentador daqueles sujeitos e suas obras poéticas
continha uma força de cisão muito profunda, chegando em diversos casos ao ponto limite da
loucura e da morte, que abrangiam naquele contexto uma carga de significação deveras
particular. Enquanto meio de (auto)superação de limites, a “loucura” era vista, e até
valorizada, como um modo de romper com a lógica sistêmica e com a racionalidade, fosse do
pensamento de direita ou de esquerda, porém ultrapassava uma atitude literária – que tem
tradição na história da literatura –, pois os pós-tropicalistas viviam visceralmente suas opções
estéticas, trazendo-as para o centro de suas vivências: “a partir da radicalização do uso de
tóxicos e da exacerbação das experiências sensoriais e emocionais, vimos um sem número de
casos de internamento, desintegrações e até suicídios, bem pouco literários”, lamenta
Hollanda35. A dor psíquica e as pulsões de morte falavam alto no mundo da palavra
subterrânea. São sempre situações extremamente difíceis para quem as vive ou com elas
convive, que, se têm raízes nos meandros insondáveis do inconsciente pessoal e familiar,
radica outrossim nos meandros da vida social e histórica. Novamente, e tristemente, é a vida,
obra e morte de Torquato Neto quem ilustra e fornece indícios dessas sofridas interseções:
... em sociedade tudo se sabe e eu estou é muito louco, viva deus, amigo.
compreenda: não está na hora de transar derrotas. é pelo outro lado: nós lidamos
com a indústria da inflação: vamos envenená-la, amigo: do lado de dentro,
morrendo: olhe, porque uma vez eu saí pra passear as pessoas não me chamaram de
volta nem fizeram a menor questão de obscurecer a transa: foi na base da família
brasileira: disseram: é covarde: eu passei três meses nos hospício, logo em seguida.
acusação – alcoolismo. e tomei injeção pra caralho. eu não fecho, almir, com essa
linguagem. eu lhe garanto que na geléia geral brasileira, aqui e agora, o demônio
está vencendo, mas eu não posso é desistir. escrevi lá: abaixo a geléia geral. três
vezes. as pessoas pensaram que era a coluna. tradução: não sabem onde é que vivem
e a alienação grassa.36
Navilouca como a vida
pretendia ultrapassar, não havendo portanto, um remapeamento da realidade propriamente. Segundo a autora,
Schwarz ainda estaria preso à visão de Lukács, que criticava Benjamin por sua valorização da alegoria, a qual
significaria, em sua concepção, uma perda da visão do todo, e conseqüentemente, perda do horizonte do futuro e
uma linguagem do desespero, incapaz de suprir as necessidades universais e históricas da arte. Cf. p.67 ss.
35
HOLLANDA, idem, p.78. Ver também Flora SUSSEKIND, Literatura e Vida literária, para a discussão sobre
literatura e loucura.
36
Carta para Almir. In: Os últimos dias de paupéria, p.346-348. Ver também, os excertos: D’Engenho de
dentro., de forte carga confessional.
120
Mesmo em sua dor, ou justamente por havê-la assumido na medida do possível, o poeta
mobilizou grande parte de uma geração de artistas. A revista experimental Navilouca, ou
“Almanaque dos Aqualoucos”, publicação-síntese desse grupo, em “primeira edição única” de
1974, foi concebida e organizada por Torquato e Waly Salomão desde bem antes (a coluna
Geléia Geral já a anunciava em 1971-72), com inspiração na Stultifera Navis medieval, navio
que circundava a costa européia recolhendo os desajustados de todos os tipos. Analogamente,
Navilouca abrigava os que consideravam marginais àquela ordem, e se fazia sob a égide de
uma nova sensibilidade, com um trabalho coletivo e multifacetado, empenhado na
experimentação radical de linguagens e na recusa do discurso institucional ou acadêmico.
Além dos organizadores, participavam da revista artistas plásticos, cineastas, poetas
concretistas, jovens poetas, músicos37. O primeiro poema, o soneto “sonoterapia” de Augusto
de Campos, trazia como último verso o índice esfíngico da revista: “só o incomunicável
comunica”. Com efeito, a maior parte dos textos levava a experimentação de sua linguagem
ao maior grau possível, às vezes a ponto de esgarçamento, como em Rogério Duarte, cujos
trabalhos – de músico, poeta, designer, cineasta, ator – guardavam o signo da experiência
limítrofe no sentido acima apontado:
Brutalmente a qualquer momento pode surgir a vida, eu sei que não estou preparado. O
medo que é sombra da luxúria, aproveitou-se do meu corpo inteiro como morada do seu
escuro. Eu sinto, quando estou falando com alguém, nitidamente a sensação de não
controlar a espontânea linguagem de loucura e sofrimento que torna como que
desconcertantemente ridícula (já que a cobre e nega) a comunicação esboço-vomitada. [...]
Hereafter all will be different, you need to get a very human face [...]38
Entre a vitalidade expansiva, até mesmo brutal em seu brotar, e a obscuridade do medo,
um discurso permeado simultaneamente de dor, desrazão e coerência escolhe uma língua
estrangeira para a afirmação utópica de um mundo de face mais humana. Por que certas
enunciações são efetuadas em outra língua, seja por opção consciente ou intuitiva, é toda uma
questão a ser considerada. Em geral, trata-se de dizer algo que soaria ao sujeito enunciador
impossível ou por demais estranho em sua língua materna. A questão se complica quando se
37
Sobre a Stultífera Navis ver HOLLANDA, Impressões de viagem, p.82. Há um exemplar da revista na
biblioteca do CCBB, Rio de Janeiro. A obra contou com trabalhos de: Augusto de Campos, Haroldo de Campos,
Décio Pignatari, Rogério Duarte, Torquato Neto, Waly Salomão, Jorge Salomão, Duda Machado, Chacal, Hélio
Oiticica, Lygia Clark, Stephen Berg, Luis Otávio Pimentel, Óscar Ramos, Ivan Cardoso, Luciano Figueiredo,
Caetano Veloso. Ver NAVILOUCA Nova Cultura, Almanaque dos Aqualoucos. Primeira edição única, especial
para Phonogram. Guanabara: Edições Gernasa, [1974]. Organização e coordenação editorial de Torquato Neto e
Waly Salomão. Editor responsável Lúcio Ubiratan de Abreu.
38
Segundo Hollanda, Rogério Duarte era uma figura importante neste grupo, “investido de um ‘saber superior’
avalizado por um bom número de leituras e de um ‘poder’ conferido pela experimentação sensível limite, até
mesmo próxima da loucura”, idem, p.81. Era amigo de Oiticica, em cuja correspondência encontram-se
observações deferentes a ele.
121
pergunta o quê é enunciado desta maneira enviesada em correlação com seu momento
histórico. Decerto, um bloqueio de outro tipo, que não a censura política, impedia o autor de
afirmar tempos humanamente melhores, a não ser que um sentido elíptico estivesse a
subentender uma intenção revolucionária. Ou talvez, o desejo do melhor do humano tenha-se
tornado, aos olhos daqueles tempos brutais, uma singeleza impronunciável, absorvida pela
dinâmica da incomunicabilidade traumática, uma vez que, observa Adorno, “as coisas mais
delicadas, abandonadas à sua própria inércia, tendem a culminar numa brutalidade
inimaginável”39. Ou quiçá se tratasse de um problema especificamente artístico, o de tentar
formular, nas palavras de Pignatari “os passos leves do vento/por entre/nos interstícios”. No
dizer de Hélio Oiticica, que criticava a tacanhez da sociedade brasileira, incapaz de
compreender obras experimentais, o gesto experimental, como um ato cujo resultado é por
definição desconhecido, consistia em algo mais do que arte experimental e precisava ser
positivado: “Criar não é tarefa do artista. Sua tarefa é mudar o valor das coisas”. Este parecia
ser o âmago da proposição poética de Waly Sailormoon, que em “Planteamiento de
Cuestiones”, reclamava:
Quueu não estou disposto a ficar exposto a cabecinhas
ávidas quadradas ávidas em reduzir todo esforço
grandioso como fosse expressão de ressentimentos por
não se conformar aos seus padrões culturais:
Atento para que aquilo que se sentia como um gesto de grandeza – lutar contra padrões
culturais considerados ultrapassados e mesquinhos – não fosse reduzido ou pervertido em sua
intenção, o poeta numerava suas preocupações, manifestando a intenção de que sua poesia
fosse lida como experimentação de novas estruturas, isto é, como “um modo de composição
não naturalista. Alargamento não ficcional da escritura”, pois não lhe bastava mimetizar o real
circundante, era preciso ampliá-lo. Por isso, “eu preciso de um sonho muito grande MUITO
GRANDE para não me acabar ou [repete] para não me acabar SUBDESENROLADO”, para o
que é preciso “produzir o melhor de mim pari passu com a perda da esperança [...] a
Inteligência não pode muito; é preciso PIQUE, resistência ao desgaste, ao estraçalhamento, à
devagareza, ao medo, ao (+) acanhamento, etc etc etc etc etc.” O recurso ao espanhol e à
intercalação de maiúsculas e minúsculas não eram igualmente ocasionais. Na derrota do
projeto de uma revolução sul-americana unificada, restava a palavra explorada em todas as
suas possibilidades vocais e gráficas, para dizer, quem sabe?, o que não se diz. Em
“(Prosseguimento do discurso Huracán – do mesmo autor; Waly, o fedayin)”, o poeta,
39
ADORNO, T. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. 2.ed. São Paulo: Ática, 1993, p.68.
122
disposto a “limpar o lixo emocional – remover o empanamento dos sentidos”, sobrepunha
assertivas, aparentemente díspares, como “A HISTÓRIA NÃO NOS ABSORVERÁ” e “ABAJO
LOS GÉRMENES DE POBREDUMBRE” ou ainda “Tenho fome de me tornar em tudo que não
sou”... A proposta do “Marinheirin da Lua (alma lírica paquidérmica)” almejava mares mais
vastos40. Mas não era tempo de singrá-los. Por ora, o que era cabível daquele projeto estéticopolítico-existencial da Navilouca talvez apenas se descortinasse, entre véus, como sugere o
verbo, no poema de Haroldo de Campos:
e nesta margem da margem há pelo menos margem [...] uma garrafa ao mar pode ser a
solução botelheiro de más botelhas [...] e quando a manhã for saindo você virá sendo [...] e
ainda tenho uma vez esta história é muito simples é uma história de espantar não conto
porque não conto porque não quero contar[...]
Poder e cilada da linguagem – sociedade e sujeito em crise
Ainda que se quisesse contar, o que se vê prioritariamente é uma linguagem entre a
dificuldade de dizer e a abertura de veredas, o que bem se traduz na imagem de cilada
levantada por Torquato. No entanto, isto não significa concordar com a crítica jornalística – e
sempre vale pensar em que medida ela não reflete o senso-comum – que se mostrava dura
com o comportamento “udigrudi”, cujas conseqüências políticas e existenciais não lhe
pareciam promissoras, pois se a palavra subterrânea considerava a sociedade como o reino da
desumanização, acabaria por se retrair, movida por um estado de espírito simultaneamente
crítico, abstrato e individualista: “embora marcada originalmente por uma inconformidade,
essa atitude vai resultar objetivamente numa aceitação resignada de que o mundo e as coisas
não podem ser modificados”41. Mas não era exatamente o caso dos poetas pós-tropicalistas,
entre os quais predominava a percepção da linguagem como artifício eficaz para driblar
padrões literários e políticos, para questionar formas dissimuladas de poder de qualquer tipo,
constituindo como caminho possível uma poesia que se queria combativa. A voz paranaense
de Paulo Leminski ressoava: “originalidade. radicalidade. marginalidade. como se comporta o
poeta no mundo industrial, no universo das linguagens industriais?” O poeta paulista Regis
40
Em matéria jornalística incluída na revista, sobre seu 1° livro, Waly faz várias referências a Marx, como p.ex.:
“tento cumprir os manuscritos econômicos, filosóficos, utópicos de 44. E ao mesmo tempo, supero a boemia
intelectual da época (o mal da época) tentando assumir a responsabilidade com a minha produção, percebendo os
seus limites, o tacanhamento dos editores e todos os etcéteras”. A leitura dos Manuscritos EconômicoFilosóficos situava Waly numa esquerda atípica para o momento – quando predominavam no cenário brasileiro
as orientações do PCB, vinculado à URSS –, bem como mostrava sua preocupação com os processos de alienação
e, decorrentemente, o desejo de uma experiência-consciência de um humano mais amplo. Note-se que também
Torquato falava em alienação, ver última citação (relativa à nota 36).
41
VENTURA, op.cit., p.64.
123
Bonvicino respondia com sua “descoberta, aprendizado, alegria e batalha. Sempre uma
batalha. Num período pobre e idiota. A força e a beleza da poesia concreta revolucionária”42.
A palavra poética, nua e insinuante, poderia e deveria ser trabalhada como instrumento de
comunicação de idéias e formas renovadoras e, enquanto tais, elementos de transformação
social.
E os tempos eram propícios a isto, tempos em que os signos possuíam grande
ressonância social, quando, diz um testemunho, “palavras cantadas e rimas valiam tanto
quanto fuzis”43. Exagero que fosse, porquanto incomparáveis em sua força destrutiva, estava
dada a crença no poder de fogo do verbo. “Uma palavra é mais que uma palavra, além de uma
cilada”, e por isto, dizia Torquato em numerosas variações, “a poesia é a mãe das artes/& das
manhas em geral”, “o poeta é a mãe das armas/& das artes em geral”, “a poesia é o pai das
ar/timanhas de sempre [...] poetemos pois”44. Assim sendo, se aquela poesia underground não
foi além do que poderíamos chamar de uma vontade de potência, tampouco cabia no lugarcomum simplificador que lhe fora atribuído. Waly Salomão redargüiria peremptório:
“Desbunde e desbundado são o que pode refletir o olho reificador do sistema”. Adorno
observa como a crítica burguesa, especialmente a crítica reacionária, chega a compreender a
crise da sociedade e do indivíduo, mas busca causas ontológicas, imputando a
responsabilidade disso ao indivíduo em si, sua vacuidade, mecanicidade ou fraqueza
neurótica, em vez de criticar o princípio social da individuação em crise. Contudo, a
sociedade não é um todo derivado da atitude imediata de homens em convivência, mas um
sistema de que os encerra, (de)forma e os penetra até a medula daquela humanidade que um
dia os determinou como indivíduos. A dialética do sujeito contemporâneo consiste em que o
ser, já em alguma medida reduzido e degradado pelo domínio da esfera de produção sobre o
corpo e os valores, é capaz de resistir enquanto esta esfera não se torna absoluta. Neste
interregno, em que um tipo de sujeito se dissolve sem que outro tenha emergido, a experiência
individual necessariamente se apóia no antigo sujeito. O valor da experiência subjetiva na era
de sua decadência, na modernidade tardia, reside em que a força do protesto passou para o
indivíduo que, por um lado, havia-se tornado mais enriquecido e diferenciado, mas por, outro,
enfraquecido pelo esvaziamento do mundo sócio-político, que é o outro pólo condicionante da
construção da subjetividade, num processo complexo que atinge seu ápice em estados
42
As citações dos poetas encontram-se em HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA. Poesia Jovem Anos 70, p.29. O
trabalho contém pequenos depoimentos de diversos poetas, que utilizo aqui como testemunhos de época.
43
TEIXEIRA, Memórias, esquinas..., op.cit., p.13.
44
Os últimos dias..., p.366, 372, 373. Um desses poemas tem a data de 8/11/71/&sempre, o que não parece
indício de retração da linguagem.
124
ditatoriais. Além do mais, se a história é uma sucessão de vitórias e derrotas, há que se
considerar, como fizera Benjamin, o que não se inseriu nessa dinâmica e ficou a meio
caminho, “os resíduos e pontos sombrios [....] é da essência do vencido aparecer em sua
impotência como inessencial, marginal, ridículo”45. Pode-se compreender, assim, o marginaldesbundado em relação às feridas da derrota política e da crise do sujeito no mundo
contemporâneo.
Igualmente indagado sobre os “desbundados”, Abel Silva, escritor e letrista de música,
observou haver mais de um tipo de desbunde, sendo o de Torquato especial, uma vez que em
sua fragilidade e solidão, realizava uma “obra de sintoma”, pessoal e cultural, que sua morte
veio sacramentar como testemunho de uma verdade, “a verdade do poeta no momento
secreto”, aquele poeta que havia sido marginalizado e sabia pensar no fim. A sensação
exposta por Abel ultrapassava uma vida particular, sua percepção da existência no início dos
anos 70 era a de um barco que afundara para todos em “um momento histórico
completamente original no Brasil [...] Foi o maior trauma coletivo brasileiro, foi a nossa
guerra civil espanhola, nossa Guerra o Vietnã [...] um envolvimento total, uma implosão”46.
A falta do trágico no mundo triste – testemunho de um poeta
A implosão incluiria os símbolos catalisadores do que se havia apresentado como as
duas opções da juventude politizada na virada dos anos 60 para os 70, a luta armada e o
comportamento contracultural. Conforme a percepção do estudante-guerrilheiro e presidiáriopoeta, Alex Polari, à medida que o regime ditatorial estreitava os espaços de participação
político-social, os caminhos-do-meio ficavam mais difíceis, de modo que
Foi isso precisamente que minha geração escolheu em 1969. Desbunde, piração ou
guerrilha, já que a militância ao nível do reformismo era negada. Quem optou por
alguma coisa intermediária optou geralmente pela integração total, pela corrupção
ou pela mediocridade. Resistência marginal só houve essas duas.47
A recusa do mediano ou da conciliação colocava aquela “geração” no limiar de uma
dimensão trágica – compreendendo-se a tragicidade no sentido goethiano de conflito
irremediavelmente inconciliável, dado ao homem que se enfrenta com as aporias do destino,
45
ADORNO, op.cit., sobretudo Dedicatória, p.8-10; aforismos 97 e 98, p.131-133. Citação na p.133. Grifo meu.
Entrevista de Abel Silva e Waly Salomão a HOLLANDA E GONÇALVES, A ficção da realidade brasileira. In:
NOVAES, Adauto (org). Anos 70, ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/Senac Rio, 2005, p.13146
132 e 136, respectivamente. Grifo meu.
Depoimento de Alex Polari, no texto de HOLLANDA e GONÇALVES. A ficção da realidade brasileira., op.cit.,
p.138.
47
125
com as experiências-limite e com a difícil constituição do elo entre dor e conhecimento – de
impossível viabilização social na modernidade e, ainda menos, na cultura brasileira nela
inserida, desenhada grosso modo por um traço antitrágico e por uma longa trajetória de
conciliações políticas48. As duas opções radicais de então se viam constrangidas entre o salto
trágico e o recuo diante do choque violento produzido pela morte de Lamarca, no sertão da
Bahia, em dezembro de 1971, e pelo suicídio de Torquato Neto, no Rio de Janeiro, em 197249.
A sensibilidade aguda e desajustada de Torquato constituiu, na época, uma das
principais antenas dos bloqueios postos à vida social. O poeta apresentava um certo senso
trágico que exercia entre seus receptores um misto de fascínio e repulsa, que se comprova
pelos momentos em que ficou isolado, mesmo por seus pares. Quando de sua desavença com
o tropicalismo, definira o movimento como “a ausência de consciência da tragédia em plena
tragédia”50, o que significava ter uma visão peculiar da experiência histórica em curso,
tornando-o incompreendido por sua concepção incomum ou, ao menos, “adiantada” em
relação aos que com ele se afinaram. Roberto Vecchi observa ter havido duas faces na
modernidade do Brasil, uma “rutilante” e outra “sombria e até tenebrosa”, tendo a segunda
ocupado um lugar menor em comparação às representações culturais dominantes da nação,
permanecendo na forma de resíduos trágicos nos tecidos narrativos. Na virada do século XIX
para o XX, portanto na aurora do moderno brasileiro, teria ocorrido um processo social de
“remitologização da cultura” – evidentemente vinculado ao nacionalismo – que os
modernistas, em suas expressões mais canônicas, acabaram por incorporar, relegando os
códigos trágicos nas manifestações modernas fundadoras na nação.
Neste sentido, se o modernismo desrecalcou elementos populares e étnicos, como
sugere Antônio Cândido, por outro lado contribuiu para recalcar em nossa história cultural a
compreensão trágica da existência, a lide social com os extremos e as aporias, especialmente
na modernidade, que se mantém entre nós como cacos discursivos que eventualmente se
reativam, mas desprovidos de sua profundidade genealógica. Assim, a forma trágica passível
de ser configurada na literatura brasileira mostra uma insuficiência, a insuficiência mesma da
tragicidade, que deixa “os rastros de uma presença que foi tentada e não vingou”, como um
48
Para o caráter antitrágico da cultura brasileira, cf. STERZI, E. Formas residuais do trágico, alguns
apontamentos. e VECCHI, R. O que resta do trágico: uma abordagem no limiar da modernidade cultural
brasileira. In: FINAZZI-AGRÒ, E. e VECCHI, R. (org). Formas e mediações do trágico moderno, uma leitura do
Brasil. São Paulo: Unimarco, 2004, p.103-112 e 113-126, respectivamente. Estes e outros artigos do livro
também trazem toda uma discussão do significado residual do trágico na modernidade e na literatura brasileira.
49
Cf. HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, idem, p.101.
50
Cf. CASTELLO, idem.
126
esvaziamento51. Os textos de Torquato Neto se enquadram nesta dinâmica, havendo
funcionado, em seu momento, como uma espécie de pára-raios. Em “Cogito”, um dos seus
poemas mais belos, o sujeito lírico tematizava novamente a impossibilidade de continuar um
projeto humano iniciado:
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim
Em um jogo de metonímias e metáforas – em que as relações de contigüidade (a parte
pelo todo) metonímicas se entrelaçam às aproximações metafóricas do que é diverso –, o
poeta constrói o texto em três partes, de acordo com os três tempos básicos da experiência,
passado, presente e futuro. Na primeira parte-estrofe, o sujeito lírico se qualifica como
“pronome/pessoal intransferível”, ou seja, o eu é irrevogavelmente si mesmo e também um
pro-nome, algo anterior e propenso ao nome que o designa. Neste espaço-tempo prévio, como
um prólogo, está aberta a possibilidade para algo que ainda não é, mas se anuncia. Tal como
na concepção de Oiticica o projeto da obra de arte é o pró-objeto, o homem de Torquato é um
projeto de si, iniciado em medida tão ampla que não coube nas limitações do seu momento
histórico. Neste sentido, a medida humana se restringiu ao parcial, o homem é pro-préhomem, parte metonímica de si. Em estudo sobre a arte brasileira contemporânea e sua
relação com o momento autoritário, Jaime Ginzburg chama a atenção para a experiência
inconclusa como uma característica dos contextos de catástrofe e desumanização, quando os
artistas e escritores buscam formas que, de algum modo, estejam vinculadas a uma
experiência delicada e fragmentária de constituição subjetiva52. Entre essas formas
51
52
Cf. VECCHI, op.cit., p.116-117, 123-124. Para Antônio Cândido, cf. as observações acima (nota 7).
GINZBURG, J. Cegueira e literatura. In: FINAZZI-AGRÒ,E. e VECCHI, R. op.cit., p.91.
127
expressivas, justamente a metonímia ocupa um lugar de destaque. O trabalho de Márcio
Seligmann-Silva53 acerca da memória traumática nas literaturas de testemunho demonstra
como o autor de testemunhos de acontecimentos excessivamente dolorosos é um ser repleto
de símbolos culturais que, como tal, domina em algum grau artifícios poetológicos, isto é,
uma lógica poética de se expressar, necessária nesses discursos que apresentam eventos-limite
vividos. A dificuldade dos testemunhos, porém, reside justamente em traduzir o teor particular
da experiência histórica experimentada ao universal da discursividade, de modo que as formas
de dizer testemunhais são mais indexais que simbólicas, nem sempre havendo clara separação
entre a mímese e o objeto mimetizado. A metonímia é justo o topos de linguagem dessa
contigüidade e da parcialidade. Por isso, as erupções metonímicas na dicção testemunhal são
como as ruínas da catástrofe, a figura demandada pela encenação da incompletude na poética
das ruínas, em que os silêncios, também eles, mimetizam as lacunas insuperáveis desses
falares – “destes dizeres tão calares” de Leminski: “É quando a vida vase./É quando como
quase./Ou não, quem sabe.”54
Na segunda parte, composta pela segunda e terceira estrofes, é o tempo presente que
perfaz o sujeito. Ainda metonimicamente, a subjetividade, cuja constituição depende das
articulações de todos os tempos, fica reduzida ao agora, sua parcela imediata, excluindo a
memória que ativa o passado (“sem grandes segredos dantes”) e as projeções que chamam o
futuro, que por não ser, carrega sempre a perspectiva do novo (“sem novos secretos dentes”).
O signo dos dentes se reitera nos textos de Torquato e cumpre aqui o papel de elo de ligação
deste poema com outros textos e do eu com o outro. Nos excertos “D’Engenho de Dentro”,
repetem-se as digressões que relacionam o eu intransferível ao nome, seja pela alusão ao
pronome, seja ao anonimato. A idéia de intransferibilidade do sujeito remete obrigatoriamente
à alteridade, a quem ou àquilo que não se é e para o qual seria desejável, embora inexeqüível,
transferir-se. Deste modo, o sujeito se vê nas fronteiras de seu próprio nome, seu pronome
pessoal reto (não há nenhum oblíquo, no poema) é fatalmente “eu” e não pode ser “ele” ou
“tu”... Igualmente o outro é si mesmo e se apresenta desdentado: “a melhor sensação é a de
53
Utilizo aqui, especificamente, As literaturas de testemunho e a tragédia: pensando algumas diferenças. In:
FINAZZI-AGRÒ e VECCHI, op.cit., p.24-25.
54
“Transmatéria contrasenso”, introdução datada de janeiro 1987, ao livro Distraídos venceremos. Há na obra de
Leminski diversos textos sobre a experiência da inconclusão-interrupção, como em Campo de sucatas: “saudade
do futuro que não houve/aquele que ia ser nobre e pobre/como é que tudo aquilo pôde/virar esse presente podre/e
esse desespero em lata?”, do seu livro póstumo, O ex-estranho. Mas o poeta traz ainda uma outra face dessa
circunstância, ao tratar das dificuldades colocadas aos sujeitos do terceiro mundo: “um dia/a gente ia ser
homero/a obra nada menos que uma ilíada//depois/a barra pesando/dava pra ser aí um rimbaud/um ungaretti um
fernando pessoa qualquer/um lorca um éluard um ginzberg//por fim/acabamos o pequeno poeta de província que
sempre fomos/por trás de tantas máscaras/que o tempo tratou como a flores”. Do livro Polonaises, 1980.
128
reconquistar inteiramente o anonimato no contato diário com meus pares de hospício. posso
gritar: ‘meu nome é torquato neto, etc. etc.’; do outro lado uma voz sem dentes dirá: meu
nome é vitalino; e outra: meu nome é atagahy! aqui dentro só eu mesmo posso ter algum
interesse: minhas aventuras, nem um pingo.”55 Naquele contexto vale não o que se fez ou faz,
mas o que se é – e quem conhece o próprio ser, senão apenas o nome próprio? Não há outra
forma de reconhecimento social, de si e do outro, de si através do outro e vice-versa, a não ser
(aqui cabe o trocadilho) pelo nome, que o outro enuncia com ausência de dentes. O outro é
introduzido no poema através desta imagem, índice da loucura dominada, do homem
destituído de sua agressividade, mas também da capacidade de morder os nacos da vida, do
brasileiro pobre desprovido de saúde mental e oral. Neste ponto, a metonímia se intercala ao
jogo metafórico, pois a história do homem singular é a história de todo um povo e este não
pode expressar-se com todas as articulações possíveis da fala, pois é configurado como “voz
sem dentes”.
A rima que se estabelece entre os termos dentes, presente e indecente, liga a segunda à
terceira estrofe, ainda sob a dimensão temporal do agora. Se a indecência remete a formas
eróticas não aceitas pelas convenções sociais, a sugestão é invertida – indecente é ser
convencional neste moldes – mediante a associação do indecente ao ser em pedaços,
fragmentado e sem ferrolhos que unam as partes do objeto corporal ou mental (analogamente,
os “parafusos soltos” são uma expressão coloquial que designa a loucura). A sensação de
abjeção ou obscenidade está vinculada à aparição do que foi recalcado e esquecido, cujo
retorno, na leitura freudiana, surte o efeito do ominoso, daquele “estranho-familiar” sentido
como insólito e nefasto. Na linguagem dos testemunhos, é comum o surgimento do abjeto, diz
Seligmann-Silva56, quando o desrecalque encena o obsceno, isto é o que está fora de cena,
mas que faz parte da voz de um sujeito que se enuncia como resto de um mundo destruído.
Assim, “indecente/feito um pedaço de mim” tematiza a indignidade da “vida danificada”,
conforme a formulação adorniana, nas várias facetas do dano, do pedaço que não se completa,
do que foi pré-concebido mas não encontrou as formas de se realizar ou se formulou fora dos
padrões em cuja circunscrição opera o reconhecimento social, do sofrimento derivado de tudo
isto, que não encontra remédio na sociedade que o gerou.
55
Sem título, datado de 12/10, encontra-se em Os últimos dias... bem como em HOLLANDA, 26 poetas hoje,
p.66-67.
56
Cf. SELIGMANN-SILVA, op.cit., p.26. Para o ominoso, também traduzido como sinistro, cf. FREUD, S. O
sinistro. In: Obras completas. v.3. 4.ed. Madri: Biblioteca Nueva, 1981, p.2483-2505. Freud deriva suas
reflexões do Unheimlich de Schiller: “tudo que deveria ter permanecido oculto, secreto, porém se manifestou”,
p.2487.
129
Alterou-se a fórmula cartesiana prometida no título: penso, mas não existo como pensei
ou como pensaram. Isto, porém, possui contraditoriamente inestimável valor. Em sua crítica à
condescendência inocente, Adorno considera que as manifestações de pequenas alegrias e
beleza sem responsabilidade reflexiva são expressão de ignomínia para a existência que se
constituiu de maneira diferente do comum, e que não encontra mais beleza ou consolo algum
senão dentro do olhar que encara o horrível, para resistir e sustentar, não obstante, a
possibilidade de algo melhor, o que exige uma implacável consciência da negatividade57. Aos
que desafinam o coro dos contentes – a imagem é do próprio Torquato – há um tipo de
redenção possível, na vida rasurada que ainda assim mantém laivos de dignidade humana
diante da destruição de seu mundo e da morte. É o que se vê na última estrofe de “Cogito”, na
terceira parte em que o eu se identifica com o tempo futuro pela vidência, a visão prognóstica
do porvir e do fim que, contudo, diferentemente da angústia profética, permite ao sujeito lírico
a experiência do presente pacificado, do homem quite com sua dimensão possível, sua mescla
de grandeza e ruína, sem ter perdido, no roldão destruidor do seu tempo histórico, a
consciência trágica da morte – apenas o homem e seu nome, diante do incomensurável,
segurando o valor da existência. Com os dentes.
A propósito, Torquato gostava de associar sua imagem ao vampiresco e havia mesmo
desempenhado o papel de vampiro no filme super-8 Nosferatu no Brasil, de Ivan Cardoso. No
cartaz do filme, como em Navilouca e no fotopoema “gélida gelatina-gôsto de mel”58, a
imagem da gilete chama a atenção. Conectavam-se nesta poética, os dentes vampirescos que
sugam das artérias a seiva vital e a gilete passível de cortá-las e esvair a vida. Associam-se os
instrumentos que sangram, pois que o sangue da vida e da morte é um só: é a própria imagem
do início e do fim, que tanto se repete nos seus textos. O suicídio do poeta foi um espanto para
amigos e leitores, mas faz sentido em sua poética e sua-nossa história. Apesar de ser inútil
tentar desvendar os motivos de um suicida, alguns estudos sobre a relação existente entre o
suicídio e a vida social são deveras interessantes, uma vez que se trata da eliminação de um
corpo que é ao mesmo tempo individual e coletivo, uma escolha subjetiva em meio às
múltiplas determinações do corpo social.
Pensando os quadros sociológicos do suicídio, Durkheim os insere numa das dinâmicas
que participam da “corrente coletiva exterior às consciências particulares”, uma vez que nem
57
58
ADORNO, op.cit., aforisma 5, p.19.
De autoria de Torquato, Luciano Figueiredo, Oscar Ramos e Ivan Cardoso, reproduzido em Os últimos dias de
paupéria, páginas iniciais não numeradas. Nos excertos D’Engenho de dentro também consta, em 7/4/71: “–
Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. são bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas
dão gilete pra se fazer a barba”.
130
todos os aspectos da vida social são materializados, nem pela arte, nem pela moral, restando
sentimentos vivos e difusos, espalhados pela sociedade como ecos de emoções e impressões
concretas. Não se trata, frisa o autor, de confundir o tipo coletivo com o tipo médio de uma
sociedade, mas de compreender que os indivíduos, e com eles os suicídios, são tensionados
pelo duplo movimento de serem conduzidos pelo fluxo social tanto quanto por suas
propensões pessoais. Como toda sociedade alia, em proporções que variam consoante sua
cultura, “o egoísmo, o altruísmo e uma certa anomia”, quando o equilíbrio destes elementos se
desfaz, aquele que prepondera se torna suicidogêneo. Entretanto, nem toda sociedade
apresenta especial propensão ao suicídio como ocorre na sociedade burguesa, onde a
“hipercivilização” que origina a tendência anômica e a tendência egoísta resulta também no
afinamento dos sistemas nervosos, “tornando-os excessivamente delicados; por isso, são
menos capazes de se dedicarem fielmente a um objeto definido, mais contrários à disciplina,
mais acessíveis tanto à irritação violenta quanto à depressão exagerada”, inversamente ao que
ocorre nas sociedades “primitivas”, onde se desenvolvem o altruísmo excessivo e uma
insensibilidade que facilita a renúncia59. Em suma, as condições sociais do suicídio são dadas
pelos excessos deste tipo de civilização, que produz momentos de ausência de regras e uma
tal interação entre subjetividade e objetividade que os indivíduos se tornam especialmente
suscetíveis a alterações emocionais patológicas.
Os estudos de Marx-Peuchet, de modo semelhante, perguntam pela natureza dessa
sociedade que propicia um número tão elevado de suicídios, considerando-os sintomas da
organização social deficiente, cuja contra-face é a insuficiência das vidas privadas, ou seja,
“um dos sintomas da luta social geral”, da qual os combatentes se subtraem, ou por estarem
cansados de serem vitimados, ou por se insurgirem contra a idéia de virem a figurar entre os
carrascos. Se a miséria é o maior motivo do suicídio, não é todavia o único: as classes mais
favorecidas também o praticam, impulsionadas pelos mais diversos fatores, das doenças aos
amores traídos, dos sofrimentos familiares às rivalidades, e mesmo “o desgosto de uma vida
monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido [...] e até o próprio amor à vida, essa força
enérgica que impulsiona a personalidade, é freqüentemente capaz de levar uma pessoa a
livrar-se de uma existência detestável.”60
59
Cf. DURKHEIM, É. O suicídio. In: Durkheim. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.163-202. (Os Pensadores).,
citação p.201
60
MARX, K. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006. p.24 e 29. Grifo meu. Trata-se de um capítulo das
memórias de Jacques Peuchet, diretor dos Arquivos da Polícia de Paris sob a Restauração francesa, que Marx, ao
traduzir para o alemão, alterou, introduzindo interpolações de próprio cunho.
131
Mantidas as devidas diferenças, ambos os autores observam a impossibilidade do
indivíduo permanecer isento à patologia social do mundo burguês. Para safar-se, diz Adorno,
seria preciso viver de tal modo que se fosse capaz de pôr termo à vida a qualquer momento, o
que faria emergir como triste verdade a doutrina niestzschiana da morte livre. De maneira
diversa do que pensavam os artistas do Jugenstil ou artnouveau, para quem era possível
morrer belamente, a morte “reduziu-se ao desejo de abreviar a infinita humilhação do existir,
bem como o infinito sofrimento de morrer em um mundo no qual há muito tempo há coisas
piores a se temerem do que a morte.”61
A morte, nestes casos, é concebida de maneira tal que é possível aproximá-la de uma
dialética trágica: morrer por amor à vida, dentro dos limites antitrágicos impostos na
modernidade, gerando irresolúvel tensão. Aquele “poeta das elipses desconcertantes, dos
inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua que caracteriza a modernidade”,
nas palavras de Leminski, era também um visionário da decadência e um poeta das
interrupções, inclusive de sua existência mesma62. E de certo modo, também a morte do
próprio Leminski, no final dos anos 80, aproximava-se desse campo de tensões, havendo sido
considerada por diversos amigos e críticos como um lento suicidar-se, na medida que se
conceba haver escolha no vício que arruinou sua saúde. Sua poética, nos últimos anos, foi
assinalada pelo tema da morte.
3.3. Efervescência cultural interrompida
Já bem antes, ao homenagear o amigo em “Coroas para Torquato”63, o poeta curitibano
fornecia indícios sobre as possíveis razões do sofrimento de toda uma geração de artistas no
modo como o contexto histórico era sentido:
um dia as fórmulas fracassaram
a atração dos corpos cessou
as almas não combinam
esferas se rebelam contra a lei das superfícies [...]
abaixo o senso das proporções
pertenço ao número
dos que viveram uma época excessiva
61
ADORNO, op.cit., aforisma 17, p.31.
Encontra-se no fotopoema “– EX – PIRA – L –”, de Waly Salomão em homenagem a Torquato, um sentido de
teor semelhante: “Torquato suicida [...]/Torquato não perdeu/Torquato per DEU/ DEU a vida”. Reproduzido
em Os últimos dias..., páginas iniciais não numeradas. Leminski citado por José CASTELLO, op.cit.
63
In: HOLLANDA, H.B. e MESSEDER PEREIRA, C.A. Poesia Jovem Anos 70, p.16.
62
132
Desalinhando os versos consagrados com que Manuel Bandeira terminou o poema
“Arte de amar” – “Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo./Porque os corpos se
entendem, mas as almas não” – bem como os ensinamentos pitagóricos acerca da
proporcionalidade (o poeta freqüentou, durante um período de sua vida, um templo
pitagórico), afirma o sujeito lírico o fracasso das fórmulas que um dia sustentaram um mundo,
que também foi seu. A “medida do impossível” e a “época excessiva”, agora fracassadas,
remetiam ao projeto de transformação social, política e humana que se fortalecera nos anos 50
e início dos 60, sob o populismo trabalhista (e a despeito ou em virtude dele), que se manteve
clandestino e ferido mas ainda pulsante na primeira fase da ditadura militar (1964-67), e que
fora golpeado de morte pelo AI-5 e seus desdobramentos ditatoriais. Consistia, nas palavras
de Marcelo Ridenti, no projeto dos “homens que se faziam novos, e tiveram o desabrochar
impedido pela modernização conservadora do capitalismo”, a qual obstaculizou a formação
de homens criadores e ativos, criativos portanto, em prol da (de)formação de homens
consumidores e passivos diante da história64. A experiência democrática e nacionalista dos
anos 1945-1964, quando também se propagaram idéias socialistas misturadas às trabalhistas,
configurando as ambigüidades e a complexidade do populismo brasileiro, havia selado
fortemente com um cunho anticapitalista a formação dessa geração interrompida, por assim
dizer. Como aponta Roberto Schwarz, se em 1964 o governo militar chegara a preservar o
meio cultural, tendo-lhe bastado cortar seu contato com a massa operária e camponesa, em
1968 seria “necessário liquidar a própria cultura viva do momento”, pois os estudantes e o
público dos melhores filmes, livros, teatro, música, já constituíam uma população
“politicamente perigosa”, de modo que era preciso substituir ou censurar os professores,
encenadores, escritores, músicos, editores... Na visão deste autor, o grande dilema do
movimento cultural nos anos 70 consistia numa espécie de dor de “floração tardia”, ou seja,
num amadurecimento democrático na área cultural após dois decênios de elaboração e
trabalho –os anos 50 e 60 –, justamente sob o regime ditatorial, quando as condições sociais
que o propiciaram não mais existiam, derivando em uma crise aguda da intelectualidade
progressista65.
Em numerosos testemunhos de época, os termos-chave, como um denominador comum
para rememorar o fenômeno, são uma “efervescência” que foi brutalmente “interrompida” e
64
65
RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira, p.18 (no “Prefácio Pessoal e político”).
Cf. SCHWARZ. Cultura e Política..., op.cit., p. 50.
133
terminou por se perder66. Esta efervescência testemunhada pelos sujeitos ativos daquele
processo
histórico
indicam
uma
experiência
de
sociabilidade
aprofundada,
um
compartilhamento de idéias, projetos e atitudes, traduzindo-se em expressão criativa e ação
política de grande intensidade – “a sensação de tocar com o dedo a História”, no dizer de Jean
Marc Van Der Weid –, cuja interrupção foi dolorosamente sentida. Deste modo, a
mobilização, a expressão artística e as projeções utópicas que antes se encontravam no plano
do plausível, agora eram sentidas como excessos e impossibilidades, ainda que mesmo assim
afirmadas pelos poetas. Um belo depoimento do professor e filósofo Leandro Konder
contribui para elucidar a percepção e o movimento poético de então:
[...] a minha primeira impressão, quando olho para trás, é a de ver ruínas
arqueológicas de uma cultura dizimada pelo AI-5, pela repressão, pelas torturas,
pelo “milagre brasileiro”, pelo “vazio cultural”, pela disciplina tecnocrática e pela
lógica implacável do mercado capitalista. [...] Quantas ilusões se desfizeram! [...]
Mas é evidente que nem tudo se perdeu: ficou o esforço, ficaram gestos de grandeza,
preocupações fecundas. E onde o pensamento político carecia de lucidez, a
sensibilidade dos artistas produzia criações cheias de encanto, livros, poemas,
filmes, canções. Obras cuja vitalidade não pode ser negada, porque ainda hoje
circulam entre nós e nos emocionam.67
Este encanto e vitalidade da arte, entretanto, não significavam uma lúcida vidência nem
um conjunto homogêneo de proposições, ao contrário, a pujança advinha de um esforço de
reação às ruínas, compondo um variado mosaico de vertentes, caminhos, busca de respostas.
No campo poético, o momento veio exigir a mudança de rumo e dicção não apenas dos “póstropicalistas”, como se viu, mas outrossim de poetas que vinham surgindo no final dos anos
60, como Armando Freitas Filho, Chico Alvim e Cacaso, entre outros, os quais transitariam
dos meios intelectuais para as ruas agitadas da poesia alternativa e “marginal”, que surgia
paralelamente e se afirmaria nos anos subseqüentes68. Em depoimento no aniversário dos 40
anos do golpe militar, que considerava uma festa fúnebre, Armando elegeu avaliar as perdas
daquela geração, cuja juventude foi cortada, segundo ele: “Vencemos um tempo, mas
66
Estes testemunhos se deram em seminários comemorativos dos 40 anos do golpe militar, realizados no
primeiro semestre de 2004 em diversas instituições universitárias e culturais, e acompanhados pela imprensa.
Recolhi pessoalmente informações, esta em especial, naqueles realizados pela UFF/URFJ/CPDOC-FGV e pela
UFRJ-CFCH/Praia Vermelha nos meses de março/abril, quando se realizaram diversas mesas-redondas com a
presença de escritores/poetas, cineastas, teatrólogos, professores, jornalistas, membros de movimentos sociais,
estudantis e da luta armada de então. Inúmeros são os termos para nomear esta “efervescência”: Schwarz dizia
que a sociedade brasileira estava “irreconhecivelmente inteligente”, op.cit.; Walnice Galvão fala em “ensaio
geral de socialização cultural” e Ridenti chama de “agitação e florescimento cultural e político”. Cf. RIDENTI. O
fantasma da revolução brasileira, p.152.
67
O depoimento foi recolhido, junto com diversos outros, por HOLLANDA, H.B. e GONÇALVES, M.A. Cultura e
participação nos anos 60, São Paulo: Brasiliense, 1982, p.91-92. Para o supracitado depoimento do então líder
estudantil exilado, já mencionado aqui, Jean Marc Van Der Weid, ver p.83-85.
68
O assunto será tratado nos capítulos 4, 5 e 6.
134
pagamos um preço, às vezes alto. [...] eu poderia ser uma pessoa mais completa do que sou
hoje”69.
A alusão à incompletude nos remete novamente aos problemas da constituição da
subjetividade e dos discursos testemunhais na contemporaneidade brasileira. O projeto
autoritário de formação social no Brasil, recorda J.Ginzburg70, afetava os sujeitos, que se
vêem impedidos de conduzir suas próprias trajetórias, acusando em seus textos o impacto
agônico dos processos de desorganização de suas referências e sentidos para o que seja a
relação indivíduo-sociedade e a própria constituição histórica do humano.
3.4. No campo das palavras minadas – trauma e reação na linguagem
No Brasil, como em toda parte, os poetas buscaram no humor e em diversos
subterfúgios da linguagem alguns recursos para lidar com tal estado de coisas. Antes de mais
nada, havia que combater um processo de perversão de sentidos posto em curso pelos
governos militares, não apenas mediante a propaganda oficial, veiculada nos sistemas de
rádios e televisão, como também nos documentos governamentais, nos textos jurídicos e nos
discursos presidenciais. A começar pelo golpe de 1964, que o regime militar auto-intitulou de
“revolução”, invertendo e chamando para si uma das idéias fundamentais do processo político
anterior, tradicionalmente assumida pelas esquerdas, para as quais a revolução significa a
modificação profunda da ordem capitalista vigente, e não sua manutenção71. O termo
“democracia” sofria também semelhante inversão. Segundo o discurso oficial, fazia-se uma
revolução militar para impor uma ditadura que garantiria a democracia e o desenvolvimento
no país desordenado por subversivos comunistas, em nome da segurança nacional, conforme
se deduz, a título de exemplo, do seguinte trecho do preâmbulo do Ato Institucional n° 2,
promulgado pelo governo Castelo Branco em outubro de 1965:
A revolução está viva e não retrocede. Tem promovido reformas e vai continuar a
empreendê-las, insistindo patrioticamente em seus propósitos de recuperação
econômica, financeira, politica e moral do Brasil. Agitadores de vários matizes [...]
já ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento
em que esta, atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na prática
e na disciplina do exercício democrático. Democracia supõe liberdade, mas não
69
Anotado por mim no Seminário 64+40 do CFCH/UFRJ, já indicado. Nascido no Rio de Janeiro, em 1940, o
poeta é considerado entre os melhores dessa geração pela crítica especializada, vencedor do prêmio Jabuti de
1985, com o livro 3x4, e do prêmio Alphonsus de Guimaraens, em 2000, com Fio Terra. Foi pesquisador da
Fundação Casa de Rui Barbosa e da Fundação Biblioteca Nacional, Secretário da Câmara de Artes no Conselho
Federal de Cultura, assessor da presidência da Funarte, onde se aposentou.
70
Cf. GINZBURG, J., op.cit., p.98.
71
Para uma discussão da apropriação do termo “revolução” pela ditadura militar, ver os livros de M.Ridenti.
135
exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação
política da Nação. Não se pode desconstruir a revolução, implantada para
restabelecer a paz, promover o bem-estar do povo e preservar a honra nacional.72
Tratava-se de produzir meios discursivos de convencimento da sociedade, ou seja,
elaborar uma argumentação lógica e fundamentada em noções de direito constitucional e
teoria política73. Na verdade, o regime militar recorria a diversas áreas de conhecimento para
esta fundamentação argumentativa. Ao estudar o significado do tema da “humanização do
desenvolvimento” e “desenvolvimento psicossocial”, que os presidentes Costa e Silva e
Médici, respectivamente, introduziram nos discursos acerca do planejamento econômico,
contrapondo-se aos planos governamentais anteriores que tratavam estritamente da dimensão
econômica, Renato Ortiz aponta sua incongruência contextual.
Desde o golpe de 1964, mudanças econômicas substanciais reorientavam a sociedade
brasileira para um modelo de desenvolvimento capitalista bastante específico, adquirindo o
processo de modernização uma dimensão sem precedentes. Não só o planejamento estatal se
incrementava com uma nova sistemática e organização, como se difundia em toda a sociedade
um ethos capitalista, de modo que o processo de racionalização não se confinava aos limites
da esfera administrativa, mas se estendia ao comportamento dos indivíduos. As técnicas de
planejamento, como parte dessa racionalização, inicialmente aplicadas na área econômica,
difundem-se para todas as esferas governamentais, alcançando a cultura, seja mediante a
reforma universitária voltada para a implantação do ensino técnico, seja mediante a criação de
órgãos estatais de fomento cultural que passam a organizar a esfera cultural. O Conselho
Federal de Cultura do MEC, instituído em 1966, havia consolidado concepções que abrigavam
uma tensão entre o progresso material do país, de um lado, e a cultura “espiritual”, de outro.
Havendo incorporado intelectuais tradicionais, recrutados em Institutos Históricos
Geográficos e Academias de Letras, o Conselho desenvolvera uma visão de cultura
alicerçada, particularmente, na obra de Gilberto Freyre, cultivando o passado nacional com
base nos grandes nomes da história e nas tradições folclóricas, compondo um conjunto de
valores materiais e espirituais acumulados ao longo do tempo, a ser preservado por sua
condição de patrimônio cultural. Derivam dessa idéia de patrimônio duas dimensões distintas:
a primeira, de natureza ontológica, concernente ao ser nacional brasileiro, como um substrato
filosófico invariável no decurso do tempo; a segunda, de natureza objetiva e material,
traduzida pelo acervo de bens legados pela história, cuja preservação requer uma estrutura de
72
Cf. trechos dos Atos Institucionais em CASTRO, F. História do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.
p.523-559. Documentos disponíveis em: <htpp://pt.wikipedia.org/wiki/> Acesso: 9 ago. 2007.
73
Cf. MORAES, D. “E foi proclamada a escravidão”: Stanislaw Ponte Preta e a representação satírica do golpe
militar. Revista Brasileira de História. n.47, p.68.
136
museus, arquivos e projetos, responsáveis pela conservação de uma memória asseguradora da
identidade nacional. Ao se adequar o discurso tradicional, regionalista, patriarcal e de
preocupações “qualitativas”, à ideologia de segurança nacional, ao espírito de cálculo do
planejamento econômico e à impessoalidade do trato capitalista, desenvolve-se um
descompasso que se expressaria na polaridade cultura/técnica. No discurso do Conselho, esta
polaridade se reproduzia pela categoria de “humanismo”: o homem brasileiro, tido como
naturalmente
humanista,
era
contraposto
à
sociedade
moderna,
dominada
pelo
“economicismo” e pelo “tecnicismo” da máquina, de forma que seria preciso separar o que é
singularidade popular daquilo que é massivo, fruto do processo de uniformização cultural
segundo modelos estrangeiros74. A expressão freyriana, “asfixia do humanismo”, foi retomada
para descrever o que ocorria com a cultura ante o avanço técnico típico de uma sociedade que
se industrializa rapidamente, como o Brasil de então. Tal debate certamente orientou as falas
presidenciais supracitadas, bem como os discurso dos ministros da cultura no período, Tarso
Dutra e Jarbas Passarinho, que incorporaram a tensão entre a dinâmica cultural e o progresso,
ao afirmarem a necessidade de emparelhar a cultura, concebida como valores espirituais que
elevariam a nação à condição de civilização, como complemento do desenvolvimento
tecnológico e econômico.
De qualquer maneira, a defesa governamental do humanismo naquele momento
ditatorial e de extremada violência, praticada como razão de Estado, soava suficientemente
despropositada para atingir as raias do absurdo. Ademais, uma vez incorporados pelo regime
ditatorial, os argumentos humanistas se veriam rasurados pela pecha do autoritarismo e do
tradicionalismo. Para além da defesa de conceitos, então, tratava-se de acusar o golpe-baixo
de se torcerem sentidos a torniquete, como uma crueldade exercida na carne semântica da
linguagem.
Alguns autores argentinos discutem o trauma a que a língua foi submetida durante a
ditadura militar em seu país (1976-1983), quando as possibilidades lingüísticas de
intercâmbio social ficaram calcificadas, posto que palavras, sintagmas e enunciados diversos
foram degradados pela ação repressora, que não se sustentara apenas na censura, mas também
em uma espécie de língua estatal que culpava a sociedade e que produzia enunciados
corrompidos, fazendo-os perder seu valor de designação. Slogans, eufemismos, toda uma
fraseologia que ocultava a violação dos direitos humanos são paradigmáticos deste processo,
74
Ortiz observa que estas discussões do CFC não apresentam afinidade com o pensamento da Escola de Frakfurt,
tratando-se de outro veio de raciocínio. Cf. ORTIZ, R. Estado autoritário e cultura. In: Cultura brasileira e
identidade nacional., São Paulo: Brasiliense, p.104. Para o restante da análise, p. 80-105.
137
percebido pelos argentinos como um arruinamento de sua língua por parte do regime
ditatorial. “As palavras [foram] forçadas a articular o horror mais inumano imaginável, para o
quê primeiramente foram transtornadas, desvirtuadas por meio de diversos procedimentos de
manipulação e degeneração, como os clichês ou frases contagiantes com o regime
bombardeava qualquer conjectura de discursividade dissidente”, diz Lespada75. A torpeza
brutal com que se corrompeu a linguagem se relaciona ao que foi definido por Hannah Arendt
como a impotência das palavras e do pensamento diante da banalidade do mal. No que tange à
arte – à função estética da linguagem que é criadora, geradora de novos objetos, contribuindo
para a fecundidade da língua –, esta também pôde ser mutilada, transformada em objeto de
repressão e aniquilamento, menos por ter sido esvaziada do que por saturada, pervertida,
vendo afundados na lama seus mecanismo de criatividade e retroalimentação. A saída
possível para a poesia foi tentar se formalizar como uma voz outra, alternativa à voz central
que o Estado se autogarantia pela censura: buscou-se um discurso de alteridade, nem
politicamente militante nem tampouco servil, criando um âmbito difuso, indômito, um tipo de
resistência como uma lógica enviesada, mas real, na contramão da cena desolada da época.
Teria emergido aos poucos dos próprios poetas um discurso crítico, num processo lingüístico
que buscava restituir uma nova capacidade enunciativa, tentando reorganizar discursivamente
os sentidos. Este processo de reparação, restituição e ressemantização lingüísticas, que não
estivera alheio a violentas polêmicas entre os poetas, veio a se desenvolver em amplitude, na
Argentina, no início do período democrático.
Não obstante as diferenças culturais entre as sociedades argentina e brasileira, algumas
semelhanças se fazem notar, visto que os poetas do Brasil tiveram igualmente que lidar com
uma linguagem corrompida e saturada, cujos sentidos retorcidos participavam da banalização
do mal e – o que se não for pior, é tão ruim quanto – da banalização das idéias de cunho
humanista que poderiam erigir-se em força contrapositiva. Eram tempos em que primava
“uma impossibilidade terrível nas palavras”, segundo o verso de Afonso Henriques Neto, em
“Seis percepções radicais”76.
Restou aos poetas buscar, nem sempre com sucesso, um lugar “alternativo” para sua voz
indômita e sua lógica enviesada. Em estudo sobre a resistência poética no contexto da
75
“Las palabras [foram] forzadas a articular el horror más inhumano imaginable para lo cual primero se las
trastocó, desvirtuandolas por medio de diversos procedimientos de manipulación y bastardeo como los clisés o
frases pegadizas com que el régimen bombardeaba cualquier atisbo de discursividad disidente”. Gustavo
Lespada. Manifestaciones literárias de la sombra. In: MANZONI, C. (org). Violencia y silencio: literatura
latinoamericana contemporânea. Buenos Aires: Corregidor, 2005, p.225-226. Para estas reflexões, ver também
Carlos Battilana. Diario de Poesía: el gesto de la masividad. In: idem, p.148-149.
76
In: O Misterioso Ladrão de Tenerife, p.38.
138
modernidade, Alfredo Bosi considera que à poesia restou somente ou a colaboração com o
sistema industrial ou maneiras específicas de objeção. Reagir literariamente passou a consistir
na criação de condições para a produção de sentidos contra-ideológicos, como forma de
resistência simbólica aos discursos dominantes. Entre as muitas faces que a poética resistente
costuma assumir, mencionadas pelo autor77, a expressão afetivo-confessional e o humor
consistiram nos principais recursos que a nova poesia brasileira dos anos 70 pôde encontrar,
ainda que registrando inúmeros tropeços. Em grandes linhas, cinco blocos reativos ou
conjuntos de respostas podem ser detectados na poesia de então, todos perpassados pela
expressão irônico-humorística e afetivo-subjetiva, bem como por muitos tipos de silêncio78.
a) humor: Evidentemente, desde o início se geraram reações por parte de setores sociais
de oposição, que se puseram a contestar o discurso do poder instituído, disputando –
especialmente nos jornais, mediante charges e crônicas – a representação correta dos
acontecimentos políticos, cuja interpretação passava, então, ao campo da lingüística e da
semântica, como mostra o trabalho de Dislane Moraes. Uma vez que a linguagem oficial
manipulava os fatos e a lógica, distorcendo os sentidos, cabia aos opositores, senão
propriamente contra-argumentar em público, o que era proibido pela censura, aos menos criar
um contra-discurso baseado em artifícios literários que provocam riso, como as citações
irônicas e satíricas, que denunciavam as contradições das declarações oficiais e expunham a
tensão entre o que os governantes manifestavam e omitiam, revelando a dualidade que se
estabelecia na vida política entre palavra e ação, aparência e realidade. Estrategicamente,
criavam-se mecanismos textuais que rebaixavam a imagem dos políticos e militares. O
Febeapá de Stanislaw Ponte Preta foi, até 1968, um dos principais lugares de elaboração
desse contra-discurso, seguido posteriormente pela imprensa alternativa, especialmente o
Pasquim. Caricaturavam-se os membros das forças armadas e dos poderes executivo e
legislativo de todas as instâncias...
Um recurso freqüente dos humoristas consistia em associar os militares à figura de
animais, mormente o gorila, o cavalo e o cão, bem como o rato para indicar o caráter
77
Bosi fala das seguintes faces da poesia de resistência, ainda que “condenada a dizer apenas resíduos de
paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender”: aquela
que propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica e da natureza); “a melodia dos afetos
em plena defensiva (lirismo de confissão que data, pelo menos, da prosa ardente de Rousseau)”; a crítica, direta
ou velada da (des)ordem estabelecida (vertente que inclui o humor/a sátira/a paródia e o epos
revolucionário/utópico). Cf. BOSI, A. Poesia Resistência. In: O ser e o tempo da poesia, p.142-145.
78
A questão da resistência poética e do silêncio, enquanto uma das tônicas do debate da época, será tratada
especificamente no capítulo 5, bastando por ora levantar rapidamente as principais reações/problemas que já se
iniciavam desde final dos anos 60 e surgiram ao longo da pesquisa sobre a resposta dos pós-tropicalistas, nos
quais me detenho especialmente por serem o tema central deste capítulo.
139
ameaçador e traiçoeiro de uma polícia violenta e imiscuída com organizações armadas extralegais, como o Esquadrão da Morte e o Comando de Caça aos Comunistas. Tampouco os
trabalhadores escapavam, tendo sua passividade, ingenuidade ou perplexidade caricaturadas,
por exemplo, pela imagem da vaca (Stanislaw) ou pelas intermináveis discussões da graúna e
do bode no sertão do Nordeste (Henfil). A ridicularização paródica ou o jogo satírico de
estereótipos, que inverte a relação entre fortes e fracos, mostravam pelo avesso as trapaças
praticadas pelo discurso oficial. Aquele humor, recorrendo aos procedimentos literários que
discutem assuntos sérios mediante o cômico, buscava o que se chama de riso fraco,
reflexivo79.
No entanto, isto não se processa de forma simples na sociedade. A disputa pelos termos
se vincula ao papel social do jargão, que, como observa Oehler, consiste em dar significado
ao momento histórico segundo um modelo pré-existente, reorganizando as novas
configurações segundo um conjunto de pré-concepções, de maneira a dar continuidade a um
projeto. Mas, contrariamente, faz parte dos movimentos de reelaboração histórica se despojar
dos jargões, o que tanto pode significar a criação de um novo corpus conceitual, que seria
propriamente uma nova teorização – que não era o caso em questão –, quanto um processo de
inversão ou perversão de clichês, que vem a recalcar conceitos e visões que foram derrotados
na luta política. Deste modo, o humor, como ars poetica para os vencidos, também ocupa uma
dupla posição no trabalho de luto social. As prestidigitações lingüísticas e jogos de palavras
são recursos para combater a censura, criando substituições táticas, analogias, alusões,
associações, que, como “feitiçarias evocatórias”, exigem um leitor cúmplice.
Reside neste ponto o problema: um processo de dor social pode provocar a piada tanto
quanto o esquecimento (ainda neste caso, restam detalhes, mais ou menos significativos, posto
que sempre há uma memória involuntária e indelével de uma atmosfera social), decorrendo
em leituras geracionais distintas. Por variados motivos, intencionais ou inconscientes, se
algumas leituras insistem em lembrar, outras têm pressa em apagar vestígios. Assim, o humor,
ou a poesia irônica e satírica, ao deslocar o pathos para figuras marginais, para outras
configurações de sentido, aloca os termos políticos em contexto semântico estranho, como um
procedimento cifrado, capaz de resultar numa recepção diferenciada da orientação cômicocrítica. As alegorias animais, por exemplo, podem ressoar como uma alusão à bestialidade,
em contraposição à civilidade pretendida do processo histórico em curso, mas podem todavia
se inclinar à naturalização do mal humano muito comum em momentos de crise – quando se
79
Cf. MORAES, D. “E foi proclamada a escravidão”: Stanislaw..., idem, passim.
140
retoma uma visão pessimista e odiosa do homem e do mundo, apoiada em sua maldade
“natural”, consoante ensinam as tradições filosóficas de base estóica, cristã ou budista –,
dimensão política e histórica80.
Tal diluição se agrava com uma outra faceta da cultura brasileira, a que evita lidar com
o mal-estar e a discussão sobre o mal para além do imaginário cristão – casos em que seria
“coisa do diabo”, de pessoas ressentidas ou de vãs indagações metafísicas que se desfazem no
ar – recebendo o tratamento irônico de Carlos Saldanha, no poema intitulado “Zum e
Metafísica”, a começar pela designação dos personagens: Bacamarte, a arma de fogo tosca e
curta que no sentido figurativo indica o sujeito imprestável e pesadão, dirige-se a seu mestre,
como sói acontecer nas escolas orientais, cujo nome profético remete à tradição bíblica:
“Porque ó Venerável, existe o mal?”
Indaga o ressentido Bacamarte.
“Eu é que sei?”, brada Malaquias,
“Porque não é o mundo
em forma de livro,
com ilustrações sem sépia,
ou hachurado grosso,
ou escrito em papel de arroz?
Enfim, vamos parar
Com perguntas tolas
E vá me buscar uma cerveja.”81
A promessa latente de um ensinamento profundo sobre a existência humana se esvai no
final imprevisível, característico do humor, quando se resolve a questão não com uma
resposta, mas com a desqualificação da pergunta como tolice. Sendo o mundo naturalmente
ilegível, desiste-se de procurar entendê-lo.
E ainda que se buscasse, o pensamento requerido para estabelecer as necessárias
articulações filosóficas e históricas se via diante das diversas armadilhas postas no campo da
linguagem sob a ditadura militar, exigindo recursos extras para o trabalho de resistência, os
quais não eram de fácil aquisição e nem todos os poetas surgidos na época deles dispunham.
80
A partir de OELHER, D. O velho mundo desce aos infernos, esp. p.86-88; 110-111; 125-7; 138; 143; 181; 199201; 239. O problema da naturalização do mal humano reaparece em várias circunstâncias e será retomado
adiante.
81
In: HOLLANDA. 26 poetas hoje, p.31. O poeta, que depois passou a assinar como Zuca Sardan, fazia desenhos
acompanhando seus poemas, o que acentua seu teor lúdico, mas sempre de corte muito irônico. Nascido em
1933, formado em arquitetura, mas fazendo carreira na diplomacia e na poesia (tendo vivido em várias cidades,
mora em Hamburgo, na Alemanha, segundo informação de 2004), o autor já fazia seus “gibis”, manuscritos,
desenhados e mimeografados a álcool muito antes de surgir o surto de poesia marginal dos anos 70, como se
verá nos próximos capítulos, e ao qual Saldanha foi incorporado. Para Flora Sussekind, trata-se de um humor
gráfico-verbal que brinca com o “sujeito-biográfico” dominante nos textos dos anos 1970. SUSSEKIND, F.,
op.cit., p.19-20.
141
b) desistência: Em princípio, a possibilidade da desistência se fazia plausível e, sem
dúvida, muitos se entregaram a esta via, quando, no meio do caminho da vida, encontraram-se
em uma selva escura. O próprio tema da desistência se tornou matéria de poesia, como revela
o poema de Capinam, “Poeta e Realidade (O Desistente)”:
Vou tentar a desistência [...]
– sendo fatalidade, fico aqui –
se em tudo existe a própria máquina
pouco acrescenta ir ou não ir.82
Mediante um movimento mimético, em que a voz lírica em primeira pessoa imita um
modo de pensar dominado pela tendência fatalista diante das engrenagens sistêmicas, o poeta
advertia sobre um posicionamento ou conduta factível naquelas circunstâncias. Procedimento
análogo se vê no seguinte texto de Antônio Carlos Secchin:
Há um mar no mar que não me nada
e não se entorna em ser espuma ou coisa fria.
Me sinto cheio de palavra e de formato,
murado em mim sob a ciência desse dia.
Na sonância do que vive,
minha fala é desistência,
e dizer é corroer o que se esquiva,
reter a letra a cicatriz do som vazio.
Sou apenas quinze avos da loucura,
a dar um nome à ironia do que dura.83
Um sujeito lírico repleto como um mar murado que, embora “cheio de palavra e de
formato”, não tem meios de entornar, apresenta-se no fio tenso entre um falar que é desistir ou
tentar corroer loucamente algo que se esquiva, como o sinal restante (letra, cicatriz) de um
som esvaziado, porque ferido, e que todavia ironicamente perdura, pedindo um nome como
pedem as dores, para que possam sanar. A referência à ditadura através da rima (“do que
dura”) consistia em um dos recursos alusivos da época, ligando a dor do espírito ao contexto
histórico-político.
82
José Carlos Capinam, In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.83. Nascido em Esplanada (BA), em 1941, Capinam é
poeta e compositor, tendo feito canções em parceria com os tropicalistas, como Gilberto Gil (atual Ministro da
Cultura) e Geraldo Azevedo, algumas das quais se tornaram bastante famosas, como Soy Loco por ti América,
Ponteio, Gotham City, Miserere Nobis. Foi Secretário de Cultura da Bahia em 1986 e publicou livros de poesia
ao longo dos anos 80 e 90.
83
Antônio Carlos Secchin, sem título. In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.131-132. Secchin é carioca, nascido em
1952; formado em Letras, professor titular de Literatura Brasileira da UFRJ, editor da Revista Poesia Sempre, da
Fundação Biblioteca Nacional, nos anos 90. Tem vários livros publicados, seja de poesia, ficção ou ensaio.
Secchin e Capinam, como outros poetas da antologia de Heloisa, não são poetas “marginais”, mas vozes da
década que respondem de modo independe e muito pessoal às questões literárias do momento, com filiação
cabralina, modernista ou tropicalista. Vale frisar que a tematização da desistência mostra uma tendência de
época, e não uma conduta do indivíduo-poeta.
142
Mas o fato mesmo de se fazer poesia sobre a desistência significa uma sorte de
resistência da linguagem artística que trará sempre em seu bojo, como o oco das moedas
furadas, a possibilidade do gesto desertor. Assim, estruturalmente tensa, a arte poética se
manterá no campo de manobras.
Diferentemente da desistência, as outras reações que se seguem travaram um embate
para manter ou devolver à função estética da linguagem seu poder de retroalimentação da
língua e da cultura, apresentando diferentes graus de aproximação em suas intenções ou
resultantes poéticas.
c) explosão da linguagem: Uma primeira sorte dessas respostas resistentes,
característica desse momento “pós-tropicalista”, se encontra formulada por Torquato Neto no
texto “Pessoal intransferível” (mais uma vez), da coluna Geléia Geral de 14 de setembro de
1971: “Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo
sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é
destruir a linguagem e explodir com ela.”84 A proposta estética experimental é investida de
uma força estilhaçadora cuja imantação poética, para além do verso e do medo, reside na
explosão da palavra, conforme se cumpre na espécie de dicção verborrágica de Waly Salomão
em seu primeiro livro, Me segura que’eu vou dar um troço, de 1972, em que se criticam todas
as formas de linguagem bem-comportada, cujo avesso histérico se condensa no originalíssimo
título.
O poeta relatava ter sido preso duas vezes; sendo que na primeira vez, na prisão do
Carandiru (SP), por porte de maconha, viveu um processo de liberação da escrita, que lhe
permitiu, ao invés da vitimização, um ato de teatralização da experiência do mundo e do eu,
descentrando a identidade subjetiva e social por meio de textos ostensivamente fragmentários,
mas que mantinham uma unidade básica de preocupações críticas, como se lê nos seguintes
trechos de “Self-portrait”, o auto-retrato do “baiano faminto”:
[...]
Minha língua – mas qual mesmo minha língua, exalta e iluda ou de
reexame e corrompida?
– quer dizer: vou vivendo, bem ou mal, o fim de minhas
medidas [...]
eficácia da linguagem na linha Pound Tse Tung. sou um reaça tento puxar
tudo pra trás: li retrato do artista quando jovem na tradução brasileira.
[...]
84
TORQUATO NETO, Os últimos dias..., p.62. A reprodução da página do jornal traz junto ao texto uma foto do
cineasta Godard, sob a qual se lê: “Ilustração: Godard. Poeta. Nunca teve mêdo [sic] de quebrar a cara.
Quebrou?”. Deste mesmo texto extraí as epígrafes de Torquato utilizadas neste trabalho. Grifo meu. Obs.: as
diferenças de grafia se devem à reforma ortográfica de 1971.
143
Esses selvagens esfarrapados perdidos no fundo do seu pântano,
proporcionavam um espetáculo bem miserável; mas a sua própria
decadência tornava ainda mais sensível a tenacidade com que tinham
preservado alguns traços do passado [...]
Nado neste mar antes que o medo afunde minha cuca. óbito
ululante: não há nenhuma linguagem inocente. ou útil. ou melhor:
nenhuma linguagem existente é inocente ou útil. nadar na fonte é proibido
e perigoso.
[...]
Self-portrait. Eu falava mal de todo mundo com minha compoteira
de doces caseiros. Eu era o mais provinciano dos seres. pinchadores de
terrível língua. [...] estou travando uma luta titânica contra a hidra de
lerna. Já não estou me reconhecendo mais neste assunto fedorento
bitritropicalista tipo alfininha biscoito de louça romanesca. [...]
Alguns apanhavam calados. Estes eram poucos. Os outros sempre
revidavam, e sempre levavam a pior. A maioria apanhava e reclamava,
tendo o cuidado de limitar os seus protestos a gritos e choros.Mas havia
ainda uns tipos especiais, que se haviam feito respeitar de tal maneira, que
contavam com a cumplicidade e até com a capangagem de determinados
guardas. [...]
Derradeira photo: mágoas de caboclo: estou levando uma vida de
sábio santo solitário: acordo ao romper da barra do sol me levanto saio
pra passear nos arredores ouvindo passarinhos indo até a fonte d’água
vendo a cidade do Corcovado cantando pra dentro:
O fim abrupto do poema, um recurso estilístico freqüente naquele período, condiz com a
interrupção da efervescência político-cultural acima apontada, quando não se pode mais soltar
a voz e se passa, quando muito, a “cantar para dentro”. O par exuberância-corte dá corpo aos
fragmentos de Waly, um poeta erudito (embora não acadêmico, cujas formas de expressão
rejeitava), que permeia sua escrita de inúmeras referências intertextuais, de teor político,
filosófico, lingüístico, pessoal, coletivo, inter-nacional, chegando a uma espécie de
composição rocambolesca85 – “o macarrão do Salomão, a salada do Salomão”, como ele
mesmo propagandeava sua obra, jogando ironicamente com sua provável invendabilidade e,
decorrentemente, com os produtos culturais que se faziam vender naquele contexto de
afirmação da indústria cultural para as massas patrocinada pelo regime ditatorial.
85
O poema se encontra em HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.182-185. Retiro a imagem do rocambolesco do título
de um outro poema seu: “CONFEITARIA MARSEILLASE - DOCES E ROCAMBOLES”, idem, p.181. Para outras
informações sobre Waly, utilizei: Antônio Cícero, poeta-compositor amigo de Waly. CÍCERO, A. A falange de
máscaras de Waly Salomão. In: Finalidades sem fim. São Paulo: Cia das Letras, 2005; Flora SUSSEKIND, op.cit.,
p.95-97; e Roberto Zaluar, doutorando da USP, “Anos 70/anos 90: deslocamentos da estratégia enunciativa em
Waly Salomão”, trabalho apresentado no Simpósio Topologias da Poesia na Modernidade, no X Congresso
Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), Rio de Janeiro, UERJ, 31.07 a
04.08 2006, sobre a explosão enunciativa no livro Me segura... Nascido em Jequié (BA), em1943, Waly foi
poeta e letrista de sucesso, compondo canções tropicalistas e outras, entre os anos 70 e 90, quando também
publicou vários livros de poesia. Fez parte do CPC baiano nos anos 60 e definia seu grupo como uma esquerda
marxista-existencialista, que lia Marx, Gramsci, Sartre, Camus, Merleau-Ponty. Organizador de textos de
Caetano Veloso (Alegria, alegria), Torquato Neto (Os últimos dias de paupéria) e Hélio Oiticica (Aspiro ao
grande labirinto), foi Secretário Nacional do Livro no governo Lula, no início dos anos 2000, quando faleceu de
câncer em 2003, aos 59 anos.
144
Rocambolesca porém não desprovida de sentidos, pois não se configura um estilo non-sense,
nem um fluxo surreal de associações inconscientes, mas um dizer entrecortado porque
composto de múltiplos recortes referenciais, que não conotam uma unidade de experiência,
mas uma variedade delas, articuladas frouxamente por associações livres que encadeiam
reflexões sobre a sociedade, a história, a linguagem poética e política: “quando quero saber o
que ocorre à minha volta/ligo a tomada abro a janela escancaro a porta/experimento invento
tudo [...]/tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo/é fósforo que acende o fogo da minha
mais alta razão” (em “Olho de Lince”). O autor retirava material poético tanto da tradição
letrada quanto de conversas que ouvia e transcrevia, criando uma colagem em que tensionava
elementos díspares, com um objetivo crítico e por vezes anárquico que evidenciava a
passagem da sensibilidade mais erudita dos anos 50 para uma nova forma de percepção86.
Entrevistado sobre seu livro, Waly afirma que “Antônio Cândido quase entendeu o
alicerce do Me segura quando assinalou a RUPTURA DE GÊNEROS que ali de fato se
perfaz...”87 Em debate no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, em 1975, Antônio Cândido
esboçaria uma análise dos principais traços formais da época, considerados em seus nexos
sociais. A poesia do início daquela década havia hipertrofiado o recurso literário, de resto
normal, de romper com os nexos miméticos entre arte e realidade, tornando-o em prática
sistemática – o que equivalia, na esfera da prosa, à dissolução da narrativa realista. Na visão
deste autor, a crise da dicção realista se relacionava à crise das hierarquias tradicionais na
sociedade, derivada das tensões das lutas de classes, em que as posições sociais se
reajustavam. Correspondentemente, via-se um processo de transformação e fusão dos gêneros
literários tradicionais, por obra de autores que colocavam os elementos genéricos em
contextos alternativos, misturando poesia, conto e novela dos mais diversos modos. Em assim
sendo, entretanto, a mudança formal que incorpora a ruptura dos nexos miméticos e mescla a
86
Segundo entrevista concedida a Hollanda, e por ela comentada, em Impressões de viagem, p.86.
Entrevista a HOLLANDA e GONÇALVES. A ficção da realidade brasileira. In: NOVAES, A. op.cit., p.136. É
neste texto que Waly dá como “receita de arte poética” o poema “Olho de lince” supracitado, p.137. A
observação mencionada de Antônio Cândido refere-se à conferência “Vanguarda: renovar ou permanecer”,
proferida no I Ciclo de Debates da Cultura Contemporânea, no Teatro Casa Grande, em 19 de maio de 1975 e
publicada em 1976, sem revisão do autor, segundo Vinícius Dantas, organizador do livro Textos de Intervenção,
op.cit., p.214-225. Há que se ressalvar que a ruptura de nexos miméticos analisada por Cândido refere-se a uma
parte da produção estética, pois havia toda uma outra prática literária que, ao contrário, foi criticada justamente
por sua excessiva adesão ao real, numa mimese pouco elaborada porque muito marcada pela linguagem
jornalística, como nos romances-reportagem, entre outros. Para uma extensa crítica deste tipo de expressão,
dominante na prosa dos anos 70, ver Flora SUSSEKIND. Literatura e vida literária.
87
145
estrutura dos gêneros é, também ela, um ato de mímese de uma mudança social, no sentido
que confere Adorno88 à relação entre forma artística e sociedade moderna.
Em uma leitura transversal a esta, La Capra considera que os gêneros híbridos – não
somente aqueles que se misturam entre si, mas nos quais se apresentam indistintamente o que
foi experiência, o que é elaboração posterior da experiência anterior e o que é inventado –
provocam grande incômodo para o historiador justamente por esta indistinção em que verdade
e ficção se indissociam. No entanto, segundo o autor, as aporias, a confusão derivada da
supressão de fronteiras, ou a dupla inscrição do tempo, quando se imiscuem passado e
presente ou futuro, são sinais de uma indistinção conceitual – inclusive na crítica literária e
filosófica, em que a indistinção é perceptível, por exemplo, na indecidibilidade da “voz
média” (Barthes), que mantém uma zona ambígua de posições entre a transitividade e a
intransitividade do discurso; ou na apologia da différance (Derrida) extremada, quando cai
num relativismo cultural sem mediações reguladoras – que está vinculada psicanaliticamente
aos mecanismos do trauma e da reatualização pós-traumática, como “situações em que o
passado nos acossa e nos possui, de modo que nos vemos enredados na repetição compulsiva
de cenas traumáticas, cenas em que o passado retorna e o futuro fica bloqueado ou enrolado
em um círculo melancólico e fatal que se retroalimenta.”89
A se considerar tais observações, há um fator testemunhal traumático – com sua forma
específica de mímese social, entremeada de cortes enviesados que ocultam e transfiguram os
reveses sofridos – na literatura de gêneros rompidos ou híbridos que se efetuou nos anos 70.
Essas formas, realizadas como experimentação artística, faziam parte da explosão da
linguagem de Torquato e Waly Salomão, bem como do hibridismo90 que caracterizou a escrita
de Leminski, seja em seus ensaios, poesia, correspondência ou prosa ficcional, como se pode
constatar pela dificuldade de qualificar o “romance-idéia” que é Catatau, em que se
superpõem formas de linguagem tão distintas quanto a gíria, o português seiscentista, a
proposta joyceana de romance-rio, a montagem de palavras das Galáxias de Haroldo de
Campos, a dicção jornalística do Pasquim... Contudo, é preciso destacar, esses jovens poetas
viam seu trabalho bem menos como testemunho, e ainda menos traumático, do que como uma
forma de invenção capaz de intervenção social.
88
Para o sentido de mimese em Adorno, ver GAGNEBIN, J. Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e
Benjamin. In: Sete aulas sobre linguagem, memória e história, referenciado no cap.1.
89
LA CAPRA, op.cit., p. 45-46 e 212.
90
Para o hibridismo da obra de Leminski, cf. MACIEL, M. E., op.cit., esp. p.177-178; as linguagens superpostas
são particularmente distinguidas por HOLLANDA, Impressões de viagem, p.95.
146
d) linguagem guerrilheira: Uma outra maneira de reação poética à violência sofrida
pela linguagem no período, afirmando a crença no poder de intervenção da palavra, é o
próprio Leminski quem sintetiza, nestes versos do livro Não fosse isso e era menos, não fosse
tanto e era quase:
en la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas
Metalingüístico e politicamente posicionado, sem ser “engajado” no sentido de então, o
poema amalgama referências políticas e literárias importantes na época, como o latinoamericanismo e a concepção vanguardista do poder dos signos, para apresentar a concepção
da linguagem guerrilheira, reforçada no texto pela escolha da língua espanhola, em remissão
às guerrilhas do continente sul-americano nos anos 60.
Na leitura de Célia Pedrosa, os signos para Leminski são sinais de vida que constituem
toda linguagem e se organizam num duplo movimento de permanência e negação, não
havendo portanto qualquer pacificação no campo da expressão, de onde a idéia de guerrilha,
que era ademais fundamental para a experiência política e cultural de sua geração como
estratégia de luta. A ela se associa a linguagem porque em ambas, como dizem seus versos,
“as batalhas nunca são decisivas/as vitórias são confusas” e é preciso se inserir no terreno
inimigo para ali se nutrir e minar sua força.
Leminski buscava desautomatizar o uso da palavra e, bastante crítico da indústria
cultural, parecia acreditar que valia a pena nela se inserir para transformar seu modus
operandi desde dentro, o que conferia sentido aos seus trabalhos em agências de publicidade e
na televisão. Nisto consistia, por sinal, a definição do próprio Leminski segundo Waly
Salomão. Para os dois poetas, diz Pedrosa, a linguagem, no contexto de crise que se vivia,
devia compor um espaço de crítica à dicotomia entre arte e vida, de modo que a atitude
guerrilheira significaria tanto o rechaço à erudição livresca, quanto a inserção do artista no
mundo contracultural e da cultura de massas, embora sempre criticando o espontaneísmo da
geração marginal, cujo rótulo recusavam91.
91
Cf. PEDROSA, C. Paulo Leminski: señales de vida y sobrevida. In: CÁMARA, M. Leminskiana: antología
variada. Buenos Aires: Corregidor, 2006, p.325. Para uma discussão problematizadora da relação entre poesia,
mercado e mídia, ver o ensaio do poeta ÁVILA, C. Poesia e sociedade de consumo., In: COSTA, H. (org). A
palavra poética na América Latina, avaliação de uma geração. São Paulo: Fundação Memorial da América
Latina, 1992, p.109-118.
147
A força significativa, para os sujeitos históricos imersos naquele contexto, dessa
imagem da linguagem guerrilheira é atestada pelo quanto foi retomada, seja por poetas ou
pela crítica especializada, para conferir valor de resistência à produção poética da época.
e) experiência e precariedade – poética intervalar: As formas desta poesia “marginal”,
que transformavam as coisas mais cotidianas em matéria poética, constituíam uma terceira
maneira de embate da linguagem. No entanto, ainda que espontânea e variada, a poética
decorrente se construía em linhas gerais pela metaforização do verbo, como uma poética de
alusões, configurando-se como um uso outro da linguagem, que lançava mão de truques
retóricos e metáforas que permitiam um modo de dizer enviesado, “de olho na fresta” como se
dizia, numa atitude de certa malandragem que embutia a crítica social em procedimentos
lúdicos e lingüísticos92. O seguinte poema de Capinam anunciava seu objetivo explicativo,
como indica o título, de desvelar estes mecanismos pelos quais um humano desespero chega a
constituir uma lógica verdadeira mediante lacunas, com passos saltados como numa dança, ou
como num alinhavo:
POETA E REALIDADE (DIDÁTICA)
A poesia é a lógica mais simples.
[...]
(Maior surpresa terão passado
os que julgam que me engano:
ah não sabem quanto quero o sapato
não sabem quanto trago de humano
nesse desespero escasso.
Não sabem mesmo o que falo
em teorema tão claro.
Como não se cansariam ao me buscar os passos
Pois tenho os pés soltos e ando aos saltos
E, se me alcançassem, como se chocariam ao saber que faço
A lógica da verdade pelos pontos falsos.)93
Uma tal lógica poética necessariamente se faz de intervalos elípticos, vazios ambíguos
entre o que se diz e o que não se chega a dizer, mais uma vez hipertrofiando, “aos saltos”, os
intervalos comuns da enunciação. Cacaso94 observara que esta poesia muitas vezes retinha um
grau relevante de precariedade e inacabamento, correspondente, em sua opinião, às “ações e
intenções contemporâneas que ainda estão-se processando”, de modo que o precário é o que
reveste a experiência de sujeitos imersos em um processo de transformações tão profundas e
recentes que não se pode vê-las em seu acabamento. E, vale lembrar, este processo envolvia
92
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES, Cultura e participação nos anos 60., p.96-97.
José Carlos Capinam, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.81-82.
94
BRITO, A .C., Tudo da minha terra, op.cit., p.130.
93
148
circunstâncias de interrupção e sofrimento de tal ordem que implicava também mudanças na
linguagem. Surge, assim, uma zona de sombra entre o dito e o silêncio, como uma reserva
estimulante de caracteres recessivos, não evidentes, de manifestações ambíguas, conforme diz
Lespada95, em que a palavra não é explicitada porque apareceu em condições irreproduzíveis,
o que se evidencia pela “forma informe” da elipse, que nomeia sem propriamente nomear o
oco que foi deixado pela mutilação do humano. É, portanto, como uma referência oblíqua
feito um rastro lateral que se acessa, de viés, a verdade contida nessa poesia – e só interessam
verdades que não sejam tautológicas, ou todo esforço do teorema resta inútil, o que aumenta a
dor do dizer.
Resulta daí uma poética intervalar, lacunar, em que a voz alternadamente se elide e se
positiva, sendo esta sua forma específica de reação à crise da linguagem.
Em Armando Freitas F° – que se inicia na poesia junto à vanguarda práxis dos anos 60,
posteriormente migrando para círculos próximos aos “marginais”, sem com eles se confundir
– esta forma de poética encontra seu representante melhor acabado, manifestando-se como
uma espécie de gagueira enunciativa:
[...] o que faltou foi velocidade
na datilografia, acurácia, para
captar o que sub-reptício se afastava
e mesmo se gritante, os dedos gagos
não conseguiam, nas teclas, articular
as palavras, o que se exprimia, próximo
mas sempre além de todo mecanismo
que embora igual aos outros, desistia.
Estudando o trabalho de Armando Freitas F., Célia Pedrosa observa que a imagem dos
dedos gagos (que incorpora um dado biográfico dele) estabelece a relação entre a escrita
datilográfica e a voz do poeta: nenhuma das duas consegue acompanhar a velocidade das
palavras do mundo. Mas isto se desdobra em articulações complexas de valores antagônicos,
como permanência e transitoriedade , velocidade e atraso, sujeito e objeto, traduzindo-se na
presença marcante em sua poesia da máquina de escrever – título, por sinal, de sua obra
reunida – como metáfora e metonímia do poeta, em tensa relação com o instrumento pelo qual
se mede com sua experiência literária e histórica. Neste medir-se, irrompe uma dicção
lacunar, em que o verso e a sintaxe são trabalhados pelo movimento entre enjambement e
corte, continuidade e interrupção, que, ao retardar a fluidez do texto, intensifica a imagem da
gagueira. Deste modo, o poeta desnaturaliza a palavra e a experiência, produzindo uma
visceralidade simultaneamente intensa e contida. Em outras palavras, trata-se de uma voz
95
LESPADA, op.cit., p.237.
149
gaga que, contudo, jamais perde o ímpeto de recusar a apatia e continuar a procura poética de
imagens e sentidos, “num misto de urgência e memória”. Além disto, esta gagueira poética
insere Armando Freitas Fº em uma tradição da crítica literária brasileira – indicada por
Haroldo de Campos quando tratou de uma genealogia literária que vai de Machado de Assis,
Oswald de Andrade e Graciliano Ramos até João Cabral e Augusto de Campos – que realiza
uma expressão literária contida, marcada pela hesitação entre palavra e pensamento, em
contraposição à verborragia da tradição bacharelesca e romântica. Analogamente, na forma de
uma eloqüência contida deveras especial, a poesia de Armando vai recorrer a um conjunto de
duplicidades, presentes no uso reiterado do trocadilho e de jogos pictóricos de cores, luzes e
sombras, além da compreensão do âmbito literário como um lugar em que se coabitam o
estranhamento crítico, requerido pela resistência cultural, e as incursões, ágeis e irônicas, no
seu caso, no mundo visual e verbal da cultura de massas. Lutando com e contra os signos do
cotidiano contemporâneo, Armando recupera a vertigem da viagem bêbada de Rimbaud,
como um barco que aderna para um lado e outro para manter seu eixo, de onde uma poesia
interrogativa e hesitante que, paradoxalmente, “formaliza todo o tempo uma intrincada
tessitura de realização e inconclusão, salto e véspera, incisividade e vertigem, distanciamento
e turvação” – que bem se expressa no título de um de seus livros do decênio de 1970,
Mlle.Furta-Cor, publicado na Coleção Frenesi. É deste modo lacunar e gago, diz Pedrosa96,
que o poeta “encontra a exata medida literária para figurar o torvelinho de questões estéticas,
políticas e existenciais” mobilizadas em todo o mundo, desde os anos 60.
A idéia de uma dicção gaga se encontra também no poema “Mais real”, do livro
Restos & estrelas & fraturas, de Afonso Henriques Neto, reconfirmando o caráter lacunarintervalar da poesia dos anos 70, cujas feridas e cicatrizes timbraram aquilo que Cacaso
chamou de precariedade, podendo tornar sua dicção até mesmo enrouquecida e fracassada:
Eu pergunto ao poeta
onde
onde se infiltra tamanha primavera
de cachoeiras estáticas
de jorros de luz paralisada
ocultas mágicas na retina devastada.
Mas o poeta é sem poema.
Não há versos
algumas cicatrizadas sílabas goradas
gaguejantes guturais.” [...]
*
96
Cf. PEDROSA, Célia. O olhar eloqüente. Poesia Sempre, Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, ano
13, n.22, jan./mar. 2006, p.177-189.
150
Em todas estas vertentes reativas – transpassadas de dor, humor, lacunas e desejo de
intervenção mediante a força da palavra, vale repetir – o nível da qualidade poética variava
bastante, tornando-se ponto central de discussão no final da década, como se verá. Mas é
possível que este impulso de dizer em detrimento da qualidade signifique, na poesia, um
momento de inflexão, de hesitação das “antenas” que sintonizavam a situação e buscavam as
possibilidades de veredas para continuar.
Os acontecimentos se passam antes que as pessoas possuam os meios de verbalizá-los e
este processo de responder a novas experiências leva tempo e se decompõe em muitos outros
processos expressivos e cognitivos, com diferentes modulações e velocidades dentro de uma
mesma sociedade. A mudança da linguagem discutida pela crítica, à época, apontava o apelo a
um uso excessivo de figuras retóricas e metáforas para se encontrarem caminhos para a
expressão em meio a todo tipo de impasse. Esta tendência à metaforização – note-se que isto
ocorre bastante também entre historiadores, para tratar da década – oferece indícios de porque
se recorria tanto à poesia no momento: justamente por ser a arte-mor das figuras de
linguagem, das metáforas em especial, e porque em determinados momentos históricos
ocorrem mutações tais que os sujeitos históricos que os vivem não podem traduzi-los senão
em termos metafóricos97.
Tudo isto qualifica uma experiência histórica em mutação: aponta para um momento
social em que está acontecendo uma mudança de experiência coletiva, cuja difícil expressão
demandará novas formas artísticas, bem como novos métodos historiográficos para sua
compreensão – eis o que parece haver ocorrido no Brasil nos anos 70, quando não só a arte,
mas também a historiografia adquiriam novas inflexões.
Como se deu esta experiência em sua relação com a poesia da época, os problemas
suscitados, as dificuldades e trunfos desse processo estético-político em um momento
histórico tão significativo para a cultura brasileira é o que se procura tratar nos capítulos que
se seguem. De todo modo, as marcas deixadas por Torquato Neto e sua morte – que, junto a
Waly Salomão, é considerado um farol para a poesia “marginal” que se segue – se farão
presentes, como signo doloroso de uma experiência histórica em curso que foi interrompida.
Com igual selo continuarão a se desenvolver, mudando de rumo em alguns casos, as formas
reativas da linguagem, cada vez mais próximas da experiência cotidiana e subjetiva.
97
Retomo aqui idéias de Koselleck e Pocock já referenciadas no capítulo 1 deste trabalho.
4. Vozes Sufocadas I:
Tempo de cal, indagação e asfixia: um surto de poesia nos anos de chumbo (1972-74)
[...] e é só dos cacos
(onde ainda imobilizado o retrato
o tenso close da transfiguração)
que é possível reconstruir a imagem
nessa escala alucinada que os olhos propõem (Eudoro
Augusto, “riverrum”)
Como foi dito, no período 1964-1968 o governo militar não reprimira propriamente o
meio, mas cortara os laços dos intelectuais com seu público popular, isolando-os e investindo
na espetacularização da cultura, principalmente através de incentivos à televisão, ao passo
que, após o AI-5, passara a uma fase de repressão e censura1. Após este momento inicial de
susto ante a mudança da atitude governamental para com a cultura, quando as perdas em
relação à experiência histórica anterior foram sentidas como um “vazio cultural”, e após um
novo choque provocado pela morte de Torquato Neto, que acabara por se tornar, em certa
medida, um líder geracional, a perplexidade geral principiava a dar espaço à percepção de que
a cena literária se revitalizava.
Surgiram nesta época os poemas-postais de Pedro Lyra (1970), que, enviados pelo
correio, obtinham alcance nacional2; os mimeografados Travessa Bertalha, de Charles e
Muito Prazer, de Chacal (ambos de 1971-72) começavam a circular de mão-em-mão; o livro
Me Segura qu’eu vou Dar um Troço, de Waly Salomão e a prosa poética de Gramiro de
Matos em Urubu Rei recebiam o interesse da crítica, ao lado da edição semi-caseira do
Misterioso Ladrão de Tenerife, de Afonso Henriques e Eudoro Augusto, e de Canção de
Búzios de Ronaldo Bastos, primeiro livro a surgir com o selo da Nuvem Cigana (todos de
1972). Apareciam os livros-envelope como forma versátil de veiculação de poemas, como O
Preço da Passagem, de Chacal, e as publicações coletivas, como O Feto (RJ) e O Saco (CE);
além da extraordinária proliferação de poemas mimeografados, xerocados, manuscritos,
1
Flora Sussekind, destaca três momentos de relação do Estado ditatorial com a cultura: uma tática inicial de
espetacularização; uma política de repressão e censura, nos governos Costa e Silva e Médici; e uma política de
incentivo e cooptação de intelectuais, a partir do governo Geisel. Cf. Literatura e vida literária, p.21-44.
2
No texto-depoimento “Memória indiscreta em torno do poema postal”, constante no livro de Miccolis, Pedro
Lyra afirma que este tipo de manifestação, chamada de arte-correio e arte-postal, foi sendo associada ao longo
dos anos 70 ao desejo de inconformismo e revolta da nova poesia, como um precursor da poesia marginal, mas
que quando criado não havia consciência de que usar o correio significava furar o bloqueio editorial dos grandes
centros. Cf. MICCOLIS, L. Do poder ao poder, p.110-115.
152
distribuídos e vendidos manualmente nas ruas e bares, declamados em performances e
happenings itinerantes, expostos em varais de poesia e universidades3. Ao mesmo tempo,
começavam a circular em todo o país as primeiras publicações ditas marginais, como o jornal
Tribo (BSB); Cordelurbano, Balão, Orion (RJ); Bel-Contos, Silêncio e Protótipos (MG), e
tantos outros.
O início da difusão do termo “marginal” é deste momento. Utilizado desde
aproximadamente 1968, por Hélio Oiticica, como mencionado, e aplicado à poesia por
Domingos Pellegrini Jr. – em Londrina (PR), num folheto mimeografado intitulado “O
marginal e outros poemas” – a qualificação se divulgou aos poucos nos anos seguintes,
afirmando-se em torno de 1977 e não sem controvérsias, pois parecia mais propícia à
agressividade do grupo pós-tropicalista do que a esta outra linha de criação, mas acabou sendo
adotada, sobretudo pela imprensa, por falta de melhor designação, posto que os termos
substitutivos, poesia “alternativa” ou “contracultural” ou “de mimeógrafo”, tampouco davam
conta da diversidade de poetas, situações e problemas envolvidos4. Como diria Chacal, eles
eram “magistrais”, e não marginais...5
Mas o humor, a irreverência, a coloquialidade urbana e os recortes do cotidiano
unificavam a produção daquele momento. Os jovens poetas cruzavam a “nova sensibilidade”
pós-tropicalista com a herança modernista, a “lição de 22” já mencionada, o que é bem
ilustrado pelas inúmeras citações de versos e imagens de autores brasileiros modernos já
consagrados (de forma menos rasurada, ou menos genial para alguns, do que os tropicalistas).
No entanto, sua opção existencial os fazia trazer para dentro dos poemas as situações mais
desimportantes do cotidiano, incluindo o uso de termos vulgares e palavrões, apagando os
limites entre matéria poética e não-poética para além do que propunha o modernismo6. Em
suma, no quadro de inquietação que define a década, a novidade desta produção poética como
um todo consistia na ênfase na intervenção comportamental e num certo trato lúdico e
anárquico com tudo, da experiência social à literatura.
3
HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, Poesia Jovem Anos 70, p.4-6. Segundo Messeder Pereira, em 1972,
Ronaldo Bastos criou uma firma chamada Nuvem Cigana, criando uma marca ainda sem objetivo definido.
Somente na segunda metade da década a marca congregaria um grupo poético-performático e um selo editorialalternativo bastante ativo. É deste ano também a música Nuvem Cigana, de Lô Borges e Ronaldo Bastos,
gravadas por Milton Nascimento no disco Clube da Esquina. Os contatos entre o grupo mineiro e o carioca
advinham do movimento estudantil. Cf. Retrato de época, p.132 ss.
4
A questão é discutida por Míccolis, bem como o folheto de Domingos Pellegrini Jr. e a data de 1977 para a
afirmação do termo. Cf. op.cit., p.19 e 34-43. Note-se que o chamado cinema marginal foi de fato mais próximo
das propostas do grupo pós-tropicalista. Cf. XAVIER, I. O Cinema moderno brasileiro. São Paulo: Paz e Terra,
2001.
5
De um poema sem título, de Quampérius Vida e Obra, em que Quampa responde isto ao ser entrevistado pelo
foca Mota do JB. Apud. HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, Poesia Jovem Anos 70, p.28.
6
A discussão sobre o cotidiano e a linguagem será desenvolvida no cap.7.
153
4.1. A poética da “curtição” e da precariedade (novos livros em 1971-72)
Em um artigo, também de 1972, o crítico, romancista e poeta Silviano Santiago
recepcionava os livros Me Segura..., de Waly Salomão, e Urubu Rei, de Gramiro de Matos,
considerando que a “arte da novageração [sic], erguendo-se como brinquedo, encontra sua
satisfação numa apreciação lúdica em que o interesse maior vem do fato de o curtidor [...]
manobrar o texto como se apresentasse ele ‘modelos para armar’.” Tudo indica que se tratava
de uma resposta a Affonso Romano de Sant’Anna (que posteriormente o incorporou), onde o
autor, antes de analisar os livros, apresentava sua visão dos traços gerais daquela “nova
geração” então incompreendida, cuja sensibilidade se traduziria como uma “curtição”, isto é,
a partir da fruição do som, ter-se-iam estabelecido novas regras de apreensão do objeto
artístico-literário, fundadas no prazer estético, mais do que na leitura reflexiva7. Na visão de
Silviano, desde que os tropicalistas haviam ocasionado cisões irrecuperáveis, ao descentrar
geograficamente o eixo da cultura brasileira, para fora da “terra-das-palmeiras” em direção a
guitarras londrinas e ritmos latinoamericanos, surgira um novo tipo de jovens escritores,
afeitos a desobedecer qualquer tipo de palavra ou ordem imposta, fossem as regras retóricas
ou comportamentais do passado: esta geração desconfiava da comunicação verbal e da
escritura, privilegiando a oralidade e a desordem taxonômica, buscando descongestionar a
vista e o ouvido; do prisma sociológico, apreciava o gregário, tornando-se portanto
despreparada para a solidão necessária à feitura do texto literário e inconscientemente prédisposta às formas da “arte coletiva de um século tecnocratizado”, como o cinema, os
festivais, os estádios.
No que se refere à poesia, o crítico observava a inscrição do objeto artístico em novas
regras estéticas, que preferem o trecho ao todo, erigindo a apreensão sintética, aforismática e
fragmentária à forma per se: “alimento combinações quero água pássaros/psicólogos
institutos primatas/colônias para merda/entre/vistei sinais ao vivo em crimes”, ou ainda:
“Moxô mora rawõe aa ra bo dakakirã hunikui rawõe iôxiãi urânâ [...]”8. Para que o leitor
7
SANTIAGO, S. Abutres: a literatura do lixo. Revista Vozes, ano 66, vol.LXVI, n.10, dez. 1972, p.21-28. Em
“Poética 3”, de Eudoro Augusto, n’O Misterioso Ladrão de Tenerife, se lê: “o fundo/a forma/o meio pelo qual/o
instrumento, o material/os níveis/(todos sabem)/é pura curtição.”
8
São versos de Gramiro de Matos: o primeiro trecho pertence à “Poética dos Chipanzés”, no Jornal da Poesia,
n.3, 7 out. 1973. O segundo pertence a Urubu-Rei, citado por Cacaso, cuja recepção de Gramiro de Matos diferia
de Santiago: essa espécie de excesso de experimentalismo acaba tornando-se numa abstração tendendo para o
vazio, diz ele, correndo o risco de suprimir a comunicabilidade e eliminar do campo da literatura as relações
sociais de criação de sentido, a despeito da ilusão bem-intencionada de progresso artístico. Com base em Brecht,
154
“curta” o texto, acionavam-se recursos de estranhamento que quebram os automatismos da
linguagem cotidiana, como querem os formalistas russos, adequando-os ao espírito da
“curtição”, ou seja, obscurecendo a forma e aumentando a dificuldade e, por conseguinte,
produzindo maior duração no processo de apreensão poética, de onde as minúcias, os textos
em retalhos, desalinhavados, criando uma sorte de barroquismo formal, com manuseio
amaneirado e excessivo da frase. Não havendo sistematização, não havia estilo a ser
interpretado, e sim procedimentos que se mostram mais próximos a uma estética Dada do que
a uma “seriedade literária”. No caso dos livros em questão, as distorções na linguagem
mostravam um apego desmesurado a influências não tradicionais – como Gregório de Matos,
Sousândrade, Qorpo Santo, Pound, Joyce – e um pouco caso com a língua castiça, usando
palavras e frases em língua estrangeira, o que revelava seu maior interesse na pesquisa com a
linguagem do que na problemática da língua mesma, abrindo fronteiras para o signo
lingüístico que não tem nacionalidade. Tratava-se de um projeto literário de inscrever a
cultura brasileira na cultura planetária, questionando fronteiras em nome de valores
universais. “Segundo eles, os problemas devem ser pensados mais em termos de geração do
que de nação”, diz Silviano, pois àquela geração de poetas periféricos, como “abutres do lixo
americano”, cabia ainda uma vez pensar a missão antropofágica, em nova versão. Em resposta
à crítica sociológica da literatura, isto significava mergulhar até a medula na problemática da
cultura popular-cultura de massas, não para perder o contato com as raízes do Brasil e integrar
no contexto universal os valores nacionais institucionalizados, mas para retomar e inserir os
valores marginalizados ao longo do processo de construção da cultura brasileira – nas
palavras de Waly, havia alguma coisa de “TRASHICO” em tudo aquilo9.
Mas para compreender o trash e o trágico, seria preciso compor imagens a partir dos
cacos, como dizia Eudoro Augusto, de modo tão próximo a Benjamin, no poema “riverrun”.
Seria preciso “revisitar os dias que a certeza mecânica dobrou/para sempre”, pois só na
retomada dos caminhos em que as certezas se construíram se pode, se for o caso, revertê-las e
sanar a “súbita cegueira” que impede que se veja a gravidade de uma situação em que “os
gestos começaram/e acabou a fruição, acabou o canto?” A vida e a arte requerem o deleite e
os sentidos para tal, mas embora o poeta clame “é preciso ver é tempo de ver”, as condições
são de todo impróprias: como as “lâmpadas arrebentaram”, neste movimento violento de algo
que se rompe de dentro para fora uma vez que os limites de carga foram estourados, não há
Cacaso lembrava que se emancipar da gramática não significava se emancipar da sociedade capitalista. Cf.
Morcegos e mamãos. In: Não quero prosa, p.134-138. Originalmente publicado no jornal Opinião, mar. 1974.
9
Não trato aqui especificamente do livro Me segura..., de Waly Salomão, também de 1972, porque sua
linguagem, mais característica dos pós-tropicalistas, já foi considerada no cap.3.
155
luz ou esclarecimento factível; o mundo interior e privado da herança cultural nas sociedades
patriarcais, os “gomos da casa paterna”, estão escuros e cheios de feridas, “os pianos se
fecham repetidas vezes/e a música se congelou no sangue:” Se era preciso enxergar, recompor
os cacos, revisitar o passado e buscar uma objetividade não mecânica, mediante uma outra
espécie de racionalidade, isto se torna impossibilitado pela escuridão, pelas feridas e pela
sensibilidade congelada. Diante da agonia da impotência imposta por este quadro, o sujeito
lírico reage: “nada de pânico, é tudo uma questão de tempo”. Entretanto, irônica ou
atrozmente, não se trata do tempo de espera e da visão dolorosa necessários à mudança
emancipatória, e sim de um refluxo “à circunstância idêntica/ao dia milimetrado” do tempo
industrial e burocrático, repetitivo e opressivo, quando nada transborda e tudo se reduz à
“tábua rasa da sobrevivência”.
Este poema, pertencente a O Misterioso Ladrão de Tenerife, de co-autoria de Eudoro
Augusto e Afonso Henriques Neto, comporta um misto de lucidez e angústia, traduzindo-se
por uma expressão bastante aderente à experiência, o que caracteriza o tom do livro como um
todo. Os autores, ambos de sólida formação literária – Eudoro como grande leitor desde cedo,
filho de pais professores universitários, e Afonso, de uma família de literatos, neto do poeta
simbolista Alphonsus de Guimaraens – sentiram suas vidas restringidas pelo golpe militar,
quando a Universidade de Brasília foi “castrada” e o projeto de Darcy Ribeiro “literalmente
acabado”. Jovens recém-formados e já empregados, deixaram para trás suas vidas organizadas
e vieram para o Rio de Janeiro, em torno de 1971-72, em busca de uma abertura de
perspectivas, uma vez que viviam uma crise existencial e uma frustração intelectual
provocadas pelo “fechamento de horizontes na época”. No Rio, em contato com a
movimentação em torno da poesia, especialmente os trabalhos de Chacal e Waly, Afonso e
Eudoro perceberam pontos de identificação com o que vinham realizando em Brasília, o que
os reestimulou a publicar os trabalhos que haviam escrito por volta de 1970, quando foram
encaminhados para uma gráfica em Goiânia com planejamento gráfico e fotomontagens do
artista plástico Luis Áquila. Assim, concebido em Brasília e publicado no Rio dois anos
depois, na forma de edição independente, em que os autores trabalharam todos os detalhes, da
escrita à edição, O Misterioso Ladrão... constituiu uma “resposta da gente a todos esses
problemas editoriais, políticos, que havia na época [...] foi uma busca de abertura pro sufoco
mesmo”10.
10
As informações sobre suas vidas pessoais derivam de depoimentos prestados a Messeder Pereira, publicados
em Retrato de época, p.182-221. Este autor considera Eudoro Augusto, Afonso Henriques e Ana Cristina César
como “autores independentes” dos grupos marginais, mas a eles ligados. Eudoro Augusto nasceu em Lisboa,
156
Em grandes linhas, estes aspectos se encontram nos poemas, em que se destacam, em
uma linguagem ao mesmo tempo sensata e psicodélica, visões cósmicas do espaço e do
homem – certamente em decorrência das transformações promovidas na percepção e no
imaginário em virtude da vista da Terra desde a lua, cujas fotos, tiradas pelos astronautas,
divulgaram-se por todo o mundo –; imagens de náusea e vazio, de corte sartreano,
particularmente nos textos de Afonso – “Possuíamos a sinfonia do século (o inútil que
vomita). E ainda vieram dizer que tantos outros morriam. Como se no envolvente todas as
sensações não respirassem iguais”11 –, reverberando em imagens análogas de pântanos,
apodrecimento, emissões radioativas, sangue, vacuidade, vertigem. A vertigem, por sinal, não
se encontra apenas tematizada, mas constitui a própria textura de alguns poemas que se
constroem de forma vertiginosa, com um encadeamento de palavras e frases em que a
ausência de pontuação e a múltipla associação de idéias fazem parecer muito veloz e que, no
poema “Xadrez”, também de Afonso, vai-se rarefazendo, como se ao relatar o diagnóstico de
um Roberto conectado em fios que lêem suas emissões mnemônicas, telepáticas e cardíacas,
interrupções e ruídos se fossem introduzindo numa rádio transmissão interplanetária, de
evidente inspiração nas ficções científicas:
ENERGIAENERGIAENERGIA
LIGADOLIGADOLIGADO
FIOSMEMORIASFIOSMEMORIASFIOSMEMORIAS
PENSAMENTOCENTRALEMITINDOPCEPCEPCE
[...] Possibilidades de comunicação com bases orbitais sem possibilidades de
interferências... Movimento espelho instantâneo Movimento espelho instantâneo
ROBERTO deslizando pelo seguinte corredor [...] Sinal azul-marinho para exato instante
exato gesto agora o Presidente na terra em sincronia com o Presidente em Marte em
sincronia com o Presidente na órbita Plutão... Sinal azul-celeste para catalogação de
mínimas possibilidades de confronto [...] Sinais azuis fluindo todos matizes para que
ROBERTO não não E-M-I-T-A-BLOCODEAUSÊNCIA-não não não E-M-I-T-A mais leve traço
PENSAMENTO antes que [...] ÓDIO CONCENTRADO - SINAL PERFEITO-ÓDIO
CONCENTRADO... Sinal amarelo - explosão de uma só vez RESPIRAR O TEMPO de uma só
vez RESPIRAR O TEMPO TEMPO tsck-tsck-tsck-tsck - DE UMA SÓ VEZ TODOS
(ABSOLUTAMENTE SEM PALAVRAS INTERJEIÇÕES TEMPO)
EPCOEEPOCEEPCOEEPCOE-P-C-O-E [...]
Respirar o tempo de uma só vez significa iluminar o paradoxo – em que a alternância de
caixas altas e baixas e sinais de ligação acentuam a intensidade de sensações e os contrastes,
mas não a clareza dos sentidos – de tentar dizer o ar irrespirável de um tempo sem palavras.
Na opinião de Armando Freitas Fº, a escrita de Afonso, como a do paulista Roberto Piva,
configuram uma “poesia em pânico, à beira do abismo”, onde se percebem tributos da Jorge
Portugal, em 1943 e naturalizou-se brasileiro dez anos depois. É tradutor, produtor cultural e programador
musical na Rádio Cultura FM do Brasil. Afonso Henriques Neto, nascido em Belo Horizonte (MG), em 1944, é
redator, professor e poeta convicto, tendo publicado vários livros de poesia entre os anos 70 e 90.
11
Trecho de poema sem título, In: O Misterioso ladrão..., p.69.
157
de Lima e Murilo Mendes12. Tanto o pânico quanto o abismo se referem à perda de chão, de
referências, que consistiu num dado crucial daquela experiência geracional13. Com efeito,
freqüentemente se vê, ao longo do livro, a inversão do papel prazeroso que a sinestesia
tradicionalmente desempenhava na poesia; ao invés, o cruzamento das múltiplas sensações
que tenta expressar a relação intensa do sujeito com o mundo é desconfortável, como a de
“luas pegajosas”, “caixas de merda”, “flores carnívoras”, “ranhuras, unhas, tudo em unhas”...
As sensações desagradáveis conferem aos textos o incômodo da experiência, e, na mão
contrária, conferem à experiência da leitura o estranhamento de uma “desarmonia” poética,
que obriga à fruição-curtição haver-se com o desarranjo geral do mundo. Mundo em que
“Vomitaram trinta estrelas neste charco/de líquidos corpos empoçados”14, e na atmosfera
dúbia que disto resulta, branca e negra, misturando desgosto e música, aqueles que vão morrer
“fecundam ritmos e bússolas e fracassos”, como acontece na morte daqueles que deixam
projetos de existência, pessoal e coletiva, com a orientação de um norte que a derrota quase
apagaria, não restasse a triste singeleza: “Em silêncio algumas flores resistem/nas verdes
gramas do sol”.
Cacaso observara nesta poesia do início dos anos 70, com base sobretudo nos textos de
Chacal, a vigência de ideais de plenitude e liberdade que apontavam, em negativo, justamente
o seu esgotamento no real – como nas imagens em cacos de Eudoro, ou nos pianos recémfechados dos quais ainda se ouvem as últimas reverberações. Isto introduz naquela criação
uma tal marca, que a configura como uma poética da carência e da precariedade.
Especificamente em Chacal, destaca-se a rusticidade material e de linguagem nos seus
dois primeiros livros, mimeografados: Muito Prazer, Ricardo, de uma linguagem coloquial e
tão próxima do leitor que funciona como indica o título, como uma espécie de aperto de mão
de apresentação; e O Preço da Passagem, na forma de envelope, com poemas e fotos em
páginas soltas, passíveis de serem lidas em ordem intercambiável, abrindo uma gama de
recepções possíveis, e que foi concebido e vendido de mão-em-mão para que o autor
angariasse o dinheiro necessário para uma passagem para Londres, o que parece ter realizado.
No Preço da passagem, foi talhado o memorável personagem Orlando Tacapau, resumindo-se
o livro em suas aventuras, sempre marcadas por desconforto diante de instituições e relações
12
FREITAS Fº., A. Poesia vírgula viva. In: NOVAES, op.cit., p.186. Roberto Piva andou pelo Rio de Janeiro por
aquela época; alguns poemas seus, de dicção bastante psicodélica, sensual e “sangüínea” encontram-se na
antologia de HOLLANDA, 26 poetas hoje.
13
“São tantas as horas e tão/pouco o tempo/(os bichos dormem), tão/escassa a viagem/e nós todos perdidos e
nus/acertando o relógio”. No poema “Interferências”, de Eudoro Augusto, in: O Misterioso Ladrão..., p.17.
14
Estes versos e os que se seguem neste parágrafo constam no poema “Assim”, de Afonso Henriques, in: O
Misterioso Ladrão..., p.63.
158
formais, a começar pelas fichas de identificação, muito comuns na época: “Idade:
Indeterminada no Espaço [...] Filiação: Alzira Namira Irineu Cafunga [...] Profissão: qualquer
nas horas vagas” etc. Esquivo, cômico, criativo e original – no que será seguido
posteriormente por outro personagem, Quampérius – Tacapau encarnava uma força
impulsionadora, derivada da gíria que o designava: “tacar o pau” significava estimular ou
instigar alguém a fazer algo ou mover-se com mais rapidez. Ironicamente, porém, suas
realizações poderiam ser um “desfazer” ou nada fazer; inusitadas – como ir à biblioteca
estadual, ler “folhas estapa-fúrdias”, rir e depois chorar até se derreter e ser recolhido num
copo –; ou uma caricatura do senso-comum, mas não desprovidas de uma razão de ser, como
neste fragmento:
Sentado e estudantil, Orlando perscrutava o absurdo e o rabo da professora. De repente
passos no corredor atrás da porta fechada. “Serão policiais ou alunos atrasados?”
Takapassou a mulher com giz e abriu a porta. O homem colado com as orelhas entregando
saiu de banda. Bandeira. Sua suástica caiu no chão. Orlando viu o lance achou nada pisou
na escada e não apareceu mais por ali.
Pra quê? 15
O ludismo e a informalidade de sua poesia, à beira do amadorismo poético em suas
primícias, foram percebidas por Cacaso como uma “forma existencial e malandra de
engajamento”, conferida por uma “plenitude de gratuidade” que compunha uma maneira
especial de “participação literária e vital num incondicional sentimento de liberdade”16. A
despeito dos riscos – de excessiva informalidade, de perder a capacidade de transcendência ou
de resvalar para o senso comum na temática política – aquela poesia mantinha um nível de
desordem, não no sentido de desorganização, mas de desobediência à ordem dominante, que a
inseria na tradição da malandragem da literatura brasileira17, pela criação de contrapontos e de
uma movimentação solta entre instâncias diversas:
o poeta que há em mim
não é como o escrivão que há em ti
funcionário autárquico
o profeta que há em mim
não é como a cartomante que há em ti
15
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.224-225. Sobre este livro-personagem, ver também MESSEDER PEREIRA,
Retratos de época, p.126-130 e Cacaso/BRITO, Tudo da minha terra, op.cit., passim.
16
BRITO, A. C. Tudo da minha terra, idem, p.144 e 150.
17
Cacaso sublinha em nota que “com certo cuidado” podemos circunscrever a linguagem malandra na poesia de
Chacal na tradição observada por Antônio Cândido em “Dialética da malandragem”, ensaio sobre o livro
Memórias de um Sargento de Milícias. Diz ele, citando Cândido: “Esta atitude malandra ganha tradição em
nossa literatura, exprimindo imagens e representações de vida adequadas a um universo social e cultural
especificamente brasileiro: ‘ela se manifesta em Pedro Malasarte no nível folclórico, encontra em Gregório de
Matos expressões rutilantes que reaparecem de modo periódico, até alcançarem no Modernismo as suas
expressões máximas com Macunaíma e Serafim Ponte-Grande’.” Idem, p.144, nota 9.
159
cigana fulana
o panfleta que há em mim
não é como o jornalista que há em ti
matéria paga
o pateta que há em mim
não é como o esteta que há em ti
cana a la kant
o poeta que há em mim
é como o vôo no homem pressentido18
Brincando com a coloquialidade – a rima entre a cigana e seu nome, o “panfleta” que
retrata metonimicamente o político; o “pateta” por aquele que se entrega ao pathos, ou,
jocosamente, se torna idiota; o “cana a la kant”, que além do jogo de repetição consonantal e
vocálico, designa tanto os controles estéticos quanto o policial que posa de iluminista – o
sujeito lírico parece buscar insistentemente um entrelugar, posicionado fora dos lugares
sociais em princípio reconhecíveis, o que o aproxima da figura do malandro. A expressão “o
[...] que há em” nove vezes reiterada carrega de indefinição o sentido e espacializa o que é
buscado. Entre o eu e o tu, o poético e o burocrático, o profético e quiromântico, as idéias
sinceras ou vendáveis, o patético e o estético... procura-se um lugar inominável, porquanto
concretamente inexistente, e por isso apenas esboçável, nos quatro primeiros tercetos, pela sua
negação. Na última estrofe, opera-se uma transformação: não mais em três versos, mas em um
dístico, o sujeito poético sucintamente encontra, pela figura da comparação, uma
possibilidade afirmativa para o entrelugar em que reside seu auto-reconhecimento: não em
uma posição estática, mas no movimento do vôo em que o humano não pode estar sem ajuda
de sofisticados instrumentos, mas que pode pré-sentir simplesmente com a imaginação.
É neste mesmo entrelugar que o poeta coloca seus personagens, Orlando Tacapau e
Quampérius, como uma espécie de alteregos seus, recusando qualquer ato formal; que utiliza
uma linguagem por vezes agressiva, quebrando as convenções do decoro; que defende o lazer
em oposição a uma ética do trabalho castradora, em uma época quando a sociedade foi
especial e autoritariamente disciplinadora dos corpos e opressora das liberdades de espírito.
Em seu descompromisso com convenções sociais e tradições poéticas ou políticas, a poesia de
Chacal adquiria um conteúdo ético que chamava a atenção de Cacaso, uma vez que recusava
as formas de reconhecimento burguês e desconfiava dos seus valores ditos civilizados, e
decorrentemente, “marginalizava-se”. O próprio fato da distribuição manual, fora da rede do
sistema editorial, continha uma dose de “utopia revolucionária”, continua Cacaso, pois
18
Poema sem título. In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.220. Escolhi este texto pela clara temática do entrelugar,
a qual se associa à malandragem, mas o texto não pertence a seus dois primeiros livros.
160
aproximava a literatura do leitor e constituía um modo de experiência social viva, uma vez
que recuperava “nexos qualitativos de convívio que a relação com o mercado havia
destruído”19.
Messeder Pereira, em seu estudo sobre os grupos dos poetas marginais – que ele não
define num quadro literário, mas como um conjunto de respostas específicas a questões gerais
de uma época, cuja densidade se deve ao fato de haver sido uma experiência coletiva dotada
de sentido para seus membros, com lógica própria –, problematiza a questão do mercado entre
eles. Claramente, os livros marginais que estavam surgindo, bem como os que vieram depois,
possuíam estatuto de mercadoria, porém artesanal; suas marcas materiais diferiam do padrão
tradicional e até mesmo de algumas revistas típicas do período, como Navilouca, Pólem,
Muda, Qorpo Estranho ou Código, que, havendo assimilado elementos da estética concretista,
utilizavam tecnologia moderna. Os marginais, ao contrário, recusavam-na, mantendo
“resíduos românticos” de crítica ao progresso (especialmente Cacaso e Schwarz, como se verá
adiante). A “sujeira gráfica” de seus trabalhos consistiria em seu fator diferenciador,
traduzindo-se na intenção de criar fora dos padrões de produtividade, sem luxo nem design
industrial. O caráter artesanal desta mercadoria teria significado ao mesmo tempo seu vigor e
limite, revelando a “ambigüidade” da relação que mantinham com a dimensão técnica,
característica da modernidade: querem incorporar os avanços prometidos, mas excluir a lógica
que os produz, isto é, querem outra lógica de utilização da técnica20. A isto, acrescenta-se a
vontade de profissionalização, de “viver de poesia”, como dizia Chacal21, ao mesmo tempo
em que se queria recusar as implicações limitadoras de qualquer tipo de mecenato, sobretudo
em suas conseqüências políticas.
Para Costa Lima, aquela “poesia do desbunde”, como um todo, sendo fruto de um estilo
de vida que glorificou a juventude, apresentava, como não poderia deixar de ser,
características de um processo não amadurecido, cujo conteúdo, sem dúvida libertário,
esgotava-se na egolatria e no maniqueísmo. Em seu “vitalismo anárquico e transbordante”,
estendiam a compreensão do mal, inicialmente identificado com a ditadura, a qualquer forma
de conduta mais grave ou circunspecta, em que incluíam a palavra dos literatos mais velhos,
culminando por pespegar um estigma a toda forma de seriedade. A própria questão da forma
estética, sendo tida como “séria”, era implicitamente desqualificada como acadêmica ou
19
Brito, idem., p.136.
Cf. MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.70-78.
21
Cf. CHACAL, Antologia Pessoal, vídeo nº 378 do Arquivo histórico/Memória do Centro Cultural Banco do
Brasil, Rio de Janeiro. Os problemas da profissionalização em relação à cooptação por parte do governo militar,
especialmente a partir de 1975, são discutidos por Renato Ortiz e Flora Sussekind, op.cit., e serão retomados no
cap.5, junto com a questão do mercado/artesanato/resistência.
20
161
esconjurada como “formalismo” pernicioso; criou-se, assim, uma sinonímia entre forma e
poder, em que ambos eram condenados “pelos defensores da anticultura, os quais
consideravam toda norma – toda, exceto a sua – uma castração”.22
Não obstante a imaturidade, aquilo que foi percebido como leviandade ou ambigüidade
também pode indicar uma intuição filosófica – senão opção, em casos mais raros –,
desdobrando-se em práxis literária, recheada de negatividade e contradição, pois que rejeita
uma lógica moderna em nome de uma possibilidade totalmente outra de racionalidade e
organização da vida social, sem contudo saber explicá-la ou nomeá-la e, por isso, passível de
vir a perder-se. A recusa do trabalho opressor, da sociedade administrada pelo Estado
ditatorial e do mundo padronizado pela indústria cultural, por parte daqueles jovens
universitários ou recém-formados – que se manifestava no verdadeiro horror às gravatas e
horários rígidos, na coloquialidade, nos cabelos compridos e nas sandálias como maneiras não
convencionais de se comportar – apontavam também nesta direção e eram constantes dos
livros publicados naqueles idos de 1972.
4.2. Sinais de surto poético: o Jornal de Poesia e a Expoesia I (1973)
Datam igualmente desta época os primeiros artigos de imprensa registrando os sinais de
um possível “boom poético” em todo o país23. O Jornal de Poesia, organizado por Affonso
Romano de Sant’Anna a pedido de Alberto Dines e publicado dentro do Caderno B, do Jornal
do Brasil, durante quatro sábados, entre setembro e novembro de 1973, revelou um enorme
público criador e consumidor de poesia. Chegavam mensalmente ao jornal cerca de 500 cartas
e dois mil poemas, além de revistas e livros recém-lançados. “A Necessária Poesia”, texto de
abertura do primeiro número, em 01/09/73, observava que após um período de efervescência
vanguardista, a poesia parecia se ter silenciado, mas que na realidade permanecia sob
disfarces, exigindo outros olhos para ser percebida, não em livrarias, mas circulando fora do
comércio, fugindo ao contexto adverso de “poluição tecnológica” no qual as ciências humanas
se deixavam seduzir pela cientificidade. “Na verdade, nunca se produziu tanta poesia como
hoje”, afirmava, assinalando haver fortes indícios de que as formas poéticas, abrigadas nas
22
COSTA LIMA, L. Abstração e visualidade. In: Intervenções. São Paulo: EDUSP, 2002, p.135-179; citação à
p.136. Para exemplificar como o gesto sério foi imaturamente identificado ao poder militar que interditava a
liberdade vital, o autor afirma: “Foi então que jovens senhoras de banqueiros abandonaram as praias cariocas e,
sob a pensão dos ex-maridos, se tornaram hippies na Índia; que espertos agentes da bolsa renunciaram a prever a
alta ou baixa de ações e, de saco e mochila, se dedicaram a curtir a natureza; [...] ou que um número do Pasquim
estampava cômica matéria acerca de simpósio, realizado em Brasília, sobre hermenêutica.” Ibidem.
23
Cf. HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, op.cit., p.6.
162
musicais e plásticas, conforme é característico da visão de Affonso Romano, recobravam a
literalidade. E concluía: “a poesia voltou, voltou antes mesmo da primavera” 24.
Apresentava-se, com efeito, uma poética mais invernal do que primaveril. Reunindo
autores desconhecidos, conhecidos e consagrados, aqueles quatro números do Jornal de
Poesia abundavam em imagens tristes e irônicas, de indignação e desespero (“não ultraje a
pátria/quando a farsa for contínua”; “pagava o medo de ser o enredo/do próprio espanto”),
expondo um mundo em descenso e desordem (“longo tropeço em declive”; “controlar a perna
os pés/no ar os pés amais amenos”), em que se é obrigado à submissão e ao amordaçamento
(“linguagens depressa para den/tro”; “e engulir engulhado o ódio/sem repulsa da admissão do
mórbido”; “um móvel pêndulo/um imóvel pântano”), num tempo sufocante de impedimentos,
tédio e dor (“ar que tor tu ra”; “mudo vulto [...] de onde eu não escapo:/muros de mim,
catapulta que espera/a bala do acaso que a morte dispara”)25. O poema “Segunda Epístola”, de
Jairo José Xavier, professor de Letras na Universidade Federal Fluminense, advertia e
lamentava em tom bíblico:
[...] E o que nos resta então
senão pobres palavras
senão chorar baixinho
[...]
Em verdade vivemos
(morremos) contra um alto
muro de pedra, lei
e tédio, onde nem hera
nem esperança brota.
Por isso: “Pobre Pound!”
[...]
Este é um tempo sem trigo
e sem sol. Este é um tempo.
A cal que cai do Céu
26
devora as criaturas. [...]
A sugestão de um tempo pétreo e escuro, um tempo corrosivo e devorador em que
imperam “a lei” e o tédio e as palavras se empobrecem, retornará em inúmeros outros poemas
da década. Impossível não lê-lo em consonância com outros acontecimentos do período, que
24
A descrição dos fatos e a reprodução de alguns textos estão em SANT’ANNA, A.R. Música Popular e moderna
poesia brasileira, p.115-117. Este autor foi responsável pela edição do jornal e o texto de abertura traz suas
idéias características. Os quatro números do Jornal de Poesia estão microfilmados na Biblioteca Nacional, dentro
do Jornal do Brasil, de 1/9/1973, 29/9/1973, 27/10/1973 e 24/11/1973.
25
Os versos selecionados, dos quatro exemplares do Jornal de Poesia, pertencem tanto a poetas mais velhos e
consagrados quanto a mais novos: Afonso Ávila; Silviano Santiago, José Soares Gouveia, Mário Chamie,
Armando Freitas Fº, Gramiro de Matos, Gabriel [?].
26
No Jornal de Poesia, n° 2, em 29/09/1973. Todos os poemas vinham acompanhados de uma pequena
apresentação do autor. Neste caso, Jairo é definido como um poeta maduro, que esperava editor para sua obra
Idade do Urânio: Cinco Epístolas em Tom de Elegia, na qual repassava a tradição poética ocidental até as
vanguardas, numa linguagem vizinha a Pound.
163
povoavam as páginas do mesmo jornal, calando à sensibilidade dos leitores mais atentos: a
queda de Allende no Chile e a promessa de Pinochet de extirpar tumores; interrogados
denunciando tortura; a luta de brancos e índios no Xingu; a estimativa de 10 milhões de
deficientes psíquicos no Brasil, com grande incidência entre professores dada a baixa
remuneração ou excesso de trabalho (21/9/73); políticos gregos pedindo a renúncia de
Papadopoulos e o início de uma ditadura naquele país; seqüestros de empresários na Itália por
motivação política; a Arábia Saudita ameaçando explodir petróleo; a morte de Pablo Neruda
(24/11/73); ao lado, as crônicas de Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, as
charges de Juarez Machado, Caulus e Lan, os quadrinhos de Henfil; o cinema de Godard e
Buñuel; os shows dos Secos e Molhados e MPB-4, comédias do Costinha e muita diversão...
Pobre poeta!
Caberia indagar em que medida aqueles indivíduos conseguiam construir suas
subjetividades e fazer seus versos em meio à cal do céu e ao caos da terra. Seguia-se, no geral,
a proposta de edificação humana por via poética – cuja tradição remete, na cultura ocidental, à
Divina Comédia de Dante – do poeta gaúcho Mario Quintana, colocada à moda de epígrafe no
primeiro número do Jornal de Poesia:
todos deveriam fazer versos. Ainda que sejam maus, não tem importância. É
preferível, para a alma humana, fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício
da arte poética é sempre um esforço de auto-superação. E é de fato consabido que o
refinamento do estilo acaba trazendo o refinamento da alma. Sim, todos devem fazer
versos. Contanto que não venham mostrar-me. E mesmo para os simples leitores de
poemas, que são todos eles uns poetas inéditos, a poesia é a única novidade possível
[...]
Um sem-número de escritores brasileiros parecia coadunar-se a este misto de ironia e
grandeza dantesca. Uma semana após, um editorial do Jornal do Brasil intitulado “Além do
econômico”27 imergia no debate sobre arte-indústria-política cultural e criticava a
modernização técnica dos jornais efetuada em detrimento da literatura, que ficara restrita a
pouquíssimos suplementos de letras e artes no país, defendendo que os meios de comunicação
não significassem dificuldades de acesso à cultura, mas, ao contrário, que o consumo de
massa promovesse a democratização do bem artístico. A grande repercussão do Jornal de
Poesia tirava esta arte “do ostracismo” e mostrava “a extensa pauta de necessidades no setor”;
em decorrência, uma vez que o “progresso de um povo implica desenvolvimento cultural, até
porque o espírito é a premissa das relações materiais”, cabia à iniciativa particular incentivar a
criatividade e o pensamento, enquanto o Estado não agisse.
27
Jornal do Brasil, 8 set. 1973. Note-se o caráter ambiguamente idealista do texto, invertendo o determinismo
econômico ao dar primazia ao espírito, mas o afirmando ao mostrar os efeitos da modernização técnica.
164
A questão recebeu atenção também de Tristão de Athayde, que publicou “O Fruto de
um decênio”, no Jornal do Brasil de 11 de outubro de 1973, avaliando os resultados de dez
anos “da Revolução de 64”: naquele decênio de relativo progresso econômico e absoluto
regresso político, o regime de “absolutismo político, mascarado pelo nominalismo vazio das
fórmulas demagógicas para efeito de propaganda política” havia produzido como benefício a
“ressurreição do interesse pela poesia no Brasil”. Uma vez que a censura obrigava à
camuflagem e aos “desvios barrocos” de linguagem, e que a poesia é “arte da camuflagem”
por definição e não como artifício ou impostura, ela se tornava capaz de “enfrentar os mares
mais encapelados [...] para escapar aos holofotes inimigos, a serviço dos pretextos, utilizados
por todos os regimes antiliberais, para garrotearem a liberdade de expressão”.28 O artigo
provocou a resposta do poeta Cacaso e de Heloisa Buarque, que publicaram, no mesmo mês,
um artigo no primeiro número da revista Argumento, em que avaliavam aquele fenômeno
poético como um “surto de indagação”, tantas eram as perguntas do momento, e cujo valor
residia na atitude de estar fazendo poesia, mais importante do que o produto final, pois em
meio aos esquemas paralisantes, significava mais “uma busca de reconhecimento e
identidade, maneira precária de dizer que estamos vivos, do que um acontecimento
‘literário’”. Refutavam o papel da censura como incentivo à criação, considerando que Alceu
de Amoroso Lima havia diagnosticado lucidamente as causas, mas não o sentido do
florescimento poético: nunca fora tão difícil adotar posturas culturais críticas, fora do raio
comercial e da ideologia oficial. Vista de perto, aquela poesia apresentava “as mesmas marcas
brutais que dilaceram e dificultam a renovação conjunta de nosso processo cultural”,
revelando “os sinais comuns de asfixia que pesam e reorientam os demais setores da nossa
cultura” e, como o alcance de “seu poder de ardil” inclui até “a dissimulação da própria
violência que sofre”, seria melhor perguntar que tipo de subjetividade residia na raiz de tudo
aquilo, “crescentemente confinada aos seus limites mais estreitos e privados? E que tipo de
poesia resulta desta subjetividade?”29
Um rápido inventário de ficções poéticas não traria um quadro animador de respostas:
Nós estamos em plena decadência. Eu e você estamos em plena decadência. A nossa
relação está em plena decadência. Quando duas pessoas chegam a se dizer isso
28
In: Jornal do Brasil, 1° Caderno, p.6, 11 out. 1973. Tristão de Athayde era o pseudônimo do pensador católico
Alceu de Amoroso Lima, que se manteve na oposição à ditadura militar.
29
BRITO, A.C. e HOLLANDA, H.B. Literatura: nosso verso de pé quebrado. Argumento, ano 1, n.1, p.81-94, out.
1973. O problema da censura como incentivo à criação ou não era muito discutido na época, constando em
entrevistas jornalísticas, como as de Ventura aqui mencionadas, e debates diversos. Refutam o impulso criativo
da repressão autores como Chico Buarque e o poeta Paulo Henriques Britto, que, premiado nos anos 90, relata
haver começado e interrompido sua escrita nos 70, por não se sentir bem na atmosfera geral, nem tampouco
entre os marginais.
165
tranqüilamente, é sinal de terra à vista. Nem tudo é um naufrágio na vida. Mas um dia eu
ainda me afogo no álcool.
(Ana Cristina César, “Simulacro de uma solidão, 8 de julho”)
[...] Manuel trocou a lua/por líquida sorte e rumo/O rio./ [...] Manuel bailou/no espaço da
noite sem pássaros/O país da sífilis./Os fuzis brincaram/em brancas elipses e reflexos
circulares./A sombra reluz da sombra/do fogaréu nas avenidas do povo/O labirinto. [...]
(Geraldo Carneiro, “Na busca do sete-estrelo”)
Emília engordou/Valentina rasga o ventre/com a faca de pão./Filipa se despenteia/para mais
uma noite de pauleira
(Eudoro Augusto, “Gossipz”)
avenida atlântica/interior de um táxi//chofer:/padres mortos/famílias destruídas/guerras,
milhares de mortos/tudo isso para vestir o índio/E hoje, é o que se vê.
(Bernardo Vilhena, “Ouvido ao acaso nº 477”)
vivo agora uma agonia:/quando ando nas calçadas de copacabana/penso sempre que vai cair
um troço na minha cabeça
(Charles, “Colapso concreto”)
tenho vontade de ver/as coisas como realmente são/mas só consigo ver/através de meus
olhos
(Luis Olavo Fontes, sem título)30
Enredados em labirintos urbanos e relações decadentes, manifestando desejos suicidas,
pavor e paranóia, sob aparência de festividade, num contexto de destrutividade, estes sujeitos
líricos não apresentavam ao mundo um destino promissor. Sua agonia e dificuldade de
transcendência foram consideradas, por autores como Flora Sussekind e Costa Lima,
respectivamente como uma síndrome de prisão do eu, mimetizando o estado geral
aprisionador da sociedade, e, analogamente, como uma expressão egóica à exaustão, ainda
que a centralidade do eu fizesse sentido naquele contexto, em que, ocupado o país pelo regime
militar, restava aos jovens literatos, que reaclimatavam o ideário modernista em tom menor,
pôr-se a serviço da “territorialidade privada”, salvando ao menos a casa ou o quarto dos
fundos31... o que, entretanto, não tornava melhor seu labor poético. Isto, porém, são avaliações
a posteriori. Naquele momento, a proposta edificante de Mario Quintana apresentava, em
linhas gerais, intrigantes resultados. O significado daquela poesia como resistência política,
recalcando ou não a dor e o medo sob “pobres palavras”, ou voz que se intimida e se põe a
“chorar baixinho”, estava em jogo, e as indagações permaneciam em aberto.
A culminância desta movimentação se deu em outubro de 1973 com o evento Expoesia
I, organizado pelo Departamento de Letras e Artes da PUC-RJ, sob liderança do poeta e
professor Affonso Romano de Sant’Anna, que ministrava um curso na pós-graduação.
30
Os poemas se encontram em HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.140, 154, 167, 175, 209, 237.
Cf. COSTA LIMA, L. Abstração e visualidade., op.cit. e SUSSEKIND, F. Literatura e vida literária. A questão
da subjetividade não se esgota nisso e voltará a ser discutida adiante.
31
166
Tratava-se de uma mostra da produção poética do momento e uma retrospectiva dos
movimentos de vanguarda, além de um ciclo de debates sobre a história literária recente no
Brasil e os vínculos da poesia com a música (MPB). Em recente artigo comemorativo dos 30
anos da Expoesia I, Affonso Romano relata que sua intenção inicial era propor um desafio aos
estudantes, o qual poderia “cair no vazio” ou constatar que “a poesia brasileira estava
entrando em nova fase”, o que depois se confirmou. Os organizadores anunciaram aos ventos
que estavam recolhendo a nova produção poética do país, em qualquer forma que fosse, para
evitar impor de antemão um conceito de poesia literária: “que enviassem poemas objetos,
visuais, conceituais, poemas corporais, ou melhor, tudo aquilo que seus autores julgassem ser
poesia. A primeira proposta era receber tudo, fazer uma seleção e dizer, olha, essa é a poesia
que se faz hoje, vamos estudá-la.” No entanto, o contexto ditatorial vigente, o fato de “uns”
estarem na guerrilha, “outros” no exílio, as salas de aula vigiadas por informantes do SNI e do
DOPS – “aqui dentro era igualmente (ou mais) difícil sobreviver e resistir”, depõe ele –
conferiu ao evento proporções inimaginadas:
Não é à toa que o SNI considerou a “Expoesia” uma das iniciativas mais subversivas
do ano, enquanto a [revista] Veja a considerava um dos fatos mais marcantes de
nossa cultura no mesmo período. Por isto, estando em plena ditadura, em conversa
com os alunos, decidimos que, politicamente, era mais justo aceitar tudo o que
mandassem. Sem qualquer censura. Já bastava a censura oficial. Desta maneira
derrubam-se duas censuras: a política e a estética. Pessoalmente, achava uma
bobagem aquela coisa das vanguardas dizerem que o verso acabou, que o lirismo
acabou, que só valia a poesia visual e cheia de trocadilhos. O resultado é que, no dia
22 de outubro, três mil poemas de cerca de 300 poetas foram expostos, ocupando os
pilotis do Prédio Kennedy, os corredores e a entrada da biblioteca.32
Os trabalhos recebidos compunham um conjunto heterogêneo, que ia do cordel a filmes
em super-oito. Trinta painéis mostravam didaticamente seleções da moderna poesia brasileira,
portuguesa, africana e norte-americana. Diariamente, conferências tratavam dos movimentos
recentes da poesia33. Caravanas de alunos de colégios e faculdades realizavam visitas guiadas.
Programado para durar uma semana, o evento durou quinze dias, merecendo cobertura em
jornais e um artigo na revista Argumento, de autoria de Cacaso, também ele professor da
PUC-Rio, juntamente com Heloisa Buarque de Hollanda. A grande repercussão de tal
acontecimento poético gerou ainda no mesmo ano a Expoesia II em Curitiba (PR), reunindo
mais de 200 poetas, entre os quais Leminski; e a Expoesia III, organizada em Nova Friburgo
32
33
SANT’ANNA, A. R. Há 30 anos a “Expoesia”. O Globo, Rio de Janeiro, 25 out. 2003, Prosa & Verso, p.2.
Os temas incluíam: Neoconcretismo (por Roberto Pontual), Geração 45 (Ledo Ivo), Poesia Práxis (Mário
Chamie), Poema Processo (Moacy Cirne e Álvaro de Sá), Tropicalismo e Pós-Vanguardas (Reinaldo Jardim e
Luis Carlos Maciel), Música Popular e Poesia (João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Gilberto Gil, Ronaldo
Bastos, Macalé). O concretismo foi representado com 33 painéis, livros e discos sobre a poesia concreta alemã,
visto que os poetas concretos paulistas, segundo o artigo-depoimento, recusaram-se a participar. Cf. idem ibidem.
167
(RJ) por Eliana Yunes, na Faculdade Santa Dorotéia. Affonso Romano teria recebido
solicitações – que não atendeu porque exigiam que se tornasse empresário, diz ele – para
organizar a Expoesia 4 em Brasília, Expoesia 5 em Belo Horizonte (MG), Expoesia 6 em São
Paulo (SP), e Expoesia 7 em Porto Alegre (RS). O significado geral do evento, nas palavras do
organizador, consistiu, “além do gesto de afronta ao regime militar de então”, numa “revisão
da produção poética brasileira e na primeira entrada oficial da chamada ‘poesia marginal’ na
universidade brasileira.”34
Ainda que não houvesse efetivamente adentrado a universidade – que não lhe era de
grande apreço – a nova poesia abriu espaço. Mais do que isto, entretanto, aqueles livros,
jornais e eventos haviam configurado a existência, no Brasil, de um surto de poesia, velha e
nova, de todo tipo, a plenos pulmões, em plenos anos de chumbo.
4.3. Ares anti-intelectuais: “cuidado, Capitão”...
Segundo Affonso Romano, na última conferência da Expoesia I, acerca do tropicalismo,
o “poeta de rua” Flávio Nascimento, como ele se auto-intitula, teria declamando o poema
“Manifesto para soltar os bichos”, que solicita a longa citação em virtude dos problemas que
levanta:
Abaixo o Concretismo!
Acima a Fantasia!
Abaixo os tecnocratas da palavra!
Acima os mágicos do verbo!
[...]
Importa é que
as palavras e as portas
pouco importam.
Viva o silêncio!
A Linguagem não é privilégio
do homem,
mas sim o seu limite.
Importa é a semiologia animal,
os olhos, as mãos,
os beijos, os passos,
a dispersão semântica.
Joyce é tecnicista.
Escreveu para literatos,
para a burguesia das letras.
Borges e Guimarães Rosa
o que fazem
é magia além da palavra.
[...]
34
Cf. ibidem. No entanto, Armando Freitas Fº relata que houve discriminação quanto à nova poesia, que
diversamente das outras correntes, muito bem arrumadas em stands, “ficava no pátio, no maior carnaval”,
realizando-se, em compensação, o evento PoemAção, em 1974, no MAM-RJ. Op.cit, p.182.
168
A fantasia não quer resolver
enigmas, mas propor viagens.
Senhores donos da Razão,
admitimos o que não sabemos.
O que importa
é o que ainda não vimos.
Chega de realismo,
o grilo alheio
a guerra que não fiz.
[...]
A opção fundamental
está entre a vida e a morte.
O resto é ficar sem saber,
é transar
é deixar rolar
pau come e ninguém vê.
A realidade só me interessa
para patrocinar o sonho.
Só a vejo pelo avesso.
Chega de política e psicanálise
poluição e sofá.
Importa é a sobra
o excremento
o grão de indeterminação.
[...]
Quero a queda de Logos
da verborréia ocidental,
mas não quero a mudez repressiva.
[...]
Ah, luta social!
Não agüento mais viver
sob a tua tutela.
[...]
Deixe-me ao menos por enquanto
respirar um pouco o ar natural
esquecer o tempo
olhar os urubus
[...]
Peço licença, senhores engajados,
para respirar,
para perder tudo por um segundo,
inclusive a economia
e sossegar por um instante,
senão aqui, em qualquer lugar,
onde ainda se possa sonhar.
[...]
Duramos muito pouco
para esperarmos
todo o processo histórico.
De qualquer maneira,
é preciso que nossos filhos nasçam
e não apenas os deles.
Por enquanto, é preciso fazer, fazer
do impossível, a própria vida.
[...]
O poeta, ator e professor pernambucano se tornou conhecido ao longo do decênio de 70
em virtude de sua “caixinha de cinema”, com que projetava filmes artesanais baseados em
169
obras literárias, em escolas, eventos de rua e livrarias por toda a cidade, como também por sua
intensa participação, posteriormente, na Feira de Poesia Independente da Cinelândia (RJ),
entre 1980-1983. Preocupado com o acesso de seu trabalho ao público de rua e às camadas
populares, foi tornando seus livros cada vez mais artesanais, reproduzidos em cópias
xerografadas, e sua dicção poética crescentemente adequada à coloquialidade e à declamação,
muitas vezes na forma de espetáculo circense, em toda e qualquer parte35. Em 1970, vendendo
seus folhetos na feira hippie, o poeta teria sido detido, embora seus documentos estivessem
em ordem, sob a alegação policial de que “poeta não é profissão, poeta é sinônimo de
vagabundo”, o que obteve repercussão na imprensa, merecendo uma crônica-carta “Aos
poetas”, de Drummond, no Jornal do Brasil36.
O poema supra-citado não consta absolutamente entre os melhores de Flávio
Nascimento, mas é assaz representativo de uma maneira de pensar e poetar que ganhava
espaço naqueles tempos, trazendo à luz as angústias e limitações de grande parte da juventude
de então. Apesar da discussão formal tematizada, não há novidade ou pesquisa alguma em
termos formais em sua construção, que se apresenta como uma declaração de incômodos de
longo fôlego e repleta de contradições. Se há em certa medida a busca de um entrelugar, como
no poema de Chacal – o texto termina propondo o lugar da poesia-fantasia na linha do
horizonte, como “terceiro termo/entre terra e céu” – a proposição do “manifesto” não se
efetiva, uma vez que não há clareza de objetivos, nem sequer sobre o que se nega. Forma
estética, razão ocidental (que inclui em seu bojo o inconsciente psicanalítico, segundo o
poema), linguagem e realidade são igualmente recusadas, em nome de uma região vaga em
que sonho, fantasia, silêncio, “semiologia animal”, excremento e ar respirável se equivalem
em valor positivo, elevados a grande exponência com a ajuda dos pontos de exclamação. No
35
Cf. NASCIMENTO, F. Poesia na rua: antologia. 30 anos de poesia popular participativa (1967-1997). Rio de
Janeiro: Íbis Libris, 2003. Nascido em Palmares (PE), Flávio concluiu graduação e pós-graduação em Língua e
Literatura Portuguesa e Brasileira no Rio de Janeiro, onde começou a publicar seus livros, Treva (1967), O
Preço (1970) e Viagens (1979). Os dois primeiros tinham capa de Waltercio Caldas Jr. e Treva contava com
pequenos prefácios de Chico Buarque e Torquato Neto. Todos os seus livros, com as respectivas capas se
encontram reproduzidos na antologia, além de entrevista concedida a Heloisa Buarque, artigos jornalísticos e
apresentações críticas diversas. Acerca da “Caixa de Cinema Lambe-Lambe” como experiência pedagógica de
cinema artesanal, desenvolvida em escola pública de Curicica, na zona periférica do Rio de Janeiro, há um texto
explicativo de Chantal Azevedo, para o suplemento mensal do jornal francês Le Monde, sem data mencionada.
Encontra-se reproduzido junto ao libreto de 1981, Pastoral. Sobre a Feira de Poesia da Cinelândia, há
reprodução de artigo do Jornal do Brasil de 25 ago. 1981. O poema acima consta nas p.37-38. Sublinho que os
descaminhos aqui apontados a partir do poema de Flávio não se devem à sua conduta, até hoje fiel poeta de rua e
professor; mas seu texto, e não sua pessoa, foi representativo de um tipo de raciocínio e comportamento que
levava potencialmente aos problemas e desvios analisados.
36
Cf. MICCOLIS, op.cit., p.61; Drummond, Aos poetas, Jornal do Brasil, 26 out. 1970; e A POLÍCIA continua
repressão aos hippies e prende outros 17. Jornal do Brasil, 23 fev. 1970. Fazia parte da prática repressiva dos
países da América Latina deter pessoas sem documentos ou com estes fora dos padrões, o que consistia em mais
uma contribuição para a atmosfera de medo vigente.
170
entanto, o mesmo “grão da indeterminação” encomiasticamente tratado consiste na arma
impeditiva dos discernimentos reflexivos que poderiam encontrar veredas na confusa floresta
de signos e sentidos. Em resultado do bem intencionado sonho poético, a ignorância, a luta
social, a guerra que ninguém individualmente inicia, a indiferença para com as preocupações
dos outros (“o grilo alheio”) continuarão ocorrendo sem interferências (“deixar rolar”) e a
violência grassará sempre, também recoberta pelo indiscriminado silêncio (“o pau-come e
ninguém vê”). Além disto, o que e como poderão dizer “os mágicos do verbo”, se as palavras,
que são sua matéria de trabalho sine qua non, e as portas, de entrar e sair das circunstâncias e
impasses, “pouco importam”? Não há aliteração fonética que sustente tal raciocínio, que
deriva, então, em pensamento mágico, característico do universo infantil.
A dose traumática passível de se embutir nas confusões e indistinções, bem como na
recusa do valor de quaisquer normas, já foram comentadas37, com base nas reflexões de La
Capra. Não há que descartar sua presença, comum nas sociedades burguesas em crise,
mantendo-se como latência nas confusas emanações do clima anti-intelectual que se percebem
no poema de Flávio. Sua crítica a Joyce, desprezado como literatura para burgueses, não se
explica diante de sua preferência por Jorge Luis Borges e Guimarães Rosa, que se revela
então mais uma questão de gosto do que de coerência de princípios.
Uma tal postura existencial vitalista e anti-intelectual, como já mencionado, era uma
tendência relevante do comportamento na década de 70. Costa Lima a frisara, ao mostrar que
toda norma e toda forma, apesar de constituírem exigências intrínsecas ao gesto artístico tanto
quanto ao pensamento, foram identificadas com o autoritarsimo político e sentidas por parte
desta “geração” como castradoras, devendo ser repelidas em nome da liberdade. Igualmente,
Messeder Pereira38 havia destacado o anti-intelectualismo, o anti-tecnicismo e a politização
do cotidiano como principais vertentes da reorientação cultural ocorrida ao longo dos anos 70,
observando que a crise da razão e a derrota do pensamento de esquerda – ao lado dos eflúvios
contraculturais que recusavam quaisquer discursos que considerassem institucionalizados,
preterindo-os em prol do misticismo e do psicodelismo, bem como da pressa de agir, típica da
juventude – haviam provocado profunda insegurança e desconfiança para com a reflexão
teórica. Estudando o problema do lugar do intelectual na América Latina, especialmente na
esfera de pensamento das esquerdas, Claudia Gilman aponta dois motivos centrais para a
retração do valor da intelectualidade a partir dos anos 60/70: por um lado, o advento do
37
Ver cap. 3 deste trabalho.
Ver cap.3 deste trabalho. A mudança de eixo na cultura, cujo início foi vivido pelos pós-tropicalistas, agora se
disseminava mais amplamente.
38
171
estruturalismo, substituindo os conceitos de “consciência” e “sujeito” por “códigos” e
“sistemas de regras” em que os sentidos não são construídos pelo homem, mas “advém” a ele,
provocando uma mutação que acaba por converter Sartre, como seu antípoda, em personagem
solitário e gradualmente deslocado, a partir de meados dos anos 60. Por outro lado, a
atmosfera emanada da revolução cultural chinesa também se carregava de antiintelectualismo, uma vez que a proposta maoísta de suprimir a divisão social do trabalho,
como forma reificadora a ser superada pela cultura revolucionária em nome da emancipação
humana, terminou por se reduzir à armadilha de uma lógica binária, em que os intelectuais se
viam presos a um só pólo da tensão dialética da modernidade: ou inovação estética ou
popularização. “Partindo de uma oposição segmentadora entre política e cultura, resultava
lógico que o maoísmo (e boa parte da intelectualidade latino-americana) postulasse como
burguesas todas as teses que, no terreno da arte, davam primazia ao critério estético sobre o
político.”39
Ao lado disto, não se pode esquecer que as universidades, principal fonte de formação
intelectual, sofriam em quase todo o mundo mudanças estruturais, no sentido de adequá-las à
preparação técnica dos jovens para o mercado de trabalho, em detrimento do ensino
humanístico, ainda naquele momento produtor de valores não mercantis. Nesta direção, as
universidades brasileiras foram essencialmente modificadas pela reforma universitária
conduzida pelo regime militar, bem como pelo auto-exílio e pela perseguição e expurgo de
professores de esquerda ou que foram considerados como tal por seu modo de pensar
insubmisso. Na visão de Antônio Cândido, os países da América Latina, desde sua
independência, realizada sob os influxos da Ilustração, viveram não obstante a perversão dos
ideais ilustrados, que se converteram em parte ativa do sistema de dominação imposto desde a
colonização, incluindo a língua, a religião, os valores morais que, paradoxalmente, impunham
a reverência aos senhores. A ilustração latino-americana se tornou uma tendência dilacerada,
uma vez que as condições locais punham a nu suas contradições ideológicas, ou seja, a
iniciação na cultura intelectual e seu uso social e político ficou restrito às elites, às quais se
delegaram as funções sociais do saber e da cultura, bem como a felicidade possível, relegando
a um limbo utópico a questão do bem comum.
Deste modo, continua Cândido, a criação de instituições de ensino que comportassem
camadas mais modestas da população, particularmente no ensino superior, dependeu da luta
39
“Partiendo de uma oposición tajante entre política y cultura, resultaba lógico que el maoísmo (y buena parte de
la intelectualidad latinoamericana) postulara que eran burguesas todas las tesis que, en el terreno del arte, daban
primacía al critério estético antes que al político.” GILMAN, C. Alcances mundiales del antiintelectualismo. Entre
la pluma y el fusil. Buenos Aires: Siglo XXI-Argentina, 2003, p.185. Cap.4.4.
172
social. No Brasil, estas instituições, que por muito tempo funcionaram como “máquinas de
conformar mentalidades”, a partir dos anos 20 e 30 do século XX receberam pressões por
parte das classes médias, oriundas do processo de urbanização-industrialização e imigração,
no sentido da modernização da ideologia ilustrada e criação de universidades que superassem
o velho critério do mínimo indispensável para formação profissional das elites (Faculdades de
Direto, Medicina, Engenharia Militar). O eixo universitário, então, tendeu para as faculdades
de Filosofia, Ciências e Letras, cuja pesquisa desinteressada contrastava com a formação
tecno-profissional, quebrando a hierarquia derivada do prestígio político das profissões
liberais, num processo crescente que culminou, nos anos 50 e 60, em novas pressões para a
ampliação e democratização do ensino superior, com grande atuação do movimento
estudantil.
O golpe de 1964 interrompe este processo, não apenas ao criar uma campanha
demagógica de alfabetização a curto prazo que redundou em fracasso (segundo Antonio
Cândido, aumentou o número de analfabetos no país nos vinte anos da ditadura militar), como
também ao incrementar o número de matrículas e novas escolas de ensino superior, cuja
população de 150 mil estudantes deduplicou em dez anos, porém mediante a redução dos
requisitos de ingresso e do próprio nível de formação, o que foi encoberto pelo discurso da
competência técnica introduzido pela reforma universitária. Com o calamitoso decréscimo da
qualidade, as camadas médias receberam um ensino degradado, enquanto a massa pobre
continuava excluída da instrução, perdurando, desta maneira, a perversão do ideal ilustrado de
formação social e revelando-se a restrição do saber como um dado estrutural da cultura
brasileira40.
Assim, à recusa libertária, de fundo marcuseano e contracultural41, acrescia-se a
profunda frustração com os rumos do processo cultural-histórico nacional, seja na curta ou na
longa duração, e o fracasso das alternativas revolucionárias. No somatório destas questões, o
vetor cultural tendeu para um confuso anti-academicismo e anti-intelectualismo. Criou-se
gradualmente no país uma cesura entre técnica e reflexão sócio-filosófica, e entre aqueles que
a incorporavam e aqueles que a rejeitavam, de considerável amplitude. Passaram-se a ver
disputas entre intelectuais de dentro e de fora da universidade42, e muitos jovens
40
Cf. CÂNDIDO, A. Perversão da Aufklärung. Discurso proferido em encontro de intelectuais em Havana, 1985,
e publicado, com o título de “E o povo continua excluído”, no Jornal do Brasil, 22 dez. 1985, Caderno B. In:
Textos de Intervenção, op.cit., p.320-327. Ainda que se trate de um comentário bastante marcado pela conjuntura
da época, diversos autores a sustentam até hoje.
41
Como já comentado, não se trata da mesma coisa, dada a complicada recepção de Marcuse no Brasil. Ver
crítica de Carlos Nelson Coutinho, cap.3.
42
Ver este aspecto, por exemplo, nas polêmicas literárias estudadas por SUSSEKIND, op.cit.
173
abandonarem a vida universitária – fosse na condição de alunos ou já de professores – para
voltar depois, ou jamais43. Evidentemente, o que é tendencial em uma cultura não atinge a
todos os artistas, nem se manifesta de modo uniforme entre os que melhor expressam a
tendência. Naquele novo meio poético, alguns eram bastante afeitos ao universo intelectual,
até mesmo em virtude de suas profissões, de professores, tradutores ou diplomatas, por
exemplo. Conseqüentemente, prevalecia um clima de ambigüidade com relação às
construções intelectuais, sobretudo quanto a sua capacidade de gerar transformações
qualitativas na sociedade.
Na esfera da poesia, esta ambigüidade abrigou-se, ainda uma vez, nos debates em torno
da forma estética, do maior ou menor rigor, nas discussões daqueles que se afinavam com as
vanguardas ou com a busca da cultura nacional-popular. Neste grupo, em especial, muitos
sentiam as críticas à sua falta de rigor formal como um policiamento a mais – como o esteta
que se fazia “cana a la kant” de Chacal. A busca de uma “terceira” posição, de estar além
disto ou daquilo, traduzindo com freqüência um descompromisso com qualquer vertente,
disseminou-se também como opção. O livro O Misterioso Ladrão de Tenerife, por exemplo,
trazia vários pequenos prefácios dos dois autores em que se recusava a forma-prefácio como
modo de explicação dos problemas semânticos, estéticos ou políticos colocados em um livro.
Já no texto de abertura, de Eudoro Augusto, a conotação cartorial do título “Livro n° 675, de 2
de, de 1971” ironizava a eficiência deste tipo de procedimento característico da crítica
literária:
em que se estabelece a equação variável da paisagem de acordo com os limites topográficos
do fogo, a soma dos detritos e a falta de ar,
em que se invertem os índices de fruição intelectual do poema, das iluminuras [...] em que
se revogam os nomes completos dos autores, o caráter fictício dos personagens, a
apologética prefacial, as influências confessadas e a verossimilhança das situações.
O despojamento teórico é requerido para se lidar com uma matéria poética móvel como
o fogo, os processos de putrefação e a asfixia, ao que não se coadunam os modos tradicionais
de tratar da identidade, da mímese e dos tributos estéticos. Adiante, outro texto propunha
“partir um dia (the nice little poet rides again!) para uma de máxima perfeição racional: o
livro sem orelhas, sem dicas, sem sílaba sequer da chamada transposição estética”. O poeta
43
Houve também uma mudança na procura dos cursos universitários. Messeder Pereira relata que tanto o
recrudescimento da repressão policial nos cursos de ciências sociais e história, quanto a atuação de movimentos
de esquerda, vistos agora como “caretas” pelos jovens, provocaram o deslocamento do interesse para a área de
comunicação (especialmente jornalismo e cinema), que teria representado para os “desbundados” dos anos 70 o
que aqueles outros cursos representaram para a geração mais politizada dos anos 60. Cf. Retratos de época,
p.337, nota 30. Evidentemente, os cursos de comunicação também se adequavam melhor à difusão dos meios de
comunicação de massa e da indústria cultural no país.
174
insubmisso a qualquer registro programado, buscava livrar-se de “todos os vestígios da
poética milimetrada e asséptica” para construir uma linguagem com base na sua própria
experiência e não nas experiências prévias – “Sem essa de renovação de linguagem a partir de
uma experiência já definida (dos outros)” –, o que, por conseguinte, não poderia ser captado
em prefácio pré-figuradores da leitura. Mas um livro sem orelhas, procedimentos
introdutórios ou mediações críticas, bem como uma poesia sem enquadramento de
experiências anteriores, exigiriam um leitor munido de amplos conhecimentos gerais e
plenamente capaz de alteridade, que o habilitassem a ler e interpretar a experiência alheia
tornada texto como pura novidade, e compreender seus sentidos sem deturpá-los com préconcepções: ou trata-se de um leitor social e esteticamente preparado para a “máxima
perfeição racional” que queria Eudoro, ou tal coisa inexiste. Uma literatura absolutamente
nova calcada em experiências pessoais e intransferíveis e que jamais incluísse a experiência
de outros artistas ou críticos, eliminaria em última instância a possibilidade da recepção, o
intercâmbio de referências culturais comuns, preexistentes e pré-figuradoras, necessárias à
comunicação humana.
No extremo, chegar-se-ia à situação, analisada por Benjamin, de um esgarçamento
instransponível na transmissão de experiência social na modernidade, revelando um
significativo limite cultural das sociedades ocidentais contemporâneas, nas quais não se
resolvem satisfatoriamente – enquanto não se supera a oposição binária – os problemas da
renovação formal e comportamental em relação à bagagem da tradição. A dialética da
tradição-modernidade possui raízes fundas no processo histórico e cultural. A busca do novo,
característica da cultura ocidental moderna e contemporânea, se levada ao absoluto vem a
eliminar um dos fatores constitutivos da arte, que reside na espera virtual da recepção, bem
como o aspecto fundante da cultura que consiste na transmissão social e geracional e o
decorrente acúmulo de substância cultural, constituindo em uma sociedade aquilo que
Bourdieu chamava de capital cultural. Uma ruptura nesta dinâmica representa um
adelgamento das possibilidades culturais que, no limite, acarreta o empobrecimento da
experiência que Benjamin detectou na modernidade:
Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o
vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século
passado [XIX] mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem
nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente,
que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível
confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a
humanidade. Surge assim uma nova barbárie. [...] Pobreza e experiência: não se
deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a
libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão
175
pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa
resultar disso.44
Deixando para outra ocasião o vasto problema da “nova barbárie” contemporânea45,
tomemos a questão complexa da experiência empobrecida e sua relação com o patrimônio
cultural geral que Benajmin suscitou, apontando o desejo de autenticidade daqueles que a
assumem, mostrando simultaneamente desilusão e fidelidade a seu tempo, num jogo em que
criticidade e acriticidade se neutralizam.
Como o gosto constitui um sismógrafo da experiência histórica, conforme mostra
Adorno46, o desejo de ser diferente, por parte de indivíduos com nervos esteticamente
desenvolvidos pela sua organização burguesa tardia, ainda que delicado ou rebelde pode vir a
ser mais um elemento no teatro da opressão, se não possuir instrumentos muito sólidos para
reverter seu engendramento sistêmico. Como nenhuma categoria, nem mesmo a formação
cultural (Bildung), tem sua perenidade garantida de antemão, o afrouxamento das exigências
culturais acaba por desarticular o núcleo da autodisciplina individual e coletiva necessária à
formação. Para recusar com consistência o teor desnaturado da cultura dominante, é preciso
que a pessoa participe dela o suficiente para conhecer seus meandros e sentir ganas de se
livrar. Isto porque a resistência individual, ao contrário do que possa parecer, não tem caráter
individual, pois a consciência moral e ética, que sempre pressupõe a razonabilidade, possui
uma faceta social, como o superego, uma vez que se constituem mediante as representações
exemplares da sociedade justa e dos cidadãos que lhe correspondem. Quando esta
representação social esmorece, desinibe-se o que estava controlado, como ocorre na vida
pulsional, e o ímpeto intelectual se volta para a incivilidade, o desleixo ou a impolidez – no
caso do poema de Flávio Nascimento, o louvor da semiologia animal, do excremento ou o
descaso no trato da linguagem. O livre pensar, opondo-se com boas razões à reflexão que se
tornou burocratizada ou “acadêmica”, identificada com o intelectualismo, parte da
consciência, de resto legítima, de que no cientificismo o mais importante se perde. Corre-se
entretanto sérios riscos: de ceder às pressões do mercado; de não dar conta de temas maiores,
tratando-os com filisteísmo; de incorrer em um sectarismo semicultivado ou em ingenuidade,
por falta de elaboração reflexiva. Tudo isto favorece a cisão intelectual que faz a consciência
sofrer. A consciência cindida, ao invés de compreender os fatos, vem a acolher
44
BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre história da cultura,
p.115 e 118. Para o problema da transmissão de experiência na modernidade, ver O narrador, idem, p.187-221.
45
Para a discussão da barbárie contemporânea como estruturação mesma do desmoronamento sócio-cultural no
mundo capitalista tardio, ver MENEGAT, M. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie.
46
As reflexões deste parágrafo se fazem com base em Adorno, a partir de aforismas diversos em que o autor
critica formas de anti-intelectualismo, in: Mínima Moralia, p.22, 44, 57-58, 127, 161, 165, especialmente.
176
apressadamente quem quer que se ofereça e a jogar com conhecimentos apócrifos, categorias
isoladas e hipostasiadas, de modo acrítico.
Assim, faltarão elementos de negatividade reflexiva a este pensamento aparentemente
independente, mas que não consegue escapar do contexto cultural dominante – o que, perante
o processo histórico, resultará em sentimentos imprecisos que vinculam o desconhecimento e
a impaciência ao desejo de dotar a história de sentidos mais humanos, como se lê no trecho
mais sensível porque mais revelador do desamparo-motor do poema em questão: “Duramos
muito pouco/para esperarmos/todo o processo histórico./De qualquer maneira,/é preciso que
nosso filhos nasçam [...]”. Uma arte dialética exigiria mais: que a carne desnaturada da
sociedade atual aparecesse, com todos seus mascaramentos e desvios, o que requer reflexões
complexas. Não basta dizer “basta, quero expressar fantasias e descansar um pouco”, por mais
autêntico que seja o élan, que pode vir a redundar em construções estéticas simplistas, como
um manifesto para soltar os bichos que não tivesse bichos para soltar...
Benjamin observara que a fadiga das pessoas, que não são obrigatoriamente
inexperientes ou ignorantes, as faz se concentrar em planos simplórios revestidos da ilusão de
grandeza. Exaustas com as complicações da lide moderna, em que o objetivo da vida humana
se torna por demais remoto, adiado por uma interminável fila de meios que se sobrepõem aos
fins, acabam por circunscrever suas existências do modo mais simples e mais cômodo, em
que o episódico e o cotidiano se bastam em si, abandonando gradualmente o trabalhoso
processo de compreender a concepção de patrimônio humano, recebê-lo, cuidá-lo, reelaborálo e retransmiti-lo. Nisto consiste o empobrecimento da experiência e da cultura na
modernidade tardia, configurando um quadro em que até mesmo os poetas de esquerda, se
sujeitarem à rotina sua idiossincrasia, seu estilo e sua capacidade de sentir asco, terão sua
verve diluída, sua impertinência e ironia amortecidas e, portanto, desproporcionais às forças
ideológicas e políticas a serem enfrentadas. Ainda que mantenham o ativismo, este se
carregará de senso comum, pondo em liquidação os sentimentos e a inteligência
revolucionária, como quem faz despesas extravagantes sem meios de pagar, transmudando em
festa o que é vacuidade, em objeto de prazer o que é luta política, em bem de consumo o que é
meio de produção e reflexão – o que conferirá à dialética contornos imprecisos e temíveis.
Embora nestes casos o conhecimento crítico não deixe de estar à espreita, este tipo de poeta o
amordaçará em convulsões desesperadas – esta variedade singular de desespero histriônico,
diz Benjamin, que consiste na “estupidez torturada” – para agradar um público numeroso e de
gosto problemático. Não admira, então, que a fruição se transforme em estado de repouso,
177
sem exigir o cansaço do labor sensível e intelectual, e que a função social dessa arte seja
reconciliadora no pior sentido,
produzindo a identidade entre vida profissional e vida privada que essas pessoas
chamam de humanidade, mas que é de fato bestial, porque, nas condições atuais, a
verdadeira humanidade só pode consistir na tensão entre os dois pólos. Nessa
polaridade se localizam a reflexão e a ação. Produzi-la é tarefa de qualquer lírica
política [...]47
Obviamente este movimento, por inconsciente, não é porém escolhido, sendo
racionalizado, ao invés, como humanitarismo por parte daqueles que se querem fazer
compreensíveis a outros homens. Mas ainda aqui, algumas ilusões dominam os artistas e
intelectuais. Não se percebe, voltando a Adorno48, que o gargalo de exclusão do modelo
industrial atinge o ponto de dar o tom das relações privadas, de modo que o nível da
comunicação social passa a ser determinado pelo nível cultural mais baixo. Entre os piores
efeitos se vê a inteligência se transformar em ingenuidade; o comprometimento com o status
quo atuar como força de gravidade, puxando tudo para baixo; as pessoas menos refinadas se
tornarem desprovidas de capacidade de reflexão e não precisarem mais se incomodar com
uma consciência inquieta; os problemas serem resolvidos de maneira pragmática e superficial;
compartimentalizar-se o sentido das coisas, que é contudo inseparável; a opinião se tornar
contingente e teimosa, sem fundamento; vigorar a prática de reificar todo traço de
(de)formação do eu – “eu sou assim”, “não sei e não quero saber” –, quando se passa a
defender o próprio defeito, o que significa retirar o sujeito do dinamismo da experiência e
congelá-lo na impossibilidade de transformação. O anti-intelectualismo e o irracionalismo
latentes nestas circunstâncias são acionados quando os intelectuais tentam denunciar
mecanismos injustiça social dos quais não têm clareza, acabando por ficar à sua mercê – e a
ver urubus e falar “bobage” , como no seguinte texto de Charles, editorial da revista
Almanaque Biotônico Vitalidade n° 149:
na festinha xic paparica-se o artista
na rua o escracho é total
a sabedoria tá mais na rua que
nos livros em geral
(essa é batida mas batendo é que faz render)
bom é falar bobage e jogar pelada
um exercício contra a genialidade [...]
47
BENJAMIN, W. Melancolia de esquerda: a propósito do livro de poemas de Erich Kästner. In: Magia e técnica,
arte e política..., p. 73-77. Citação da p.77.
48
Cf. ibidem.
49
Publicação do grupo Nuvem Cigana, 1976. Apud HOLLANDA. Impressões de viagem, p.232.
178
Uma mentalidade crítica que não transige com o que é eticamente condenável pressupõe
experiência acumulada, memória histórica e pensamento capaz de elaborar dinamismos
tensos, e não este tipo de anti-intelectualismo.
Um outro aspecto problemático do poema de Flávio Nascimento – como síntese
amostral de incontáveis textos “marginais” – refere-se ao desejo de retorno à natureza,
enovelando em seu desdobramento uma série de questões sócio-econômicas e filosóficas.
Como derivação tardia dos movimentos contraculturais dos anos 60, principalmente o
movimento hippie, a busca idílica pelo campo e por um modo de vida “natural” e inocente,
em que pese sua tentativa de sair do sistema econômico e político mediante a vida em
comunidades rurais-naturistas alternativas, de corte romântico anticapitalista, culminou em
uma experiência ingênua que não pôde suportar o peso das contradições. Elidia-se, por um
lado, toda uma história de dominação sobre a natureza, como processo constitutivo mesmo da
cultura e do humano.
Em Mal-Estar na Cultura, Freud considerava a dialética da felicidade-infelicidade na
relação entre indivíduo, sociedade e natureza, partindo da observação de que as três maiores
fontes de sofrimento humano – a supremacia da natureza, a caducidade do corpo e a
insuficiência dos métodos humanos para regular as ações na vida familiar, social e no Estado
– encontram na cultura sua mitigação, ao mesmo tempo que limitações psiquicamente
dolorosas pelas imposições que o superego obrigatoriamente estabelece às pulsões
individuais. Compreendendo cultura como “a soma das produções e instituições que
distanciam nossa vida da de nossos antecessores animais e que servem a dois fins: proteger o
homem contra a natureza e regular as relações dos homens entre si”50, o autor notava na
sociedade industrial burguesa do início do século XX uma decepção com o modus operandi
cultural, pois que o progresso da ciência e da técnica não cumpriam com adequação aqueles
fins, apresentando portanto uma utilidade ambígua para a economia da felicidade. Os
indivíduos caem na neurose por não suportarem o grau de frustração que lhes impõe a
civilização, deduzindo então que podem recuperar alguma perspectiva de serem felizes ao
atenuar as exigências culturais de controle da natureza, seja a sua própria, pulsional, seja a
“externa”, com “N” maiúsculo.
Assim, as circunstâncias históricas geram uma hostilidade contra a cultura, na qual se
percebem exigências complicadas, e provocam o equivalente desejo de retornar ao modelo
humano primordial, em que se obtinha a cômoda satisfação de necessidades elementares em
50
FREUD, S. O mal-estar na cultura. In: Obras completas., v.3, op.cit., ensaio CLVIII, p.3017-3067, citação da
p.3033.
179
imersão numa natureza generosa, configurando um movimento de idealização do passado e da
vida simples, sem que se considere o horror de certas situações “naturais” e os decorrentes
mecanismos de proteção que provocam um entorpecimento da sensibilidade, bem diferente
dos nervos desenvolvidos do homem moderno de que falava Durkheim51. Mas isto não
significa nenhum entusiasmo para com a modernidade ocidental; ao contrário, Freud a critica
em inúmeras instâncias, com base no fato de que as angústias do homem contemporâneo
derivam de sua grande capacidade destrutiva, dada pelo enorme incremento no domínio das
forças naturais, concluindo que o destino da espécie humana depende da medida em que o
maior desenvolvimento cultural, e não menor, logrará enfrentar e solucionar as perturbações
da vida coletiva resultantes do instinto de (auto)destruição.
A propósito desta questão, Adorno chamava a atenção para a aporia criada pelo
processo de desenvolvimento das sociedades industriais, em que a crescente racionalização da
cultura, ao absorver crescentemente a natureza, tende a eliminar a diferença entre naturalcultural e, conjuntamente, a eliminar o princípio da própria cultura, que reside na
possibilidade tensa de reconciliação dessa diferença52. O mesmo vale para o raciocínio
inverso: quando a cultura tenta ingenuamente se reconciliar com a natureza, diminuindo-se
por inteiro para louvá-la ao máximo, desfaz-se igualmente a tensão dos dois pólos intrínsecos
e constitutivos do humano, de modo que uma falsa lógica substituirá a reconciliação: por um
lado, de que natureza humana se tratará, se o homem sequer se reconhece sem cultura? Por
outro, a natureza é também matriz da violência inserida na “lei do mais forte”; se tentamos
eliminar a cultura destrutiva e insatisfatória em prol do natural, podemos vir a alimentar as
pulsões destrutivas – a animalidade humana – que são igualmente violentas e insatisfatórias, e
que teriam sido, por milênios de acúmulo cultural, controladas e sublimadas em nome da vida
social, da beleza e da civilidade.
Este processo atinge o paroxismo no mundo capitalista tardio, no qual o “excesso de
civilização”53 trouxe um domínio quase completo sobre a natureza e junto com isto, um poder
de destruição sem igual, com grande impacto sobre as relações sociais, econômicas,
geopolíticas e éticas. Justamente neste momento de ápice, mas sem consciência dele, ou ainda
pior, recusando instrumentos conceituais de compreensão por identificá-los com o
51
Ver cap.3, sobre o suicídio. No poema “Uma noite”, do livro Restos & estrelas & fraturas, Afonso Henriques
Neto indica este caráter nervoso do homem moderno: “esta grama de lágrimas forrando a alma inteira/(conforme
se diz da jaula de nervos)”.
52
Cf. ADORNO, op.cit., p.101, aforisma 74.
53
Para uma discussão sobre os problemas culturais derivados do grande desenvolvimento das forças produtivas
no auge do capitalismo, compreendidos como excessos da dinâmica civilizacional burguesa, mas falta de kultur e
formação, cf. MENEGAT, M. Civilização em excesso. In: O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular,
2006, p.47-82.
180
intelectualismo pernicioso, as comunidades alternativas da década de 70 no Brasil acreditaram
poder evadir-se do sistema, mas não resultaram em nenhuma ação anti-sistêmica mais
conseqüente e concreta, de modo que estas pessoas acabaram obrigadas a se reinserir por
pressão da sobrevivência, que as manteve sempre presas aos elos da cadeia produtiva, e as
soluções ou alternativas de vida que criaram foram absorvidas pela lógica do mercado –
como, por exemplo, o hábito da alimentação integral ou as caminhadas ecológicas –, ficando
eles a meio caminho, numa espécie de limbo profissional e espacial (rural-urbano). Desta
maneira, tornaram-se presas fáceis de visões filosóficas redutoras que atribuem somente à
natureza humana os problemas da violência e da infelicidade – “Eu lhe asseguro, baby - a raça
humana não presta”54 –, conferindo-lhes uma dimensão unicamente antropológica, desprovida
da compreensão das ingerências históricas que são também determinantes, o que culmina em
uma situação de imobilidade: se assim sempre foi e sempre será, nada resta a fazer, além de
“curtir” a breve existência.
No que concerne ao laço entre literatura e história brasileiras aqui em pauta, uma série
de questões derivam desse conjunto de reflexões acima. Inicialmente, aquela poesia não
rompia de todo com a experiência anterior; antes, retomava aspectos do primeiro
modernismo, como já dito, o qual, por sua vez, mantinha em seu projeto estético e político a
tensão dialética entre renovação e tradição, uma vez que se intentava modernizar a arte da
“nação”, o que significava retomar elementos tradicionais, fossem eruditos, populares ou
recalcados, como notara Antônio Cândido, colocando-os em circularidade para constituir o
corpus da literatura nacional. Para avaliar este processo, Iumna Simon analisa três momentoschave na relação da poesia brasileira do século XX com a problemática da modernização
desigual e do progresso nacional, ressaltando seus sentimentos diferentes e contraditórios no
que se refere à confiança na lógica da modernidade, os quais se traduzem pelo modo como
mobilizaram a categoria do “novo”.
No modernismo dos anos 20, o moderno significava uma consciência crítica das
peculiaridades sociais do Brasil, marcadas por enorme distância entre os valores culturais
dominantes e os costumes populares, de modo que o novo manifestava o desejo de superação
da ordem e dos valores vigentes, por meio de uma pesquisa estética que, ao inventar formas
artísticas novas, atendia à demanda de inventar imaginariamente um novo país. Naquele
momento, o novo artístico se antecipava aos fatores clássicos da modernização, a
industrialização, a urbanização, a técnica, ainda incipientes, diferentemente do que ocorreu
54
Ronaldo Santos, no livro Entrada Franca, 1973. Apud MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.132.
181
com o intento de atualização concretista dos anos 50, quando o nacional-desenvolvimentismo
havia alimentado a esperança de saída do subdesenvolvimento (mediante a industrialização, a
substituição de importações, a ampliação do mercado interno, a economia planejada) e o novo
implicava uma adesão irrestrita a esses elementos. A confiança quase cega no progresso
permitia às vanguardas fantasiarem “um processo de superação do subdesenvolvimento com
racionalidade poética e invenção criativa”, o que gerou uma noção muito singular de
engajamento político-social, cuja intervenção seria tão mais efetiva quanto mais esteticistas
fossem as formas. Já nos anos 70, a poesia que pretendia reagir com rebeldia e irreverência ao
autoritarismo da ditadura militar e à sociedade de consumo, movida por sincero impulso de
antagonismo cultural, restaurava as armas de choque da tradição modernista – o recurso ao
humor, ao poema-minuto, ao coloquialismo, à espontaneidade – e seu espírito antiburguês de
início do século, porém em contexto que lhe era oposto. Promovendo a re-subjetivação da
linguagem lírica contra o intelectualismo, o formalismo e a despersonalização das poéticas
vanguardistas, os poetas “marginais” pretendiam assegurar uma plena realização vital,
emocional e existencial do sujeito, de maneira que o novo adquiria sentido pela liberação das
repressões, das insatisfações, dos valores morais, familiares e institucionais, “como se no
âmbito da intimidade e da subjetividade estivesse a resposta que poderia enfrentar o
autoritarismo”, o que revelaria, segundo a autora, um traço de desespero inocente neste
lirismo.55
Assim, à vaga procura de um sujeito ao mesmo tempo vital, livre e antiburguês, a poesia
dos anos 70 priorizava, em sua retomada do movimento modernista, a vertente que assumira a
experiência mundana como matéria poética em oposição ao modelo parnasiano anterior, em
que a concepção de rigor estético incluía a “limpeza” das ingerências históricas. A então nova
proposta, além dos manifestos diversos, como os de Mario de Andrade e Oswald de Andrade,
era expressa por Manuel Bandeira em “Poética”, do livro Libertinagem: “Estou farto do
lirismo comedido/Do lirismo bem comportado [...]/ – Não quero mais saber do lirismo que
não é libertação”, e em “Nova Poética”, de Belo belo: “Vou lançar a teoria do poeta
sórdido./Poeta sórdido:/Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. [...] O poema deve ser
como a nódoa no brim:/Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero [...]”. Ecos dessa poética
de Bandeira ressoaram fortemente nos poetas marginais, alguns dos quais equiparavam sua
relação com os concretistas à relação dos modernistas com os parnasianos56. Tratava-se,
55
Cf. SIMON, I. Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século. Novos Estudos CEBRAP, n. 55, São
Paulo, p. 28-36, nov. 1999., esp. p. 30-33.
56
Visão esta que não era, obrigatoriamente, pertinente. Ver crítica de COSTA LIMA, op.cit.
182
novamente, de fazer uma poesia suja de vida: “deixo bem claro que essas formas mal
amarradas são, em todo o seu peso e densidade (em todo caso), minha própria vida (oh a
minha própria vida), substância ferrosa, notdiurna [...]”. Sob o título “Primado da explicação
ou quando dói a consciência ou fragmentos de fragmentos ou” este poema-prefácio de Afonso
Henriques Neto reafirma a experiência pulsante, dolorosa e subjetiva como matéria poética,
cuja substância, mistura cósmica-mineral de ferro, noite e dia, seria inapreensível pelos
parâmetros explicativos vigentes, conforme o tom geral de O Misterioso Ladrão de Tenerife.
Todavia, em razão da atmosfera anti-intelectual da época, a poesia marginal, vista como um
todo, afastava-se de Bandeira ao priorizar uma forma mimética pouco elaborada, isto é, um
modo de representação da experiência cotidiana que a trazia para o texto como matéria bruta,
mais do que matéria lapidada57. Com tudo isso, terminava-se por criar uma dupla cisão, tanto
entre impulso vital e qualidade estética-formal, quanto entre experiência subjetiva e sóciohistórica, o que enredou sua retomada da tradição, como possibilidade de raízes
enriquecedoras, no seu contrário – de onde as diversas críticas que apontam o caráter
desqualificado e empobrecido de boa parte dessa produção poética dos anos 70.
Os riscos mencionados de uma vertente anti-intelectual na dinâmica cultural são
tratados por Simon e Dantas especificamente no que se refere à poesia marginal e seu
contexto. Para os autores, diversamente do grupo (pós)tropicalista, que vivera a transição da
democracia populista para o autoritarismo militar com pesados sentimentos de perplexidade e
desespero, a geração que começava a escrever no início dos anos 70 lhes parecia conviver,
sem maiores esperanças ou ambições, com o esvaziamento político e a imobilização dos
projetos transformadores, assistindo mais passivamente ou menos angustiadamente os efeitos
da modernização acelerada, quando os debates de ordem cultural passaram a ser
redimensionados pelos meios de comunicação e a indústria cultural, crescentemente
organizada, estipulava critérios rígidos de atuação no mercado. Os marginais brasileiros,
segundo os autores, pareciam viver as desordens da modernização avassaladora sem a
contraparte, que se viu na literatura européia ou norte-americana em circunstâncias
semelhantes, de experiências dilacerantes, em que o anonimato, o medo, o desespero, a
angústia da homogeneização abalam todo o universo pessoal e social. Antes, a
57
Primeiramente, é preciso ressalvar que isto não ocorre com toda a poesia marginal, cuja produção não é
uniforme. Em segundo lugar, é interessante notar que uma poeta de boa formação literária, como Ana Cristina
César, haja distinguido, em depoimento a Messeder Pereira, duas linhas na sua produção poética: uma literatura
“torturada”, porque mais elaborada e de compreensão mais difícil, e outra mais lúdica, baseada em jogos e
montagens diversas, que era em geral melhor recebida. Da associação entre elaboração artística e tortura poderia
proceder uma análise que não cabe aqui, mas vale destacá-la como uma das facetas daquela atmosfera antiintelectual. Cf. MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.222.
183
dessacralização que realizavam no poema, da linguagem literária e do pensamento, compunha
um painel caótico e banal do cotidiano que era a própria imagem da “dessacralização geral de
um mundo igualmente caótico e absurdo”. Na ausência de matizes, que exigiriam
reflexividade e qualificação da técnica poética, instalava-se uma espécie de vale-tudo que
tendia, ameaçadoramente, a acomodar e naturalizar as feições aberrantes da realidade, do
mesmo modo como se haviam naturalizado os procedimentos de estranhamento da poética
moderna e modernista. A sedução do cotidiano permitia que o mundo desagregado e violento
fosse trivialmente incorporado ao poema, num gesto de banalização que correspondia à
banalidade daquela vida corriqueira58.
Tais críticas, como também as de Costa Lima, Affonso Romano, entre outros, apontam
para uma dinâmica sócio-psíquica revelada pela poesia marginal, assemelhada ao mecanismo
do recalque de percepções nefastas. Já foi comentada, na poesia de Torquato Neto59, a
presença desse mecanismo mnêmico, que gera uma sensação ao mesmo tempo estranha e
familiar, de algo que se recalca porque se reconhece inconscientemente como horrível, mas
que ressurge no discurso como fagulhas, ao modo próprio do testemunho. Contudo, se em
Torquato isto aparecia no (sub)texto, como um gesto involuntário mas pulsante de alguém que
imprimiu na escrita os dilaceramentos provocados pela derrota de seus projetos estéticos e
políticos, agora não surgia tanto na enunciação poética, mas sobretudo mediante os
desvelamentos realizados pela crítica literária. Ou seja, aquela literatura parecia indicar, pelo
avesso, confundindo o testemunho, um recalque maior, encobrindo um dado de
empobrecimento sócio-cultural ou vida danificada muito penoso de ser visto e admitido
enquanto tal pelos sujeitos-autores, mas de certa forma manifesto pelos críticos de seus
limites estéticos e comportamentais.
A noção de um bloqueio social, impedindo a vida de ser algo mais, não estava ausente
de todo, surgindo por exemplo, para explicar a “vagabundagem” dos jovens artistas, em um
texto frágil no qual o próprio uso deste termo, depreciativo segundo as convenções sociais,
revela a existência de críticas a seu modo de vida informal e anti-intelectual, que se procurava
responder:
58
Cf. SIMON e DANTAS. Poesia ruim, sociedade pior, esp. p.99 e 103. Ainda que esta opinião seja correta em
muitos pontos, há que relativizá-la, uma vez que estavam envolvidos processos históricos mais amplos, que
serão tratados nos cap. 5 e 6, mostrando justamente os dilaceramentos e as derrotas que esta poesia comportava.
Note-se também que tal crítica é posterior, mais geral e mais severa que as de Cacaso, Messeder Pereira e
Heloisa Buarque etc., que, mais implicados com os grupos poéticos (dos quais Cacaso foi um dos principais
articuladores), não deixavam porém de registrar o problema da desqualificação, que se difundiu mais entre o
final dos anos 70 e os 80.
59
Cf. cap.3 deste trabalho.
184
É verdade que há momentos em que a gente se torna um tanto desligado, um tanto
visionário.[...] Eu ficaria muito contente se você pudesse ver em mim alguma coisa
além de um vagabundo. Porque há dois tipos de vagabundagem, e entre elas há um
grande contraste. Existe o homem que é vagabundo por preguiça, por falta de
caráter, por sua natureza vil. [...] Mas há outra espécie de vagabundo, que é
vagabundo apesar de si mesmo, que é consumido internamente por uma grande
ânsia de ação e apesar disso não faz nada, porque para ele é impossível fazer alguma
coisa, porque parece estar aprisionado, numa gaiola, porque não possui o que precisa
para se tornar produtivo, porque a fatalidade das circunstâncias o levou a isso. Não é
sempre que um homem como esse sabe o que fazer, mas ele sente, por instinto, que
apesar de tudo poderia ser um homem bastante diferente.[...]60
A intuição de uma existência mais ativa, rica e diversa não se consolida em
reflexividade crítica, mais uma vez, em virtude da atribuição causal dos problemas à natureza
e à “fatalidade das circunstâncias”, no que se resume todo o teor histórico da crise subjetiva
tematizada. Embora Messeder Pereira concluísse que a produção cultural que se seguiu ao
florescimento dos anos 60 não significasse vazio ou alienação, mas o aparecimento de novas
questões, perplexidades e contradições, que redefiniam o papel da intelectualidade, sobretudo
no que se refere à noção de atuação política, que agora se delimitava com mais precisão, a seu
ver – “perdia-se em grandes ambições mas ganhava-se em profundidade e complexidade”61 –,
em boa parte dessa nova poesia as perplexidades e contradições sobrepujavam e subsumiam
um possível aprofundamento.
No âmbito da prosa, por sua vez, foi somente na virada dos anos 70 para os 80 que
algumas raras narrativas foram capazes de se aproximar melhor da questão, ainda assim com
muitos senões62. O seguinte trecho de Passagem para o próximo sonho, uma espécie de
autobiografia ficcionalizada em que Herbert Daniel relatou sua militância na VPR e seus
tempos de exílio, mostra-se elucidativo:
Não, não falo apenas das torturas, dos assassinatos, dos desaparecimentos de tantos
opositores ao regime. Esta terá sido a parte menor do terror, apenas um aspecto da
atividade política da polícia. O caráter policial da política iria remodelar a face do
país. Estou falando da catástrofe que tem indícios (estatísticos) na quantidade de
acidentes de trabalho, na taxa de mortalidade infantil, na extensão das epidemias, no
número de analfabetos e... Certamente o massacre é mensurável, mas não
completamente.
Como medir a ansiedade dos desempregados, o desespero do que vê o filho morrer
faminto, a angústia nos engarrafamentos, a humilhação dos censurados, o ódio dos
pedintes? Qual o grau da ignorância dos alfabetizados? Que medida para o
desinteresse de cada um no destino coletivo? Que escala usar para a indiferença
política? Como medir, nos poros dessa opressão, aquilo que não foi feito, tudo que
foi censurado, esmagado por não ter condições de vir a ser? O que poderia ter sido
que não foi? Quantos abortos de futuros? Com esses SE não podemos nunca
60
Assinado por “Van Gogh”, no Almanaque Biotônico Vitalidade, n. 1, col.Nuvem Cigana. Apud. MESSEDER
PEREIRA, Retratos de época, p.279.
61
Ver Retratos de época, p.350.
As dificuldades dos relatos ficcionais também darem conta da história brasileira sob a ditadura é analisada por
Flora Sussekind em Literatura e vida literária; alguns pontos serão tratados adiante.
62
185
escrever a História, sabe-se, mas a imaginação não se recusa suposições; por isso,
até que ponto foi destruído o imaginário Brasil que tantos ousaram sonhar?
Lentamente, com graça e mais venenos, o país tornou-se um campo de concentração.
Não se trata de uma figura de retórica. O pavor nem sempre é dramático e teatral.
Pode ser, como entre nós, funcional, tecnologicamente avançado. Tão puro e
cristalino, verdade tão transparente, que se torna invisível. Essa cegueira permite se
viver num campo de concentração sem se dar conta.63
Disto se extrai que atores sociais sentiram em sua experiência histórica uma dimensão
catastrófica que não foi devidamente assumida como dado cultural nem discutida em
amplitude na sociedade brasileira. Na poesia marginal, não obstante a pertinência da crítica, o
fato de se decalcar no poema a violência, as confusões e as dores da existência cotidiana,
mesmo que de forma desliteralizada e por vezes leviana, revelava um desejo de testemunhar
sem recursos à altura de realizá-lo, o que precisa ser considerado. Além disto, entre os
próprios poetas marginais havia outras dicções, menos ambíguas e mais lúcidas, interessada
em advertir, ainda que sem perder o teor de “curtição” daquela poética, os perigos culturais
decorrentes daquele clima anti-intelectual, parecendo compreender, como Benjamin, que nas
terríveis experiências históricas proporcionadas pela modernidade os combatentes voltam do
campo de batalha “mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos”64. Assim
sendo, jogar levianamente autores e filosofias ao mar não é boa prática para quem queira
encontrar caminhos e possibilidades, como atesta “Os Filósofos”, do poeta-diplomata Carlos
Saldanha, cujo texto habitualmente entremeia uma crítica sutil à brincadeira:
[...]
Ante as maravilhas da Ciência
e do Progresso Tecnológico,
Aconteceu que
os filósofos, pouco a pouco,
com suas idéias vagas,
suas caraminholas na cabeça,
um após outro,
entre chacotas mal disfarçadas,
foram sendo jogados ao mar,
tichipum, tichipum,
por cima do parapeito do convés
do Barco do Conhecimento
que navega por mares ignotos,
levando à proa
a orgulhosa máscara
de Francis Bacon...
Cuidado, Capitão,
63
DANIEL, H. Passagem para o próximo sonho. Um possível romance autocrítico. Rio de Janeiro: Codecri,
1982, p.98-99. Na mesma década, um conjunto de indagações na mesma direção se vislumbrava na canção “À
flor da pele/À flor da terra”, uma música com duas letras, de Chico Buarque e Milton Nascimento.
64
BENJAMIN, W. Experiência e pobreza, op.cit., p.114-115.
186
Cuidado...
65
Asfixia: o vazio cheio
Uma tal mistura de anti-intelectualismo, adesão problemática ao cotidiano, hedonismo,
possível recalque, busca de um entrelugar e desejo de testemunhar um sofrimento social
imprecisamente percebido marcou fortemente a poesia dos anos 70, que não permaneceu
isenta das tensões produzidas pelas preocupações sociais e políticas. A seu modo, precário
que fosse, esta poesia se empenhou em decifrar o Brasil do milagre econômico, como um
asmático que quer respirar. Por isso, nem sempre as imagens construídas, embora
impregnadas de significação política, vão resultar em um movimento crítico completo,
podendo permanecer como uma atitude de “soltar o ar” pesado que se respirara – desabafar,
suspirar –, de onde o valor do poema residir mais precisamente na sinceridade ali colocada do
que na realização literária, como neste “SOS”, de Chacal66:
tem gente morrendo de medo
tem gente morrendo de esquistossomose
tem gente morrendo de hepatite meningite
sifilite
tem gente morrendo de fome
tem muita gente morrendo por muitas causas
nós, que não somos médicos, psiquiatras,
nem ao menos bons cristãos,
nos dedicamos a salvar pessoas
que, como nós,
sofrem de um mal misterioso: o sufoco.
Ao lado da denúncia das doenças reinantes nos países pobres, que de tão repetidas se
tornam esquecidas, como conota a construção enfadonha da primeira estrofe – em que a
excessiva repetição do enunciado “tem gente morrendo” banaliza de fato o impacto do horror,
exatamente como os números de mortos nas diversas guerras da década, repetidos diariamente
no telejornal “Repórter Esso”, da Rede Globo de Televisão, já não produziam espanto –, e a
despeito da crença na onipotência salvacionista da poesia, o texto guarda para o desfecho a
ênfase na sensação de sufocamento como mais uma das patologias nacionais, cuja
65
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.28. Simon e Dantas falam também da perplexidade de Cacaso com todo
este processo, citando uma quadra elucidativa de seu livro Grupo Escolar, de 1974: “Não há na violência/que a
linguagem imita/algo da violência/propriamente dita?” O mesmo pode ser dito de Schwarz, Chico Alvim e
outros. Cf. SIMON, I. e DANTAS, V. Poesia ruim, sociedade pior. Remate de Males, n.7, Campinas, 1987, p.95108. Publicado originalmente em Novos Estudos CEBRAP, São Paulo:, n.12, jun. 1985, p.48-61.
66
Do livro América. A análise sobre a incompletude crítica é de Cacaso, para quem Chacal realiza melhor uma
poesia crítica existencial do que política propriamente. Cf. Tudo da minha terra, op.cit., p.146.
187
especificidade, conferida pelo adjetivo “misterioso”, consiste em seu desconhecimento por
parte das ciências ou da religião, mas não da arte.
A metáfora do sufoco, de uso corrente na linguagem cotidiana – “estou no maior
sufoco”, dizia-se, para significar dificuldades financeiras ou emocionais – não surgira à toa
naquela época, nem se restringira ao âmbito da conversação ou do “bate-papo biográficogeracional”67 realizado pela poesia marginal. O discurso historiográfico também veio a
utilizá-la para explicar a dinâmica sócio-econômica do período, em que se colhiam os
resultados da política econômica da primeira fase do regime militar (1964-67), que havia
intentado sanear a economia inflacionada mediante uma recessão calculada, e cujo resultado
seria o crescimento surpreendente das taxas de desempenho da economia brasileira entre 1968
e 1974, caracterizando o “milagre” que garantiu grandes lucros às empresas oligopolistas,
nacionais e estrangeiras.
A expressão “milagre econômico”, já usada na então Alemanha Ocidental e no Japão,
nas décadas de 50 e 60, respectivamente, passou a ser utilizada no Brasil nos anos 70 para
designar este boom econômico e efetuar propaganda governamental, conjugando condições
domésticas e externas favoráveis. Desde o governo Costa e Silva, foram realizadas reformas
das políticas fiscal, creditícia e trabalhista, consideradas pela equipe estatal de planejamento
econômico como imprescindíveis para garantir a superação do problema inflacionário e os
meios adequados para que o setor privado liderasse a retomada do desenvolvimento
econômico. Para isto, a estratégia consistiria em eliminar “os fatores que restringiam uma
postura ativa do empresariado, cujo dinamismo intrínseco era um postulado da visão que
economistas do governo tinham de uma economia de mercado.”68 O I Plano Nacional de
Desenvolvimento (I PND), publicado em dezembro de 1971, pretendia tornar o país em
“nação desenvolvida” em uma geração, com taxas de crescimento anual em torno de 7 a 9%,
elevando a taxa de investimento bruto para 19% do PIB ao ano, dirigida para os grandes
programas de siderurgia, petroquímica, transportes, construção naval, energia elétrica,
inclusive nuclear, comunicações e mineração. A vigência disto exigia a presença das grandes
empresas estatais, dos créditos da rede de bancos oficiais e um conjunto de incentivos ao setor
privado. Em efeito, a riqueza nacional aumentou, a inflação diminuiu, o comércio exterior
triplicou, o que foi bastante capitalizado pelo então ministro da Fazenda Antônio Delfim
Neto, produzindo uma certa euforia nos setores de classe média que ganhavam com tais
67
É como Flora Sussekind define a linguagem da poesia marginal.
Prado, Luis Carlos D. e Earp, Fabio Sá. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração
internacional e concentração de renda. In: FERREIRA, J. e DELGADO, L.N. (org). O tempo da ditadura.... p. 207241. Citação da p. 216.
68
188
condições69. No entanto, este crescimento econômico se realizava sem eqüidade; segundo os
economistas de oposição ao regime, a má distribuição de renda era um aspecto estrutural do
sistema que alimentava tal dinamismo, sendo mesmo sua condição de possibilidade, e aquele
modelo de desenvolvimento não superaria os problemas estruturais que mantinham a
economia brasileira no nível subdesenvolvido.70
Do ponto de vista social, político e mesmo econômico, este processo correspondia a
uma série de restrições que foram designadas metaforicamente pela imagem da asfixia. A
aplicação do liberalismo econômico às custas da liberdade política, resultando em
concentração de capitais e renda potencializada pelo Estado, favorecia a institucionalização de
preços oligopolistas e resultava no “estrangulamento”71 de pequenas e médias empresas. Por
outro lado, ocorria uma virada na política trabalhista, que marcara a chamada Era Vargas, até
1964, interrompendo um período de expansão da presença da classe trabalhadora na vida
política e de afirmação de seus direitos, sendo, então, substituída por um brutal aumento da
repressão. A política salarial afetava o poder aquisitivo da população trabalhadora; com os
tetos e reajustes de salário estabelecidos segundo índices oficiais decretados, o Executivo se
transformara na matriz das correções salariais, abolindo o poder de barganha coletiva dos
trabalhadores e as negociações entre patrões e empregados. A nova política trabalhista, por
sua vez, após expurgos e intervenções sindicais, extinguira o direito de greve, regulamentara o
acesso às direções sindicais e buscara angariar adesões para um “novo sindicalismo”,
oferecendo vantagens para os sindicalizados na obtenção de casa própria, empregos em
empresas públicas etc. Houve também a reestruturação da previdência social, burocratizando
as atividades essenciais e retendo os recursos advindos do imposto sindical. Tais medidas
contribuíram no incremento das dificuldades no cotidiano dos trabalhadores. Estes se viram
impelidos a inventar alternativas para recompor sua renda, recorrendo, por exemplo, à
extensão da jornada de trabalho, mediante horas-extras, e à intensificação do trabalho
familiar, o que levou ao aumento do contingente de mão-de-obra feminina e infantil,
provocando impactos na unidade da família. Contraditoriamente, o efeito desses expedientes
foi o rebaixamento do valor da força de trabalho, em decorrência do aumento da oferta. Somese a isto a crescente subordinação do trabalhador à disciplina fabril e às racionalizações
administrativas, em virtude da supressão do regime de estabilidade no emprego e de altas
69
É interessante observar a diferença entre esta euforia econômica e o pathos eufórico dos anos 60, de teor
basicamente estético e político.
70
Cf. ibidem, passim. Os economistas de oposição mencionados pelos autores eram Celso Furtado e Maria da
Conceição Tavares, cf. p.231.
71
Cf. MENDONÇA, S. e FONTES, V. História do Brasil Recente, 1964-1992. São Paulo: Ática, 2001. (Princípios,
152)., p.31.
189
taxas de rotatividade de mão-de-obra. Produzia-se, assim, maior dependência do trabalhador
com relação às autoridades patronais, sindicais e previdenciárias. Enfim, vivia-se o
“garroteamento da classe trabalhadora”72, expressão que indica a erosão de sua qualidade de
vida e o preço social do milagre. Diante disto, “Reflexo condicionado”73, mais um pequeno e
irônico poema de Cacaso, propunha tout court:
pense rápido:
Produto Interno Bruto
ou
brutal produto interno
?
No campo militar, o jogo de relações de poder dentro das Forças Armadas gerou a
conjugação de forças da orientação nacionalista e da “linha-dura”, no período 1968-73,
permitindo que se desconsiderasse a orientação legalista da Escola Superior de Guerra,
resultando na consagração dos poderes de exceção que hipertrofiavam o Executivo e a esfera
de ação da comunidade de segurança. Completou-se, assim, a ampliação dos papéis e funções
da corporação armada, absorvendo um maior leque de atribuições, com o objetivo de
neutralizar as tensões sociais e suprimir o dissenso político. Nesta segunda fase de
institucionalização do Estado ditatorial (a primeira havia sido entre 1964 e 67, quando se
lançaram as bases do Estado de Segurança Nacional), o aparato repressivo se utilizou também
da ampliação dos instrumentos legais, além da prática da coerção. A indefinição normativa,
gerando um quadro de expedientes de exceção – os numerosos Atos Institucionais; a
Constituição outorgada de 1967; a Emenda Constitucional nº 1, vulgarmente batizada de
Constituição de 1969, que incorporou o AI-5 à Carta de 1967 e anulou qualquer sobrevivência
liberal possível; o fechamento do Congresso Nacional –, impôs o “garroteamento” das
instituições políticas (mais uma vez a metáfora!)74, apontado pela maioria dos autores como
necessário ao sucesso do “milagre”. Todavia, a legitimidade era prioritária para o novo grupo
no poder que, na busca de definir formas socialmente legitimadas para o regime ditatorial
instalado desde 64 – de onde a propaganda, além das acrobacias conceituais nos discurso
presidenciais e ministeriais, já comentadas75 –, acirrou ao longo do período a discrepância
72
A síntese das condições de vida dos trabalhadores é realizada por Mendonça e Fontes, op.cit., passim. A
expressão que destaco encontra-se na p.27.
73
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.42.
74
Para este parágrafo cf. MENDONÇA e FONTES, idem, p.40-43. Os problemas derivados desse aparato legal
serão tratados no cap.7. Aqui se apresenta um quadro geral para que se possa compreender o uso da imagem da
asfixia.
75
Ver cap. 3, “No campo das palavras minadas”. A questão da legitimidade pela eficácia será tratada no cap.5.
190
entre os princípios liberais, que regiam a esfera econômico-administrativa, e os princípios
autoritários, que regiam a instável esfera legal-política.
Reforçava-se, deste modo, uma tendência nada incomum durante as crises políticas
brasileiras, em que diante dos impasses, o liberalismo econômico se articula com o
autoritarismo político. Ademais, como resultado e premissa deste processo, criou-se uma
espécie de distanciamento e relativa autonomia entre a dimensão da economia, da política e da
vida cotidiana do cidadão, cuja estranheza não passava desapercebida à esfera da cultura,
como acusa este poema de Schwarz:
Um reputado economista afirma
que assim como veio
a ditadura vai.
Escuto maravilhado.76
Na verdade, o “vazio cultural”, vindo no bojo de um distanciamento da cultura para com
a esfera da política e sua aproximação com a esfera econômica, mostrara-se repleto de
questões, indagações, debates, criações artísticas tateantes. Tratava-se de um “vazio cheio”,
como diria o próprio Zuenir Ventura em artigo de 1973, no qual revia suas suposições
anteriores, tendo em vista a inegável germinação cultural. Em sua reavaliação, considerava a
importância de um público relativamente amplo, consumidor regular de cultura (nas grandes
cidades e em algumas faixas da população, que fosse) e de uma estrutura de produção cultural
(empresários, produtores, editores, autores) que mantinham as atividades intelectuais e
artísticas funcionando e que não podiam desmontar-se sob pena de graves efeitos sociais e
econômicos. Deste modo, o vazio era preenchido, porém não propriamente com soluções para
a “crise da cultura”, então marcada pela “falta de tendências coletivas ou movimentos”
efetivos, mas com tentativas de saída para os impasses da criação77 ou caminhos que se
esboçavam no meio da “dispersão geral”, que ele qualificava em três tipos: a saída comercial,
da cultura de entretenimento de massas, que sintomaticamente era a forma favorita de
preenchimento do vazio pelo grande público (sobretudo em virtude do erotismo e da
pornografia); a saída intelectual, preocupada em pensar os problemas com base nas ciências
humanas; e, entre as duas, a “saída subterrânea” contracultural de jovens poetas,
compositores, cineastas, que utilizavam desde os meios mais artesanais de produção e
76
Roberto Schwarz, sem título, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.90.
Trata-se do artigo “A falta de ar”, na revista Visão, agosto de 1973, trazendo sete depoimentos de
personalidades de diversas áreas culturais: Érico Veríssimo, Chico Buarque de Hollanda, Alceu Amoroso Lima,
Joaquim Pedro de Andrade, Gianfrancesco Guarnieri, Fernando Henrique Cardoso, Júlio de Mesquita Neto.
Note-se que os artigos de Ventura estão reunidos no início da coletânea sob o título “Impasses da criação”, Cf.
GASPARI, E. HOLLANDA, H.B. e VENTURA, Z., op.cit., p.52-85, para todo este parágrafo.
77
191
comunicação até a mais moderna tecnologia para driblar os canais tradicionais de distribuição
e comercialização que estavam vedados, tendendo também ao individualismo e menor
envolvimento com a realidade social imediata, de onde o “desbunde”. Esses artistas tidos
como malditos, “mais pelo que aparentam do que pelo que produzem”, deixariam para a
cultura brasileira mais provavelmente uma atitude do que uma obra artística, pois em seu
protesto geral que englobava tudo que fosse estabelecido, a cultura, a história, a política, a
desumanização, a poluição, a moral etc., propunham novas posturas diante da vida que
podiam até ser velhas formas recuperadas, como o misticismo oriental ou a volta
rousseauniana à natureza. A contracultura criava uma atmosfera evasiva mas bastante
difundida socialmente; sua contribuição, vaticinava Ventura, talvez residisse mais na
atmosfera do que em produtos estéticos singulares...
O vazio-cheio é uma boa imagem para explicar a metáfora asmática da “falta de ar”,
cujo mal-estar advém na verdade de um excesso mal processado, e não de uma ausência
propriamente. Neste sentido, as críticas ao vazio cultural do início da década, bem como à
desqualificação da criação poética que se seguiu indicavam os sintomas de um processo de
asfixia social que a “poesia do sufoco” – a adjetivação muitas vezes repetida por Hollanda não
era fortuita – tentava em alguma medida documentar ou testemunhar. Carlos Fico lembra que
no dia seguinte à edição do AI-5, portanto em 14 de dezembro de 1968, o box em que
normalmente se publicava a previsão do tempo na primeira página do Jornal do Brasil
surpreendeu o público com uma informação metafórica: “Tempo negro. Temperatura
sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx. 38°, em
Brasília. Mín.: 5° nas Laranjeiras.”78
A sensação de um contexto asfixiante, que marcou toda a década de 70, radica na
combinação de uma esfera política autoritária-repressiva com um processo de consolidação da
ordem burguesa, resultando no estreitamento do modo de existência à vida privada, mas uma
vida privada que também é crescentemente atingida por dinamismos corruptores das relações
humanas, uma vez que a concorrência e o particularismo dos interesses se expandem,
imprimindo o caráter individual, a família, as associações sociais diversas com a lógica do
direito de propriedade. Adorno sempre sublinha o quanto isto afeta o processo de subjetivação
e formação social, posto que “o olhar voltado para possíveis vantagens é o inimigo mortal da
78
FICO, C. Dos Anos de chumbo à globalização. In: Pereira, P.R. (org). Brasiliana da Biblioteca Nacional. Guia
de fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Nova Fronteira, 2001, p.349-365. O box está
reproduzido na p.357.
192
formação de relações compatíveis com a dignidade humana.”79 Assim, o mundo da
experiência vai-se tornando, mais que privado, privativo, dominado pelas relações de poder e
pelo interesse pessoal, asfixiando o próprio âmbito privado que restara do fechamento
político. Além disto, o desenvolvimento técnico afeta também o pensamento, que para se
legitimar tende a se submeter ao controle social do desempenho, perdendo sua complexão
para se converter em solução de tarefas designadas, e não mais em um pensar em si,
autônomo, livre de qualquer esquema de tarefa a cumprir. À medida que o pensar se torna,
então, um treinamento, um exercício, sua forma é instrumentalizada por ingerências
pragmáticas e a consciência, modelada de antemão pelas necessidades sociais – as quais, vale
repetir, estão perpassadas pela lógica burguesa, pelo fetichismo da mercadoria e pela
tecnificação –, vê se obstaculizar sua relação com o real a ser pensado, o que atinge inclusive
os intelectuais de oposição, provocando uma sensação geral de sufocamento na produção
intelectual.
A relação vazio-asfixia apontava, deste modo, para a possibilidade de uma derrota mais
profunda, para além do âmbito político, dos movimentos sociais e culturais, incluindo a nova
esquerda, que haviam tentado transformar as relações privadas, sexuais, familiares,
profissionais, enfim, todo o modo de pensar e viver da ordem burguesa nos anos 60, mediante
uma proposta de revolução cultural. O poema de Adauto, “A pombinha e o urbanóide”80,
trazia indícios dessa derrocada e a recolocava nos termos de uma inusitada dialética de
localismo popular e cosmopolitismo:
[...] e o exterior é uma paisagem estranha
onde está a New-Left, pombinha?
ao café lendo meus poetas preferidos
me pergunto a razão de tudo isso
pombinha, a guerrilha humana ou a anarquia geral
salvariam o povo
mas antes era preciso organizar um imenso carnaval
invocarmos as divindades populares
Y botar uma BUMBA-meu-BRECHT na rua
o sufoco acabaria, pombinha [...]
Neste quadro, a sensação de esvaziamento adquire uma cintilância a mais. Consoante
algumas correntes psicanalíticas, o vazio significa um espaço existente entre o sujeito e o
objeto-mundo, necessário à individuação e condição do desejo por definição, como uma falha
constitutiva e passível de significação, que pode induzir à criatividade tanto quanto ao nada
irrepresentável. Trata-se da brecha que mobiliza a dor psíquica “em suas diversas formas:
79
80
ADORNO, op.cit., p.27. Os aforismas 13 e 126 (p.172-173) estão na base da reflexão deste parágrafo.
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.248-249.
193
angústia, luto, depressão, melancolia, inibição, insegurança, impotência, fracasso, desespero,
despedaçamento, sensação de futilidade no sentimento de existir.”81 Segundo os estudos
freudianos, o vazio se relaciona em geral às experiências de perda, sendo provocado pela falta
ou possibilidade dela. Enquanto a angústia se liga à ameaça da perda, às vivências de
frustração e impotências relativas ao próprio desejo, a ausência do luto inacabado cede ao
vazio depressivo ou ao nada melancólico. É somente por meio de uma duração, um tempo de
luto, que o vazio pode tornar-se um espaço de ausência, necessário à reorganização interior
dos sujeitos. Neste sentido, o que foi percebido como vazio cultural no início dos anos 70
indicava uma experiência dolorosa de luto social irrealizado, e de difícil realização no país do
carnaval, onde a palavra de ordem é “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, como
pregava uma velha canção. Seguir adiante, com o ar da dor preso no peito, em meio a uma
atmosfera irrespirável, consistia no substrato sócio-psíquico e histórico da metáfora da asfixia.
Tudo isto subjaz, latejante, à intenção crescente de resistência política democrática, que
se configurava aos poucos, na arte e na intelectualidade, não sem inúmeras contradições e
ambigüidades. A partir daqueles anos de 1973/74, começaria a se delinear um novo momento
da produção poética e de sua relação com a esfera pública, que chegaria a um verdadeiro
boom de todo o campo literário em torno de 1975. Seguir-se-iam os passos do surto poético
precedente, que não caracterizara propriamente um movimento, mas a proliferação de
tendências heterogêneas tendo em comum a idéia da poesia como forma de resistência (sua
eficácia é outra história) ao “sufoco” do momento, quando se tratava, nas palavras da poeta
Alice Ruiz82, de
dizer não
tantas vezes
até formar um nome.
81
DA POIAN, C. A psicanálise, o sujeito e o vazio contemporâneo., op.cit., p.9-10, para estas reflexões sobre
vazio e luto.
82
In: HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, Poesia Jovem Anos 70, p.5. Alice Ruiz, pouco conhecida à época, foi
mulher de Paulo Leminski e pertence ao grupo das poetas responsáveis pela afirmação da voz feminina, que se
tornará mais reconhecida no início dos anos 80.
5. Vozes Sufocadas II:
Entre eficiência e resistência: de dedo em pé, de mão-em-mão... (1974-1977)
quem teve a mão decepada
levante o dedo
(Nicolas Behr)
O ato de “levantar o dedo”, naquele contexto, implicava muitas coisas. “Num quadro de
terror e crise, os anos 70 progressivamente vão-se definindo como a década do medo, da
sáude, da competência e da qualidade técnica”1.
Após o acirramento da violência de Estado, sendo impossível ao mesmo retomar a
“normalidade” pela recomposição de uma ordem constitucional tão partida e de uma ordem
social que só se mantinha com mão de ferro, sua tendência foi condicionar a legitimidade do
governo ao grau de eficiência na esfera econômica e financeira, tendo como suporte o
“milagre” do período. Aquilo que se denominou “legitimação pela eficácia”, como estratégia
do “milagre” econômico, deslocara-se definitivamente durante o governo Médici da esfera
política para a econômica: nas palavras de Prado e Earp, “a idéia de que estava em processo a
construção de um ‘Brasil Potência’ passou a constituir a base da propaganda do governo e o
fundamento de sua legitimidade.”2 Diferentemente de outros países que optavam por uma
ordem liberal, como a Argentina, esta idéia de legitimação pela eficácia derivava da
concepção positivista vigente no imaginário dos militares, e seus aliados, desde os primórdios
da República, acrescida pelo nacionalismo das Forças Armadas. A despeito das controvérsias
irresolvidas entre os economistas acerca da concentração de renda no período, afirmam os
autores, esta necessidade de crescimento conduzido a todo custo não respeitou limites, tais
como preocupações com eqüidade ou melhoria das condições de vida da população, salvo
quando isto afetava diretamente a segurança do regime.
A estratégia estatal consistia em enfatizar dados técnicos, dizem Mendonça e Fontes,
criando um novo quadro de referências e uma nova linguagem, despolitizadores das
informações governamentais. Promovia-se a “eficiência” e a “racionalidade” como critérios
de seletividade. A legitimidade política seria construída em torno do termo desenvolvimento,
através da ampla divulgação dos êxitos econômicos do regime e do fomento da popularidade
1
HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, Poesia Jovem Anos 70 (Literatura Comentada), p.104.
PRADO, L.C.D. e EARP, F.S. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e
concentração de renda. In: FERREIRA, J. e DELGADO, L.N. (org). O tempo da ditadura.... p.228; ver também
2
p.234. A expressão “legitimação pela eficácia” foi cunhada por Roberto Campos que, junto com Delfim Neto,
entre outros, foram mentores do I PND propulsionador do milagre econômico. Cf. p.220-221.
195
do presidente, ambos mediante a propaganda oficial. Esta foi capaz de seduzir boa parcela,
senão a maior parte, da população, que se deslumbrava com as conquistas do Brasil como
promissora potência do futuro, perdendo “a sedução pelo debate político, marginalizando-se
dele.”3 Daniel Aarão Reis traz a imagem da Górgona – em cujos olhos não se pode olhar, sob
pena de se restar petrificado – para falar da estupefação e alijamento daqueles que não
participavam diretamente da política: a sociedade, diz ele, “assistiu medusada a todo este
processo”, como uma platéia sob forte impacto.4
Em decorrência, estas parcelas da população marginalizavam-se também – e aqui o
sentido de marginalização é distinto da postura contracultural – dos debates estéticos e da rica
experiência, subjetiva e social simultaneamente, de criar e assistir arte. No plano do
comportamento juvenil, sobretudo nas classes médias, dizem Hollanda e Messeder Pereira,
predominava a “volta sobre si mesmo” por parte dos indivíduos, traduzindo-se na moda do
surf, do cooper, do disco music, do neonaturalismo: ar livre, alimentação natural, terapias
sexuais, religiões orientais etc. Tendendo a ser acomodado e conservador, o jovem-médio dos
anos 70 privilegiava a saúde e o “embalo”5 aos esforços físicos e intelectuais da participação
estética e política. A tecnologia da “pasteurização” se tornava mais uma metáfora do
momento cultural.
Além do mais, primava no meio cultural, o mesmo tipo de associação políticoeconômica entre eficácia, deslumbre, controle e despolitização, no qual a eficiência, seja
financeira, administrativa ou comunicativa, também se constituía crescentemente como
parâmetro legitimador, desde a criação até a divulgação e o consumo de produtos culturais.
Neste sentido, é interessante pensar de que maneira se dá a relação entre eficiência e
despolitização da poesia, ou seja, indagar se, uma vez legada à ineficiência mercadológica, a
poesia se rende à ineficiência política ou justamente a supera; se deslumbra-se com a
possibilidade de se modernizar e ganhar espaço no mercado cultural ou investe em uma lógica
própria e isenta; se passa a buscar eficiência pelo trabalho de lapidação formal ou não, e em
caso afirmativo, se isto significa um auto-aprimoramento, sinal de autonomia do campo
poético, ou contrariamente um recurso para melhor aceitação pelo público crítico e/ou
consumidor; e, enfim, indagar como a poesia manifesta e trata da experiência histórica. Estas
3
4
MENDONÇA, S. e FONTES, V. História do Brasil Recente, 1964-1992, p.50.
Cf. AARÃO REIS, D. Ditadura militar, esquerdas e sociedade, p.52. Cabe notar que embora o autor compare
esta assistência a uma platéia de jogo de futebol, numa conjugação tão comum à época, creio que a imagem
resgatada traduz o impacto imobilizante e traumático de quem vê o horror nos olhos de Medusa. O tema será
retomado adiante.
5
HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, Poesia Jovem Anos 70, p.103.
196
questões perpassavam toda a discussão dos críticos sobre a arte no país, ao longo daquele
decênio.
5.1. Lamento e crise do “milagre”
Em artigo de 1974, Zuenir Ventura sublinhava a presença do lamento como componente
da expressão artística naquele momento. Desde 1968, diz ele, a arte havia perdido
sucessivamente a ilusão, a inocência e a vontade. Havendo descoberto aos poucos sua
impotência, a cultura “desceu ao mais profundo de sua angústia, alternando durante o trajeto
crises de depressão, acessos de euforia, abulia e resistência”, criando nestes movimentos
metáforas cada vez mais sutis. Um novo tema se introduziu, então, no mundo artístico: “a
autolamentação. Já que não é permitido discutir e protestar, lamenta-se”.6 O texto “Poema”,
de Afonso Henriques Neto é exemplar, pois que no próprio título está dado o sentido do que
se dirá, ou seja, o que significava fazer poesia então:
A paisagem não vale a pena.
Pesa dizê-lo tão duramente, [...]
Já não vale a pena a manhã. [...]
A noite não significa mais nada.
As casas dormem e não significam nada.
O vento cortou-se em mil fatias de desespero.
Que dimensão canta além da treva,
A face repousada, os olhos claros?7
Os últimos versos, parecendo ecoar ao longe a voz de Cecília Meireles, traduziam a
pergunta de todos. Afonso Henriques certamente dialogava também com o título do livro de
poemas de Thiago de Melo, Faz escuro mas eu canto, publicado nos anos 60 e muito
criticado8 por seu engajamento excessivamente retórico e fácil, mas de grande circulação:
como se canta, porém, na escuridão? A pergunta é muito próxima ao impasse levantado por
Adorno a respeito das possibilidades da arte poética após as catástrofes do século XX.9 O
problema, de difícil solução como uma indagação esfíngica, deu grande trabalho a críticos e
poetas e gerou numerosos ensaios. Talvez o lamento seja a (única?) maneira encontrada pelos
6
VENTURA, Z. Da ilusão do poder a uma nova esperança, publicado originalmente na revista Visão, mar. 1974.
In: GASPARI, E. HOLLANDA, H.B. e VENTURA, Z. 70/80 Cultura em Trânsito:..., p.100 e 105, respectivamente.
7
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.116. O poema pertence ao segundo livro do autor, Restos & estrelas &
fraturas.
8
Ver, p.ex., “Poesia comprometida” (Opinião, 14 nov. 1975) e “Engajamento e retórica” (Veja, 16 set. 1981),
artigos de Cacaso reproduzidos em Não Quero Prosa, p.121-122 e 123-127 respectivamente.
9
“escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque hoje
se tornou impossível escrever poemas.” ADORNO, T. Crítica cultural e sociedade. In: Prismas, São Paulo: Ática,
1998, p.26. Este tema e sua discussão bibliográfica estão desenvolvidos no cap.7.
197
poetas para exercer sua arte sob um tempo em que as trevas impedem ao homem a
possibilidade de dar significação à existência. Uma arte lamentosa significa, no mínimo, uma
arte de dolorosas contradições, jamais de rendição ou fácil transformação de suas posturas
éticas e políticas. “O mergulho nas trevas do lamento e da impotência”, segue Ventura, “foi
tão profundo que alguns se perderam pelos subterrâneos, ficaram à margem ou escolheram as
viagens permanentes [enquanto outros] estão voltando a querer, isto é, estão recuperando a
vontade para voltar a fazer – apesar de tudo.”10
Um dos maiores expoentes da vontade de fazer poesia, como se verá, Cacaso defendia
vigorosamente a importância deste gesto à revelia de tudo. Seus poemas mostram um autor
especialmente atento a seu contexto, por vezes prenunciador: em “Jogos Florais I”, por
exemplo, os versos manifestavam um sentimento que todavia era ainda pouco lapidado
socialmente na época:
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
Vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.11
Partindo da referência metalingüística à “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, como é
comum entre nossos poetas para gerar imagens de brasilidade12, o poema estabelece uma
inversão entre o lugar ocupado pelo tico-tico e pelo sabiá na cultura brasileira – o sabiá
cantaria nas palmeiras e o tico-tico comeria o fubá, segundo o poema fundador e a canção
popular, respectivamente –, de modo a preparar a imagem do Brasil moderno como um país
de inversões: mui rimada e coloquialmente, a segunda estrofe afirma não ser possível usufruir
as benesses da modernização (o vinho), pois as contradições do processo de desenvolvimento
no país (o “milagre” econômico) eram tão imensas que a deterioração (o vinagre) se fazia
sentir antes dos proveitos.
Aarão Reis comenta o quanto o pensamento da esquerda ativista dos anos 60 – cujas
avaliações conjunturais eram orientadas pelas percepções anteriores ao golpe civil-militar de
64, mantendo-se até a derrota da luta armada em 1972-73 – havia-se enganado ao supor que o
10
11
VENTURA, ibidem.
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.41. O poema pertence ao livro Grupo Escolar, de 1974. A obra poética de
Cacaso encontra-se reunida em Lero-Lero [1967-1985], Rio de Janeiro/São Paulo: 7Letras/Cosac&Naif, 2002.
12
Ver na Introdução a breve menção aos trabalhos que desenvolvem este tema, considerando tal poema como
texto fundador de uma tradição literária que dialoga com o imaginário nacional com base nas imagens de
natureza, exílio e especificidade da língua.
198
Brasil permanecia um país dividido polarmente entre o atrasado/arcaico/favorável à ditadura e
o moderno/progresso/partidário da democracia, deixando de perceber que “à sombra desta
derrota [das esquerdas], e sob as asas de terror do AI-5, construiu-se um país próspero e
dinâmico”. Ainda que se possa questionar o significado dessa “prosperidade” e sua
distribuição social, o fato é que a ditadura e seus produtos se transformaram em poderosos
fatores de modernização; apoiado por um conjunto de medidas estatais, o capitalismo
brasileiro havia dado um gigantesco salto à frente. Deste modo, nos anos de chumbo
conviviam os que afundavam nas areias movediças (mais uma metáfora!) e os que emergiam
– setores consideráveis das classes médias, funcionários públicos, trabalhadores autônomos,
operários qualificados –, “desenraizados, em busca de referências, querendo aderir” àquele
processo, prenhes de “fantasias esfuziantes”.13 Contudo, parece que para além das ilusões,
algo de insuportável nas inúmeras disjunções deste processo de modernização conservadora
se fazia sentir. É sintomático que esta expressão já consagrada na histografia brasileira seja
uma contradição em termos, revelando um conjunto de forças cujos vetores apontam em
direções contrárias. Antes que se pudesse apreender melhor o que estava em jogo, as antenas
da poesia o apontavam, indicando, com a imagem do processo avinagrado, que a situação era
problemática e acompanhada de mal-estar.
A sensibilidade poética anunciava um esgotamento social e se costurava à crise do
milagre que entrava em cena. A partir de 1973, o enterro do acordo de Bretton-Woods pelo
governo Nixon e a falência da tentativa de se manter uma cooperação financeira internacional,
somados à chamada crise do petróleo, em que o preço do produto quadruplicou em
decorrência de um conflito árabe-israelense, levavam ao surgimento de uma nova ordem na
economia mundial. Esta, baseada em taxas de câmbio flutuantes e maior instabilidade
financeira, marcava o fim de período de vinte e cinco anos de crescimento econômico do pósguerra e o início e um novo, e longo, período em que a economia mundial se manteria
bastante hostil ao crescimento de países em desenvolvimento, como era o caso do Brasil14. A
alteração do panorama econômico internacional veio afetar (além de funcionar como álibi
para o regime) a situação do país, onde se instaurou então um duplo impasse, ou seja, o
“milagre” se exauria em decorrência de numerosas contradições internas e externas, e,
conseqüentemente, com a queda das altas taxas do crescimento econômico, o regime político
perdia a precária base de legitimidade popular que conquistara às custas da eficiência
13
14
AARÃO REIS, op.cit., p.54-62; citações nas p.54 e 61, respectivamente.
As informações gerais que se seguem sobre a crise do milagre econômico derivam de PRADO e EARP, op.cit.,
p.233-234. E também MENDONÇA e FONTES, op.cit., passim.
199
econômica agora em deterioração. Entre 1975 e 1976, o II Plano Nacional de
Desenvolvimento (II PND) significou um esforço do governo para reordenar as prioridades do
crescimento brasileiro, postergando temporariamente a recessão e promovendo a segunda
impulsão da dívida externa. Isto, contudo, obscureceu de imediato a dependência do regime
militar dos êxitos econômicos para sua legitimação e os problemas reais para concretização do
II PND. A luta pelos recursos governamentais mostrou que estava em jogo uma redefinição da
correlação de forças dentro do poder, e, uma vez expostas as contradições no seio das classes
dominantes, cuja acomodação era condição essencial para o sucesso das políticas econômicas
do governo, rompeu-se o pacto de dominação em vigor nos anos do milagre e sobreveio à
economia uma névoa de indefinição15. Assim, entrava em crise o “milagre brasileiro”,
marcando a conjuntura pós-74 com fim da euforia econômica e a busca de novas alternativas
para a economia e para a legitimação política.
Por outro lado, a derrocada do “milagre” não podia ser superada por novo arrocho
salarial, posto que naqueles anos os salários estavam ainda mais aviltados – em 1974 o salário
mínimo atingiu seu nível mais baixo em relação ao valor estabelecido em 1940 – e os
trabalhadores se encontravam exaustos. Mal remuneradas e mal alimentadas, segregadas
espacialmente em loteamentos periféricos irregulares e favelas, sem saneamento básico e
escolas, pessimamente abastecidas por serviços de iluminação e transporte urbano de massas,
as camadas populares atingiam o limite físico da resistência; a subnutrição, os acidentes de
trabalho e as epidemias, como a meningite, que começou a grassar em 1974 atingindo as
demais classes sociais, provocavam intensa comoção social, a despeito da censura às
informações divulgadas. A esperança de vida do brasileiro crescia na proporção inversa da
concentração de renda... A falta de canais de reivindicação piorava a situação: sindicatos sob
intervenção, prisões repletas, greves proibidas, partidos manipulados, detenções arbitrárias e
muitos exílios16. A vida material deteriorada, a falta de saúde, direitos e liberdade adensavam
a atmosfera de medo e precariedade, fazendo-a atingir a densidade do chumbo17 propiciadora
da metáfora mais utilizada para caracterizar a década.
Embora, ou justamente porque a censura proibia que se falasse em recessão, o ano de
1974 mereceu atenção da poesia, que o registrou em tons pesados: “[...] A verdade é que vivo
15
Os setores prejudicados ou beneficiados pelos cortes de verbas e reordenamentos econômicos se alinharam e
explicitaram suas divergências, dificultando a implementação das novas medidas econômicas, de modo que se
tornava inviável conciliar, naquela conjuntura, o padrão de acumulação com a preservação das taxas de
crescimento. Cf. MENDONÇA e FONTES, op.cit., p.57-62.
16
Cf. Idem, p.68-70.
17
Os anos de chumbo é o título de um filme alemão de Margareth von Trotta que inspirou aplicação desta
imagem ao Brasil. Cf. HABERT, N. A década de 70, apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo:
Ática, 2003. p.11.
200
a mil/sonhando a morte em azul-anil (Isabel Câmara,“Dezenove do oito de mil novecentos e
setenta & quatro”). Também João Carlos Pádua, em dois poemas da mesma data, frisava a
circunstância, colocando-a em relação com os tempos da escravidão e da 1ª Guerra Mundial,
mediante o diálogo intertextual com Castro Alves e Drummond, o que amplificava a
ressonância dos sentimentos de angústia expressos em relação ao país:
[...]
O mundo finaliza
Reparto contudo o que habitamos
Neste território escrachado
Que não é mundo
É fim de mundo
[...]
[...]
Aonde a terra que talhamos livre?
São os mesmos mortos poeirentos lívidos
Que o cavalo pisa
O povo grita
O tirano passa
– um rei de bronze na deserta praça –18
Não tardou que a reação popular mostrasse seus primeiros sinais, entre 1974 e 1976,
com violentos quebra-quebras de ônibus e trens no Rio de Janeiro e São Paulo, seguidos de
motins de operários da construção civil no Rio de Janeiro em 1977, destruindo alojamentos e
cantinas. A vitória um tanto inesperada do partido de oposição (MDB) nas eleições de 1974
mudava as feições da oposição, que deixava de ser meramente “consentida”, como se dizia,
para se tornar “escolhida”. Aos poucos, ressurgia o espaço político-partidário, para o quê
também contribuiu a mobilização interna nas Forças Armadas em torno da nova sucessão
presidencial, revigorando a corrente liberal que apoiava o general Ernesto Geisel.
No âmbito militar, as pressões e contrapressões internas às Forças Armadas culminaram
por oferecer a alternativa da abertura política como uma possibilidade de solução. No entanto,
provocava uma polarização interna entre a comunidade de segurança, favorável à repressão, e
o grupo preocupado com a recondução da instituição ao desempenho de seus papéis
constitucionais. Estes buscaram, então, uma “caixa-de-ressonância” na sociedade civil, o que
deu o tom e o ritmo, lento e gradual, da política de distensão, que com muitas idas-e-vindas se
definiu entre 1974-1984, nos governos Geisel e Figueiredo, quando se estabeleceram
estruturas mais permanentes e flexíveis de poder, a despeito de ainda vigorarem práticas de
tortura e extermínio, como atestam as mortes “por suicídio” no DOI-CODI de São Paulo do
jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, em meados dos anos 70. Este
processo, porém, além da desmobilização progressiva dos grupos militares mais resistentes à
“abertura”, permitiu o fortalecimento da idéia de que oposição e dissenso constituem matéria
18
Respectivamente: “1974 (desentranhado do poema 1914 de Carlos Drummond de Andrade)” e “A Revisão dos
Mortos (desentranhado d’A Visão dos Mortos de Castro Alves)” datado de 20 de julho de 1974, in: HOLLANDA,
26 poetas hoje, p.164-165. O verso de Isabel Câmara consta no mesmo livro, p.209.
201
política, e não de segurança19. Abriu-se espaço para uma mudança política significativa, que
simultaneamente repercutiu em e recebeu influxos da área cultural.
5.2. Efeitos da Política Nacional de Cultura: da serventia à revelia
Uma das atitudes desta nova orientação do Estado, em busca de ressonância social, foi
sem dúvida a reformulação das agências estatais de cultura, como parte da Política Nacional
de Cultura (PNC), elaborada pelo ministro Ney Braga e pelo Conselho Federal de Cultura do
20
MEC e divulgada em 1975, sob o governo Geisel . Renato Ortiz refuta a hipótese, porém, de
que esta busca de ressonância signifique propriamente uma busca de novas bases de apoio
entre as classes médias: não que fosse implausível o Estado tentar um reequilíbrio das
relações de forças pela via da cultura, mas porque é visível que o interesse estatal na área,
com base da ideologia da segurança nacional, datava do início da ditadura. Desde o golpe de
1964, uma série de leis, portarias e decretos disciplinavam os produtores, a produção e a
distribuição dos bens culturais, normatizando-os. A partir de 1975, o Estado dava um passo a
mais, não apenas reprimindo e regulamentando, mas fornecendo programas para a
intelectualidade e se pondo como árbitro privilegiado das questões culturais, chamando para si
a função de julgar o que interessa ou não. O governo Geisel tentava superar a retórica a que
ficara relegado o discurso de “humanização do desenvolvimento” dos governos anteriores,
buscando maior concretização mediante políticas de distribuição indireta de bens culturais,
aproveitando a atmosfera otimista que rodeava o II PND. A despeito da marginalização
econômica e cultural de parcelas das classes mais pobres, a expansão do mercado de bens
simbólicos no país era expressiva o suficiente para consolidar as indústrias da cultura e
reorganizar a política estatal para o setor.21
Assim, considerando que o desenvolvimento não tem natureza apenas econômica, mas
também cultural, da qual todos os cidadãos devem participar, a PNC objetivava “preservar a
identidade” e os “genuínos valores histórico-sociais e espirituais” do homem brasileiro,
definido como “democrata por formação e espírito cristão, amante da liberdade e da
autonomia”. Para isto, seria preciso guardar a tradição e a memória, mediante a conservação
19
Cf. MENDONÇA e FONTES, idem, p.74.
Para as discussões que se seguem sobre a PNC, ver HOLLANDA e GONÇALVES, Cultura e participação nos
anos 60, p.98; HOLLANDA e GONÇALVES. A ficção da realidade brasileira. In: NOVAES, A. (org). Anos 70:
ainda sob a tempestade, p.111-112; SUSSEKIND, F. Literatura e vida literária, p.37-44; e sobretudo ORTIZ, R.
Estado autoritário e cultura, in: Cultura brasileira e identidade nacional, passim. As citações pertencem ao
documento oficial, reproduzido parcialmente pelos autores.
21
ORTIZ, idem, p.85-87.
20
202
dos “símbolos culturais de nossa história” e a “revalidação do patrimônio histórico e científico
brasileiro”, o que requeria investir no potencial criativo do país, capacitando recursos
humanos para a área cultural, e investir na difusão e integração da cultura, senão se correria
“o indiscutível risco para a preservação da personalidade brasileira e, portanto, para a
segurança nacional”. Portanto, avaliando a política de cultura como “área de recobrimento”,
entrelaçada às políticas de segurança e desenvolvimento, o Estado tem um papel a cumprir,
cabendo-lhe “estimular as concorrências qualitativas entre as fontes de produção”, mas se
precavendo “contra certos males”, como “o culto à novidade” e o “excesso de produção”, que,
segundo o texto, são característicos de países em desenvolvimento, “devido à comunicação de
massa e à imitação dos povos desenvolvidos”.
Traduzindo em miúdos, como na prática não havia mais organicidade das idéias
tradicionais assumidas pelo Conselho Federal de Cultura no período anterior, cujos
intelectuais não haviam sido capazes de elaborar uma política cultural de fato – uma vez que
no contexto de desenvolvimento capitalista, o Estado se colocara como promotor de
racionalidade e planejamento técnico, incompatível com o pensamento tradicional, como já
observado22 –, tratava-se agora de recorrer a um novo tipo de intelectual, de perfil
administrativo, para uma real consolidação política e ideológica no campo da cultura. Uma
nova geração de intelectuais, pós-graduados nos EUA, substitui a geração mais velha, de
formação bacharelesca, ensaística e nacionalista, na composição da burocracia estatal.
Mantendo a bricolagem de idéias segundo as conveniências do Estado, esses intelectuaisadministradores, como mostra Ortiz23, atenderiam às demandas de modernização da cultura e
adequariam a política estatal ao formato do mercado, apoiados em convicções de que uma
política cultural bem orientada poderia gerar investimento de capital a curto e médio prazos.
Em poucos termos, toda a problemática da relação entre desenvolvimento e cultura, que
sacudira o país nos anos 60, era pretensamente resolvida pelo acesso ao consumo de bens
culturais.
Deste modo, a política cultural proposta, em nome da democratização ou acesso popular
à cultura, rejeitava a tese de que os benefícios da atividade criadora fossem privilégio das
elites, cabendo ao Estado incentivar sua difusão e consumo. Nesta concepção, o Estado seria
democrático à medida que abrisse canais de distribuição e consumo, sendo este transformado
22
Cf. cap.3, no qual esta discussão foi feita.
23
ORTIZ, idem, p.108.
203
em índice de avaliação da própria política cultural24. Associava-se deste modo
quantidade/consumo/democratização
em
oposição
à
qualidade/elitismo,
definindo-se
ideologicamente o acesso à cultura mercantilizada como termômetro para o grau de
“democratização” e “desenvolvimento” da sociedade brasileira, argumento este que
transfigura e deforma a relação entre meios e fins do processo cultural (o que terá sérias
repercussões, que se estendem até hoje), além de transferir para a sociedade – os criadores de
arte “de elite” – o caráter antidemocrático sobre o qual a PNC se erigia, escondendo sua
filiação ditatorial.
Paralelamente, portanto, era vital que se fortalecesse a indústria cultural, o que ocorreria
com apoio estatal, posto que o Estado se definia como facilitador e concessionário,
especialmente na área de telecomunicações, como um dos setores privilegiados pela doutrina
de segurança nacional, com destaque para a Rede Globo, que obteve uma série de benefícios
naquele momento. No que tange à cultura popular, a política de turismo a mercantilizava,
dirigindo a organização da arte das classes mais pobres para a produção de objetos folclóricos
a serem comprados e vendidos. Além disso, criou-se uma espécie de divisão de trabalho, mas
não oposição, entre a cultura de massas e a “cultura artística”, sendo esta atendida
preferencialmente pelo Estado – que investia mais no teatro (Serviço Nacional de Teatro SNT), no livro didático (Instituto Nacional do Livro - INL) e no folclore e artes em geral
(Fundação Nacional de Arte - Funarte), legando os meios de comunicação de massa às
empresas privadas. Ao lado de uma política de estímulos aos cursos universitários de pósgraduação, visando ao desenvolvimento científico-tecnológico autônomo, a Funarte, a
Embrafilme, o Instituo Nacional de Artes Cênicas (Inacen), os patrocínios e concursos
literários, junto às multinacionais fonográficas, as redes de televisão e as agências de
publicidade, passaram a absorver boa parte da produção intelectual e artística do país.
Em torno de 1975 se viu também uma grande dinamização do mercado de livros, com
novos autores e relançamentos. Houve uma espécie de boom da literatura de ficção25, com
afirmação da indústria editorial, cuja produção se estabiliza com grande número de autores
médios e obras de todo o país, além dos best-sellers internacionais. Perscrutando os motivos
da proeminência literária neste momento, Hollanda e Gonçalves concluem pela autonomia
24
Renato Ortiz cita trecho do documento Bases para uma Política Nacional Integrada de Cultura MEC/SEAC:
“O rendimento de uma política cultural se mede pelo aumento do índice de consumo e não pelo volume de
iniciativas”. Cf. ORTIZ, R., idem, p.116. Para o teor ideológico deste discurso, cf. p.115-117.
25
Mas não apenas: a movimentação editorial incluía a expansão da imprensa, com aumento do público
leitor/tiragem. Ortiz menciona também o crescimento da indústria do disco e do público espectador de filmes.
Idem, p.83-84. Para a discussão do boom da literatura, ver HOLLANDA e GONÇALVES, A ficção da realidade
brasileira., op.cit., p.113 e 125. Entre as diversas entrevistas tratando do assunto, destacam-se as respostas de
Julio César Monteiro Martins, p.154, aqui aproveitadas.
204
relativa da literatura ante a censura e o financiamento estatal, uma vez que era uma arte mais
barata e não se constituía em veículo de massas. De mais a mais, as editoras pareciam haver
percebido a existência de um público leitor potencial, passível de ser arregimentado por
revistas literárias, concursos, ciclos de debates, caravanas de autores palestrando pelo interior
do país etc.
Substituíam-se as iniciativas mais simples ou amadoras dos anos 60 por um padrão
técnico que se queria eficiente. As agências estatais, juntamente com os meios de
comunicação, lograram estabelecer conexões na sociedade fortes o bastante para atrair vários
intelectuais e artistas, em padrões semelhantes ao que se implantara no Estado Novo: de fato,
diz Sussekind, boa parte da intelectualidade recebeu a PNC como se fora a estratégia cultural
varguista revivida, encontrando na relação “paternal” do Estado uma saída de emergência, na
qual uns acreditavam mais, outros menos. De todo modo, as agências estatais de cultura
passaram gradualmente a abrigar “inclusive como funcionários, opositores e até experseguidos pelo regime militar”.26 Para além do acesso ao mercado de trabalho e produção
cultural nos novos moldes, tratava-se da participação destes sujeitos num vasto processo de
construção de identidade nacional com padrões “modernizados”, o que se efetivava mediante
a atuação integradora e formadora de opiniões em todo o território brasileiro realizada pelos
meios de comunicação de massa, em especial das redes de televisão27.
O fato de o discurso da PNC se apropriar de temáticas que eram profundamente caras ao
ideário dos anos 60, especialmente as questões relativas ao nacional e ao popular, certamente
facilitou este processo de aproximação entre artistas, intelectuais e Estado ditatorial, a
despeito de não haver mais interação profunda com os movimentos sociais. Ou melhor, como
dizem Hollanda e Gonçalves, justamente por isto – porque havia novas condições sociais que
deslocavam estas questões, exigindo que fossem repensadas – tornou-se possível ao regime
absorver essas categorias, recolocando-as conforme sua definição e intuito de controle.
Assim, “debilitadas politicamente, na medida em que não se apóiam num movimento de
vontade popular, tornam-se questões ‘vazias’ ou, mais que isso, preenchidas de seu
26
SUSSEKIND, op.cit., p.39, e também AARÃO REIS, op.cit., p.63. Diz Flora que, como as empresas e
universidades particulares são mais ciosas que as públicas na exigência de um perfil burocrático-ideológico e de
um “atestado de mediania” de seus empregados, “ficar sob as ordens do ‘papai-Estado’ foi uma saída de
emergência, para pródigos ou bem-comportados, sobretudo desde o Governo Geisel”; idem, p.41. Nos anos 70,
as fundações e órgãos estatais empregaram e publicaram amplamente, mas na década seguinte o ritmo diminuiu,
segundo a autora, dado o agravamento da situação econômica e diminuição das verbas destinadas à cultura.
27
Cf. ORTIZ, R. O popular e o nacional. In: A moderna tradição brasileira, p.149-181.
205
significado puramente liberal-burguês e ‘humanista’, atendendo prioritariamente ao
reaparelhamento do Estado” e à organização empresarial da cultura.28
Em meio à crise econômica, cujo disfarce sob o II PND rapidamente se desfez, à falta de
perspectivas de trabalho e futuro, e a mudanças sócio-culturais que não se conseguia
facilmente enxergar, a escolha, quando havia, era efetivamente difícil. Na visão de Flora
Sussekind, iniciava-se a terceira forma de política cultural da ditadura militar, após os
momentos de espetacularização e de repressão, a saber, a cooptação e o controle sobre o
processo cultural. Aos poucos, diversos autores se incorporavam ao processo modernizador,
engajando-se no mercado editorial e livreiro ou produzindo material midiático, especialmente
publicidade e roteiros para TV. Em suma, tratava-se de “anos pragmáticos”, como sugere
Marcelo Ridenti, quando a ordem ditatorial soube dar lugar a intelectuais e artistas de
oposição, inclusive de esquerda, ao investir nas áreas de comunicação e cultura, incentivando
um “nicho de mercado para produtos culturais críticos”. Com a derrota das esquerdas no país,
os rumos dos eventos políticos internacionais, a modernização conservadora da sociedade, a
desilusão (de alguns) com as promessas libertárias do progresso técnico em si, “o ensaio geral
de socialização da cultura [dos anos 60] frustrou-se antes da realização da esperada revolução,
que se realizou pelas avessas, sob a bota dos militares”.29 Ante isto, opera-se um “rearranjo
pragmático dos artistas de esquerda”, motivado por três grandes tópicos: a) a terceira
revolução tecnológica capitalista, que, conforme mostram os estudos de Jameson, integra
paulatinamente na lógica mercantil a esfera cultural-artística, que vai deixando de constituir
uma dinâmica “à parte” na vida social; b) o projeto de modernização conservadora da
educação que – em decorrência da massificação do ensino público nos níveis fundamental e
médio, do incentivo ao ensino privado e da criação de um sistema nacional de apoio à pósgraduação e pesquisa nas universidades, oferecendo uma acomodação institucional onde havia
focos de resistência – produziu degradação educacional em médio prazo; c) o processo de
gradual adaptação às forças da ordem daquilo que foi originariamente transgressão30, como a
liberação de costumes, que acabou por perder seu caráter subversivo, sendo digerida e
reaproveitada como mercadoria pela engrenagem capitalista.
28
29
HOLLANDA e GONÇALVES, A ficção da realidade brasileira, op.cit., p.112.
RIDENTI, M. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: FERREIRA, J. e DELGADO, L. (org). O
tempo da ditadura..., op.cit., p.133-166, citação da p.154. Em seu trabalho, especialmente Em busca do povo
brasileiro, Ridenti discute longamente, de um ângulo histórico-sociológico, os problemas dos intelectuais da
cultura nos vinte anos da ditadura militar, a indústria de massas e as vicissitudes da modernização brasileira, e
seus efeitos nos anos 80.
30
O que estou chamando aqui de derrota da proposta marcuseana. Para estas considerações de Ridenti, ver
RIDENTI, M. Cultura e política..., op.cit., p.156.
206
No entanto, o lugar da arte, especialmente da poesia, neste processo não é fácil de ser
delimitado. Os críticos divergem a respeito, em avaliações que oscilam da entrega à cooptação
estatal, à indústria cultural ou, ao contrário, à resistência31. As discussões que se dão em torno
da qualidade estética assinalam a existência de tensões formais, temáticas e existenciais, no
sentido do modo de se situar no mundo e atribuir-lhe significações. As diversas posições e
atitudes dos sujeitos sociais dependiam de seus variados modos de se pôr e responder, ou não,
as questões trazidas por sua experiência histórica. Os problemas colocados não diziam
respeito apenas à dimensão material da cultura, mas também a um sentimento de angústia que
a acompanhava, e tanto mais angustiante quanto menos recursos conceituais se dispunha para
pensar e informar a ação cultural.
O quadro agônico, seguindo a linha frankfurtiana, concernia à afirmação de um dos
princípios básicos da modernidade capitalista, cuja racionalidade – fundada no modelo da
máquina e dos ganhos produtivos com a exploração do trabalho e da natureza – restringiu-se a
um logos mecânico como medida de todas as coisas, de modo que a inumanidade do aparato
técnico e sua razão fria penetram toda a organização das relações sociais, as quais, por
conseguinte, passam a funcionar (note-se que o termo também remete ao mundo mecânico) de
modo maquinal e utilitário, substituindo os valores de uso e a espontaneidade humana pelas
relações de troca. A razão instrumental que passa a imperar sufoca e deixa cair no
esquecimento a possibilidade de uma razão outra, dita objetiva, que só resiste como resultado
de um árduo trabalho da memória negativa desta fenomenologia da instrumentalização – o
que envolve retomar sentidos perdidos do processo de construção de civilidade das sociedades
humanas, às quais é exigido, para tal, um salto qualitativo em direção a uma maioridade
intelectual e afetivo-social32. Isto traz implicações para a esfera pública e privada, para o
mundo do conhecimento e do trabalho, para a organização material e simbólica da vida
humana. A sociedade administrada que derivou do predomínio da razão instrumental –
mesmo ou sobretudo a bem-intencionada sociedade de bem-estar social do mundo pós-guerra,
31
Para Hollanda e Gonçalves, havia dois tipos se saídas para “a geração do sufoco” pós-68: os que encontravam
meios de profissionalização no mercado editorial, especialmente os contistas, e a poesia marginal, vitalista e
descomprometida, cuja absorção na lógica estatal-industrial da cultura será posterior, após a crise do boom
editorial. Em ambas, uma referencialidade angustiada – a poesia “querendo contar uma história” – tratando de
um universo “maldito” em que se cruzam (homo)sexualidade, violência, medo, impotência, política. Cf.
HOLLANDA e GONÇALVES. A ficção da realidade brasileira. In: NOVAES, op.cit., p.126. Na visão de Iumna
Simon, esta foi a interpretação que deu o tom geral da poesia marginal, cuja primeira safra, até cerca de 1979,
ficou então marcada pela afirmação de um espaço alternativo, independente e artesanal de produção/consumo de
poesia, do que ela discorda, por ver nesta poesia uma denúncia sem capacidade crítica, dada sua desqualificação
literária e vivencial. A crítica de Sussekind e Costa Lima segue em direção semelhante. Cf. SIMON, I. e
DANTAS, V. Poesia ruim, sociedade pior., op.cit., p.99.
32
Cf. MENEGAT, M. Depois do fim do mundo, p.61ss. A busca dessa maioridade, e conjuntamente a crítica à sua
falta, é um tópico filosófico reiterado na obra crítica de Cacaso. Cf. Não quero prosa, passim.
207
tida como um dos benefícios do projeto da social-democracia, do qual os programas de
planejamento econômico e cultural do regime militar à sua maneira são devedores – trouxe
consigo a sensação de asfixia e peso que acompanha todo ato de bloqueio dos horizontes
humanos, em especial porque aquela ordem/lógica estabelecida de forma fechada se mostrava
poderosa o suficiente para eliminar ou cooptar as alternativas que se lhe contrapunham.
Assim sendo, vê-se a resposta poética ao “sufoco” vivido sob a ditadura militar no
Brasil adquirir a amplitude do diálogo travado entre a arte e a modernidade capitalista, no
seio do qual o regime autoritário e violento vem a ser um fator agravante do já pesado malestar da cultura. O nó que obstruía as gargantas amarrava problemas de curta e longa duração,
adensando o contexto em que a poesia se propunha – os que puderam resistir – a missão de
manter seu alento. As dificuldades e ambigüidades deste movimento são ilustradas pelo
poemeto citado à guisa de epígrafe do brasiliense Nicolas Behr, que em depoimento
acrescentava:
... a poesia marginal não foi um movimento literário, foi sim um movimento
libertário [...] de uma mudança de costumes, posturas e atitudes diante do status quo
literário [...] A poesia dessa época é muito sangrenta, não violenta, mas ácida, difícil,
com toda uma ginga brasileira no meio, é claro. É uma poesia muito seca, suicida,
inconformada, e ao mesmo tempo de uma grande alegria.33
5.3. Grupos, coleções e revistas: poesia em ação
Sangrentos, ácidos, suicidas e alegres, secos, inconformados e repletos de ginga em
meio ao panorama violento e pasteurizador, alguns grupos de poetas se lançavam à intenção
de constituir uma “cultura alternativa”, procurando brechas possíveis para uma intervenção
que pretendiam crítica, mediante a absorção das idéias de politização do cotidiano que se
difundiam. O modo específico da “poesia marginal” – definido pela produção artesanal de
livros, pelas coleções e revistas, distribuição mão-a-mão, linguagem bastante informal, bemhumorada e desliteralizada, eventos de leitura pública e debates, espetáculos declamatórios e
multimídia – em larga medida escapava ao investimento estatal, à censura, e, inicialmente, à
indústria cultural. A pesquisa participativa de Messeder Pereira permitia-lhe concluir que todo
o investimento dos poetas em acompanhar seu trabalho do início ao fim, desde a criação, a
montagem dos fotolitos, a impressão nas gráficas ou mimeógrafos, a venda nas ruas, bares e
teatros, revelava um desejo anticapitalista ou anticomercial dessa geração; um impulso de
controlar a produção de sua obra que seguia, à primeira vista, na contra-mão do processo de
33
Depoimento concedido a Leila Miccolis, Correspondência pessoal/Arquivo BSB (DF), 13 jun. e 18 jul. de
1982. Reproduzido em MICCOLIS, Do poder ao poder, p.36. A questão da alegria será discutida adiante.
208
produção industrial de bens culturais, que, como toda produção mecânica-industrial, se dá de
modo fragmentado e fora do controle dos seus autores.34
Ao lado disto, a “poesia do sufoco”, a princípio muito dispersa, esboçava movimentos
de organização: formavam-se grupos poéticos; editavam-se jornais marginais e numerosas
revistas (da mais precária feição mimeografada à mais alta qualidade gráfica, retrabalhando as
sugestões do concretismo); organizavam-se diversas coleções, cooperativas, antologias;
intensificavam-se as manifestações coletivas com a realização de diversos eventos35. Entre
estes, destacou-se no período o PoemAção, que durante três dias de 1974, no MAM-RJ –
organizado pelos poetas Armando Freitas Filho, Carlos H. Escobar, Moacyr Cirne, Ricardo
Ramos, Cyro Del Nero, Ronaldo Periassu e Álvaro de Sá, alguns remanescentes ou ligados às
vanguardas –, efetuou uma mostra de poemas, peças teatrais, artes diversas, como uma
espécie de desdobramento da atmosfera da Expoesia do ano anterior, embora de teor não
acadêmico. O destaque conferido à palavra “ação” confirmava a importância que adquiria,
naquele momento, a manutenção do gesto congregador e de criação cultural em oposição às
restrições impingidas pela ditadura militar e pelos impasses da modernização em pauta.
Manter-se ativo, reagir ao imobilismo, fazer alguma coisa, era sempre louvado como “melhor
que nada”. Outrossim, mostrar que a poesia que estava sendo criada e recriada, a despeito de
sua tradicional pouca visibilidade, era uma questão de peso, que adquiria especial conotação
no contexto repressor. A relevância da ação surgia em diversas instâncias, como, por
exemplo, a coletânea de contos, poemas e cartas Há margem, lançada em Porto Alegre (RS),
comentada por Cacaso:
Há margem é apologia do verbo fazer, agir em todos os sentidos. ‘Pretendemos o
renascimento do fazer, apesar das circunstâncias, das pressões’, diz Licínio [de
Azevedo, um dos organizadores]. Essa atitude, que é representativa de todo o grupo,
significa uma firme demonstração de vitalidade, sendo mais um problema
existencial do que propriamente literário. Mariza Scopel resume assim a questão:
‘Eu acho que o problema maior do escritor não é escrever sobre o que nem como
escrever, mas é se tornar uma pessoa. Desmanchar o nó da violência, mudar o curso
do seu rio. Escrever é secundário, é gratuito, é o fim do processo já vivido’. O livro,
como objeto, e o texto, como expressão, refletem com fidelidade este estado de
ânimo, estão saturados de resíduos afetivos e artesanais.36
Merece atenção o fato de essa vitalidade existencial e afetiva vir associada à negação da
tradição literária e do mundo intelectual, assim como o teor anti-acadêmico do PoemAção, por
se vincular ao tópico, deveras característico da época, da recusa dos universos formais e
34
MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.79.
HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, op.cit., p.6.
36
BRITO/CACASO. Sopa de Letrinhas., publicado no jornal Movimento, n° 22, dez. 1975 e reproduzido em Não
35
quero prosa, p.77-79.
209
teóricos dos quais a substância existencial já se esvaíra. Como já observado37, no meio
universitário esta recusa dizia respeito ao tecnicismo e ao esvaziamento político implantado
pelo projeto educacional do regime; entre os grupos mais politizados da sociedade – fossem
artistas empenhados, militantes das esquerdas ou “desbundados” mais reflexivos – graçava
certo antiteoricismo, como negação da reflexão em nome da ação. Na visão de Ridenti,
colocavam-se para estes diferentes grupos algumas questões comuns, resultantes das
mudanças no quadro cultural que haviam conduzido a uma perda das bases sociais das
manifestações culturais. Em outros termos, não cabia mais aos intelectuais e artistas o papel
formador que tinham nos anos 60, quando foram co-responsáveis pela construção de um
público de mentalidade rebelde e inconformista. Agora, as manifestações culturais vinham na
onda de um movimento popular derrotado em 64 e dizimado em 68, e que a muito custo
voltava a reagir; além disto, a indústria cultural oferecia, a seu modo pragmático, certa
resposta aos anseios modernizantes dos antigos rebeldes38. Não havia mais espaço para uma
atuação intelectual-artística de tipo sartriano. Em nome da ação e da experiência concreta,
recusavam-se teorias e técnicas por serem vazias de sentido e utilizadas como instrumentos de
poder pelos setores dominantes, o que as tornava em fatores de confusão e opressão a mais na
atmosfera sufocante.
Foi com o selo do anti-intelectualismo, do anti-tecnicismo e da politização do cotidiano
– os quais, vale repetir, consistiam em três pontos básicos da reorientação da experiência
cultural ocorrida ao longo dos anos 7039 – que o “surto de poesia” iniciado desde os anos
anteriores se ampliava em torno de 1974-75 e proliferava em todo o Brasil (ver Quadros
Informativos no Apêndice), onde surgiam jovens poetas em número incontável, a ponto de se
validar como expressão típica da década. Esta movimentação poética foi acompanhada pelo
teatro independente, como o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, pela festividade musical
dos novos baianos, pela imprensa nanica, então considerados como uma abertura de canais de
fala para a (des)classificada “geração AI-5”40. No artigo “Sopa de Letrinhas”, de 1975, Cacaso
37
Cf. cap.4, no qual se discutem os problemas derivados do anti-intelectualismo.
Cf. RIDENTI. O fantasma da revolução, p.108-110.
39
A apresentação desses três eixos foi feita no cap.3, a partir de MESSEDER PEREIRA. Retratos de época, p.8592.
40
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES, Cultura e participação..., op.cit., p.98-99. Embora a crítica literária fosse
crescentemente atenta ou mesmo dura com os problemas da queda de qualidade literária, todos reconhecem que
a questão abrangia a abertura “à foice” de espaços outros para a produção intelectual e artística, e para muitos
este gesto foi considerado de fato mais importante do que a preocupação estética. A este respeito, o poeta
brasiliense Nicolas Behr pronunciava: “Queremos público, não queremos imortalidade. Queremos ser
inesquecíveis. Queremos o coração dos leitores não queremos estantes. Pelo sonho, pela utopia, pela audácia de
sobreviver daquilo que a gente gosta de fazer: poesia. [...] Poesia para as multidões. [ou ainda] Não é o meio que
se imprime, é a atitude. De tentar levar o ato de fazer poesia às últimas conseqüências.” Citado por MICCOLIS.
38
210
observava as condições, os prós e contras daquela multiplicação poética e seus meios de
consolidação:
O número de candidatos a escritores cresce no Brasil em proporções muitas vezes
maior do que o número de vagas que nosso sistema editorial comporta. Há um
processo de marginalização por não absorção das novas propostas e vocações; o
volume da produção literária, sem qualquer chance de edição, tende a se expandir.
Antônio Houaiss observava recentemente que, se a literatura brasileira não reflete
mais e melhor o Brasil, ‘é porque a estrutura não comporta a expansão dos seus
produtos: a quantidade de autores inéditos que conheço, que deveriam ser
publicados, e que encontram todos os obstáculos conjunturais, é enorme.’ Parece
que há pelo Brasil afora uma ‘pequena produção em massa’ de livros editados por
conta e risco de seus próprios autores, fenômeno mais ou menos datado, e que
mergulha boa porção da nossa vida literária numa semi-obscuridade, numa forma de
existência que combina anonimato e participação. [...] O perigo que há é se
empunhar a bandeira da marginalidade, como se fosse uma posição a ser defendida,
o que pode não contribuir muito para se explorar as potencialidades de participação
que a iniciativa independente oferece. [...] a marginalidade não pode nem deve ser
uma meta buscada e almejada, mas deve ser entendida naquilo que realmente é, ou
seja, uma situação compulsória e discriminadora, precariíssima.41
É preciso sempre ter em mente a dificuldade daquela “marginalidade”, tanto no sentido
da experiência ali posta quanto dos recursos conceituais para entendê-la. Eram heterogêneas
aquelas vozes poéticas, que imprecisamente são reunidas sob estes epítetos de alternativas ou
marginais. Primeiramente, sua configuração somava uma 1ª geração poética, cuja formação é
marcada pela dinâmica dos anos 50 e 60, a uma 2ª geração, mais jovem e descompromissada,
formada fora dos debates políticos anteriores, conforme observam Messeder Pereira e
Hollanda, mas tendo ambas em comum o fato de que suas experiências são parte de um
mesmo processo cultural, marcado pelo “sentimento de perplexidade no ar” ao qual se reage
com “forte dose de humor e ironia”.42 Em segundo lugar, existiam opções e afinidades
distintas, que pervagavam um vasto leque de posições entre a exaltação à “cultura alternativa”
e a adesão às formas sistêmicas, passando por diversos modos de ocupar as “brechas”, de
Do poder ao poder, p.40. A autora recolheu cartas/depoimentos de poetas alternativos de todo o Brasil,
guardando-os em arquivo pessoal e citando-os em seu livro. É possível que este trecho pertença também ao
Manifesto Pau-Brasília, de Behr.
41
BRITO/CACASO. Sopa de Letrinhas., idem. Devo a Débora Racy Soares, doutoranda da UNICAMP, uma troca
de observações sobre Cacaso muito útil, de onde retiro algumas informações acerca da vida e das opções do
poeta. Débora chama a atenção para o fato de que Cacaso tinha conseguido publicar seu primeiro livro, A
palavra cerzida (1967) pela editora José Álvaro, com prefácio elogioso do conhecido crítico José Guilherme
Merquior. Nos anos 70, entretanto, a concepção poética do autor, bem como o modo de publicação e distribuição
dos livros mudam consideravelmente. Embora Cacaso tenha dito que “marginalidade nunca foi opção”, no seu
caso parece ter sido uma escolha muito consciente, incluindo uma tomada de posição poética e política, que o
levou à liderança da movimentação carioca. (segundo correspondência eletrônica de 22 mai. e 15 jul. 2007). A
dissertação de mestrado de Débora versa sobre o livro Grupo Escolar (Um Frenesi na Corda Bamba – Análise
crítica da obra poética Grupo Escolar (1974) de Antônio Carlos de Brito) e a tese de doutorado, em elaboração,
parte de Beijo na Boca (1975), procurando validar seu teor poético-político, contrariando a idéia de que seria um
“livrinho desbundado”.
42
Cf. MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.161 e HOLLANDA, Impressões de viagem, p.99.
211
onde a impropriedade de reuni-las num só esquema explicativo.43 A própria marca registrada
dessa poesia, sua produção autofinanciada ou cotizada, nada mais era, como dizem Simon e
Dantas, do que a condição que tradicionalmente imperou no Brasil submetendo com
freqüência os poetas, e, por seu turno, a figura do poeta-vendedor de suas próprias obras
tampouco os retirava do circuito comercial; a novidade, porém, que comportava o sentido de
uma experiência à margem, residia na articulação com o contexto histórico ditatorial que
interditava o espaço público, contribuindo para carregar de tons inconformistas, rebeldes e
irreverentes aquele registro poético das práticas existenciais da juventude, de modo que seu
valor simbólico foi maior que seu conteúdo estético44. A isto se acresce que a experiência
coletiva e artesanal, assaz dotada de sentido para seus participantes, como observou Messeder
ao acompanhar os grupos poéticos cariocas45, não o era necessariamente para quem a via de
fora. Por fim, existiam situações existenciais e sócio-históricas distintas e, por conseguinte,
diferentes lugares de enunciação da nova poesia dos anos 70: além dos poetas consagrados e
daqueles que não se envolviam com a movimentação alternativa, havia o poeta “póstropicalista”, o poeta exilado, o poeta preso, o poeta intimista, ao lado dos que falam da e na
praça pública, vendo o mundo e a realidade brasileira e transformando em matéria poética o
que testemunhavam, compondo um novo tipo de figura de poeta, uma espécie de “baudelairemalandro” que circula pela cidade e registra o que vê, sente e pensa, seus encantos e espantos
traduzidos em um timbre no qual a grandiloqüência cede vez ao humor irônico e às pequenas
coisas da vida.
Entre estes, Cacaso – assim como Leminski, em outra vertente – parece haver ocupado
uma posição centrípeta. Formado em filosofia, professor de Teoria Literária e Literatura
Brasileira na PUC-Rio, era representante daquela 1ª geração poética da década de 70 e
congregava em torno de si muita gente. Articulava gerações e grupos distintos, aglutinandoos, organizando coleções poéticas – Frenesi e Vida de Artista saíram de suas mãos – e
comentando a nova poesia nos jornais alternativos, como Opinião e Movimento, nas revistas
43
Segundo Leila Miccolis, há uma polêmica terminológica gerada pela confusão de termos quase sinônimos, que
ela tenta em alguma medida elucidar: “alternativo”, “undergroud”, “tropicalista” apresentam teor contracultural;
“marginal” tanto carrega a pecha de maldito quanto significa marginalidade ideológica; “independente”
relaciona-se à produção fora dos esquemas comerciais; “alternativa” de modo geral também pode querer dizer
uma produção rebelde e questionadora da ordem, o que nem sempre ocorre com a produção independente, que se
define pela contraposição ao mercado editorial, mas não por seus enfoques e abordagens. Salvo alguns que se
aliaram a propostas libertárias, diz a autora, é irreal exigir um teor alternativo desta produção alternativa. Cf. Do
poder ao poder, p.22-24. Para Messeder, tratava-se de um fator normal da dinâmica cultural a contradição de
artistas entre sua autonomia e o desejo de prestígio, ou seja, a negatividade e o reconhecimento social, em uma
sociedade ainda bastante marcada pela aura da figura do poeta. Cf. MESSEDER PEREIRA, op.cit., p.53-54.
44
Cf. SIMON e DANTAS, op.cit., p.99.
45
Cf. MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.63. Ver a discussão de Messeder sobre a ambigüidade dos
poetas em sua relação com o mercado no cap.4.
212
de cultura, como Vozes, Argumento, Almanaque, Brasil, e posteriormente na grande imprensa,
escrevendo crítica para a revista Veja e a Folha de S.Paulo, por exemplo. Deste modo, o poeta
mineiro-carioca se tornou também crítico e comentador prioritário desta tendência poética no
Rio de Janeiro, sendo, por isso, um dos principais responsáveis por sua legitimação46. Em
diversos momentos de seus escritos críticos, ao menos até fins dos anos 70, Cacaso
reafirmava a importância de se estar fazendo poesia no país a despeito de um contexto tão
adverso, como se vê no trecho supracitado, ainda que aquela proliferação poética fosse
heterogênea e implicasse em inúmeros casos uma desqualificação estética. Seu projeto
político-poético47 envolvia o desejo de uma criação coletiva, para a qual ele evocava a
imagem de um caldeirão onde todos pusessem e retirassem poesia, conforme a ocasião –
lembrando o personagem carteiro da novela de Skármeta48, que declarou ao poeta ser a poesia
pertencente a quem dela precisa. O projeto envolvia também a composição e distribuição
artesanal do livro que ele tanto admirara no início da década na “poesia de mimeógrafo”
(Chacal, Charles, Guilherme Mandaro etc.), como um modo de editar refratário ao
fechamento do mercado editorial aos novos autores até a segunda metade do decênio.
A viabilidade deste projeto é toda uma questão, sobretudo por transpassá-lo a
preocupação com a profissionalização do poeta, o que inequivocamente sempre dependeu da
riqueza familiar, do mecenato, do Estado ou do mercado. Por um lado, Cacaso, sempre
insistindo na necessidade de se aprender “a lição modernista”, defendia a gratuidade da arte
como garantia do engajamento político, isto é, a liberdade de criação como condição prévia
do trabalho artístico, e não apenas como meta. Naqueles anos, esta liberdade incluía a
produção artesanal e a distribuição de mão-em-mão, significando não só uma contra-resposta
ao mercado editorial consagrado, mas uma recusa do gesto tecnificado e uma afirmação da
delicadeza de uma relação em que o interesse econômico não é foco central, permitindo a
recuperação do que ele chamou de carga utópica dos “nexos qualitativos de convívio que a
46
Cf. MESSEDER PEREIRA, idem, p.140. Cacaso, Antônio Carlos Ferreira de Brito, nasceu em Uberaba (MG)
em 1944. Viveu no interior de São Paulo até os onze anos, quando veio morar no Rio de Janeiro, de onde pouco
se ausentou depois. Tendo participado dos movimentos estudantis em 1968, licenciou-se em Filosofia pela UFRJ
(1969) e ministrou aulas de Teoria Literária e Literatura Brasileira na PUC-Rio entre 1965 e 1975. Iniciou
mestrado na USP, mas não terminou por falta de paciência para preencher relatórios. Entre suas variadas
referências poéticas, destacam-se Manuel Bandeira, Oswald e Carlos Drummond de Andrade, e na ensaística,
Antônio Cândido, Lukács e Mario de Andrade. Faleceu em 1987, de repentino enfarte, aos 43 anos de idade. No
acervo de Cacaso na Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), há textos que foram censurados. Agradeço estas
informações a Débora Racy Soares.
47
Ver diversos artigos de Não quero prosa, passim.
48
Refiro-me a O carteiro e o poeta, que foi também filmado.
213
relação com o mercado havia destruído”.49 Por outro lado, os artigos do início dos anos 80
revelavam uma preocupação maior com os rumos tomados por esta poesia, bem como a
crença de que a profissionalização do poeta dependia da palavra cantada, isto é, estava
subordinada à indústria fonográfica, como provava o sucesso de Vinícius de Moraes. Amigo
de Cacaso, Roberto Schwarz apresenta alguns elementos de sua figura ativa, congregadora e
perceptiva à sua experiência sócio-histórica, ainda que não isenta de contradições:
... em matéria literária gostava de dar e receber palpites, entre risadas, de inventar
projetos comuns e de estimular a produção à sua volta, sobretudo de pessoas
improváveis, que ninguém imaginaria artistas. Ele andava atrás de uma poesia de
tipo sociável, próxima da conversa brincalhona entre amigos.Um emendaria o outro,
tratando de tornar mais engraçada e verdadeira uma fala que pertencesse a todos, ou
não fosse de ninguém em particular. Era um modo juvenil de sentir-se à vontade e a
salvo das restrições da propriedade privada. Nessa linha, ele tinha a intenção de
estudar a poesia “marginal” dos anos 70 como um vasto poema coletivo, cuja
matéria seria a experiência histórica do período da repressão, e cujo autor seria a
geração daquele decênio, vista no conjunto, ficando de lado a individualidade dos
artistas. [...] A certa altura, Cacaso imaginou que a sua vida de intelectual e artista
seria mais livre compondo letras de música popular do que dando aulas na
faculdade. Na época chegou a idealizar bastante a liberdade de espírito
proporcionada pelo mecanismo de mercado. Penso que ultimamente andava revendo
essas convicções. Seja como for, o passo de professor a letrista, acompanhado de
planos ambiciosos de leitura literária, histórica e filosófica, assim como de produção
crítica, mostra bem a sua disposição de entrar por caminhos arriscados e vencer em
toda a linha.50
A aposta nas possibilidades criadoras e cognitivas da produção poética coletiva, que
Cacaso chamava de “poemão”, é reiteradamente sublinhada por Heloisa Buarque como uma
das dinâmicas mais significativas da poesia dos anos 70, parecendo incluir até mesmo o
trabalho crítico desses e outros autores, que estudavam e pensavam juntos. Sabendo que as
vozes individuais vão além do estritamente particular, o autor do “poemão” ou “caldeirão” as
reunia, compreendendo o universo social como algo mais do que o somatório dos indivíduos,
à maneira da sociologia e da filosofia política, e o universo literário como uma vasta rede
intertextual. Mas a inspiração de Cacaso parece ter sido sorvida do poeta francês
49
BRITO, Tudo da minha terra, op.cit., p.136; a questão foi tratada no cap.4, a respeito de Chacal. Para o restante
da discussão, ver os artigos Atualidade de Mario de Andrade (Revista Encontro com a Civilização Brasileira,
n.2, ago. 1978), Alegria da Casa (Revista Discurso n.11, FFLCH/USP, 1980) e Melhor a Emenda que o Soneto
(Folha S.Paulo, 4 jul. 1982), todos reproduzidos em Não quero prosa. Para a questão do gesto tecnificado e a
relação isenta de interesse, cf. ADORNO, Mínima Moralia, aforismos 19 e 20, p.33-34.
50
SCHWARZ, R. Pensando em Cacaso. In: Seqüências brasileiras: ensaios.. São Paulo: Cia. das Letras, 1999,
p.212-213. Grifo meu. Ainda segundo a troca de correspondência eletrônica com Débora Racy Soares (ibidem),
no final dos anos 70 Cacaso passou a se interessar menos pela poesia do que pela música, na qual ingressaria
definitivamente após a publicação de seu último livro, misto de poemas e canções (Mar de Mineiro, 1982). Sua
poesia foi, segundo ele, “diminuindo, diminuindo” progressivamente, até “sumir”, como se a motivação para
escrever poemas houvesse evaporado com os sinais de abertura política. Curiosamente, embora tenha militado
no meio da poesia marginal, não hesitou em aderir à indústria fonográfica, onde pôde viver de música e lutar
pelo sonho de se “tornar famoso no Brasil inteiro”. Isto reconfirma a idéia de que a opção pela edição “marginal”
era uma busca de resistência poético-política.
214
Lautréamont, para quem a poesia deveria “ser feita por todos, não por um”, bem como da
leitura de Alfredo Bosi, em cuja avaliação, como isto não pode realizar-se materialmente na
forma de criação grupal, dado que as relações sociais não são comunitárias sob o capitalismo,
uma poesia coletiva e socializada acabou se transformando em busca de sentidos alternativos
que sejam válidos para muitos51.
No entanto, a idéia de “poemão” não era unanimidade. Para Armando Freitas F°, ela
seria fruto do “ímpeto ordenador” e da “ambição teórica e de liderança, que, mesmo
disfarçada ou manhosa, se exercia através de militância incansável, falada e escrita” de
Cacaso. O conceito seria até interessante, mas só funcionava de modo virtual ou na cabeça do
crítico. Armando vê os poetas marginais “muito ciosos de suas identidades e diferenças”,
mesmo que às vezes não o demonstrassem, e conclui com outra opção: “Se Cacaso em vez de
‘poemão’ tivesse falado em poética teria, a meu ver, acertado no alvo real. [...] uma poética
que, entre outras coisas, trazia a vida de cada um, cada leitor, para a poesia de todos”.52
Poética ou “poemão”, a experiência que provê a matéria de poesia – ainda que mal elaborada
tecnicamente, ou sobretudo por isto – revelava indícios da realidade histórica geracional, e
nisto Cacaso acertara o alvo.
Foi dentro deste espírito que ele organizou as coleções Frenesi e Vida de Artista, que ao
lado da Nuvem Cigana, Folha de Rosto, Gandaia e Garra Suburbana, entre outras, configuram
uma síntese representativa daquele momento53. Lançada em outubro de 1974, no Rio de
Janeiro, a Coleção Frenesi reunia nomes que já possuíam uma trajetória no campo artístico e
intelectual, diferentemente da produção de mimeógrafo que, lúdica e anárquica, aglutinava
pessoas sem vínculo literário, acadêmico ou intelectual54. Esta coleção marcava a mudança de
51
Cf. BOSI, A. Poesia resistência. In: O ser e o tempo da poesia, p.144. Imagino tal inspiração de Cacaso por ele
citar este artigo de Bosi, no artigo Atualidade de Mário de Andrade. In: Não quero prosa. nota 18, p.165. como
diz Débora Soares, na supracitada correspondência, perpassa o “poemão” uma idéia de “embaçamento da
autoria” que tem muitas faces, demandando que sejam avaliadas cuidadosamente.
52
In: CÉSAR, A. C. Ana Cristina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p.102-103.
53
Cf. HOLLANDA, Impressões de viagem, p.114 ss. Esta seleção de autores e obras mais significativos gerou
sempre muita celeuma, não fazendo justiça a todos os que ficam de fora, fato que consiste, ao menos para esta
época, num problema insolúvel em virtude da amplitude do surto de poesia. A pesquisa de Messeder Pereira,
Retratos de época, foi realizada com os participantes dos quatro primeiros grupos e suas coleções, procurando
depreender a visão que eles próprios tinham do que faziam. As informações aqui utilizadas seguem este livro,
bem como os de Heloisa Buarque.
54
Os cinco livros da Frenesi pertenciam a Cacaso (Grupo Escolar, seu segundo livro após A palavra cerzida de
1967), Chico Alvim (Passatempo, que reunia trabalhos de Passatempo, escritos em Paris entre 1969 e 1971, e
Exemplar proceder, escritos no Brasil entre 1971 e 1973); Roberto Schwarz (Corações veteranos); Geraldo
Eduardo Carneiro (Na busca do sete-estrelo) e João Carlos Pádua (Motor).Chico Alvim, mineiro de Araxá,
nascido em 1938, oriundo de uma família participativa na vida política nacional, era um diplomata nada “típico”,
que entrara para a área cultural do Itamaraty em 1962 e publicara seu primeiro livro de poesia, Sol dos Cegos,
em 1968. Através dele, Roberto Schwarz e Carlos Saldanha, também diplomata, autor dos “gibis” poéticos
mimeografados, entrariam em contato com Cacaso e participariam das coleções. Schwarz, também nascido em
1938, em Viena (Áustria), licenciou-se em ciências sociais na USP em 1960, concluiu mestrado em literatura
215
dicção poética de Cacaso e Chico Alvim, cujas primeiras publicações traziam outra entonação
e apresentação.
Os livros da coleção, artesanais e de feição gráfica orgânica e criativa, eram tratados
como objeto “pessoalizado e intransferível”, ilustrados com desenhos ou fotomontagens,
trazendo uma linguagem distante dos padrões comerciais das editoras, o que apontava uma
inflexão na experiência dos poetas em relação à poesia: a desconfiança em qualquer tipo de
ortodoxia – ainda que isto incluísse a década anterior –, o desejo de mudança de vida e do
modo de expressá-la.55 De todos os grupos, este era o mais intelectualizado, redimensionando
suas posições político-estéticas dos anos 60 mediante uma reflexão crítica, marcada pela
experiência do “sufoco” e pela descrença em relação às linguagens e instituições “do sistema”
– o que os colocava, como diz Hollanda56, em uma posição incômoda, uma vez que todos os
integrantes tinham ligações institucionais mais ou menos estabelecidas. A experiência e o
incômodo cotidianos eram vividos como um problema existencial, a serem traduzidos literária
e teoricamente. O próprio nome da coleção inscrevia a sensação simultânea de euforia e malestar que pairava no ar, ou melhor, a euforia revolucionária dos 60 cedendo ao amálgama de
desencanto e perplexidade, desejo simultaneamente ávido e impotente de realizações que
marcaria a juventude dos anos 70, em virtude de seu contexto histórico-cultural. Frenesi
comporta, assim, um sentido de transição e crise coletiva que a linguagem lírica figurava,
assumindo conscientemente que se tratava de uma experiência histórica e não apenas
subjetiva.
Já Vida de Artista consolidava a relação das duas gerações em confluência e definia
mais claramente o influxo comportamental dos mais jovens57. A coleção se caracterizava por
um carimbo posto nos livros, muito descontraídos, presos com grampos, sem maior cuidado
gráfico nem preocupação com a ficha técnica, no que diferiam de Frenesi. Também os
comparado nos EUA em 1963 e lecionou teoria literária na USP até 1968. Entre 1969 e 1976 realizou seu
doutorado na França, onde se encontrava quando seu livro de poemas – que havia sido recusado pela editora
Civilização Brasileira – foi lançado pela Frenesi. Por sua vez, Geraldo Carneiro e João Carlos Pádua (nascidos
em Belo Horizonte, 1952 e Rio de Janeiro, 1950, respectivamente), que já trabalhavam com música, eram alunos
de Cacaso no curso de Letras da PUC-RJ, onde ingressaram em 1972 e participaram da Expoesia em 1973.
55
Cf. HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, Poesia jovem Anos 70, p.54-55.
56
Cf. HOLLANDA, Impressões de viagem, p.114-115.
57
Composta por Luis Olavo Fontes (Prato feito, 1974); Cacaso (Beijo na boca, 1975 e Na corda bamba, 1978) –
e de ambos, Segunda Classe, 1975, fruto de uma viagem conjunta de Pirapora a Juazeiro, num vapor do rio São
Francisco –; Eudoro Augusto (A vida alheia, 1975); Carlos Saldanha (Aqueles papéis, 1975) e Chacal (América,
1975). Segundo Messeder Pereira, a viagem pelo rio São Francisco possuía significado especial, considerada
experiência obrigatória no universo do “desbunde”, pelo contato com a natureza e o tempo lento das populações
ribeirinhas, em oposição à vida urbana. Cf. idem, p.295. Luis Olavo Fontes nasceu no Rio de Janeiro, em 1952 e
possuía uma fazenda onde se realizaram muitos encontros desses poetas “marginais” e amigos. Formado em
economia pela PUC-RJ, foi financiador de alguns livros de amigos na época, é hoje escritor e roteirista de
cinema.
216
poemas se mostravam mudados, “mais curtos, mais próximos do flash e do registro bruto de
episódios e sentimentos cotidianos”, avalia Hollanda58, uma linguagem menos literária e mais
preocupada em valorizar a vida apesar da asfixia. A precariedade se fazia valer como uma
modesta contraposição ao discurso dominante da eficiência técnica e econômica.
Nas coleções Frenesi e Vida de Artista – e livros correlatos, que podem ser incluídos na
mesma categorização por apresentarem o teor assemelhado59 –, a oscilação entre o universo
íntimo e o público se traduzia na priorização da experiência pessoal ladeada pelo
descompromisso com a idéia de autoria pessoal, com muitos poemas feitos a várias mãos e a
muitas vozes, conforme os moldes do grande “poemão” de Cacaso, e no ato coletivo de
organização e divulgação. Isto revelava também certa desconsideração para com os valores
hierárquicos da literatura canônica, substituído o tom circunspecto pela relação afetiva com a
prática literária, além de dar relevo especial ao exercício de intertextualidade literária, o que
se tornaria voga e gesto estabelecido nas décadas seguintes. Entretanto, mesmo apostando em
aspectos “antiliterários” – cabe lembrar que a anti-arte era temática de época –, esta dicção
poética diferia da produção mais jovem do período por um melhor apuro de linguagem, como
recurso necessário para um certo distanciamento crítico desejado.
É com o grupo Nuvem Cigana que se afirma a 2ª geração da poesia marginal
(relembrando que não se trata de uma distinção cronológica, mas de indivíduos com
formações e idades distintas que confluem na realização deste fenômeno), mais lúdica e
menos organizada ideológica e politicamente, tendo no Rio de Janeiro o seu centro. O grupo
arregimentava os poetas mais jovens, caracterizando-se pela maior diversidade de atividades,
maior longevidade (1972-1980) e notoriedade como “cultura marginal” típica da segunda
metade da década, distinta da virada dos anos 60 para os 70, pois que sem os “dentes” de um
Torquato Neto. Como já dito, em 1972 Ronaldo Bastos criara uma firma, um selo com este
nome, pelo qual publicara seu primeiro livro e que posteriormente – quando entra em contato
com Chacal, Charles e Guilherme Madaro na faculdade de comunicação da UFRJ60 – vai
58
Cf. idem, p.117-118.
Hollanda e Messeder citam: Cenas de abril de Ana Cristina César; A flor da pele e Mlle Furta Cor de
Armando Freitas Filho; A vida alheia de Eudoro Augusto; Restos & estrelas & fraturas de Affonso Henriques
Neto; Coxas e Abra os olhos e Diga Ah! de Roberto Piva; Mínimas de amor de Neysa Campos, Das tripas
coração de Ângela Melin; Às de colete e Os mystérios de Carlos Felipe Saldanha, entre outros. Messeder situa
Afonso Henriques Neto, Eudoro Augusto e Ana Cristina César como “autores independentes”, cuja trajetória,
formação acadêmica e literária e história familiar intelectualizada os aproximava da coleção Frenesi. Idem,
p.183-222.
60
Segundo Messeder Pereira, Ronaldo Bastos estudava história em dezembro de 1968 e participava dos
movimentos estudantis e do meio musical, quando, em razão do AI-5, viaja para a Europa, onde tem contato com
Torquato Neto e Milton Nascimento. Quando retorna, em início de 1970, decide cursar comunicação, quando
conhece a “turma do mimeógrafo”. Um outro braço da Nuvem Cigana se criou pela relação de Ronaldo Bastos
59
217
cumprir o papel de organizar a produção de mimeógrafo já existente e criar um canal de
atuação conjunta contra barreiras institucionais, dentro de um espírito de resquícios
contraculturais. Segundo Messeder Pereira, o clima de repressão, desbunde e desarticulação
da universidade provocara desorganização e perplexidade suficientes para que este grupo
buscasse viabilizar um novo tipo de “organização”, cuja característica central era congregar
diferentes tipos de pessoas com o objetivo comum de atuação criadora e coletiva. Tratava-se
de responder as perguntas sobre o que fazer e como canalizar a energia criativa de tantos,
diante dos impasses nacionais e do próprio estilo de atuação desorganizada do grupo. O ponto
central “era o barato [gíria para coisa boa] de reunir as pessoas”, diz Ronaldo Santos61, o que
aglutinou a editora de livros, almanaques, cartazes, calendários; as reuniões e festividades na
“casa do Silvestre”; o bloco de carnaval “Charme da Simpatia”; os jogos de futebol, no campo
do Caxinguelê (RJ), onde se realizavam “peladas” semanais; além da produção de festas de
lançamento em clima lúdico e leve, com atuações de artistas de diversos grupos e áreas, que
eram chamadas “artimanhas”, realizadas no Parque Lage, na Livraria Muro (hoje Dazibao) e
no MAM-RJ, entre outros lugares.
O estudo de Fernanda Medeiros procura resgatar no grupo uma “utopia da interferência
política por meio da poesia.”62 Marcados pela herança do modernismo e do tropicalismo
com Cafi, Jorge Ladeira, Ronaldo Santos, ligados à música, e Pedro Cascardo, Dionísio e Lúcia, recém saídos
das faculdades de engenharia e arquitetura, freqüentadores do carnaval carioca e que franquearam a “casa do
Silvestre” (bairro do Rio de Janeiro, próximo a Santa Teresa, a caminho do Corcovado) ao grupo. Cf. idem,
p.230-234.
61
Em depoimento a MESSEDER PEREIRA, idem, p.235. Após a edição de um cartaz do cantor Milton
Nascimento, o selo Nuvem Cigana – agora expressão do grupo, e não apenas de Ronaldo Bastos – publicou
trabalhos individuais e coletivos, como libretos marginais típicos, assinados por Charles (Creme de lua, 1975 e
Perpétuo socorro, 1976); Ronaldo Santos (Vau e talvergue, 1975); Bernardo Vilhena (O rapto da vida, 1975);
Guilherme Mandaro (Hotel de Deus, 1976); Chacal (Quampérius, 1977) e a revista Almanaque Biotônico
Vitalidade (n.1, 1976 e n.2, 1977), que brinca com a estrutura dos antigos almanaques farmacêuticos, misturando
com graça charadas, poemas, jogos, curiosidades, como mais uma forma de “artimanha poética”. Ronaldo Santos
já havia publicado Entrada Franca, em 1973 (não disponho de informações biográficas sobre o autor). Quanto
aos outros poetas do grupo, todos cariocas, Chacal (de nome Ricardo de Carvalho Duarte), nasceu em 1951, é
poeta e produtor de eventos culturais, entre os quais o CEP 20.000 que ocorre mensalmente no Rio de Janeiro
desde 1990, também editora a revista O carioca, desde 1996. Charles Ronald de Carvalho nasceu em 1948 e
desde 1983 escreve programas para a TV Globo, como Armação ilimitada, Malhação e a minissérie Incidente em
Antares. Bernardo Vilhena nasceu em 1949, foi fundador e editor da revista Malasartes, editor do Almanaque
biotônico vitalidade e da revista O carioca. Nos anos 80 compôs músicas (mais de 150 gravadas) e produziu
discos de MPB. Guilherme Mandaro, poeta e professor de cursinho pré-vestibular, nascido em 1951, iniciaria o
curso de história em 1971, abandonando-o no final do terceiro ano. Faleceu em meados de 1979, provocando
saudades no meio “marginal”, onde é sempre citado: “que não seja o medo da loucura que nos obrigue a baixar a
bandeira da imaginação”.
62
Segundo a autora, o repertório das artimanhas procurava manter um duplo compromisso: estético (mediante
jogos de linguagem falada, que elaboravam ludicamente o material fônico) e ideológico (buscando temas
inquietantes para o poeta e para a comunidade leitora/ouvinte, e concebendo o poema como crônica, manifesto
ou opinião política em geral sobre a cidade e o país). Estes, entretanto, são tratados como questões abertas, a
palavra poética é vista como um discurso livre, rejeitando as condutas panfletárias ou pedagógicas. Cf.
MEDEIROS, Fernanda Teixeira. Artimanhas e poesia: o alegre saber da Nuvem Cigana. Gragoatá, Revista do
218
(mais por sensibilidade do que por opção estética intelectual, cabe acrescentar), o grupo era
regido pela idéia de uma comunidade em festa que se queria um foco de resistência criativa
em meio à atmosfera repressiva, resistência esta que se daria pela força da palavra oral e pela
capacidade do grupo em gerar “novidade”. Teatralizando um “pacto de eficácia” com o
público – e neste ponto, diferentemente de Vida de Artista, é a eficácia da declamação poética
que é vista como resistência, e não sua negação –, o poeta desejava manter sua função social
enquanto poeta tout court, isto é, poeta de poesia falada que refaz permanentemente a
linguagem por meio do improviso e da co-autoria, na qual se inclui até mesmo o público.
Vendo a poesia de modo ambivalente, entre o banal e o solene, os integrantes da Nuvem
Cigana se identificavam no terreno do paradoxo, sustendo seu discurso entre “o grande e o
mínimo, o necessário e o inútil, a potência e a limitação.”63 Os dois seguintes textos ilustram
um pouco esta linguagem:
o que é o poeta
afinal dos novesfora?
nariz de platina
veias de pvc:
um coração à prova de choque
o que é o poeta
na fumaça
tragado por sentimento?
um ser só
silêncio
(Ronaldo Santos)
tô saturado de todos os códigos
de linguagem
de linhagem
tô com a língua seca
pra lá da cerca
enquanto o futuro do trabalho
continua sendo o salário micha
arrocho
sufoco
insegurança nacional
o fim da miséria
não é o fim da miséria
na calçada um lenço vermelho nega o cimento
(Guilherme Mandaro)
Este lugar tenso ou paradoxal da Nuvem Cigana, derivado talvez de posições diferentes
ocupadas por diferentes poetas dentro do grupo, permitia visões distintas sobre este, como a
de Heloisa Buarque, para quem a coleção não fazia mais da experiência do “sufoco” um
objeto de reflexão ou generalização, mas, ao contrário, a experimentava e traduzia na forma
de sensações mais imediatas, “promovendo antes perplexidade do que crítica conceitual”.
Primava uma postura muito vitalista e pouco reflexiva, marcada pela dispersão e
momentaneidade, numa atitude diante da vida em que o prazer, a espontaneidade e a
imediatez têm prerrogativa sobre a dimensão do futuro ou a perspectiva finalista. O poema,
extremamente próximo das circunstâncias, confunde-se com elas, é transitório e perecível,
perdendo seu teor de peça literária para se afirmar como registro e objeto transmissível. Em
Programa de Pós-Graduação em Letras/UFF, Niterói: EDUFF, n.12, p.113-128, 1° sem. 2002., citação da p. 114.
Em sua tese de doutorado sobre o grupo, Fernanda Medeiros trabalha com depoimentos recentes.
63
Idem, p.120.
219
decorrência, ao tender à supressão da metáfora transfiguradora da experiência64, criava-se
uma espécie de justaposição neutra entre os elementos do poema, próxima ao que Octavio Paz
havia chamado de “a nova estética da indiferença”, uma nova forma de rebelião jovem em
que se protesta “com um levantar de ombros”, em vez do grito ou do silêncio com que haviam
protestado as vanguardas. A autora completa:
É assim que essa poesia acredita na essência da energia pura, recusa programas e
qualquer tipo de eficácia de uma maneira aparentemente ilógica. E é natural que essa
nova postura rejeite sistemas coerentes. Ela é resultado de um estado de coisas mais
65
elementar: a descrença e o mal-estar.
A Nuvem Cigana foi acompanhado por outros novos grupos e suas coleções, que
fervilharam por todo o Brasil (como se pode constatar nos Quadros Informativos no
Apêndice), com uma linguagem variável, em um leque que ia da dicção mais cuidada de uma
coleção Frenesi até a oralidade mais extremada de uma Nuvem, sendo esta a tendência geral,
embora algumas se aproximassem até mesmo da forma concretista/pós-tropicalista66. Isto
indica que de diversos modos e com contradições, a intensa atividade cultural continuava. Em
meados da década, o surgimento de antologias poéticas gerando debates a seu respeito
evidenciava a força da poesia no cenário cultural. Em 1975, César de Araújo e Walmyr Ayala
64
Neste ponto, a crítica observa uma inclinação distinta da metaforização que foi destacada como tendência
geral da produção artística da época, que buscava “brechas” discursivas em meio à censura, conforme discutido
no cap.3, no item sobre as formas de resistência da linguagem. Foi este tipo de comportamento e tratamento da
linguagem que se tornou generalizado como poética “marginal” típica, recendo duras críticas que se entenderam
a todos os outros indistintamente.
65
HOLLANDA, Impressões de viagem, p.119. Para o restante, ver p.119-129.
66
Há uma lacuna, na literatura específica, acerca dessas muitas manifestações poéticas que se espalharam pela
Brasil na época, especialmente no que se refere aos grupos das periferias das grandes cidades. Heloisa Buarque
costuma repetir que divulgou e comentou aquilo que chegou às suas mãos, em grande parte material de poetas de
classe média do Rio de Janeiro. É visível, na obra crítica de Cacaso, que em determinado momento ele recebia
muita coisa para avaliar e que seria inviável dar conta de tudo,o que também se percebe no livro de Leila
Miccolis. Tentei iniciar uma pesquisa sobre alguns grupos menos conhecidos do Rio, mas é uma tarefa que foge
ao âmbito desta tese, cujo foco é a experiência histórica comum a todos com base em uma amostragem, e não
uma descrição geral. De todo modo, os Quadros Informativos anexos estão disponíveis para futuras pesquisas.
Mediante entrevista e troca de correio eletrônico com Paco Cac (Paulo Cezar Alves Custódio, poeta e professor
de literatura, nascido em Padre Miguel, RJ), obtive informações sobre a revista Gandaia, fundada em 1976 por
ele, quando entrou na faculdade de letras da UFRJ e decidiu fazer uma revista reunindo colegas da escola de
teatro Martins Pena e da própria faculdade. O primeiro número, com cerca de cem exemplares, foi editado em
mimeógrafo elétrico, de modo artesanal, “tudo muito precário, afinal a ditadura estava com seus coturnos sobre
nós”. As reuniões para editar a revista se davam na casa de Paco, no bairro de Ramos, onde também se reuniam
os organizadores do grupo Garra Suburbana. Entre 1976 e 1981 foram publicados sete números, com crescente
variação de colaboradores, entre os quais se destacam Luis Soares Dulci [hoje ministro e um dos criadores do
grupo Folha de Rosto], César Cardoso, os irmãos Rubens Figueiredo [hoje escritor premiado], Reinaldo
Figueiredo [do programa televisivo Casseta & Planeta, veiculado pela emissora Globo] e Cláudio Figueiredo,
Maíra Parulha, Lino Machado. Até mesmo Paulo Leminski, tão crítico dos “marginais”, chegou a colaborar. E
mais uma vez se manifestando em relação aos novatos, Carlos Drummond de Andrade escreveu uma carta,
elogiando a iniciativa e estimando que continuassem “com o espírito livre e pesquisador”. A frase citada acima,
segundo e-mail datado de 18 mai. 2007, consiste numa lembrança que revela a ligação, estabelecida pelos poetas
e sempre frisada, entre sua precariedade e o contexto ditatorial.
220
editam Abertura Poética, Primeira Antologia dos Novos Poetas do Novo Rio de Janeiro,
reunindo poetas não marginais. Estes seriam contemplados, naquele mesmo ano, em “Poesia
brasileira hoje”, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda na revista Tempo Brasileiro e
em “Consciência marginal”, por Eudoro Augusto e Bernardo Vilhena, na revista Malasartes
n°1.67 Em 1976, surge a antologia 26 Poetas Hoje, também organizada por Heloisa Buarque a
pedido da editora espanhola Labor, recém-chegada ao Brasil. Esta antologia, que
posteriormente se tornou clássica para os estudos da época, gerou muitas controvérsias acerca
do “erro” em que consistia institucionalizar aquilo que era para ser uma manifestação
independente, alternativa ou “marginal”, ou, inversamente, aquela poesia que era “ruim, suja e
sem qualidade”, expondo uma linguagem grosseira demais para tratar poeticamente dos temas
propostos, isto é, da experiência cotidiana do sexo, dos sofrimentos, das relações sociais, da
situação política nacional. Em posfácio de 1998, Heloisa rememora: “É interessante lembrar
ainda que a Antologia não foi recebida pacificamente. Um pouco, todos se irritaram:
imprensa, professores, críticos, poetas. A academia repetia, com uma insistência inexplicável,
que ‘aquilo não era poesia, era um material de interesse apenas sociológico’”.68
Inusitadamente, segundo a autora, aquela poesia, ao ser confirmada pela antologia, ocupava
inesperado espaço na imprensa e nos debates acadêmicos.
De fato, essa poesia adquiria crescente espaço na imprensa, especialmente no
Suplemento Literário da Tribuna da Imprensa (RJ), editado por Maria Amélia Melo, e no Em
Cartaz, de Curitiba (PR). Todavia, é a quantidade de novas revistas veiculadoras de literatura
que salta aos olhos: o fenômeno das revistas literárias de toda ordem, periódicas ou em
número (quase) único é uma das características centrais dos anos 70, especialmente a partir de
1974. Em recente trabalho, Paco Cac as inventaria (ver Quadros Informativos no Apêndice),
alocando-as entre os “vírus da intervenção” que se espalhavam pelo país naquela década,
como as performances, eventos etc., quando artistas, acredita ele, teimavam em driblar o
cerceamento da vida e abrir espaços em um “tempo de poucas (e rápidas) palavras.”69 Sua
67
68
69
Segundo MESSEDER PEREIRA, idem, p.221. A revista Tempo Brasileiro era de n. 42/43, jul./-dez. 75.
HOLLANDA, no posfácio à 4ª edição da antologia 26 poetas hoje, p.261.
Paco cita como epígrafe o conhecido texto de Leminski a respeito da importância dessas revistas como
principal expressão da poesia escrita na época, “O Veneno das revistas da invenção”, publicado na Folha de São
Paulo, 16 mai. 1982, Folhetim 278, p.3: “Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 70
não são gente. São revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromático de
uma Navilouca? A força construtiva de uma Polem, Muda ou de um Código? O safado pique de um Almanaque
Biotônico Vitalidade? A radicalidade de um Pólo Cultural/Inventiva, de Curitiba? A fúria pornô de um Jornal
Dobrabil? E toda revoada de publicações (Flor do Mal, Gandaia, Quac, Arjuna), onde a melhor poesia dos anos
70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada.” Cf. CAC, P.
Revistas literárias brasileiras, 1970-2005. v.1. Brasília: Stephanie, 2006, p.15. Para sua visão ver Apresentação,
p.11-16. As revistas são listadas também em HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, Poesia jovem..., p.6-7, que
221
opinião, que é ao mesmo tempo depoimento e memória, em virtude de sua ativa participação
no grupo Gandaia, traduz um sentimento então bastante comum e próximo ao que se viu na
Nuvem Cigana:
A edição de uma revista nos anos 70 era um ato de celebração à vida, uma forma de
juntar as pessoas num ato poético e político. O lançamento era uma festa, um
apronto, artimanha, ou uma intervenção como alguns chamavam na época. Trazia o
espírito de um happening. Um encontro onde a cumplicidade rolava
silenciosamente, num sorriso fraterno. A arte exercia essa força aglutinadora, com
todas as manifestações: música, teatro, cinema (Super 8), poesia, artes visuais [...]70
Com efeito, uma congregação humana, amistosa e festiva era percebida como um
evento de força política e reativa naquele contexto fechado e desagregador. Curiosamente, a
juventude, sob os influxos dos happenings da pop-arte, retomava aquilo que Antônio Cândido
chama de “tradição de auditório (ou que melhor nome tenha)” da literatura brasileira, marcada
pela importância do discurso em todos os setores da vida brasileira, pelo recitativo e pela
musicalização de poemas. “Se as edições eram escassas”, diz Cândido, “a serenata, o sarau e a
reunião multiplicavam a circulação do verso, recitado ou cantado”.71 Foi assim, em virtude de
públicos receptivos de auditores, que desde o romantismo a literatura penetrou melhor na
sociedade. Mas esta tradição traz problemas, pois os escritores se habituaram a produzir para
públicos restritos, além de depender da aprovação de grupos dirigentes, também reduzidos.
Isto, somado à maioria esmagadora de iletrados no país durante séculos, contribuiu para
impedir um diálogo efetivo do escritor com as massas, ou com um público suficientemente
vasto para substituir o suporte das pequenas elites afeitas à literatura, não por refinamento de
gosto, mas por certa capacidade de se interessar pelas letras. Em conseqüência, criou-se uma
tendência a uma escrita fácil ou uma “dificuldade fácil do rebuscamento verbal”, que se deixa
vencer logo, porém. Se este panorama principiou a se alterar na primeira metade do século
XX, com a atuação dos modernismos promotores de maior refinamento da leitura e da escrita,
as mudanças técnicas na comunicação, como o rádio, e a ascensão da massa de trabalhadores,
a partir dos anos 30-40, produziram um contrapé: ao lado das vanguardas literárias dinâmicas,
que atendiam às exigências de qualidade estética, a tradição de auditório se reafirmou,
mantendo a força da oratória, da melodia verbal, da imagem colorida, enquanto características
de uma literatura produzida para se falada e ouvida. Permaneciam “os caminhos tradicionais
da facilidade e da comunicabilidade imediata”, pois o aumento do público dava “maior
trazem ainda outro ponto do comentário de Leminski: “[...] Pequenas revistas, atípicas, prototípicas, não típicas,
coletivas, antológicas, representando um grupo ou tendência (‘formalistas’, ‘pornô’, ‘marginais’), onde
predominou a faixa etária dos vinte aos trinta anos. Em comum: a auto-edição”.
70
CAC, P. idem, p.16.
71
CÂNDIDO, A. O escritor e o público. In: Literatura e sociedade, p.76.
222
envergadura coletiva à oratória” e gerava uma espécie de “sentimento de missão social” nos
escritores, “que não raro escrevem como quem fala para convencer ou comover”72 – ou, podese acrescentar, para testemunhar.
Nesse sentido, a vertente “nacional-popular” dos anos 50 e 60 procurava, em seu
engajamento, simultaneamente usar e superar os recursos da tradição de auditório para tentar
dialogar com as massas, sem maior sucesso. Por sua vez, a poesia dos anos 70, fruto de
derrotas e desilusões, retomava intuitivamente esta tradição, apenas para manter abertas
algumas vias de diálogo, num tempo sem voz.
A importância da reunião, da confraternização e do auditório se torna mais clara quando
compreendida em contraposição ao processo fragmentador vivido sob a modernidade
autoritária, como uma busca de cicatrizar o cotidiano ferido por meio da mobilização de
aspectos diversos da cultura (o carnaval, o futebol, as artes, a festa), somando-os, sobrepondoos, como se na mistura de muitos princípios ativos se pudesse obter o elixir capaz de sanar o
desalento experimentado: “O futuro é uma ciência fodida pelo tempo/O presente é isso aí/O
passado é a gavetinha onde a memória brinca/de obra e Arte” (Isabel Câmara).73
5.4. Experiência cotidiana e subjetiva: uma resistência límbica
Vistos como um todo, os textos dessas antologias, coleções e revistas, enfatizavam a
vivência subjetiva como alicerce da crítica social. Recusando a poesia política meramente
retórica – do que as críticas de Cacaso a Thiago de Mello são um exemplo –, os poetas se
voltavam sobre o conteúdo de sua própria experiência existencial, em busca da matéria que
sustentasse a linguagem lírica e garantisse a vigência da práxis, compreendido o conceito
grego como junção de teoria e prática, o que significava, naquele momento, registrar,
denunciar e modificar o comportamento (pretensamente, em alguns casos) de acordo com
novos padrões ou padrão algum. O foco crítico-poético se transferia do plano das idéias para o
interior da vivência cotidiana, cuja dinâmica passava a ser crescentemente sentida também
como uma dimensão cultural-política a ser reavaliada, o que não deixava de ser uma herança
da proposta marcuseana de revolução cultural em sentido lato, e sua derrota.
No que se refere ao cotidiano, um ensaio de Agnes Heller contribui para situar melhor
os meandros em que andavam os poetas. Na sua concepção, a atividade prática dos indivíduos
só se eleva à condição de práxis propriamente se for “atividade humana genérica consciente”,
72
73
Idem, p.76-80, trechos citados p.80.
Probel/Problemas, de Isabel Câmara, In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.215.
223
isto é, quando o indivíduo conjuga a percepção de si à percepção de ser pertencente à
humanidade, conscientizando-se de que o homem é um ser genérico, “produto e expressão de
suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano”. Enquanto isto não
ocorre, não se supera a unidade imediata de pensamento e ação (que não é teoria, nem práxis,
que exigem mediações reflexivas) e a atividade individual é tão somente uma parte daquela
práxis desejada, que a partir do que é dado pode produzir algo novo, sem obrigatoriamente
transformar em novo o já dado. Essa “consciência” do humano-genérico sempre se constrói
pela comunidade à qual o indivíduo pertence, em cujas relações se vão constituindo suas
percepções do eu e do nós, sua assimilação dos costumes e normas do intercâmbio social, seu
aprendizado dos fatores e mediações do cotidiano. Contudo, a estrutura da cotidianidade na
vida moderna acaba por submeter o genérico ao particular, de modo que as necessidades e
interesses da integração social são postas a serviço dos afetos, desejos e egoísmo do
indivíduo. Assim, os elementos que compõem estruturalmente a vida cotidiana74 passam a
receber um peso maior da particularidade, ao que se soma um modo de pensar e conhecer
fragmentário, também característico da experiência diária.75 Pode-se dizer que isto atrapalha o
processo de “amadurecimento” para a cotidianidade, ou seja, o processo que ensina o adulto a
dominar a manipulação das coisas, da natureza e das relações sociais, que também se inicia no
grupo até que o indivíduo possa manter-se autonomamente no ambiente mais geral da
sociedade.
Se tal coisa não ocorre e se as formas necessárias da estrutura e do pensamento
cotidianos se absolutizam, cristalizando-se sem deixar uma margem de movimento, patenteiase uma dinâmica alienada, compreendida, já que a alienação sempre se dá comparativamente
a algo, em face das possibilidades concretas e presumíveis de desenvolvimento genérico da
humanidade. A vida cotidiana, diz Heller, é de todas as esferas da realidade aquela que mais
se presta à alienação, uma vez que a atividade humano-genérica, por si só muda e não
aparente, torna-se crescentemente inconsciente e baseada em motivações efêmeras e
particulares. De maneira geral, a arte e a ciência (mas não a moral) tendem a propiciar uma
elevação a um plano acima ou fora do cotidiano, embora não seja possível traçar uma linha
74
Heller elenca e analisa como elementos estruturais: espontaneidade, pragmatismo, priorização do econômico,
pensamento e conduta analógicos, juízo provisório e ultrageneralização, tendência à repetição mimética e
entonação (tom pessoal do sujeito). Para a abordagem do cotidiano, ver este trabalho da fase lukacsiana de
HELLER, A. Estrutura da vida cotidiana. In: O cotidiano e a história. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.17-41.
A publicação original é de 1970, o que aponta para a preocupação com a cotidianidade como uma temática de
época.
75
O pensar fragmentário, aliado à unidade imediata de pensamento e ação resulta na identificação aproblemática
entre o correto e o verdadeiro na cotidianidade, o que não se sustenta filosoficamente, mas surge como um dos
pontos subjacentes às dissensões críticas em torno da (não) resistência cultural, naquela época.
224
divisória rigorosa entre o comportamento cotidiano e aquele que não o é. O trabalho artístico
e o científico podem produzir objetivações extra-cotidianas duradouras, por serem capazes de
romper com a tendência espontânea do pensamento e a orientação ao individual-particular,
promovendo uma superação dialética (Aufhebung) da particularidade em direção à atividade
humano-genérica, ainda que o artista e o cientista sejam homens da cotidianidade e que toda
obra significativa tenha efeitos sobre o cotidiano de todos. Todavia, a ciência moderna pode
absorver a estrutura cotidiana ao se colocar sobre fundamentos pragmáticos, assim como a
arte pode ser absorvida se decide escolher efêmeras motivações temáticas e abstrair a
amplitude do humano. Neste caso, arte e ciência manifestam alienação, como sucede na moral
e na política quando reproduzem idênticos mecanismos.
A autora sublinha, porém, que a vida cotidiana não é necessariamente alienada como
determinação de sua estrutura, mas dependendo de certas circunstâncias sociais. Há uma
margem de movimento que permite ao indivíduo uma espécie de “condensação prismática” da
experiência humana, em que se superam as separações produtoras das formas alienadas. Em
alguns momentos, formaram-se constelações históricas propiciadoras disto, bem como em
todas as épocas existiram personalidades aptas a superar o abismo “entre o desenvolvimento
humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos”, entre a
produção da vida e a participação consciente do indivíduo nesta produção. Isto configura um
tipo de “resistência” que permite a certos indivíduos e/ou grupos ordenar a cotidianidade – o
que é um fenômeno nada cotidiano – e conduzir a existência ainda quando as condições
econômico-sociais gerais favoreçam o abismo da alienação.
Nos volteios das forças alienadoras e resistentes que dependiam tanto do grupo quanto
do indivíduo, da maturidade e do infantilismo, do particular e do genérico, da prática, da
teoria recusada e da conseqüente impossibilidade da práxis almejada, nos volteios da voz e do
silêncio, do cotidiano e da possibilidade de dar um salto “para fora” ou para um mundo
melhor, o lirismo se achava, se perdia e prosseguia. Em meio à crise econômica, inflação e
desemprego; à política ditatorial e à violência de Estado; à sociedade, em geral, também
violenta e impregnada de autoritarismo; à derrota dos projetos transformadores... a
experiência cotidiana dos anos 70 não era nada apreciável. As circunstâncias políticas eram
“experimentadas como fator de interferência e limitação da vida cotidiana”, sentida como
“absurda”, tal o grau de opressão que se colocava às inteligências e sensibilidades. O contexto
asfixiante não favorecia a desalienação, exigindo enorme empenho daqueles que buscavam
225
atualização poética e comportamental e acabaram realizando um certo tipo de poesia social,
mas de todo diferente do que se fazia nos anos 60.76
A resistência poética possível se restringia ao âmbito privado, onde teoricamente o
sujeito é proprietário de coisas e de si mesmo, mas pode ver-se objetivamente esvaziado de
bens e dons, como ocorre na “Propriedade privada” de Luis Olavo Fontes77:
não tenho nada comigo
só o medo
e medo não é coisa que se diga
A constituição intrínseca do sujeito como possuidor e mercador, inclusive de si, é
característica da formação do mundo moderno, onde a subjetividade se apresentava como uma
possibilidade de construção promissora, capaz de criar(-se) pensamento, ciência e arte, entre
outras formas e visões de mundo, como se observou no primeiro capítulo78. Que este sujeito
tenha sido circunscrito pelo medo, e nada mais, é indício de sua falência. Que ele seja ainda
capaz de dizê-lo é prova de que algo ainda se sustém, passível de espelhar o eu em uma
contraposição minimamente crítica. O fato de o medo não ser “coisa que se diga” implica
vergonha moral de se possuir apenas uma paixão temerosa que não se quer nem se deve
compartilhar, bem como reporta à idéia de um terreno incompartilhável que, reforçada pela
sugestão sócio-econômica do título, remete à vitória dos proprietários sobre aqueles que
pretendiam reformas estruturais, que nos anos 60 se denominavam lutas pelas reformas de
base. A derrota gerou propriedades mais concentradas e sujeitos impedidos do ato de partilhar
e, por conseguinte, do aprendizado da generosidade e racionalidade socialmente construídas
que isto exigiria. Mas a impossibilidade de dizer revela também, mais uma vez, um corte
traumático presente no sentimento expresso, reiterado ad infinitum por inúmeros poemas da
época que insistentemente retomavam a imagem do calar-se ou ser calado pela força das
76
Sobre a limitação do cotidiano e o teor social diferente da “poesia de tipo missionário e esquemático” dos
poetas engajados anteriores, cf. HOLLANDA, Introdução à antologia 26 poetas hoje, p.11-12 (grifo meu).
77
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.172. Quanto à redução da resistência ao privado, ver comentário de Costa
Lima, em Intervenções, sobre esta poesia que se pôs a salvar “o quarto dos fundos” após a casa incendiada, já
mencionado no cap.4.
78
A relação entre sujeito e propriedade burguesa, para além da coincidência de origem histórica, é um dos
pontos do trabalho de Marildo Menegat, que desenvolve este tema adorniano em diversos artigos, como
“Reconhecimento e violência”, onde se lê: “Nada é mais característico da alienação da essência da natureza
humana como potencialidade do que a concepção burguesa desta, centrada no axioma da propriedade privada
como princípio constitutivo inamovível que limita, inclusive, o desenvolvimento sensorial dos indivíduos,
reduzindo a esmagadora maioria da humanidade a uma existência embrutecida. Para cada um dos sentidos, a
vida em sociedade desenvolveu formas específicas de apreensão do mundo objetivo, humanizando-o através
dessas incorporações dos objetos ao seu modo de se relacionar com eles, desenvolvendo dessa forma suas
potencialidades, transformando e refinando em níveis cada vez mais elevados a sua existência. No entanto, esse
processo e seus resultados sempre foram historicamente apropriados de forma restrita [...]”. In: O Olho da
barbárie, p.239-240.
226
circunstâncias – vide a imagem do poeta como um “ser só silêncio” de Ronaldo Santos –, de
modo que algo que poderia ter sido revelado foi impedido, esquecido ou perdido, o que
demonstra ser o caráter daquela resistência cultural mais complexo do que talvez se costume
admitir.
A própria linguagem do silêncio não é tão simples, como sugere o trabalho de Eni
Orlandi, que, sob o foco da análise do discurso, trata a questão do ponto de vista lingüístico e
histórico. Perpassando profundamente o cotidiano, a língua pressupõe o silêncio, que é fator
estruturante da palavra, condição do ato de significar como uma respiração, “um lugar de
recuo necessário para que o sentido faça sentido”. Porque o silêncio é significante e fundador,
aquilo que estaria “fora da linguagem não é o nada, mas ainda sentido”.79 Quando há asfixia,
como no contexto em estudo, a respiração da palavra é atingida. Então, outra área da
dimensão silenciosa é acionada, aquela que Orlandi denomina política do silêncio, ou seja,
sua dimensão social e histórica, uma vez que o silêncio participa da construção social dos
discursos, dos diferentes sujeitos locutores e do que é dizível ou não dentro de uma formação
discursiva, dependendo da materialidade da língua e da história. Aqui também se divide o
silêncio em dois tipos: o constitutivo, elemento intrínseco das formulações historicamente
determinadas, isto é, das relações complexas dos sujeitos entre si e com seu tempo, de forma
que nos processos de significação da história há regiões de sentido que não se chegam a
formular, nem mesmo a reconhecer, estabelecendo-se um âmbito “historicamente nãodizível”, um não-significado como uma impossibilidade histórica; e um tipo de silêncio
pontual, local, a censura propriamente dita, na forma de relações de poder que agem sobre a
formulação e a responsabilidade sócio-política do autor; são sentidos historicamente passíveis
de serem ditos mas interditados, pois relações de força intervêm nas circunstâncias da
enunciação, proibindo traços que poderiam ser formuláveis ou ditos. Neste segundo caso, não
ocorre ausência de informação, mas interdição: a censura funciona em termos de “circulação e
de elaboração histórica dos sentidos, assim como sobre o processo de identificação do sujeito
em sua relação com os sentidos. Ela impede o trabalho histórico dos sentidos” e, por
conseguinte, de construção das subjetividades.80
Onde há censura, porém, há igualmente resistência, pois ambas trabalham na mesma
região de significação, como as duas faces de Jano. O silêncio imposto se torna “carregado de
palavras a não serem ditas”, que por esta mesma razão significam. A censura opera, então,
79
80
ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 3.ed. Campinas: UNICAMP, 1995, p.13.
Ibidem, p.110. A autora lembra que o termo interdição tanto significa proibição quanto inter-dicção ou entredizer (do francês interdire).
227
como um sintoma de que há outros sentidos ocultos e de que, ali, há um problema dos sujeitos
com o dizível. Desenvolve-se, assim, uma linguagem de resistência, caracterizada pela
contradição-transformação dos efeitos de sentido das palavras, indo além do senso comum, de
uma forma especial em que se diz o mesmo para dizer o diferente, ou seja, há uma reversão
do discurso oficial, sem negá-lo. As palavras passam a significar pelo avesso, como um duplo,
de forma a conseguirem “significar o que é preciso não dizer”.81 Estudando especificamente
formas da linguagem de resistência sob a ditadura militar brasileira que experimentou
pessoalmente, a autora relembra:
No momento em que a violência da ditadura era mais aguda e a censura já se tinha
instalado no cotidiano de todo brasileiro, formas muito variadas de comunicação e
de resistência se estabeleceram.//Eram os dias em que a tortura e a morte
ameaçavam qualquer signo que deixasse supor uma discordância com o regime
militar. Por medo, já havíamos introjetado a censura, isto é, cada um experimentava,
na sua própria intimidade, os limites do dizer.//No entanto, os sentidos proibidos
‘transpiravam’ por não importa que signo ‘inocente’. Formas de responder à censura
faziam sua aparição.82
A metáfora da transpiração dialoga com a da asfixia para compor a imagem da
resistência. Se não é possível respirar, transpira-se: analogamente, Orlandi destaca, no conflito
silencioso e feroz dos sentidos, procedimentos de deslocamento de significados (substituições,
repetições estratégicas, jogos de rima em “ura”/ditadura, anagramas, metáforas forçadas,
referências intertextuais, remissão implícita a autores de esquerda etc.), de modo que o
silêncio foi parte integrante do resistir, por estranho que pareça. Sob censura, a força dos
significantes recrudesce, aumentando o peso simbólico das alusões, pois “qualquer coisa serve
para significar, qualquer matéria significante explode os limites do sentido”. Por isso, os
sentidos proibidos migram para quaisquer outros objetos simbólicos possíveis, os quais, como
pontos de fuga para onde converge o dizível, podem assumir uma configuração estereotípica,
como decorrência da necessidade política. À guisa de ilustração, a autora recorda os seguintes
acontecimentos: o uso da cor amarela como símbolo de resistência; o dia em que se bateu
panelas em hora combinada, em todas as cidades do Brasil ao mesmo tempo, pois o ruído
adquirira um sentido especial em contraposição ao silêncio imposto; pelo mesmo motivo, se
fez o “dia do buzinaço” em Brasília, quando os carros buzinaram conjuntamente contra um
81
Idem, p.116. Para a dialética de censura e resistência, cf. pp.112-136. Considerações sobre as maneiras como a
poesia da década de 70 respondeu ao discurso oficial se encontram no cap.3, no subtítulo “No campo minado das
palavras”.
82
Idem, p.117-118. Note-se que neste trecho, que é um depoimento, Orlandi modifica sua dicção, que passa da
análise crítica ao teor testemunhal, lançando mão de metáforas e sugestões.
228
governante militar.83 Os sentidos silenciados vão significar em outros lugares simbólicos e de
modo surdo explodem, de vez em quando, em equívocos, contra-sensos, termos de mau-gosto
e anacronismos. A censura os transforma em manifestações deslocadas de resistência. Por um
mesmo processo enviesador, os excessos autoritários e silenciadores exacerbam a relação do
sujeito consigo mesmo, sua identidade, seus sentidos tão próprios.
Mas o mesmo efeito também é ocasionado, como observou E.P. Thompson acerca dos
poetas românticos ingleses, pela perversão dos ideais revolucionários, gerando trauma e perda
de esperança num mundo real comum a todos. A conseqüente decepção propicia aos sujeitos
se voltarem para dentro de si, em um movimento que tende a superestimular a sensibilidade e
o autocentramento, podendo contudo dirimir a inspiração poética. Derrotados os impulsos
mais generosos da cultura, notam-se nesta aquilo que Thompson chamou de uma confusão
romântica, em que se superestima a sensibilidade em detrimento do intelecto, porque se os
confunde com uma relação conflituosa entre educação refinada e experiência84.
Dinâmica semelhante se instalou na poesia brasileira da década de 70, provocando
controvérsias na crítica literária a respeito da eficiência política e estética daquele lirismo
“excessivamente” subjetivo. Na leitura de Hollanda85, o retorno à primeira pessoa, após os
anos de experimentação formal das vanguardas, retomando uma poética mais escrita do que
visual e que priorizava tematicamente a vivência da paixão e do medo, era capaz de constituir
uma resposta crítica aos impasses que haviam assaltado o início da década. Esta meia-volta
vivencial se definia como fator estruturante da nova dicção poética, cujo sentido crítico era
dado pela linguagem irônica, que lapidava com humor o sentimento de asfixia experimentado
diariamente.
Flora Sussekind, contrariamente, tende a ver uma redução do horizonte literário na
década de 70, posto que a literatura, sem dúvida interessada em resistir, veio desavisadamente
a escolher armas semelhantes às do próprio regime autoritário; no caso da poesia, os pactos
subjetivos de uma “poesia do eu”, centrada nas confissões pessoais e no registro de instantes
cotidianos, no tom de intimidade e trivialidade dos diários. A expressão da subjetividade se
sobrepõe à construção formal, e em alguns casos, à referencialidade nacionalista que
dominava a prosa, embora a experiência personalíssima limitasse a fronteira referencial dessa
poesia. Implícita na dicção confessional, a busca de cumplicidade e reconhecimento imediato
83
A autora não menciona as datas. Cf. idem, p.121-122. Citação logo acima, p.126. Os procedimentos de
resistência são estudados na obra de Chico Buarque, mas muitos se encontram também nos poetas marginais.
Para as linhas que se seguem, p.129-133.
84
Cf. cap.1, onde a discussão sobre a experiência entre historiadores inclui estas considerações de Thompson,
que se extraem do livro Os Românticos.
85
Esta visão perpassa seus diversos trabalhos. Ver especialmente Poesia jovem Anos 70.
229
pelo leitor levava a um maior diálogo com a mídia do que com a série literária. Isto porque a
memória, quer literária ou social, não é reverenciada por esta poesia, cuja dimensão temporal
é presente, dada pelos jogos fortuitos do acaso e dos instantâneos da vida. Flora alerta para os
riscos dessa poesia biográfico-geracional, marcada por uma “síndrome da prisão”, ou seja, a
tendência ao autocentramento solitário que, pensando falar contra a corrente, revive com a
estética personalista uma opção literária conservadora e pouco capaz de olhar criticamente o
país e de ampliar o horizonte artístico e político dos leitores, deste modo reproduzindo, ainda
que não intencionalmente, os efeitos da política cultural do regime autoritário:
Não é difícil, pois, entender a preferência pelos retratos falados do país [na prosa] e
da própria subjetividade em estilo abundante e ritmo oratório. Neles não se acham
em perigo identidades, nacionalidades, nem o próprio gesto de escrever. Neles falase de medos individuais ou coletivos, mas não se deixa que eles invadam o próprio
texto. A literatura-verdade, com suas certezas, pode falar de abismos, mas jamais se
debruça demasiadamente sobre eles.86
A questão a indagar é se já não se estava falando de dentro do abismo, fossem os
abismos da incerteza social, do trauma histórico, da alienação, do medo e tantos outros, de
modo que abismar a linguagem seria um esforço “a mais” que para – quantos? – talvez não
fosse possível ou factível. Por isso, Wilberth Salgueiro pondera “como exigir de tais poemas
preocupações formalistas ou até beletristas em plena barra pesada, para usar de uma
expressão de época? [...] Se a poesia nem sempre tem a história que merece, da recíproca não
se pode dizer o mesmo.”87 Aquela “poética do medo”, diz ele, precisava ser rápida para captar
o instante, porque, já dissera Benjamin, a imagem do passado reluz veloz e aquela poesia
tinha imperiosa fome de registrar seu tempo, como se a construir a memória de sua
experiência de reação.
Não se pode descartar uma “melancolia da impotência”, como nota Oehler, como força
literária produtiva, capaz de produzir até mesmo um boom, situação em que os sujeitos
retiram das limitações sociais certo alento para um fazer estético e intelectual que,
concentrando-se em seu mundo interior, pode vir a desvelar “as relações secretas ou as
correspondências entre o universo pessoal reduzido ao silêncio e o universo político a ser
reduzido ao silêncio”88. A linguagem subjetiva, então, funciona como um testemunho social
86
87
SUSSEKIND, Literatura e vida literária, p.114. Para a crítica da poesia, ver esp. “Literatura do eu”, p.114-147.
SALGUEIRO, W. C. Forças & formas, p.37. Grifo do autor. O jogo de idéias que o autor faz aqui não diferencia
a historiografia, que nem sempre faz jus à poesia, do processo histórico, ao qual as formas poéticas sempre se
correlacionam.
88
OEHLER, D. O velho mundo desce aos infernos, p.21.
230
da adversidade contextual. Como mostrou Adorno em “Lírica e Sociedade”89, esta busca de
subjetivação e mesmo de esteticismo, com maior ou menor dose de desespero ou inocência, é
um movimento típico da modernidade, uma reação ao mundo adverso, escondido pela crença
otimista no progresso, mas cuja sociabilidade é sentida como restritiva, decadente do ponto de
vista ético e impraticável para o sujeito que quer constituir-se em amplitude, gerando uma
dinâmica cultural – com muitas nuances e contradições, conforme o caso – em que a procura
da voz individual é parte mesma da corrente subterrânea coletiva.
A imagem da hidra, repetida em poemas e comentários sobre a época, traz uma carga
semelhante ao aceno do dedo cortado de Nicolas Behr, desvelando a grande dimensão de
violência e custo humano contida naquela resistência. A figura mitológica da hidra de Lerna,
serpente de sete cabeças que renasciam assim que cortadas, é símbolo antigo daquilo que
surge em meio à opressão e resiste a muitas investidas, mas no poema “Algazarra”90, de Ana
Cristina César, as diversas cabeças se reduzem a espiar receosamente a desordem em torno:
[...]
na cozinha
a hidra espia
medrosas as cabeças;
[...]
no ostracismo
desorganizo
a zooteca
me faço de engolida
na arena molhada do sal
da criação;
o coração só constrói
decapitado
e mesmo então
os urubus
não comparecem;
[...]
da tribuna
os gatos se levantam
e apontam
o risco
dos fogões.
A desorganização de papéis e funções, postos numa dimensão entre a natureza e a
cultura, entre a esfera íntima e a pública, mostra o grau de confusão, no sentido etimológico
89
O ensaio encontra-se na coleção Os Pensadores, já referido no cap.1. O raciocínio adorniano aplica-se à
dialética da cultura moderna. Mas Simon e Dantas consideram, com base em F.Jameson, que, a despeito dos
marginais pretenderem a plena realização do sujeito, típica da modernidade, acabaram criando uma voz quase
uníssona, mas anônima e massificada, marcada pela crise utópica e aderente à sociedade de consumo, o que os
aproxima da dinâmica pós-moderna (o tema será retomado adiante). Os autores também estabelecem uma
distinção entre os grupos marginais iniciais e aqueles do final da década de 70, que não teriam obtido realizar o
intento dos primeiros, como se verá adiante. Cf. SIMON e DANTAS. Poesia ruim, sociedade pior, p.101.
90
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.144-145.
231
dos fusos trocados, que se enfrentava em um mundo onde os afetos (corações) só podem ser
construtivos se violentamente separados (decapitados) das cabeças pensantes, os “gatos” –
raros, pode-se acrescentar – em sua astúcia esquiva preferem o risco de ter voz na tribuna ao
risco do aconchego privado, no calor dos fogões e cozinhas, onde as cabeças resistentes se
refugiam, também elas amedrontadas. Ana C., como também se chamou, apresentava uma
linguagem bastante elaborada, sui generis em seus “fingimentos”, caracterizando-se por um
tom confessional, mas não autobiográfico, isto é, entre a autora, o sujeito lírico e o leitor se
interpunham as famosas “luvas de pelica”; seus diários íntimos e correspondência pessoal
eram inventados, nada introspectivos, os sentimentos e emoções compartilhados na superfície
das coisas. Seu texto na forma de montagem mesclava o ritmo do pensamento e da fala, do
diálogo e do monólogo, língua portuguesa e estrangeira, cortes súbitos, mudanças de rumo e
pontuação; por vezes, uma escrita desbocada, usando termos chulos e obscenos, como a
“certificar a emancipação discursiva da mulher”, diz Santiago91. De qualquer modo, sua
dicção poética é toda circunscrita à dimensão subjetiva, o sujeito lírico mais “engolido na
arena” e propenso “ao risco dos fogões” do que talvez sua pessoa. Jogando ousadamente com
experiência e ficção, a poesia de Ana foi considerada hermética por alguns, ou ainda de uma
“afetação chique que disfarça, com elisões, silêncios e estilo, a véspera de grandes
desmoronamentos”92, como veio a atestar a forte depressão e o suicídio da poeta no início dos
anos 80.
As dores, indistinções e ambigüidades, nem sempre controladas pela consciência
autoral, resvalavam pelas mesmas frestas por onde se esgueirava a linguagem da resistência
cotidiana e poética, até mesmo porque não era fácil distinguir a mudança em curso de sentidos
sociais tão caros quanto o de revolução, (sub)desenvolvimento, humanismo, civilidade, que,
como já visto, sofriam inversões no discurso oficial com repercussões sobre toda a sociedade,
configurando o que se chama de trauma na linguagem e, conseqüentemente, na experiência da
leitura de mundo. Con-fusões e elipses traumáticas, porque não escolhidas e impronunciáveis
91
Para estas considerações sobre a linguagem de Ana C., ver Tentativa de pegar Ana à unha. de Armando Freitas
Fº, e A falta que ama. de Silviano Santiago, In: CÉSAR, A.C., op.cit., p.7-19 e 110-115, respectivamente. A poeta,
nascida no Rio de Janeiro em 1952, foi escritora precoce, manifestando-se literariamente desde a infância e, por
isso, achava que “desbundar’ era se livrar dessa aura, como revelou a Messeder Pereira, em Retrato de época,
p.191. Formada em Letras pela PUC-RJ, cursou mestrado em Comunicação na UFRJ, foi tradutora e professora de
língua e literatura brasileira e inglesa, com diversos trabalhos publicados. Suicidou-se em 1983, quando passava
por uma grande depressão, provocando comoção no meio literário “marginal”, já em dissolução. Objeto de
vários estudos acadêmicos, Ana teve o perfil de sua vida e obra pintado por seu amigo, poeta e atual professor da
UERJ, Ítalo Moriconi, que o faz dentro do seu contexto geracional. Cf. MORICONI, I. Ana Cristina César: o
sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Prefeitura, 1996. Também amigo, Armando Freitas Fº é o
curador de sua obra, por ela escolhido. Sobre a dimensão sócio-histórica do suicídio, ver cap.3 desta tese.
92
SIMON, e DANTAS, op.cit., p.104.
232
pela interferência da dor social, não estão ausentes do discurso lírico e do desejo de reação
política vigente à época93.
Na busca de uma expressão possível que cingisse esperanças e cindisse o gelo de um
processo de silenciamento e arruinamento, a poesia abria veredas com a faca de dois gumes
da individualização, da procura de sentidos para a experiência pessoal e de espaços para sua
expressão poética e irônica. Eram tempos de falar da vida comezinha, como se através dela se
pudesse transpassar um punhal de palavras, e de rir para não chorar, como se aprendera dos
sambas de antanho. Resultava disto uma dilacerante contradição entre o aprofundamento no
universo íntimo e a vivência do parco espaço público ainda restante, e, no que concerne à
linguagem, entre a dicção esteticamente elaborada mas acessível a poucos pares, a divulgação
massiva para público mais vasto e os silêncios de todo tipo, inexoráveis e escolhidos,
fenômeno que não se dava apenas com a poesia.
No ensaio “A Imaginação como elemento político”, Schwarz observa a existência nos
meios artísticos e intelectuais brasileiros de “sinais rápidos e fragmentários da sobrevivência
da razão política, e instâncias para não deixá-la morrer”. Encontravam-se tais sinais no valor
da imaginação intelectual concebida “na dimensão idiossincrática da existência pessoal”, da
qual deriva a “tensão de uma expectativa espiritual” de transmissão de conhecimento.
Note-se a aparência arcaica deste processo de transmissão, onde ocasionalmente e
pelas razões mais pessoais, sempre exigindo intensidade mental, um indivíduo
assimila alguma coisa de outro. Concebe-se algo mais marginal em face da
eletrônica e do grande público? Pois bem, uma das revelações implicadas nesses
testemunhos poder-se-ia resumir, justamente, na consistência e constância de
atuação deste processo antediluviano de influência e formação pessoal. [...] Se a
reflexão coletiva sobre o futuro e os caminhos possíveis esteve monopolizada e
esterilizada por uma organização prático-teórica de alcance tremendo, o que não é
exagero, a esfera da aventura pessoal seria o que resta, e apareceria como um
reduto onde garimpar manifestações não-falsificadas, embora idiossincráticas por
definição, o desejo social de homens vivos. O horizonte próximo é brasileiro, dado
pelos anos negros da ditadura na primeira metade da década de 70. [...] Neste
contexto, o recurso à linha interior do indivíduo designa e traz à consciência de uns
tantos uma força possivelmente capaz de competir, ainda que apenas no foro íntimo,
com as compensações do milagre econômico e do anticomunismo a que cumpria
sobreviver.94
O referido processo de transmissão, reduzido à relação entre indivíduos que insistem em
manter e trocar suas vivências, pensamentos e aprendizado, como um “desejo social de
homens vivos”, carrega sentido semelhante à preocupação de John Lennon em sua então
polêmica entrevista sobre o fim do “sonho”: “se você não transmite sua própria consciência,
93
94
A relação entre confusão e trauma foi discutida, com base em LA CAPRA, no cap.3.
SCHWARZ, R. A imaginação como elemento político. In: Que horas são?, p.52-54. [Grifo meu].
233
esta volta a se fechar”.95 Tais considerações nos remetem a idéias benjaminianas de formas
outras de experiência histórica, fundadas em relações sociais subjetivas e objetivas distintas
que, derrotadas nas lutas políticas ou solapadas pelos processos típicos da modernidade
capitalista, sobrevivem apenas como lampejos.
Segundo Martin Jay, a transmissão de sabedoria se dava, para Benjamin, na forma de
similaridades ou correspondências, no sentido de resíduos do passado que se mantêm
comunicáveis e funcionais para o futuro. Isto porque pressupõe a imersão em um mundo de
grande intensidade imanente, onde não há separação entre sujeito, objeto e julgamento – não
cabendo, portanto, a distinção kantiana entre juízo crítico e juízo estético – e onde há
correspondência entre experiência e conhecimento, ambos pautados pela multiplicidade, e não
pela uniformidade dos termos. Por isso, a concepção de linguagem burguesa, de teor
iluminista e instrumental, criadora de conceitos universais-unívocos, não basta, sendo
necessária uma linguagem adâmica, em que nome e coisa se equivalessem em sua pluralidade.
Como esta não (mais) existe, pois a linguagem do mundo, especialmente o moderno, é
inexoravelmente babélica, resta ou a melancolia ou o investimento em formas de
tradutibilidade. Esta é possível, a despeito da condição decaída da contemporaneidade, porque
o presente guarda o que foi perdido, mantendo-o cifrado, mas passível de decifração, desde
que se encontrem as ferramentas adequadas.96 É desde dentro da experiência corroída,
portanto, que a preservação de um fio de transmissão de experiência seria possível, embora
sem fórmulas preestabelecidas que garantissem seu bom termo.
Partindo da noção de empobrecimento da experiência em Benjamin, e de suas reflexões
sobre Baudelaire, Giorgio Agamben procura repensar o lugar da poesia na modernidade. A
cotidianidade moderna, dominada pelo que é comum e banal, destrói a experiência
95
Entrevista, já mencionada no cap.2, reproduzida no jornal Brasil de Fato, 12-18 jan. 2006, p.16.
Cf. JAY, M. Lamenting the Crisis of Experience (Benjamin and Adorno). In: Songs of experience, p.318-324 e
330. Para este autor, a questão da experiência em Benjamin se resolve nesta esfera especial da linguagem,
levando-o a desenvolver sua teoria da tradução, diferentemente da visão de Agamben, para quem a experiência
benjaminiana se refere a uma pureza primordial da in-fancia, isto é um momento pré-linguístico ou póslinguístico (a morte). Sem deixar de criticar as ambigüidades do conceito de experiência de Benjamin, Jay afirma
que, depois que ele passou a diagnosticar a crise e a focalizar no que foi perdido, suas reflexões ganharam uma
textura histórica e politica bem maior: “Benjamin foi capaz de enriquecer seu conceito de experiência para além
do reino das similaridades miméticas e doutrinas religiosas, de modo a incluir complexas explorações de
temporalidade, narrativa, memória, tradição, destruição, tecnologia, cultura de massas e a distinção categórica
entre duas versões da experiência, Erlebnis e Erfahrung.” [Benjamin was able to enrich his concept of
experience beyond the realm of mimetic similarities and religious doctrine to include complicated explorations
of temporality, narrative, memory, tradition, destruction, technology, mass culture, and the categorical
distinction between two versions of experience, Erlebnis and Erfahrung.], p.329. Ver uma discussão sobre o
empobrecimento da experiência no cap.4 deste trabalho.
96
234
autêntica97, uma vez que o homem moderno, após um dia inteiro, retorna para casa à noite
esgotado por uma quantidade de acontecimentos, divertidos ou insólitos, aborrecedores,
ordinários, alegres ou atrozes, mas sem que nenhum seja mudável em experiência, que
pressuporia uma forma de vivência cumulável e transmissível, como algo que se tem. Se
antigamente, diz o autor, era precisamente o cotidiano que constituía essa matéria primeira de
experiência, que cada geração transmitia à seguinte, hoje este lugar cabe ao extraordinário, ao
novo irrepetível e, conseqüentemente, a autoridade de uma experiência se funda sobre aquilo
que não pode ser experimentado e transmitido, como algo que se faz, mas não se tem mais.
Isto significa que há experiências, mas elas se efetuam fora do homem, e este, curiosamente,
se contenta em olhar, assistir.
É no quadro geral desta crise, diz Agamben, que a poesia moderna se situa, não se
fundando sobre uma nova experiência, “mas sobre uma falta de experiência sem
precedentes”.98 Esta falta é o que permite a produção do novo e do choque baudelairiano,
como uma brecha na experiência, a qual por definição protegeria o sujeito de surpresas. Põese então, em Baudelaire e a partir dele, uma situação paradoxal do poeta moderno, que aspira
a criar um “lugar comum” como uma obra corriqueira – o que, no entanto, só pode ser
produzido por um acúmulo secular de experiências, e não inventado pelo indivíduo. Na
condição em que o homem está, despossuído de experiência, a criação deste lugar comum a
todos requer uma destruição de experiência, sendo esta a nova morada do homem moderno:
“A estranheza conferida aos objetos mais comuns, para fazê-los escapar à experiência, tornase assim a característica de um projeto poético que visa a fazer do Inexperimentável o novo
“lugar comum”, a nova experiência da humanidade.”99
Imersos no seio desta dinâmica, alguns intelectuais e poetas dos anos 70 buscavam a
transmissão de conhecimento e experiência, de forma pessoal e paradoxal, como resistência
intuitiva a este processo que os colocava crescentemente na lógica da modernidade e suas
atrozes contradições. Em oposição à estranheza – como uma das características da poética
moderna, bastante valorizada pelas vanguardas brasileiras –, buscavam a dimensão do que é
97
“Nós sabemos hoje, no entanto, que para destruir a experiência não é preciso uma catástrofe: a vida cotidiana,
em uma grande cidade, basta perfeitamente para garantir este resultado em tempos de paz”. [Nous savons
pourtant, aujourd’hui, que pour détruire l’expérience point n’est besoind’une catastrophe: la vie quotidienne,
dans une grande ville, suffit parfaitement en temps de paix à garantir ce résultat]. AGAMBEN, Enfance et
histoire, p.24. para o restante do parágrafo, p.25 ss.
98
AGAMBEN, idem, p.75.
99
Ibidem, p.77:‘‘L’étrangeté conférée aux objets les plus communs, pour les faire échapper à l’expérience,
devient ainsi la caractéristique d’un projet poétique visant à faire de l’Inexpérimentable le nouveau “lieu
commun”, la nouvelle expérience de l’humanité. Les Fluers du mal, en ce sens, sont des proverbes de
l’inexpérimentable.’’
235
compartilhável. Aferrar-se à experiência cotidiana, ao lugar-comum ou a delicados processos
de transmissão de conhecimento e sensibilidade entre indivíduos era uma forma de reagir ao
que se desfazia, nestes tempos em que implacavelmente “tudo o que é sólido desmancha no
ar”. Não deixa de ser um desejo, ou necessidade, de partilhar a experiência de estar em pleno
processo de “diluição da experiência”, quando a fugacidade dos fatos e vivências passa a
sobrepujar a consistência e a intensidade. O “poemão” de Cacaso, os poemas compartilhados
de Ana C. e Ângela Melim, a transmissão de Schwarz, as festas da Nuvem Cigana, os textos
co-autorais de poetas e críticos, o empreendimento coletivo e artesanal das coleções e revistas,
os eventos e antologias diversas trazem todos esta marca. Até mesmo a linguagem grosseira, o
uso de termos de baixo calão e palavrões, como se viu com Orlandi, vinham no bojo dessa
hercúlea tentativa de criar o choque moderno e o comportamento inusitado, em que se quer
abolir o tabu da verbalização do sexo ou das funções orgânicas, ao mesmo tempo em que se
quer manter o fio da transmissão calorosa de experiências. Criava-se uma espécie de região
límbica, em que o chulo adquire carga semântica simultaneamente de negatividade e imersão
na cotidianidade, abrindo espaço para a encenação do obsceno, como diz Seligmann100, que é
próprio do teor testemunhal manifesto pela literatura de um mundo de feridas e cicatrizes.
Não eram tempos propícios a um amplo debate em que se pudesse buscar, coletiva e
dialogicamente, quais experiências manter e quais deixar fenecer; em que ponto localizar uma
resistência capaz de discernir que tradições merecem permanecer e o que deve ser mesmo
levado pelos ventos da modernidade. Não há chance de escolhas sociais tão claras e precisas
no olho do furacão dos processos históricos (isto exigiria um outro tipo de formação social,
uma outra história...), mormente em situações de fechamento político e censura à liberdade de
expressão.
O que se vê são experiências tateantes, sujeitos que se medem consigo mesmos e com o
mundo, como no belo poema “Meio metro”, de Zulmira Ribeiro Tavares, em que um homem
de meio metro de altura, mas que não se dobra nem reduz facilmente – “mas caminho
ereto:/sem quase exagero” e “Se meio-metro é medida pouca/Ao menos que seja vária” –,
constrói um relato lírico em primeira pessoa repleto de recuos, avanços e pausas como quem
move com dificuldade articulações ósseas, revelando todo o tempo a inadequação ao mundo,
redondo e sem arestas, do sujeito que nasce de ponta-cabeça contra a vida e vive bicudamente
100
A relação entre obscenidade e testemunho foi abordada no cap.3, a respeito de versos de Torquato Neto.
Pode-se associar em certa instância o chulo ao obsceno, no sentido da tentativa de encontrar expressões fortes
para dizer ou sugerir o que é humanamente abjeto e que não encontra na norma culta da língua – logo, na norma
“civilizada” – os termos adequados. Neste caso, seria próximo, mas não idêntico, às novas formas do sublime
descrito por Gagnebin: “Um ‘sublime’ de lama e cuspe, um sublime por baixo, sem enlevo nem gozo.” Cf. Após
Auschwitz. In: SELIGMANN-SILVA, M. História, memória, literatura, p.108.
236
insone. Instado a ter que contar (para dormir) o que é infinito, pergunta por palavras
qualitativas, ao que lhe retrucam: “‘Mas elas são tão improváveis!’/Impossível somá-las:
diluem-se.” Condenado à diluição da linguagem e a uma disciplina quantitativa e passiva que
lhe impõem as instituições médicas e religiosas – “‘Feche seus olhos e aguarde’ ou ‘É
orgulho’/diz o padre./‘O infinito não é para o homem’.” –, o sujeito lírico conclui pela
impossibilidade de ser compreendido e pela incomunicabilidade entre os que se conformam à
ordem e os que desejam um mundo diverso:
Mas há engano de perspectiva.
Sou muito difícil:
apesar de pouco.
Tive início quando nasci.
E até hoje não me refiz:
[...]
Mas não fui eu que a quis –
esta procura do longe.
Quiseram-na por mim os outros.
Escondidos.
Pergunto:
os outros que são
o mundo?
Estou só.
Nenhum laço.
Desatamento ao contrário. [...]101
O poema artrítico – cuja articulação entre sujeito estranho/mundo harmonioso e sujeito
reto/mundo estranho é ainda mais árdua do que a articulação entre ressonâncias de Cecília
Meireles e João Cabral, que a poeta logra realizar – retoma a imagem da solidão do sujeito
romântico como figura de resistência. Mas se trata de um modo de resistir diferente do que se
viu acima, pois “nenhum laço” existe para atar a transmissão ou a partilha de experiência. E a
sensação de desamparo se avoluma aos olhos do leitor quando este reconhece, como
provaram os eventos históricos, não haver resistência efetiva na solidão.
Em suma, nas palavras de Hollanda, tratava-se do “ethos de uma geração traumatizada
pelos limites impostos a sua experiência social e pelo cerceamento de suas possibilidades de
expressão e informação através da censura e do estado de exceção”.102 Aquela poesia,
intrigante por sua quantidade e qualitativamente repleta de traços curiosos e paradoxais – mas
sempre reivindicando um “claro direito ao dissenso”, diz Heloisa, por sua variedade de
estilos, projetos e crenças –, era em geral leve e bem humorada, porém seu núcleo central era
101
Zulmira Tavares, nascida na cidade de São Paulo, em 1930, tornou-se autora premiada, havendo recebido o
Jabuti, em 1990, de melhor autora e melhor romance, com Jóias de família. Não participou das coleções aqui
tratadas, mas seus poemas se encontram na antologia HOLLANDA. 26 poetas hoje. Ver o poema citado nas
pp.104-108.
102
HOLLANDA, Pósfácio. In: 26 poetas hoje, p.257. Este texto data de 1998.
237
grave, pois em cada poema, piada ou rima se pode encontrar “um elo da experiência social da
geração AI5, uma geração cujo traço distintivo foi exatamente o de ser coibida de narrar sua
própria história”.103 Como a possibilidade de “narrar-se” consiste em uma dimensão
fundamental de subjetividades, coletividades e mesmo do senso de humanidade, talvez seja
mais preciso falar, na experiência histórico-poética dos anos 70, em um ethos prestes a se
esgarçar e transmudar em pathos.
O conjunto de questões e ambigüidades da criação poética daquela década, vista como
um todo, revela uma experiência de forte reação, mais do que propriamente resistência,
embora esta estivesse certamente presente em algumas circunstâncias. Tais formas de
reatividade formaram o solo da “cultura marginal” daqueles anos, cuja história se moveu
menos pela racionalidade do que pela perplexidade, diante de uma dinâmica que se viu
impulsionada a se realizar à maneira de um “desatamento ao contrário”.
103
Ibidem, p.261.
6. A Espiar o Mundo: três ou quatro poetas e um punhado de questões
6.1. Chico Alvim: devoração do sujeito no espaço-tempo – mudança na relação com a
história
No poema “Com Ansiedade”1, de Chico Alvim, o entrelaçamento de espaço e tempo é
submetido a um movimento de distanciamento e afirmação do espaço:
Os dias passam ao lado
o sol passa ao lado
de quem desceu as escadas
Nas varandas tremula
o azul de um céu redondo, distante
Quem tem janelas
que fique a espiar o mundo
No primeiro terceto, o sol e os dias, portanto o ponto central de nosso ordenamento
cósmico e temporal e o fluxo cotidiano da história, lateralizam-se na experiência, passando ao
lado daqueles que se puseram em movimento descendente. A repetição do verbo “passar” e do
advérbio de lugar, bem como a rima sugerida entre “ao lado” e “as escadas” acentuam o
movimento de transitoriedade, lateralidade e declínio. Os sujeitos, deslocados e inominados –
só aparecem mencionados na forma pronominal indefinida “quem” –, não ocupam posição
central e não têm acesso às forças luminosas e ordenadoras do tempo humano, a não ser de
modo tangencial. Nesta posição ex-cêntrica, estão fora dos acontecimentos da história que se
passam sob um céu distante. O que poderia ser à primeira vista uma alusão à distância e
indiferença da natureza, transforma-se, pela adjetivação do céu na segunda estrofe, numa
proximidade com o mundo: redondo e azul, o céu tem as qualidades da Terra, conforme havia
sido recém-observado pelos astronautas, e rima com o mundo porque também tremula. A
distância se estabelece, portanto, não entre o céu e o mundo, mas entre estes dois e os sujeitos
indeterminados, cuja posição se esclarece no último dístico: sem rosto, nome ou centro, a eles
só resta “espiar o mundo”, observar o tempo da natureza e dos homens, se tiverem janelas
abertas para tal.
1
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.21.
239
Na quietude da cena simples e cotidiana, o sentimento de angústia pela impotência dos
sujeitos se deixa desvelar pelo título: a linha é tênue entre a contemplação, prazerosa e
frutífera para a reflexão e o amadurecimento, e a passividade dos que não podem ou querem
agir sobre o mundo e o tempo. A ansiedade aludida revela que esta tensão está carregada de
espera e impaciência, de modo que uma possível opção pelo contemplar quieto se transfaz no
tédio e inquietude característicos de quem está impossibilitado de agir, de fazer sua história,
que é sempre pessoal e coletiva. As mesmas imagens ressoam também em outros poetas,
como Chacal que transmuda o lamento em fato jocoso: “Quando o sol está muito forte, como
é bom ser um camaleão e ficar em cima de uma pedra espiando o mundo. [...] Se o inimigo
me espreita, me finjo de pedra verde, cinza ou marrom.” A sensação de um apassivamento
entediante se repete em “Só dos Terratenientes”2, que quase escamoteia a ironia do título sob
uma constatação taxativa:
não tenho nenhuma observação
a fazer sobre a vista da varanda.
nenhuma,
a não ser o céu largo e iluminado
dos subúrbios do Rio de Janeiro.
céu que se alonga ao longo do mundo inteiro.
não é de todo mundo a terra é q é redonda.
As imagens que reverberam entre os poetas e os poemas, traduzem o modo de
funcionamento do “poemão”, mas também trazem em seu bojo configurações de sentidos
dolorosos, comportando o teor testemunhal de um pathos geracional e histórico. O significado
do tédio tem sido discutido por numerosos autores em relação à experiência da modernidade,
em especial sob regimes políticos autoritários, quando a ação é cerceada. Sua presença é
marcante na poesia dos anos 70, em que Flora Sussekind pôde observar “o texto, a vida, em
ponto morto”, em ritmo lento, sem marcos de aceleração ou mudança discursiva, gerando a
impressão de uma repetição indefinida, à maneira de uma modorra, que por certa inércia se
assemelha à experiência de prisão, reitera a autora, mostrando a síntese disto no poema
“Diário” de Chico Alvim, de um só verso: “O nada a anotar”3.
2
Os poemas “Só dos Terratenientes” e “Como é bom ser um camaleão” se encontram em HOLLANDA, 26
poetas hoje, p. 217 e 219, respectivamente.
3
Cf. SUSSEKIND, F. Literatura e vida literária, p.128. Sua reflexão se fez sobre o poema “Cabeça” do segundo
livro de Eudoro Augusto.
240
Buscando traçar uma fenomenologia da experiência diária, Giannini Inignez4 considera
que a vida cotidiana na modernidade é marcada por uma circularidade topográfica – do trajeto
que leva da casa à rua, ao local de trabalho e de volta à casa – e temporal – figurada pelo
constante retorno da semana e do domingo, no qual se enquadram os tempos do lar, do
trabalho e dos encontros na via pública. Neste circuito repetitivo, tendem a se desenvolver
estados de espírito de lassidão e tédio, que degradam o modo de vida cotidiano em rotina.
Muitos versos brasileiros daquele decênio expressam o quanto este mecanismo é desagradável
e corrosivo, resumindo-se exemplarmente na imagem do veneno trazida por João Carlos
Pádua: “[...] Dia que sim/Dia que não/Ah, meu deus, que saco!/O ritual diário me
envenena/me liquida/e por vezes/me lança fora/de órbita [...]”5. Para o pensamento
existencialista, diz Giannini, esta é a experiência de um deserto não desejado e de uma
convivência desolada, na qual todas as relações são tangenciais, dificilmente convergentes,
restando apenas um encontro ilusório de vidas que são no fundo incomensuráveis, o que
configura uma vivência de profunda solidão, que a presença alheia vem menos suprimir do
que melhor realizar: “[...] como um planeta louco/em sua rota desconjuntada/pelos ovários do
cosmos”6. Na tensão que se estabelece entre os dois níveis de reflexo/reflexão, a circularidade
cotidiana e o pensamento especulativo, reside o “drama humano” de ser capaz ou não, ao ser
afetado pelo que se passa rotineiramente, de criar formas de experiência e discurso que
repitam a indolência, a solidão e o vazio ou, contrariamente, de pensar, explicar e encontrar
medidas comuns que tornem realmente co-mensuráveis as experiências e os sentidos
necessários à existência coletiva.
Mas as contradições desse processo e as dificuldades de encontrar a comensurabilidade
se dinamizam na experiência contemporânea, segundo a visão adorniana7, à medida que os
indivíduos percebem a aproximação da massificação do mundo e se horrorizam com seu
processo de absorção, diante do qual experimentam ao mesmo tempo o desejo de escapar e a
sensação de inevitabilidade. A noção de tédio que disto deriva pertence ao universo do
trabalho alienado acirrado pelo mundo burguês, onde, para os que trabalham, o tempo livre da
diversão e do lazer continua como reflexo do ritmo de produção imposto ao sujeito,
comportando sempre a sensação de uma promessa não realizada, pois o amanhã continuará
4
GIANNINI INIGNEZ, H. La reflexión quotidienne: vers une archeologie de l’expérience. Provence: Alinea,
1992, passim.
5
Poema do livro Motor, da coleção Frenesi, citado por MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.147.
6
Trata-se da continuação do mesmo poema de Pádua, ibidem, p.148.
7
Cf. ADORNO, Mínima moralia, aforismas 91 e 113, p.121-122 e 153, especialmente.
241
igual ao ontem, conforme confirmam, ritualisticamente, os dias de domingo. Para os que não
trabalham, por sua vez, detentores de instâncias de poder social, não são permitidas a
saciedade e a preguiça, dado que a fome e o sofrimento alheios se mantêm como espada de
Dâmocles sobre suas cabeças. Em geral levados a uma atividade febril e agoniada, que não
deixa de se tornar uma ostentação de seu privilégio, não experimentam o ócio8 como um
legado de felicidade, mas, ao contrário, vivem-no como um tédio, derivado da infelicidade
geral, do caráter da mercadoria e da brutalidade obrigada dos postos de comando, que trazem
ecos de deboche à sua satisfação e angústia diante da própria superfluidade. Se, por certo, o
tédio desapareceria em uma sociedade de liberdade realizada, vislumbra Adorno, sua presença
é constante no mundo inverso, onde então os sujeitos se põem em fuga de suas próprias dores
ou vazios psicológicos, em busca de sentidos mais consistentes para a existência e, neste
movimento, paradoxalmente se perdem de si mesmos. Vivendo sob a disciplina da sociedade
burguesa, que exige mais do que concede, os indivíduos desenvolvem uma desconfiança
quanto aos prazeres deste mundo, onde todo obstáculo é percebido como sofrimento. Todavia,
isto mantém os viventes ocupados em existir, de modo que a supressão dos obstáculos não
gera satisfação, e sim um tédio do qual procurarão se livrar como um fardo da existência,
matando o tempo na forma de um passatempo ou mesmo da própria morte. Não é de todo
fortuito, assim, que o primeiro livro “marginal” de Chico Alvim, da coleção Frenesi (1974),
intitule-se justamente Passatempo, apontando para esta dinâmica schopenhaueriana de fuga
ao tédio como um ritmo histórico, ao qual a existência individual se ajusta por inervações
inconscientes9, para além dos processos intelectuais de livre escolha.
Este ritmo histórico está profundamente vinculado aos processos de derrota de projetos
políticos e existenciais no seio das lutas sociais. O trabalho de Dolf Oehler10 chama a atenção
para a relação existente entre uma experiência histórica recalcada e a experiência cotidiana do
tédio, que encontra nas alegorias poéticas uma forma preferencial de expressão, cujos sentidos
apontam para o ennui como continuação do sofrimento vivido. Segundo este autor, Baudelaire
havia percebido que a impotência do artista era correspondência (no sentido benjaminiano) do
vazio/tédio da época, pois, ao contrário da visão hegeliana de um tédio produtivo, motor de
progresso, o que se viu na França após a derrota revolucionária e os massacres de 1848 foi um
tédio destrutivo, provocador de desejos de extermínio, como reflexo da patologia da vida na
metrópole, onde ademais a urbanidade degradada em banalidade social provavelmente
8
Para uma bela discussão do valor utópico do ócio e suas potencialidades na crise do capital, ver MENEGAT, M.
Utopias do ócio para depois do fim do mundo, agora. In: O olho da barbárie, p.311-351.
9
Cf. ADORNO, idem, p.122.
10
Cf. OEHLER, D. O Velho Mundo desce aos infernos, passim.
242
permitiria a repetição de catástrofes. Daí a visão baudelairiana da modernidade como
catástrofe permanente, turbilhão e inferno, e seu ar de dândi disfarçando o desejo de parar o
curso do mundo. Com rara lucidez – talvez única na literatura do século XIX, diz Oehler11 –
Baudelaire tentava compensar a irrupção da dor mediante uma apresentação dolorosa do mal
para o leitor, como uma experiência de choque terapêutico. Entretanto, se há leitores em que
se pode inculcar a razão, há outros imunes, tornados invulneráveis pela tolice, vacuidade,
indiferença, hipocrisia, sentimentalismo...12
O ceticismo, melancolia e tristeza de Baudelaire – que junto à ira compõem o
sentimento do spleen que lhe é característico – estão relacionados à percepção da
continuidade do estado de coisas vigente e da inutilidade ou impossibilidade da intervenção
transformadora naquele contexto de vitória de valores burgueses, modernizando o mundo à
sua imagem, sob a égide de um Estado autoritário. Na leitura de Benjamin, é esta
continuidade, como um eterno retorno do mesmo, que caracteriza o cotidiano e a história
como catastróficos13. Com efeito, o poeta, como homem moderno, também sofre a mudança
na estrutura da experiência espaço-temporal, dada a velocidade e efemeridade, que impedem a
“lentidão”, o trabalho de construção de nexos, a memória e a aquisição processual de
elementos que permitem a realização da experiência propriamente dita. Desolado – pois “não
há nenhum consolo para quem não pode mais fazer qualquer experiência”14 – o homem/poeta
sente-se imerso num tempo só quantitativo, uma sucessão de dias sem dimensão qualitativa. O
spleen, portanto, reúne a vivência de um estado depressivo em um tempo vazio, reificado e
sem história ou memória, mas agudamente percebido como (novamente o exemplo) nas
11
Cf. ibidem, p.283.
Ao analisar as conseqüências da experiência do choque na recepção da arte inorgânica, Bürger considera que
se quebra de fato a imanência estética e se inicia uma mudança na práxis do receptor, mas num processo
problemático, porque a resposta do público é indeterminada: pode não mudar seu comportamento; pode se
arraigar ao que é conhecido, reforçando o vigente; reagir agressivamente ao choque; ou ainda se acostumar e
esperá-lo, de modo que se perde seu efeito de experiência extraordinária pela repetição. Para o autor, a teoria do
estranhamento de Brecht seria, então, mais consistente. Cf. BÜRGER, P. Theory of the avant-garde, p.80. Marcio
Seligmann também discute a questão benjaminiana, observando que, sendo o choque intrínseco ao mundo
moderno, seus habitantes estão mobilizados para apará-lo e impedir o esfacelamento do eu, numa espécie de
vigília que também impede, por outro lado, a construção da experiência autêntica, na qual se conjugam
conteúdos do passado individual e coletivo, como no tempo orgânico do artesanato, da agricultura ou da viagem.
Isto configuraria uma história opressora, como um processo inercial de aniquilação constante, salvo se houver
um corte que o interrompa como um “freio de emergência”, nas palavras de Benjamin, mediante as revoluções e
o gesto correspondente do historiador/alegorista que cria imagens dialéticas. Cf. SELIGMANN-SILVA.
Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da memória, in: História,
memória e literatura, p.399-402.
13
“Que tudo ‘continue assim’, isto é a catástrofe. Ela não é o sempre iminente, mas sim o sempre dado”, diz
Benjamin, ao comentar o “eterno retorno” em Parque Central. In: Charles Baudelaire..., p.174. O trecho é
analisado por Seligmann acerca da concepção benjaminiana de história como catástrofe, pois para este, o
progresso e catástrofe são ambos o continuum da história. Trata-se de uma idéia conexa à da nota anterior. Cf.
Ibidem, p.395-399.
14
BENJAMIN. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire..., p.135.
12
243
sensações que acompanham os domingos. Baudelaire só não imerge no tédio porque ainda
dispunha, pensa Benjamin, de “estilhaços da verdadeira experiência histórica”, que o
permitem desenvolver a nostalgia de uma existência humana outra. O fato de possuir termos
de comparação trouxe um significado mais denso à sua intenção, à maneira de uma tarefa
heróica, de dar forma à modernidade15.
De modo geral, porém, no tempo da modernidade ocidental, vivido como contínuo mas
desprovido de processualidade histórica, os sujeitos se vêem alijados, pois “o indivíduo
moderno como que perdeu o bonde da história: ele ficou na estação, paralisado”, diz
Seligmann16. O tédio, então, pode ser compreendido como o sentimento de quem está
excluído do fluxo ativo da história, a sensação de uma defasagem em relação ao movimento
de todo o resto17. De modo análogo, o conceito de ennui surrealista se funda na idéia de um
vácuo, como explica P.Bürger, derivado da desesperança de se dar forma à realidade, uma vez
que para a arte não-orgânica, que trabalha fragmentos como signos desprovidos de
significação de totalidade, é impossível transfigurar sua própria falta de função social. Deste
modo, a expressão melancólica do alegorista ressoa sua relação com as coisas, em que se
alternam envolvimento e fastio pelo esforço de isolar, juntar e criar sentido para os
fragmentos de realidade isolados18.
Todo este conjunto de questões, relativas a sujeitos que se vêem crescentemente
defasados em relação à ação histórica e imersos na circularidade inercial e entediante do
tempo-espaço – logo, numa história catastrófica, em que não se dá o corte que permitiria a
espiralidade de uma superação dialética –, é revelado pela poesia marginal, a se considerar a
constância com que reitera as imagens de deslocamento de um centro ativo para um lugar ou
objeto (janela ou visor de uma câmera) de “espiar o mundo”: “[...] já não escrevo:/Filmo uma
Palavra Decomposta/Violenta/Amplificada//já não penso/Filmo uma Cena Esquizofrênica/
15
Para a tarefa heróica e os “estilhaços da verdadeira experiência histórica”, ibidem, p.79-80 e 137,
respectivamente. A “nostalgia do homem por uma existência mais pura, mais inocente e mais espiritual do que
lhe coube” acha-se em Parque Central., op.cit., p.171.
16
SELIGMANN, idem, p.397.
17
Cf. notas de Ítalo Calvino quando visitou a América do Norte em fins dos anos 50, em viagem marítima: “a
única coisa que se pode extrair desta experiência é a definição do tédio como uma defasagem em relação à
história, um sentimento de ter sido cortado fora com a consciência de que todo o resto se move” (A Bordo
3/9/1959), In: A visão mais espetacular da Terra. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 jul. 2003, Caderno Mais, p.6.
18
Trata-se de uma passagem em que Peter Bürger discute o conceito de alegoria em Benjamin, com base na
diferença entre arte orgânica e inorgânica (como a das vanguardas européias, em oposição às artes clássicas) do
prisma da própria produção estética. O autor acresce uma outra interpretação da alegoria benjaminiana, segundo
a estética da recepção, que também se aplica aos surrealistas: sua visão da história como declínio seria fatalista e
representaria uma naturalização da história [dados os processos de decomposição e morte da natureza], logo, sua
imobilização. Embora a questão seja instigante, não responde porém à indagação acerca de que tipo de
experiência histórica é essa que gera tal concepção da história como decadência? Ver BÜRGER, op.cit., p.68-71.
244
[...] /já não choro:/Filmo um Rio de Janeiro [...]” (Maíra Parulha)19. Benjamin já havia
observado, entre as diversas experiências da modernidade, o olhar característico do homem
privado, através da janela, com a eventual ajuda de um binóculo, que, como instrumento
correspondente ao posicionamento íntimo do usuário, participava da iniciação na arte de bem
observar quadros vivos. O mundo moderno se apresentava como um espetáculo tal que os
olhos precisavam primeiramente se adaptar20, e a modernidade brasileira não fugia à regra.
Mas a readequação do olhar consiste também na readequação da (in)ação sobre o curso
histórico. As principais vertentes políticas e literárias da modernidade ocidental discutiam o
papel histórico dos sujeitos sociais, entre eles os poetas, na condução do destino humano,
logo, da história. Se tal proposta já é grandiosa e difícil por si mesma, levando muitos autores
contemporâneos a criticaram a “arrogância” moderna, mais complexa ainda se tornava no
Brasil da década de 70, quando, sob ditames ditatoriais, o regime militar arrogou-se conduzir
com exclusividade a história nacional, pelas vias de uma modernização econômica tecnoburocrática, respaldada no capital estrangeiro, no controle dos movimentos sociais e culturais
e em uma grande violência de Estado, excluindo o cidadão civil dos processos decisórios. A
restrição da cidadania é acompanhada do arrefecimento, voluntário ou não, da ação histórica.
No entanto, esta experiência era por demais diferente da anterior, pois que os anos 60 haviam
sido vividos, nas palavras de Pedroso e Vasquez, como “um destes raros momentos na
história nos quais os cidadãos almejam superar a condição de figurantes da vida pública para
se arvorarem em legítimos protagonistas. [...] Um caminho que arrasta os artistas para a
agitação criativa das ruas, conduzindo-os para junto do povo e dentro da história.”21 A
intenção e a crença na possibilidade de imersão na história e atuação sobre seus rumos,
fortemente presente ainda em fins da década de 60 – quando estimuladas pelos movimentos
de maio de 68 e pela proposta marcuseana de revolução cultural libertária, do ponto de vista
19
Os versos pertencem ao poema que fecha a antologia Folha de Rosto, lançada em setembro de 1976, na
livraria Folhetim, RJ, reproduzido em MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.324.
20
Comparando um conto de Hoffmann com “O homem na multidão”, de Poe, Benjamin analisa diversas formas
do homem moderno se relacionar com a multidão, a qual, como experiência nova, típica da modernidade,
produziu a imersão do transeunte, a relativa tranqüilidade do flâneur, que ainda mantinha sua privacidade, e o
olhar do homem privado através da janela. Da experiência urbana de ver a multidão teria derivado a técnica, da
pintura impressionista e expressionista, de “captar a imagem no tumulto das manchas de tinta”. Cf. Sobre alguns
temas em Baudelaire, op.cit., p.121-123.
21
Trata-se da conclusão dos autores sobre o entusiasmo do público com uma exposição acerca da arte desta
época. Ver PEDROSO, F.E. e VASQUEZ, PEDRO K. Questão de ordem: vanguarda e política na arte brasileira.
Acervo, v.11, n.1-2, p.74-75. Um panfleto acerca da utopia e pedagogia do povo-artista, distribuído por artistas
plásticos em 1968 e recolhido por Fernando Morais em Cronologia das Artes Plásticas no Rio de Janeiro,
mostra o valor da atuação nas concepções da época: “A arte é do povo e para o povo. É o povo que julga a arte.
A arte deve ser levada à rua. Para ser compreendida pelo povo deve ser feita diante dele, sem mistérios. De
preferência coletivamente. Qualquer um pode fazer arte. E boa arte. Para tanto deve ver obras de arte. E
conversar diretamente com os artistas, críticos e professores.” Apud. ibidem, p.77-78.
245
político, econômico e existencial –, já se diluía contudo no decênio seguinte, como se vê no
sentido de inoperância que Chico Alvim imprime nos versos de “Um Homem”22: “As estradas
já não anoitecem à sombra de meus gestos/nem meu rastro lhes imprime qualquer destino”.
Aos que não se renderam aos argumentos ditatoriais, restava a angústia de existir
cerceado política e culturalmente, bem como a tensão de viver na “corda bamba” – conforme
sugere o título do penúltimo livro de poemas de Cacaso (1978) –, estendida entre a
impotência cimentada pelo Estado e o desejo pulsante de agir no e sobre o mundo. Entre um e
outro, um projeto de experiência humana e histórica latente, que não se pôde realizar em
plenitude – uma experiência lacerada e rasurada.
Afonso Henriques Neto, que em diversos textos discute sobre ou com a história,
constrói em “Simples narração” uma estranha atmosfera que vem a revelar essa laceração.
Mediante uma prosa-poética que podemos chamar de ácida, acerca de uma civilização
“suméria” simultaneamente passada e presente, próxima e distante, da qual tudo que se sabe é
que houve uma epidemia de gripe, como parecem indicar “certos sinais nas ruínas”, o texto
problematiza a verdade e a representação histórica. O sujeito lírico é um narrador inseguro,
desconfiado e desconfortável em sua função e existência, sensações que vão num crescendo
conforme ele desenvolve elucubrações historiográficas perspicazes e/ou irônicas: “Os peritos
no assunto poderão acrescentar milhares de páginas, mas desde já previno da inutilidade de
tais empreendimentos”. O próprio título chega a ser sarcástico para referir a ambiência
histórica, adoecida e mesmo mórbida, além de tristemente inexorável:
Não pretendo afirmar, porque além dos velhos livros se desfazerem em pó ao menor
vento, o texto é de tal modo obscuro que já não podemos saber se a História possui
alguma razão de ser, ou se simplesmente veio sendo reinventada por extensa cadeia
de razões adoecidas [...] O havido e o por haver estão de tal modo afastados do
presente (apesar de nele estarem contidos), que os sentidos se obrigam a permanecer
em contato sincrônico com essas avenidas imensas e vidros e luzes e metais acesos,
esquecendo-se por completo da infinitude e do mistério, diluindo-se assim em uma
existência insípida, ir e vir entre galpões sombrios, gado e carvão. [...]//a) estou
ferido mortalmente. nenhum médico, nenhuma medicina conhece minhas dores. é
amargo e sórdido estar aqui sentado, a pensar só na morte [...] nenhuma filosofia a
resgatar. se ao menos. mas os jornais, televisões, computadores estão narrando que a
terra se enche de bombas, as bombas se enchendo de espectros, que não há lugar
nem mesmo para um simples morto. [...] há um cemitério ubíquo, não importa o
assentimento ou a contradição. ou a revolta. [...]//O resto é muito pouco importante
(digo para abreviar, porque também não poderia ter certeza, já que tudo são
processos interativos). Resta pensar se entre os tais mortos da tal epidemia de gripe e
os tais mortos de tal epidemia de gripe (talvez ambas atômicas) foi estabelecida uma
qualquer hierarquia de valores (na hierarquia dos anjos?), algo que nos revelasse
alguma diferença entre todos os que pereceram de mãos dadas (bem sei que esta é
uma tarefa dos vivos, não dos insolúveis mortos a repetirem eternamente os mesmos
22
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.24.
246
atos). As possibilidades são inesgotáveis: incômodo o nosso ofício. Aproveitemos o
vento e trabalhemos no vento. Talvez ainda haja tempo de imaginarmos o mínimo
gesto, a mínima separação entre vento e vento (ou quem assim pensar talvez nunca
mais queira pensar e ande e ande sozinho no deserto). Os sumérios estão vivos como
a morte.23
Em um mundo de dores sem remédio, sem sequer lugar para os mortos e o luto, onde
tudo se repete (“a mesmíssima palavra é repetida na ameba e em andrômeda”) e onde, para
lembrarmos uma expressão adorniana, a vida se tornou tão danificada que há coisas piores do
que a morte (“ferido mortalmente. antes gostaria de.”), o ofício de narradores, historiadores e
poetas se mostra de fato, e no mínimo, profundamente incômodo em sua inesgotável tarefa de
encontrar sentidos para o absurdo da existência humana, tão frágil ante a violência dos
processos históricos. Haverá uma razão histórica, ou apenas uma razão patológica, em que
tudo não passa de invenções doentias em cadeia? O apelo pungente à diferenciação entre os
mortos do passado e do presente, cuja morte é trivializada sob o mesmo e banal diagnóstico
da gripe, ainda que a saibamos provocada por bombas atômicas, é um apelo à ação na e sobre
a história para que alguma coisa seja feita e explicada, pois se toda dor e toda morte são
iguais, não há possibilidade de atribuição de sentidos – seja no âmbito da experiência histórica
ou da historiografia –, logo, não há porque pensar, explicar, agir, ou mesmo viver24. Para que,
então, o tempo, o progresso histórico, a modernidade, se o horror e a morte se abatem ainda
sobre os cândidos e solidários, que ainda perecem de mãos unidas? Se a vida dilacera?... Da
força da morte dependem os sentidos da existência, como elemento fundamental da
experiência histórica.
A triste imagem do “cemitério ubíquo”, além de espacializar o processo histórico,
coloca-se como contraponto à imagem de um mundo plasmável e vivificado pela ação
fáustica, conforme a segunda parte do livro-poema de Goethe. Escrito entre o final do século
XVIII e início do XIX (c.1770-1831), o Fausto goethiano lidava com a mudança estrutural da
experiência histórica medieval para a moderna. Segundo a interpretação de Marshall Berman,
e muito resumidamente, tratava-se inicialmente de transcender a distância entre o intelectual e
a sociedade, ou seja, entre a cultura erudita em ebulição transformadora e o calor da
“experiência comum”, das relações sociais comunitárias e mantenedoras da vida material e
23
In: O Misterioso Ladrão de Tenerife, p.44-46.
Isto nos remete à desistência, como uma das reações ao momento histórico ditatorial, conforme mencionado
no cap.3. Vale relembrar os versos de Capinam ali citados: “se em tudo existe a própria máquina/pouco
acrescenta ir ou não ir.” A mesma sensação está presente nas indistinções traumáticas que podem gerar
comportamentos profundamente depressivos ou suicidas, pois se não há sentidos para a vida, tanto faz viver ou
morrer. Ver também a crítica de La Capra à total indistinção das formas de violência e morte, chegando à fusão
do sofrimento inesgotável com o júbilo extático ou o sublime, conforme se vê nos trabalhos de Bataille e Lyotard.
LA CAPRA, op.cit., p.99.
24
247
afetiva. Superar isto que Berman chama de “cisão fáustica” – característica romântica que
teve especial ressonância nos países subdesenvolvidos ou de Terceiro Mundo, em cujas
sociedades “atrasadas” os intelectuais portadores de cultura de vanguarda a viveram com
invulgar intensidade25 – requeria vender a alma ao diabo e imergir no universo da experiência
mundana, regido por paixões, aparência, dinheiro e pelas ingerências da dinâmica subjetiva.
Os sofrimentos e a morte de Gretchen (ou Margarida) anunciam que é impossível haver
crescimento em larga escala sem destrutividade, lição esta que Mefistófeles insistentemente
ministra a seu parceiro.
A dialética entre construção-destruição se desdobra na última parte, quando Fausto
abandona visões oníricas e teorias filosóficas em prol de um agir prático sobre o mundo,
modificando-o como legado para o futuro mediante programas concretos de desenvolvimento.
Movido por um espírito galileico, Fausto se transforma, de médico, filósofo, cientista e
professor, em engenheiro, planejador e empreendedor de obras titânicas que movem terras e
mares, em nome de benefícios coletivos, o que não prescindia de todo tipo de barganha
política, visto que para além do investimento de capital, estava em jogo o controle de
vastidões territoriais e populacionais. O imenso custo humano disto – “Sacrifícios humanos
sangravam,/Gritos de horror iriam fender a noite” – confere o caráter trágico da ação
fáustica/mefistofélica sobre a história. A síntese de pensamento e ação foi enfim realizada,
mas todo resquício do passado pré-moderno foi violentamente eliminado, menos por
necessidade do que por aterrorizar o voraz presente (como ilustra a morte do casal de velhos
que eram o sal de sua terra), e junto com ele se foi qualquer razão para o personagem
continuar existindo.
25
Cf. BERMAN, M. O Fausto de Goethe: a tragédia do desenvolvimento. In: Tudo que é sólido desmancha no ar:
a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1986, p.37-84, esp. p.44. Uma visão distinta é
apresentada por Ian Watt que, analisando as releituras contemporâneas do Fausto (esp. Doutor Fausto, de
Thomas Mann) como um dos “mitos do individualismo moderno”, considera haver ainda no Fausto goethiano
um alargamento de experiência humana e a crença numa harmonia cósmico-divina secreta, sendo Mefistófeles o
espírito cínico e destrutivo, ao passo que em Mann o ceticismo, jactância, irreflexão, irresponsabilidade social e
otimismo de Fausto impedem qualquer possibilidade de misericórdia – o espírito mefistofélico, aqui, é a tentação
odiosa do otimista romântico –, anulando possíveis esperanças históricas ou psicológicas, de modo que tanto o
destino coletivo quanto o individual estão tragicamente condenados. Os pilares do mundo moderno se vêem
desmoralizados, à medida que se violam os valores relativos às idéias de indivíduo, verdade, liberdade, lei e
razão. Cf. WATT, I. Coda: Reflexões sobre o século XX. In: Mitos do individualismo moderno. Rio de Janeiro:
Zahar, 1997, p.243-272. Sobre Fausto, p.243-251. Parece-me que o lugar ocupado pelos poetas marginais está
entre a promessa de alargamento da experiência individual-histórica, do Fausto goethiano, e sua corrosão no
individualismo irresponsável, conforme a leitura de Mann/Watt. Este seria mais um aspecto do teor difícil e
límbico de sua resistência, como tratado no cap.5.
248
Cego pela aflição, acalentando sentimentos ambíguos quanto a seu poder criador e
destruidor, dada sua profunda consciência egóica26, o Fausto goethiano condensa a estrutura
da história moderna e contemporânea, configurada como uma “tragédia do desenvolvimento”,
que perpassa os processos sociais, culturais, econômicos e políticos não apenas dos países
capitalistas desenvolvidos, mas igualmente dos subdesenvolvidos e dos chamados socialistas,
como outro modelo de modernização tardia e acelerada, principalmente após a Segunda
Guerra Mundial, quando a maior parte dos Estados passou a adotar políticas de intervenção. O
mecanismo trágico, avalia Berman27, reside no fato de o processo de desenvolvimento, ao
transformar a terra vazia em um fabuloso espaço físico e social, recriar o vazio no coração
humano, uma vez que, paradoxalmente, são corroídos os fundamentos éticos e humanizantes
do progresso: o horror trágico da ação fáustica decorre justamente dos seus objetivos mais
elevados e conquistas mais eficazes, cujas contradições na forma de sofrimento e morte são
inseparáveis do destino que se quer conduzir.
Intelectuais
e
artistas
brasileiros,
como
costuma
acontecer
no
mundo
“subdesenvolvido”, têm sua experiência fortemente marcada pela cisão fáustica28 e pelos
dilemas (pseudo)fáusticos29 do desenvolvimento. Neste caso, pôr-se a “espiar o mundo”,
priorizando uma postura mais contemplativa que ativa, significava um gesto de recusa dos
poetas em realizarem ou endossarem a ação que modernizava o país em moldes conservadores
e ditatoriais, e os sujeitos, em moldes egoístas e/ou cínicos. Talvez exprimisse “a inércia do
coração, a acedia” de quem, movido por um ímpeto de empatia com os despojos da cultura,
buscava desesperadamente uma imagem histórica que não fosse aquela estampada pelos
26
Para o homem faustiano como um individualista consciente e enamorado da dinâmica de Galileu, como padrão
do cientista moderno, cf. WATT, I., op.cit., p.269. Para o verso supracitado, mantive a tradução de Goethe por
Antônio Feliciano de Castilho (Jackson Editores, 1948) utilizada pelos tradutores de Berman para o Brasil. Cf.
nota, p.41. Quanto à cegueira de Fausto, ela foi causada pelo sopro, segundo distintas traduções, da Aflição,
Inquietude ou Ansiedade, remetendo à impossibilidade de estar calmo e contemplativo.
27
Cf. ibidem, p.67-71. Acerca da “tragédia do desenvolvimento” atingir também o socialismo, encontramos
crítica semelhante em Adorno que, no aforisma 100 de Mínima moralia, por exemplo, considera que os projetos
positivos do socialismo, em seu pretenso igualitarismo e suposição ingênua de que a elevação da produção é
desejável e necessária, assumem parte do espírito burguês, que só admite o desenvolvimento numa única
direção, porque, fechado em si e dominado pela quantificação, é hostil à diferença qualitativa. Cf. Op.cit., p.138.
28
Marcelo Ridenti retoma e desenvolve esta idéia para analisar a trajetória de alguns intelectuais e artistas
brasileiros sob a ditadura no livro Em busca do povo brasileiro, p.175 ss.
29
Berman chama de pseudofáustico o progresso relativo ou mesmo inútil, derivado de projetos estatais e/ou
particulares que não beneficiam a maior parte da população, derivando em sacrifícios vãos. Nisto reside o
próprio horror, e não uma dimensão trágica: “Mas o que torna esses projetos muito mais pseudofáusticos que
propriamente fáusticos e bem menos tragédia que teatro do absurdo e da crueldade é o fato doloroso [...] de que
eles simplesmente não funcionam.” [grifo do autor]. Ibidem, p.75. A crítica dos poetas marginais ao
desenvolvimentismo brasileiro é mencionada em diversos momentos das principais obras críticas da época,
especialmente em Messeder Pereira, Schwarz, Hollanda e Cacaso. Nos países latino-americanos a forte
vinculação entre desenvolvimentismo e populismo gerou as mais variadas críticas: políticas mas não
econômicas; econômicas mas não políticas; ambas; com ou sem vinculação com a cultura etc. (ou nenhuma!).
249
vencedores, como sugere Benjamin na 7ª tese sobre a história30. Todavia, apontava também a
dificuldade de dar conta do processo em curso, cuja escala superava o imaginável. À guisa de
ilustração, em 1973, o último ano do “milagre” econômico, o país obtinha uma taxa recorde
de crescimento, em torno de 14%; a classe média consumia e fervilhava, mas a desigualdade
social chegava para ficar31. Isto, ao lado das obras faraônicas, como por exemplo estrada
Transamazônica ou a Ponte Rio-Niterói, e de alguns dados demográficos, contribui para
demonstrar o impacto das transformações modernizadoras sobre a vida cotidiana: o país
ultrapassava a linha dos cem milhões de habitantes com taxa de analfabetismo de 33% e um
dos maiores êxodos rurais do mundo. Entre 1960 e 1980, o total de migrantes internos no
Brasil foi de 27 milhões de pessoas; somente ao longo dos anos 70, 40% da população rural
migrou para as cidades, configurando um processo de desruralização progressiva do país32,
cuja contrapartida foi o aumento desmesurado da população urbana, o hiper-inchamento das
cidades, a favelização e o adensamento da multidão, especialmente nas metrópoles.
Os efeitos desses processos se realizaram como verdadeira colisão sobre a experiência
espacial, cujas formas tradicionais de organização não os absorviam. As mudanças produzidas
pela existência da e na multidão já têm sido bastante estudadas, mas há ainda problemas a
explorar. Como argumenta Elizete Menegat, as formas hegemônicas de ordenamento e
apropriação do espaço no Ocidente tradicionalmente se dividem apenas em público/privado e
rural/urbano, de modo que os migrantes se vêem temporariamente fora do esquema geral, no
qual se devem encaixar quando chegarem a seu local de destino. Aqueles que não podem
fazê-lo por sua pobreza, e que consistem na grande maioria, tornam-se favelizados e, portanto,
continuam habitando um espaço não reconhecido socialmente, nem público nem privado,
30
Cf. BENJAMIN. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas I, p.225.
Cf. SOARES, P. 1973: o ano em que o Brasil cresceu 14%. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 jun. 2007,
Caderno Dinheiro, p.B-10.. Segundo os entrevistados, o economista Delfim Netto, o então ministro do
Planejamento João Paulo dos Reis Velloso e o professor de história econômica da UFRJ, Jacques Kerstenetzky,
tal crescimento se deveu ao planejamento governamental, cujas medidas foram facilitadas pelo caráter ditatorial
do regime (somente Delfim Netto discorda deste último ponto). O impacto disto só pôde ser visível muito
depois, como mostra este trecho de Schwarz nos anos 90: “o desenvolvimentismo arrancou populações a seu
enquadramento antigo, de certo modo as liberando, para as reenquadrar num processo às vezes titânico de
industrialização nacional, ao qual a certa altura, ante as novas condições de concorrência econômica, não pôde
dar prosseguimento. [...] Passando ao esforço nacional de acumulação, o que se vê são sacrifícios fantásticos
para instalar usinas atômicas que nunca irão funcionar, estradas que não vão a parte alguma, ferrovias imensas
entregues à ferrugem, edificações fantasmas que entretanto não se desmancham com as ilusões ou negociatas
que as tiraram do nada. Que fazer com elas?” SCHWARZ, R. Fim de século. In: Seqüências brasileiras. São
Paulo: Cia. das Letras, 1999, p.159-160.
32
Cf. CAMARANO, A. e ABRAMOVAY, R. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama
dos últimos 50 anos. Revista do IPEA, Texto para discussão n.621. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/>
Acesso em: 12 jun. 2007. A população rural em 1950 representava 63,8% da população brasileira total; 54,6%
em 1960; 44% em 1970; 32,4% em 1980; e apenas 22% em 1996. Os autores (pesquisadores do IPEA, resumindo
dados do IBGE) denominam o movimento das migrações nos últimos 50 anos de “esvaziamento da população
rural”.
31
250
porque fruto de posse ilegal, nem rural nem urbano, porque alocado em regiões periféricas33.
Uma grande parcela da população urbana, assim, tornou-se excluída dos padrões de
organização e percepção espacial, que determina o reconhecimento de direitos de cidadania e
os decorrentes direitos civis e políticos, além dos serviços básicos de saneamento, eletricidade
etc.34 O impacto disto sobre as relações cotidianas, no espaço das ruas, dos transportes, dos
ambientes coletivos e da luta política não encontrava correspondência no sistema de
referência de que se dispunha. Os conflitos decorrentes mal começavam e se estendem aos
dias de hoje.
Uma experiência análoga, no sentido de um grande movimento incabível para os
padrões de percepção subjetiva e organização objetiva do mundo, ocorria na mesma época no
que concerne ao contraste entre a amplitude da percepção cósmica do espaço – para a qual
contribuiu, como já mencionado, a televisionada chegada do homem à lua e as fotografias
tiradas pelos astronautas – e as restrições à liberdade de movimento e expressão impostas pela
ditadura. Um veio de poética cósmica perpassa obras tão distintas quanto a de Chico Alvim e
a de Afonso Henriques Neto, que tentam costurar as diferentes experiências espaciais,
produzindo por vezes efeitos de sentido desalinhavados. Sobretudo neste último (pois a dicção
de Alvim é, digamos, mais suave), primam efeitos de estranheza que se podem estender à
origem do universo e à história: “Tormentas siderais atadas ao teu pulso/demiurgo,/ao teu
vomitar o acaso/no lampejo de se gritar as dimensões [...]”35. A referência demiúrgica,
remetendo às mãos e vozes, divinas ou humanas, que agem e fazem e refazem o mundo, o
tempo e os destinos, é transfigurada em puro mal-estar: a criação é acaso vomitado, como
sugere a náusea sartriana36. Não mais herdeira dos aedos demiúrgicos, a palavra criadora do
poeta contemporâneo colide e dificilmente se concilia com a história, vivida sardonicamente
como um tempo tempestuoso e ilógico: “eis o nascimento do instante/ironicamente vertido
nesse vaso/sem tempo [...]”
33
Em recente matéria jornalística, uma moradora da favela Jardim Panorama, zona sul de São Paulo, recorda sua
chegada ao local nos anos 60: “Meu marido pescava lambari para o nosso almoço no rio Pinheiros, meus filhos
nadavam e caçavam preá nas margens. Essa rua toda era uma horta que eu cuidava, até que as pessoas foram
chegando do norte passando por dificuldades.” Hoje está sendo negociada a desocupação da área para a
construção de um shopping-condomínio. Cf. WAINER, J. e BERGAMASCO, D. Shopping dá R$ 40 mil para
morador de favelas se mudar. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 jun. 2007, Cotidiano, p.C-1.
34
Embora isto não costume atingir os poetas, por sua posição social, é uma situação muito próxima aos poetas de
periferia, além de gerar conflitos que atingem todas as classes sociais, até hoje não resolvidos. Acima de tudo,
produz uma mudança nas relações espaço-temporais em geral. Cf. MENEGAT, Elizete. Limites do Ocidente: um
roteiro para o estudo da crise de formas e conteúdos urbanos. Tese (Doutorado Planejamento Urbano e
Regional). IPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.
35
“Ser”, de Afonso Henriques Neto, em O Misterioso ladrão..., p.34-35.
Como observado no cap.4, as imagens de vômito e vazio são constantes na dicção de Afonso, especialmente
neste livro.
36
251
As relações espaço-temporais se modificavam intensa e rapidamente, e eram
experimentadas na disjunção entre sua amplitude e restrição, o que provocava profundo
descompasso nas sensações, sentimentos e operações reflexivas. Imersos neste contexto, os
poetas dos anos 70 se viam impedidos de resolver contradições objetivas e subjetivas de sua
experiência histórica. Esta angústia é traduzida por Chico Alvim no poema “Uma Cidade”37,
em que se estabelece uma relação tensa entre, por um lado, o diálogo transcendente com o
tempo e a tradição cultural, e por outro, a ocupação imanente-corporal e quase impotente do
espaço da cidade, culminando na devoração do sujeito em cômpito final:
Com gula autofágica devoro a tarde
em que os antigos me modelaram.
Há muito, extinto o olhar por descaso da retina,
Vejo-me no que sou:
Arquitetura desolada –
Restos de estômago e maxilar
com que devoro o tempo
e me devoro
A relação com a tradição literária-nacional dos anos 20, especialmente o movimento
antropofágico, propõe-se no jogo alusivo dos primeiros versos entre a voracidade autofágica e
os antigos modelos, o mesmo jogo que caracterizou a tradição iconoclasta que, a despeito da
contradição dos termos, marcou nosso primeiro modernismo – o que é sublinhado pela força
deglutidora do verbo na 1ª pessoa, por três vezes repetido no poema: “devoro”. Contudo, os
versos seguintes apresentam a diferença irredutível entre os dois momentos históricos: a nova
geração não pode ver como os antecessores, pois “há muito” o olhar necessário se extinguiu,
“por descaso da retina”, falta de treino ou hábito, e ela se vê nuamente em sua precariedade:
uma desolada estrutura construtiva (arquitetura), projeto ou edificação devastada (esta
imagem se aproxima do homem iniciado na medida do impossível, de Torquato Neto), e não
mais que restos do aparelho digestivo que seria necessário à realização da proposta cultural
antropofágica, apenas capaz agora de devorar o tempo e o indivíduo.
A inversão do mito de Cronos, devorar o tempo que devora seus filhos, exigiria a
faculdade da transcendência pessoal-espacial-temporal para lidar com a infinitude – o que não
se faz possível numa época e num contexto em que cercas e censuras, erigidas em nome da
modernização autoritária, impedem a liberdade de pensamento e associação, criatividade e
ação humana que havia significado a promessa espiritual mais dignificante da modernidade. O
37
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.21.
252
que se vê, ao contrário, é uma crescente tendência à espacialização, em virtude da postura de
inação contemplativa da paisagem ou uma ação presentificada, voltada para o aqui-e-agora
cotidiano, em que se achata a experiência do tempo, reduzida à imediatez, e a própria idéia de
atuação sobre o mundo se restringe ao “puro espaço”. Há, deste modo, uma espécie de
seccionamento da experiência histórica, que passa a ser vivida e pensada preferencialmente
em sua dimensão espacial, em detrimento da temporal38. A experiência espacial, entretanto, se
dava de maneira fraturada e tormentosa, marcada pelo incabível e pelo sem-lugar, como visto.
A espacialização do temporal, como um movimento característico da história quando se
transforma em ruína39, adquiria aqui esta faceta especial. Ao lado disto, a própria
subjetividade também se secciona, uma vez que sua constituição e maturação dependem da
relação com os três tempos básicos fundantes dos processos psíquicos e históricos. Não é de
estranhar, portanto, a fusão entre sujeito e cidade em uma metáfora orgânico-arquitetônica
que traz imagens de desolação e devoração, nas quais o humano se materializa, espacializa e
arruína, perdendo sua integridade e qualquer transcendência temporal ou espiritual. Reduzido
à mera sobrevivência biológica, a restos viscerais e espaciais, o sujeito histórico é
autodestruído.
Imagens próximas, com ligações intertextuais, reaparecem na “Aquarela”40 de Cacaso,
em que se descreve a pintura de “um pássaro que agoniza/exausto do próprio grito” e cujas
“vísceras vasculhadas/principiam a contagem/regressiva”. Seu sangue no chão “se decompõe
em matizes/que a brisa beija e balança”, como se numa refração prismática da luz sangüínea
surgissem as cores da bandeira nacional, às quais se associa a simbologia ufanística oficial (“o
verde – das nossas matas” etc.), revertida porém no final: “o branco o negro o negro”. A soma
38
Antônio Cândido já o observara em 1975, no debate do Teatro Casa Grande (RJ), já mencionado. Cf.
Vanguarda: renovar ou permanecer. In: Textos de Intervenção., p.215. Isto se confirma pelo teor da poesia que se
seguiu nos anos 80 e 90, com clara inclinação à abstração e à visualidade, como aponta o trabalho de Costa
Lima: “Da convencionalidade rotineira, do éter que enovela, anestesia e neutraliza o cotidiano salvam-se apenas
as coisas vistas em sua espacialidade. O resgatado é apenas o que cabe no mínimo e suspende o verbo.” Costa
Lima. Abstração e visualidade. In: Intervenções, p.169. Trata-se de capítulo em que o autor analisa quatro poetas
característicos dos anos 90, comparando-os com a poesia marginal para afirmar sua diferença qualitativa,
provando assim o quanto a poesia brasileira melhorou, apesar de tudo. O que é visto tornou-se mais importante
do que o olho que vê e o teatro mental do sujeito, diz ele, o que não significa a morte do sujeito nem o fim do eu
central, mas uma outra posição, em que de centro de convergência se muda para o lugar de parceiro das coisas
num mundo ambíguo; p.177-178. Mesmo que se concorde, esta afirmativa não elimina a existência da crise do
sujeito no Brasil dos anos 70, e estudos precisam ser aprofundados acerca do que ocorreu com os sujeitos em
geral, e os sujeitos poéticos, em particular, entre os anos 70 e 90. Acerca do seccionamento tempo/espaço da
experiência, trata-se de uma característica da modernidade; a prevalência do espaço sobre o tempo é que tem
sido apontada como uma tendência da crise da modernidade ou pós-modernidade. Cf. Harvey, D. A condição
pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993, p.258 ss.
39
Cf. SELIGMANN-SILVA, Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da
memória, op.cit., p.404. Item “a topografia e a arqueologia do tempo”.
40
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.40.
253
de todas as cores culmina em ausência de cor; o vôo livre do homem moderno brasileiro
declinou no obscurantismo dos anos de chumbo. De tudo, restaram as vísceras de fora, nas
quais não se podem ler augúrios, e a estampa de sua agonia, em tons nada pastéis.
Na retomada dos princípios modernistas, não parece haver-se desrecalcado o senso
trágico41 que seria agora, mais do que nunca, necessário para lidar com as experiências em
modificação, resultantes da ação fáustica que impulsionou o desenvolvimento nacional por
décadas e encontrava no regime militar seu ápice e crise. Mas faltam ao mundo
contemporâneo, e não apenas ao Brasil, as condições históricas e estéticas de uma arte capaz
de expressar a dialética da ação-destruição do mundo pelo homem, do viver e do morrer da
espécie; não se dispõe de imagens nem de palavras que “unifiquem com vigor suficiente a
vertigem e a espera”42 que isto significa, e só encontramos esta experiência manifesta em
pequenos fragmentos. Isto se explica, segundo Marildo Menegat, pela redução ou mesmo
extinção da força ativa do pensamento trágico, que ensinaria a lidar com o desamparo da
existência humana e manter a grandeza dos atos mergulhados na incerteza. Problematizando a
compreensão nietzschiana que deriva em inação – dada a idéia de que resulta inútil agir, pois
nada se pode mudar na essência das coisas –, o autor recupera o pensamento aristotélico, cuja
concepção de tragédia coloca o homem em um fio tensionado entre a natureza e a
humanidade, obrigando-o a confrontar-se com situações éticas e políticas, em que as escolhas
do indivíduo, em meio ao acaso e à sua própria limitação, têm que se ancorar no caráter e na
“capacidade de suportar a possibilidade do erro”. Um tal pensamento funciona assim como
um impulso à ação, pois “aceita o desafio de imortalizar-se na ação do indivíduo, ao invés de
mortalizar o indivíduo na sua abstenção da ação e na abstração da existência”43. Contudo, as
condições objetivas da modernidade em crise não permitem a produção de uma paidéia
[formação] para a coragem da escolha, nem tampouco um mergulho catártico do indivíduo na
excitação produzida pela arte, emergindo deste estado mais sereno e lúcido. Inversamente, o
domínio do capital sobre todas as esferas da vida produz um mundo de coisas que assolam o
indivíduo, reificam e mercantilizam as relações sociais e subtraem o poder trágico de, por
41
A respeito do recalque do trágico no modernismo que, no entanto, buscou desrecalcar elementos diversos da
cultura popular, ver o cap.3., onde também se discute a tendência antitrágica da cultura brasileira, com base na
obra organizada por Vecchi e Finazzi-Agró.
42
ARGULLOL, Rafael. O Fim do mundo como obra de arte, p.122-123. Diferentemente de Berman, Argullol
desdobra sua reflexão a partir de Nietzsche, afirmando que os grandes relatos trágicos, na linhagem do mito de
Prometeu ou do Apocalipse, ou do somatório de ambos na figura dual de Fausto/Mefistófeles, não são mais
possíveis na crise da modernidade, quando aquela “viagem inicial até os con-fins do mundo [...] se tornou
intolerável e impensável”. O teor inteiramente mítico e fadado à derrota de ambas as linhagens trágicas que ele
estabelece exige debate mais acurado do que aqui se pretende fazer.
43
MENEGAT, M. Depois do fim do mundo..., p.116.
254
meio da fruição da arte, conduzir o sujeito a investir nas potencialidades da existência humana
em oposição ao mero culto da autoconservação44.
No seio da cultura brasileira, tais condições vêm acentuar seu veio antitrágico e as
dificuldades de se lidar com a crise cultural, econômica e política que se vivia. Se a
elaboração desta dimensão trágica fosse possível, ela se daria coletivamente, na composição
de um ser social em que se compartilhariam os limites, as contradições e as possibilidades de
uma mesma condição natural e histórica, ou teria a grandeza de uma solidão fáustica, que
entre tudo poder fazer e tudo destruir, desfaz sua própria existência. Mas não era isto o que
indicava a tendência de “espiar o mundo” revelada pela poesia daqueles tempos. A
experiência da grandeza trágica, da dialética dos limites/liberdade da ação humana no mundo
e no tempo45, mítica ou não, estava impedida. Ainda que haja uma certa delicadeza no gesto
de recusa à ação fáustica – não se sabendo como agir historicamente em outros moldes,
melhor seria não fazê-lo –, a ausência de recursos trágicos aponta também para uma certa
imobilidade traumática diante da incomensuralibilidade dos efeitos do acelerado e
contraditório desenvolvimento nacional, da migração descomunal, da desruralização, das
metrópoles regurgitantes... Em uma (verdadeira) correspondência, Ana Cristina havia
resumido: “o meu medo me paralisa, sim. E tensiona os ombros e os pulmões. Verbalizo de
pura paralisia”46. Criara-se uma situação, como sugere Adorno, na qual os meios de
representação da dimensão histórica pela arte se tornavam exangues, uma vez que não era
mais cabível legitimar como humana e compreensível a desumanização da história, e que, por
outro lado, os efeitos de choque crítico da arte moderna não foram suficientes para
desmascarar o teor desnaturado da sociedade contemporânea, velado por fenômenos
complexos. Diante das aporias da representação, o que se vê então é a “tentativa desamparada
de tornar comensurável a incomensurabilidade”47, como é característico dos testemunhos,
traduzindo-se em figuras movidas a espanto e perplexidade. Os quais não estão ausentes, é
bom lembrar, nem da mais debochada ironia: “Coessarte tradicional!.../Mas qual...” (Carlos
Saldanha)48.
44
Cf. ibidem. As reflexões sobre a relação tragédia/ação são desenvolvidas especialmente nas p. 115-121.
O contraponto deste impedimento se manifestava no ideal de ação e na prática ativa da luta armada, e foi
também violentamente cortado.
46
Carta para Cecília, 14 de maio de 1976, reproduzida in: LEMOS, Renato. Bem traçadas linhas, p.455.
47
Seguindo o raciocínio de Adorno, os processos que afetam profundamente o sujeito, como a falta de liberdade,
podem até ser conhecidos, mas não efetivamente representados; a tentativa de fazê-lo por meio do elogio da
resistência heróica, como em certas narrativas políticas, acabou por discrepar de ações humanamente
comensuráveis, e a representação do “puro inumano”, que se mostraria como alternativa, furta-se no entanto à
arte justamente por sua enormidade e inumanidade. Cf. ADORNO, Mínima moralia, aforismas 94 e 103,
especialmente p.125-127 e p.143-144.
48
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.25.
45
255
O trauma detectado por Heloisa Buarque na geração impedida de se narrar49 não se
restringe, então, a uma coibição política, embora a inclua, mas envolve também a falta de
chaves expressivas que possibilitassem dar forma a uma experiência informe e
desproporcional. Não era absorvível naquele tempo – e se foi posteriormente é todo um
problema a discutir – o impacto das transformações em curso. Assim, não se pode descartar
que a linguagem dessublimada, desqualificada e desqualificante, a “sujeira”50 da poesia
voltada aos desimportantes eventos cotidianos, enfim, a in-formalidade em todos os sentidos,
seja uma avessa manifestação disto. Aquela poesia só pôde referir-se às condições de seu
tempo na forma de rasura: “mudo constante de olhos/botando as unhas de sangue e a
língua/apodrecida pra fora/das boas casas do ramo da história” (Leomar Fróes).51
Eis o que a poética de Chico Alvim parecia intuir, ao se tornar “marginal”. A solução
deste Chico foi ir-se compondo como “o poeta dos outros”, nas palavras de Cacaso, passando
a fazer o que Flora Sussekind chamou de poesia-para-várias-vozes52. Espiando o mundo, o
poeta se põe a coletar frases e vozes ouvidas na rua ou em provérbios populares, advindas da
“boca do povo” e as introduz nos poemas em sua forma de matéria bruta, sem lapidação –
“Não gosto de lá/me faz sentir pior do que sou”; “... Devo-lhe esta desculpa, Dr./... e se Platão
tiver razão?”; “A gente tem é que se acostumar”; “– Você quer um?/– Não, não adianta”; “E o
que vai beber o meu patrão? Uma caxambu”53 –, como se tentasse dar voz aos seus coetâneos
(des)conhecidos e silenciados e, assim, de algum modo resgatar uma experiência social em
suas múltiplas facetas diárias. Emerge daí um “Brasil sintomático”, considera Cacaso, onde o
poeta, como uma testemunha cheia de indagações e dúvidas, disfarça a autoria, e num gesto
cortês cede a vez e a voz para levantar indícios de tudo que diga respeito à experiência alheia,
que é a de todos. Como um vaso comunicante do convívio social, essa poesia porosa tematiza
em pedaços o universo brasileiro, com forte dose de uma desilusão duramente instrutiva, pois
49
Ver cap.5, a partir de comentário da autora no posfácio da antologia 26 poetas hoje.
Para o caráter proposital e estratégico dessa linguagem, como opção estética desse grupo, ver SANTOS,
Antônio Carlos. “De pássaro incubado a tico-tico de rapina: a poesia de Antonio Carlos de Brito, o Cacaso”, in:
PEDROSA, Célia. Poesia e Contemporaneidade, p.96.
51
Versos de “Descordenada”, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.202.
52
Cf. BRITO/CACASO. O poeta dos outros. In: Não quero prosa, pp.306-336. Trata-se de um ensaio inacabado
de Cacaso, também publicado em Novos Estudos Cebrap, n.22, São Paulo, outubro, 1988. E SUSSEKIND, Flora.
Seis poetas e alguns comentários. In: Papéis Colados, p.352.
53
Trata-se de diversos poemas, retirados da antologia de Hollanda, do ensaio de Cacaso e das obras completas
do autor: ALVIM, Francisco. Poemas [1968-2000]. Rio de Janeiro/São Paulo: 7Letras/Cosac & Naify, 2004,
p.224 e 296. Os exemplos deste tipo são infindáveis, incluindo, além da fala popular, conversas intelectuais ou
típicas de serviço público burocrático, dos tempos da ditadura aos dias de hoje.
50
256
ilumina sem consolar, retratando quase sempre situações em que algo se perde
irremediavelmente... 54
Minha voz escuta tua voz
dentro de meu corpo teu corpo
árvores
molhando meu sangue
me abre
À dissolução da experiência de ser ou sentir-se agente histórico – propriamente sujeito,
para além de objeto da história – Chico Alvim respondeu com esta coleção poética de
resquícios sociais. Não mais as “relíquias do Brasil” de Torquato Neto, mas seus cacos, que
cabe recolher como necessidade de registro e, portanto, construção de memória: “– Não, não
me lembrarei/O velho Nabuco tinha razão/lembrar é colecionar”. A despeito da negativa
contida nestes três versos, pois colecionar não significa uma memória viva, mas
“museuficada”, o restante do poema reafirma a recordação, desde o título “L’étoile aux
éléphants” até as referências literárias a Proust, Graciliano Ramos e Joaquim Nabuco55. O
poeta-coletor, à maneira do catador de trapos de Baudelaire/Benjamin, recolhe e remonta
restos, compondo imagens tensas a partir de fragmentos de vozes e situações sociais, que nos
oferece como pequenos lugares de memória. Nisto reside seu testemunho poético, aberto ao
historiador como uma cortesia56.
54
O intuito era de provocar o descondicionamento das cenas mais cotidianas, anônimas e próximas, denunciando
nelas o gesto social cristalizado, em que a regularidade do hábito costuma impedir o contato com o desamparo
ou a dor. “Na ausência dos hábitos estratificados, o fluxo da experiência aberta revela a precariedade de tudo, a
carência da vida e de suas perspectivas”, analisa Cacaso, observando porém que no precário equilíbrio cotidiano
retratado por Chico Alvim, “nenhuma conquista é integral; nenhuma degradação é completa”. Ibidem, passim. O
seguinte texto de Alvim, sem título, consta in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.23.
55
O poema, do livro Exemplar Proceder, publicado dentro de Passatempo/Coleção Frenesi, 1974, acha-se nas
obras completas, op.cit., p.291. Explica o título o fato de se atribuir aos elefantes grande memória.
56
Para lidar com as ruínas que sobraram das catástrofes do século XX, diz Seligmann, é preciso novas formas
historiográficas, que, coletando cacos, possam recompor imagens, carregadas de tensões. Isso requer a
incorporação do princípio de similaridade da memória, e de montagem, da arte, pela historiografia, para
capacitá-la a tratar do choque e do trauma, bem como manter seu poder de intervenção ética e política. Ver
SELIGMANN-SILVA, Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker..., op.cit., pp.391-418.
257
6.2. Cacaso: “o espantoso baile dos seres” na crise da modernidade – a condição
intervalar
Chama a atenção em Cacaso uma relação com o tempo-espaço bastante marcada pela
preocupação com os destinos das propostas civilizatórias, ou seja, com o que resultou no
presente daquilo que o passado erigiu ou intentou como progresso humano.
Neste seu diálogo com o tempo, não raro entretecendo o presente histórico da
modernização ditatorial às tradições românticas e modernistas, recorria a constantes
referências intertextuais, quer por meio da citação direta de versos alheios, quer por imagens
típicas do nacional-popular brasileiro, quer por brincadeiras com títulos, versos, formas
poéticas que se tornaram características de seus antecessores, como, por ilustração, nas
alusões a Mario de Andrade (“Há uma gota de sangue no cartão-postal”), a Gonçalves Dias e
Oswald de Andrade (“Minha terra tem Palmares”), Dante Alighieri (“O general acordou e eu
que sonhava/face a face deslizei à dura via”), além de Cecília Meireles, Carlos Drummond de
Andrade, Murilo Mendes... e das inumeráveis reverências ao mestre eleito Manuel Bandeira.
Mas o passado incessantemente retomado deságua quase sempre em irreverência
amarga ou irônica. As tradições romântica (do último romantismo) e sobretudo modernista se
haviam constituído em momentos de grande esperança nos benefícios da modernização e no
futuro da sociedade, marcadas pela preocupação e ativa participação dos literatos na formação
cultural-nacional57, incluindo a dicção popular. Haviam construído um projeto de tradição
nacional, embora o fizessem com um discurso iconoclasta que se concebia como fundador do
novo, ainda que a partir dos processos culturais de deglutição antropofágica. O mesmo se
mostrava imensamente mais complicado nos anos 70, menos pela atmosfera de iconoclastia
contracultural do que pelo fato de o Estado ditatorial se assenhorear do processo de
construção de tradições nacionais58, institucionalizando e oficializando-o, e conseqüentemente
sufocando as vias alternativas. Estas ainda teimavam em denunciar, sob a oclusão política, a
contradição deste nacionalismo com a abertura da economia e da cultura nacional ao capital e
interesses estrangeiros, em especial dos EUA, e mantinham o cabo-de-guerra, negando-se a
“entregar” as tradições nacionais-populares à ditadura59.
O sentimento do poeta pelo que se tornava a modernização no país, tão decantada pelo
romantismo e modernismo brasileiros desde fins do século XIX, traduz-se no pequeno poema
57
Cf. CÂNDIDO, Antonio. A formação da literatura brasileira. Belo horizonte: Itatiaia, [1984].
No sentido que lhe dão HOBSBAWM e RANGER. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
59
Os problemas político-estéticos do Conselho Federal de Cultura, analisado por R. Ortiz (cf. cap.3), do
tropicalismo e das difíceis formas de resistência (cf.cap.5) abarcam esta questão.
58
258
“E com vocês a modernidade” que recompõe o clima romântico vulgarizado para arrematá-lo
com um profundo suspiro no último verso:
Meu verso é profundamente romântico.
Choram cavaquinhos luares se derramam e vai
por aí a longa sombra de rumores e ciganos.
Ai que saudade que tenho de meus negros verdes anos!60
Talvez um dos versos mais conhecidos de Cacaso, esta distorção paródica de Casimiro
de Abreu61 pode ser lida em três círculos concêntricos, como um triplo lamento que se amplia,
conforme a significação que se atribua aos “negros verdes anos”: a) do círculo da experiência
pessoal: a mocidade perdida do sujeito individual; para b) o círculo mais largo da experiência
nacional: os projetos românticos de nacionalidade perdidos pelo sujeito-social, pois apenas
existem agora como uma tradição que só pode ser retomada como memória irônica de um
passado de impossível atualização, uma vez que a potência edificadora de uma ampla
experiência de formação social se perdeu com a apropriação e deformação dos sentidos de
identidade pela ditadura militar62; e para c) o círculo de experiência ainda mais largo, referido
na apresentação teatralizada do título: a modernidade, em sua longa duração, perpassando de
modo subjacente toda a história ocidental.
Residem aqui as três durações da experiência histórica63 que se cruzam, em cada
momento da história, nas vivências de cada indivíduo, pois estes têm, ao longo de sua vida,
experiências que são alternada ou simultaneamente: a) estritamente subjetivas, no sentido de
vivências pessoais intransferíveis, psíquicas e familiares; b) geracionais, posto que as
gerações se delineiam, mais do que por um corte biológico, pela força dos eventos políticos
que marcam os indivíduos e aos quais eles respondem; c) um acúmulo de experiências do
passado, cuja transmissão permite a formação de tradições, mantidas na forma de memória
coletiva. Estas três durações da experiência correspondem aos três círculos de experiência e
lamento presentes no poema de Cacaso.
Em todos, o verdor das energias e sonhos iniciais (verdes anos) é obscurecido pela
sombra das derrotas revolucionárias e dos obstáculos econômicos, ideológicos e políticos que
60
“E com vocês a modernidade”, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.42. Pertence ao livro Beijo na boca/Coleção
Vida Artista, 1975. Reproduzido nas obras completas de Cacaso: BRITO, Antonio Carlos. Lero-lero. Rio de
Janeiro/São Paulo: 7Letras/Cosac & Naify, 2002.
61
No poema “Meus oito anos”: “Oh, que saudade que tenho/Da aurora da minha vida/Da minha infância
querida”... Este poema é sempre citado em antologias de poesia romântica brasileira e manuais escolares.
62
Como já dito, a questão é vasta, incluindo também o controle da educação no país (cf.cap.4). Para as disputas
na linguagem, ver item “No campo minado das palavras”, cap3. Para a memória irônica, dada a impossibilidade
de atualizar a tradição, cf. SANTOS, Antonio Carlos, in: Pedrosa, op.cit., p.88.
63
Cf. KOSELLECK, R. L’expérience de l’histoire. Ver cap.1, onde se apresenta a concepção do autor sobre
experiência histórica; as durações (curta, média, longa) são trabalhadas a partir de Fernand Braudel.
259
impedem a plena realização de sujeitos e sociedades melhores (negros anos). Breve como o
poema, a suma da modernidade brasileira é a saudade de uma sorte de existência que não se
concretizou. “Toda felicidade é memória e projeto”, sintetiza o último verso de “Cinema
mudo”64, que, à maneira agostiniana, atribui o tempo de ser feliz ao passado ou ao futuro,
visto que o presente não existe...
Entrava em pauta a discussão sobre o fim do otimismo moderno, que concebia a história
como um progresso contínuo daquelas condições materiais e simbólicas que permitiriam à
espécie o domínio sobre a natureza e o conforto de uma existência segura. Estas condições,
entretanto, jamais estiveram eqüanimemente distribuídas por todas as nações e classes,
concentrando-se em determinadas áreas e nas mãos de determinados grupos sociais, de modo
que as promessas do progresso e da modernidade – nas formas sistêmicas em que os
conhecemos, do desenvolvimento capitalista, do dito socialismo real, da social-democracia
mediadora entre ambos, e dos desdobramentos tecnocráticos e totalitários de todos eles –
nunca foram vividas regularmente. Formado em Filosofia e assíduo leitor de Antonio
Cândido, que citava com freqüência em seus escritos críticos, Cacaso bem conhecia, e na
própria pele, como habitante do “Terceiro Mundo”, as derivações problemáticas do
Iluminismo, especialmente em sua rota versão latino-americana65.
A impossibilidade dos filósofos clássicos darem respostas à experiência contemporânea,
cuja irracionalidade intrínseca tornava impotentes as formas tradicionais da razão, exigia
novas formas de pensar, sobretudo em países como o Brasil, cuja história cultural, desde os
primórdios, apresentou características tão específicas e arrevesadas em relação aos ditames
filosóficos europeus. O olhar acurado para esta questão foi traduzido em um poema-terceto
cujo título é hilariamente maior do que ele próprio, à moda das obras portuguesas
renascentistas: “Pré-história contemporânea periférica ou ninguém segura essa América
Latina ou os impossíveis históricos ou a outra margem do Ipiranga”: “Jamais mudar pela
violência/mas manter pela violência:/morte ou dependência”66... Não há tratado lógico ou
metodológico que possa esquematicamente dar conta do tipo de dinâmica político-cultural
“dependente” dos países de capitalismo periférico, onde as disputas de poder e os sentidos de
liberdade, individual ou nacional, jamais seguiram critérios iluministas. Estes, mesmo para o
mundo europeu, já se desvelavam inconsistentes após as catástrofes do século XX. Assim, o
64
In: Lero-lero, p.162. O poema pertence ao livro Grupo Escolar/Coleção Frenesi, 1974.
Cf. CÂNDIDO, A. “Perversão da Aufklärung”, in: Textos de Intervenção, pp.320-327. O tema foi tratado no
cap.4.
66
In: Lero-lero, p.156. Poema pertencente ao livro Grupo Escolar/Coleção Frenesi, 1974. “Ninguém segura esse
Brasil” era frase de uma das canções ufanísticas propagandeadas à época pelo Estado ditatorial.
65
260
poeta põe Kant, enquanto figura-vértice da Ilustração européia, a dançar como seus juízos
epistemológicos, estéticos e morais nunca fizeram:
você sabe o que Kant dizia?
que se tudo desse certo no meio também
daria no fim dependendo da idéia que se
fizesse de começo
e depois – para ilustrar – saiu dançando um
foxtrote67
Revertendo o sentido iluminista, pela ambivalência do verbo “ilustrar”, o poeta
desconfia – não somente que o iluminismo não acaba em samba, nem em formas de bailar
latinas, cujas histórias não deram bons sinais nem no princípio, nem no meio – mas que está
dada a impossibilidade de racionalizar o mundo, tornando-o manipulável pelo pensamento
humano, cujo contínuo progresso permitiria ao homem se tornar senhor de si e de seu medo.
O extremo oposto da situação seria o sentimento geral de profunda insegurança e horror
diante da possibilidade de “regressão” histórica de todos, de destruição das conquistas
acumuladas, rupturas no processo de transmissão cultural e, no limite, retorno do humano às
condições biológico-naturais primevas68.
Sem chegar a tanto, um conjunto de espantos e estranhamentos nessa direção permeia a
poesia dos anos 70. No poema “Praça da Luz”, Cacaso instaura uma atmosfera surreal num
horrível cenário de circo, terminando o teatro sem alegria com o lastro das gargalhadas dos
filmes de terror69:
O inverno escreve em maiúscula
sua barriga circense.
Namorados sem ritmo povoam o espaço
onde gengivas conspiram e chefes de família
promovem abafadas transações.
Um marreco aproveita a audiência
67
“Vida e obra”, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.42. Poema pertencente a Na corda bamba, 1978. É tentador
imaginar que Cacaso fez Kant bailar como o deus que queria Nietzsche; mas, embora o poeta certamente o
tivesse estudado, sua forma de pensar não parece caracteristicamente nietzschiana. A crítica à razão de Cacaso
tendia não na direção do irracionalismo, mas da busca de um outro tipo de racionalidade, como demonstram suas
leituras de Walter Benjamin e Adorno, citadas em pé de página. Severamente crítica das ingerências da razão
ocidental no mundo pós-guerra – “nenhuma razão justificativa poderia encontrar-se a si mesma em uma
realidade cuja ordem e cuja forma rejeitam e reprimem toda pretensão da razão” (Adorno, 1931) –, a Escola de
Frankfurt se dedicou a distinguir e pensar diferentes formas de racionalidade, e não o irracionalismo. Cf. REALE
e ANTISIERI. História da filosofia, v.III, pp. 837-850. Citação de Adorno à p.841. Uma longa discussão sobre o
assunto é feita por MENEGAT, M. Depois do fim do mundo, cap.1.
68
Com exceção dos pensadores ligados à Escola de Frankfurt, em geral pouco se trata desta última possibilidade
que, todavia, subjaz em um número crescente de criações artísticas e filosóficas. Penso, por exemplo, na dor
contida nas pinturas de Iberê Camargo, ou na brutalidade das relações amorosas expressas pelos reality shows e
pelos funks, pagodes etc., veiculados atualmente pelos meios de comunicação de massa. Para uma discussão
complexa ver MENEGAT, Marildo. op.cit., e também o sugestivo título e a conclusão do livro de Argullol
supracitado.
69
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p. 47. Pertencente ao livro Grupo Escolar, 1974.
261
e se candidata a senador. Anjinhos
cacheados esvoaçam flâmulas
e hemorróidas, corpos horrendos se tocam.
Uma gargalhada despenca do cabide:
marcial
um cortejo de estátuas inaugura
o espantoso baile dos seres.
Tudo aqui é desarmônico, neste que é o lugar historicamente originário da vida pública
e política. O tempo é frio; o amor é arrítmico, logo, desencontrado e inábil; as alusões ao
humano o mostram em partes, ou feio, ou espúrio; as relações políticas são traiçoeiras e o
candidato, reduzido a uma ave desengonçada e rouca. As bocas conspiradoras sequer possuem
mais dentes. A provocadora antítese entre as hemorróidas e os anjos predicados com
diminutivo e cachos rouba da imagem qualquer menção à beleza ou teologia barroca. Como
música de fundo, uma risada súbita, vinda não se sabe de onde nem por que (ela despenca),
soa como um sinistro deboche, que por meio dos dois pontos abre o cortejo ritmado das
disciplinadas marchas militares. O deslocamento do verso de uma só palavra para o fim da
linha introduz uma lacuna silenciosa que destaca a especialidade de tal condição e realça o
contraste com a falta de ritmo poético dos namorados. O descompasso dos que desejam e
amam com o contexto circundante não poderia ser mais nítido. O poema culmina o
estranhamento com um duro jogo antitético: o cortejo, imagem fúnebre e militar em sua
cadeia de associações comuns, não é composto de pessoas mas de estátuas, e resulta em uma
duvidosa festividade de seres não qualificados como humanos, meros entes. É de fato
espantoso a quê se reduziu o espaço da velha ágora: um circo surreal e terrível em que bailam
e se alinham seres animalizados, petrificados, imobilizados – em outras palavras, reificados.
Se a constituição de um espaço público, como locus de debates racionais e
democráticos, consistiu em um dos eixos da modernidade ocidental, ei-la aqui em
decomposição. A derrisão do cenário da praça surge em outros poetas com semelhante carga
de desilusão: nos versos de Ana Cristina – “no picadeiro seco agora/só patos e
cardápios/falam ao público/sangrento/de paixões [...]”70 – novamente aves palmípedes tomam
conta da arena, reforçando o caráter politicamente esvaziado e paliativo das emoções
violentas do panis et circensis romano, que se tornara referência cultural naqueles tempos em
virtude do disco tropicalista de mesmo título, como substitutivo à perda de direitos
republicanos da plebe, no período imperial. Não é mais feliz a “Praça da República dos meus
sonhos”, de Roberto Piva, onde a imagem de devoração alcança agora o ultraromantismo
70
Do mesmo “Algazarra” citado no cap.5, in HOLLANDA, p.144-145. Vale lembrar que também se costuma
chamar de “pato” a alguém tolo ou idiota.
262
fixado na estátua comemorativa e as piores lembranças são tratas levianamente: “A estátua de
Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem/de morfina/ [...] onde
conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces/os meninos tiveram seus testículos
espetados pela multidão/lábios coagulam sem estardalhaço/ [...]”71
Esta metáfora – bocas feridas e quietas pela praça – confere à crise da esfera pública um
cunho machucado e sanguíneo, que se reitera na poesia marginal, cujas páginas são
respingadas de sangue. Por sua vez, a menção à droga de profundo poder analgésico e
soporífero predicando a paisagem sugere a devoração nada antropofágica não apenas de uma
certa sensibilidade poética tida como ultrapassada, mas do trato sensível das relações sociais
mesmas, pois não se trata de uma anestesia seletiva. De fato, a crise não atingia apenas a
experiência espacial, mas sobretudo os laços políticos e a sociabilidade. Como esta, em
especial (e também aqueles, se compreendidos amplamente), é fundante do humano, começa a
surgir nos textos a figuração de bizarras criaturas ou seres deformados, bem como o profundo
desconsolo com as formas assumidas pela subjetividade, conforme se aprende do “tu,
rinoceronte improvável, flama sapientíssima” e “tu, monstro cingido de totais firmamentos”
de Afonso Henriques Neto72, ou do triste “Ulisses”, de Roberto Schwarz: “A esperança posta
num bonito salário/corações veteranos//Este vale de lágrimas. Estes píncaros de merda.”73
O qualificativo depreciador dos “píncaros” desfaz sua posição antitética ao “vale”,
alocando as experiências de dor e glória no mesmo nível plano a que tudo se viu reduzido
num mundo sem ideais. A brevidade corrosiva do poema desvelava, na verdade, a enorme
distância existente entre a esperança utópica de uma existência elevada, em um mundo
transformado, e a pequenez a que se viu reduzida a odisséia moderna, cuja inteligência
heróica (sendo a astúcia o grande dom de Ulisses) foi dominada pelo valor de troca e
obtenção de status social conferidos pelo dinheiro, transformado de meio em fim supremo, o
que é uma inversão ética por definição. Analisando a relação de Baudelaire com a
modernidade, na Paris oitocentista, Benjamin observou a ebriedade do poeta no seio da capital
cultural do capitalismo em seu auge, quando o fetiche da mercadoria – a qual exercia sobre a
multidão o mesmo charme inebriante que os viciados quando sob efeito da droga, e a
71
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.48-49.
Neste poema, um ser que é designado como “tu”, criador divinizado ou causa originária de todas as coisas, ou
simplesmente alguém, é predicado como: “o imperador dos charcos”, “o rinoceronte improvável, flama
sapientíssima”, “o belzebu mudando-se em ovelhas”, “o sangue subjacente a toda arquitetura [...] semente desde
sempre inexplicada, “o perfeito e o imperfeito”, “o monstro cingido de totais firmamentos”, “tu impossível,
mesmo louco, só e eternidade”. Cf. “Ser”, in: O Misterioso ladrão... p.34-35.
73
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.85. Deste poema sai o título do livro de Schwarz da coleção Frenesi,
Corações Veteranos, 1974.
72
263
multidão imantada por sua vez o repassava74 – começava a perfazer a sensibilidade poética a
ponto de a “empatia com o inorgânico” se tornar uma de suas fontes inspiradoras, o que
tenderia em prazo mais longo a uma certa mineralização da subjetividade criadora. Mas a
multidão e a mercadoria não exerciam igual efeito embriagador sobre todos. O filósofo
recupera de Engels a percepção do quanto, nas grandes cidades modernas, os cidadãos
“tiveram de sacrificar a melhor parte de sua humanidade para realizar todos os prodígios da
civilização [...] que centenas de forças, neles adormecidas, permaneceram inativas e foram
reprimidas...”, resultando homens brutalmente indiferentes, um isolamento insensível dos
indivíduos em seus interesses privados, o que se torna ainda mais repulsivo quanto mais eles
se comprimem no espaço exíguo das ruas da cidade75. Não obstante, se esta pode ser
reformada, por haussmans e pereiras passos, o homem não o pode, ao menos tão facilmente.
Se o melhor do humano paradoxalmente se perde no que deveria ser um processo
civilizatório, só podem de fato restar cortejos de estátuas, marrecos senadores, rinocerontes
sapientes, lábios coagulados, ulisses apequenados, gengivas conspiradoras, restos de vísceras
e arquiteturas desoladas que desfiguram a praça pública, no “espantoso baile dos seres”.
As metáforas, metonímias, tropos e predicados vários os em seu intuito depreciador
traduziam um “espanto poético” com o que se tornava o ser individual e social, o cidadão e as
relações humanas. Como Raymond Williams havia notado na Inglaterra (com base em seus
estudos sobre o século XIX e sua própria vivência no século XX), os produtores e pensadores
da cultura efetivamente reagem às modificações da organização e da experiência humana
engendradas pelo processo de industrialização e modernização capitalista, quando a forma
mercadoria vai tomando conta da esfera da cultura, que se torna crescentemente um espaço
dessa dominação e das exclusões que ela produz. Quanto mais o capitalismo supera suas
crises internas e se readapta, mais se aprofunda uma crise cultural, aquela derivada da
exclusão de necessidades humanas permanentes, que se tornam reprimidas ou alijadas do
processo de desenvolvimento, provocando uma “restrição radical de concepções de
humanidade ou de sociabilidade”. Somente uma revolução cultural, que revertesse a versão de
74
A multidão não era apenas um novo refúgio, mas também o “mais novo entorpecente do abandonado. O
flâneur é um abandonado na multidão. Com isso, partilha a situação da mercadoria. Não está consciente dessa
situação particular, mas nem por isso ela age menos sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o indeniza por
muitas humilhações.” Apesar de Baudelaire entender de entorpecentes, este importante efeito social lhe passou
despercebido, diz Benjamin. Cf. A Paris do Segundo Império. In: Charles Baudelaire..., p.51 e 53.
75
Ibidem, p.52-55. Cf. citação de Engels, retirada de A situação da classe operária inglesa, na p.54. O mesmo
pensamento é retomado em Sobre alguns temas em Baudelaire, idem, p.114-115. Para a idéia que se segue,
comparando a reforma da cidade e do humano, ver p.86.
264
cultura e sociedade que o capitalismo impõe, poderia mudar tal quadro76. Mas como esta não
ocorreu, ou foi sempre derrotada quando intentada, infundiram-se noções cada vez mais
esfaceladas acerca do humano e da vida social, de onde o estranhamento revelado na arte.
Não se tratava, porém, seguindo uma pista benjaminiana77, de um espanto filosófico
produtor de conhecimento, ao modo, por exemplo, da dúvida mater cartesiana, mas de uma
situação diversa e geradora de um assombro sem respostas ou nem mesmo perguntas. O
espanto inqualificável se relacionava à incomensurabilidade das transformações da
experiência de sociabilidade, que não encontrava termos de referência nas concepções que se
tinha dos processos de desenvolvimento das sociedades e da história, ainda (como até hoje,
apesar das vicissitudes) profundamente pautados pela noção de progresso.
Esse espanto era quase informe, fruto de percepções em ato ou fatos inesperados, como
aconteceu na descoberta de uma rusga decorrente da distinção sócio-econômica existente
entre poetas da zona sul e da periferia do Rio de Janeiro. Em carta de 1976, Ana Cristina
César registrava que – diferentemente do lançamento de um livro da Nuvem Cigana no
Parque Lage, na semana anterior, onde houve “porra-louquice, uivos e até strip-tease”78 – em
um encontro aparentemente pacato de poetas na Casa do Estudante Universitário (RJ), os
poetas da Nuvem foram
imprensados pelos poetas fudidos, mulatos, do subúrbio, que esses sim se
consideravam verdadeiros opositores do regime, tanto no verso quanto na posição de
classe. Criou-se desconfortável contradição: poetas de Ipanema x poetas de
subúrbio. Quem não se incluía tentava segurar a discussão, que se perdia em
agressões. Chico Alvim estava, e falou, e depois fomos para os bares do Leblon.
Cacaso não abriu a boca, mas ouvia de olhos bem abertos. É engraçado estar
79
participando ao vivo da ‘história literária’ (pretensão?).
Maior que a estranheza de Ana, era certamente o susto silente de Cacaso diante
daquelas circunstâncias que ameaçavam o projeto coletivo do “poemão”, a despeito da boa
76
Cf. CEVASCO, M.E. Para ler Raymond Williams, p.126-130. Estas reflexões de Williams, cujo trabalho a
autora analisa integralmente, encontram-se especialmente em Politics and Letters.
77
Ver Benjamin, W. Sobre o conceito de história – 8ª Tese. In: Magia e técnica, arte e política..., p.226: “O
assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro
filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual
emana semelhante assombro é insustentável.” De modo semelhante, Adorno relata que, quando menino já vira,
nos camaradas de escola, a tendência ao horror fascista, de modo que quando irrompeu o 3° Reich, seu juízo
político foi surpreendido, mas não sua predisposição inconsciente ao medo. Um paralelo pode ser feito com o
espanto do Brasil nos anos 70 em relação à violência, no entanto histórica e atávica. Cf. ADORNO, Mínima
moralia, aforisma 123, p.168.
78
A visão aqui sobre a Nuvem Cigana é a de um “grupo de poetas porra-loucas [que] se esparrama pela cidade.
Já conseguiram atrair carroções [polícia], que impediram o recital em Niterói. Na PUC agrediram o Affonso
[Romano de Sant’Anna]. Hoje vem no jornal que o Almanaque Biotônico [...] foi apreendido por ordem do
ministro da Justiça.” Carta para Cecília, 14 de maio de 1976, reproduzida in: LEMOS, op.cit., p.457.
79
Ibidem [grifo meu].
265
vontade geral80. A poesia mais agressiva de Adauto, por exemplo, incidindo sobre a violência
urbana, a religiosidade afro-brasileira e as regiões mais pobres da cidade, havia sido
incorporada na antologia de Hollanda, de 1976: “– depois Q inventaram o metrô nesta/capital,
acabaram com os tatus/com o mangue & com os undergrounds/mas os pássaros também
cantam na/periferia...”81. Também Messeder Pereira chama a atenção, com base no poema
“Arregaça” de Ronaldo Santos – “[...] vista alegre/brilho no olhar/colírio//pra quem entende
de assalto/saltos mortais e alegria/pra quem se chega sorrindo/nas bocadas do subúrbio
[...]//no morro da providência/pipas tem outro sentido [...]” –, para o contato dos jovens poetas
(na verdade, segundo ele, de “toda uma geração”) com as populações dos subúrbios e dos
morros, agregando-se em função do consumo de drogas e da ojeriza à polícia: “[...] crianças
vigiam/e sacam polícia/pelo andar/pelo medo/pelo cheiro//Homens da Lei/é uzomi/Cela de
Detenção é cubico/Realidade/é sufoco [...]”82. Para Messeder, esta relação se dava pelo
reconhecimento de um tipo de vivência comum, independentemente da situação de classe, que
passava ao largo, contudo, de uma identificação de tipo populista que se encaminhasse “no
sentido de uma ‘heroicização’ daquelas populações”. Era a “malandragem das turmas de
esquina” que em certos momentos se cruzava com a “malandragem popular”, conforme
mostraram os depoimentos que coletou83.
Nos anos seguintes, todavia, uma série de disjunções iluminariam cada vez mais
iniciativas e problemas até então desconhecidos ou impensados acerca deste canto
“periférico”. Existiam grupos inimaginados, como, por exemplo, os AdVersos, do bairro da
Tijuca (RJ), que desde 1972 apresentava recitais que não circulavam muito além daquela
circunscrição, seu próprio nome revelando sua posição extrínseca àquela movimentação
80
Uma possível conseqüência disto se vê em texto de 1978, já mencionado no cap.2, no qual Cacaso considerava
que a vida cultural se represara “nos limites de classe da pequena burguesia e em setores médios ilustrados.” Cf.
BRITO, Tudo da minha terra, op.cit., p.134, nota 4. Indagado sobre o assunto, Paco Cac considera que “sempre
houve um lance de zona sul ter preconceito com o subúrbio, suburbano era sinônimo de atraso, provinciano,
né?”, mas o “desejo suburbano” de morar perto do Centro se devia à necessidade de estar mais perto dos locais
de trabalho. Todavia, diz ele, a situação era diferente no meio poético: “mas entre nós, artistas em geral, poetas,
não havia isso, não. Pelo contrário, sempre buscávamos a aproximação maior possível”. Segundo
correspondência eletrônica em 18/05 e 6/06/2007.
81
“Pólis III”, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.254.
82
Ronaldo Santos, “Arregaça”, do livro Vau e Talvegue, publicado pela Nuvem Cigana, 1975. Reproduzido em
MESSEDER PEreira, Retratos de época, p.249-250.
83
Cf. MESSEDER PEREIRA, idem, p.247-250. Note-se que o autor insiste em desvincular a visão e/ou ação dos
poetas marginais de uma linhagem populista. As dificuldades nesta relação, que começaram a aparecer naquele
momento causando grande espanto, podem ser pensadas como mais uma entre as cisões mencionadas abaixo. O
recente filme Quase Dois Irmãos, de Lúcia Murat, aborda o assunto, ao mostrar a relação “morro/asfalto” dos
anos 30-50, a relação presos políticos/presos comuns sob a ditadura militar, e a impossibilidade destas nos anos
90.
266
“marginal”84. Entre os estudantes, algumas divergências começavam a despontar. Gandaia e
Folha de Rosto buscariam uma dicção mais politizada, alguns de seus membros participariam
da re-eclosão do movimento estudantil, que se daria em breve após tantos anos de encubação;
Garra Suburbana ingressaria na luta anti-racial e contra a pobreza, entre outras. Na periferia
do Rio de Janeiro, germinavam aqueles que na virada da década seguintes editariam a revista
Amplitude, em Nova Iguaçu, buscando ampliar o espaço cultural da Baixada Fluminense, ao
lado da Coomasp (Cooperativa Mista de Artistas Suburbanos Panela de Pressão) que atuaria
junto a comunidades de subúrbio, preocupada com o que se chamava de uma política cultural
de base85. No início dos anos 80, o tumultuado I Encontro Estadual dos Escritores
Independentes do RJ revelaria diversas tensões, acumuladas no quarto final do decênio de 70,
acerca das formas de organização ou sindicalização dos independentes, originadas de grande
dissenso a respeito da atuação institucional e da definição e lugar do poeta, desde aqueles que
defendiam uma associação nacional de cooperativas – pois o escritor não devia preocupar-se
“com sua exibicionista marginalidade, e sim em como vender o seu trabalho”86 – até os que
propunham uma produção totalmente desinteressada, autodenominado-se “independentes em
trânsito”... todos se reunindo na mostra livre da Feira de Poesia da Cinelândia.
Tudo isto traz indícios de um processo, sentido apenas por meio do espanto, que
apontava para o fim de um Brasil dos abraços, conforme retratado por Schwarz em “Almoço
no estrangeiro”, publicado na revista Ânima, ainda em 197687:
O Brasil mudou
não é mais como antes
quando tudo terminava em abraço.
Agora tem uma cicatriz.
Em qualquer encontro ou jantar
a diferença entre os que foram contra
84
Este só se tornou mais divulgado recentemente, com o lançamento de uma antologia, que se tornou melhor
divulgada no meio acadêmico devido à participação do prof. Afonso Carlos, do curso de História da UFRJ. Cf.
KURI, AFONSO CARLOS, IVAN WRIGG ET AL. AdVersos. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.
85
Segundo Hollanda, o grupo iguaçuano, composto por Paulo Jordan, Meduan Matus e Djair Esteves; a
Coomasp (Jênesis Genúncio, Jorge de Almeida et al.) atuando na área de Oswaldo Cruz, Vila da Penha, Campo
Grande e Bangu; e a Feira de Poesia da Cinelândia (Centro) nas 6ª feiras à noite, eram promissoras
manifestações do início dos anos 80. Cf. Marginais, alternativos, independentes. Publicado no Jornal do
Brasil/Caderno B, 15/08/1981, reproduzido em GASPARI, HOLLANDA e VENTURA. 70/80 Cultura em trânsito,
pp.215-220.
86
Citado por Hollanda que reporta este Encontro, ocorrido em agosto de 1981, do qual participou como
convidada. Ibidem, p.216. A autora comenta: “não se fala impunemente de matéria tão complexa e sutil. A
cultura alternativa-marginal-independente, no barato, apenas pelas discussões que provoca (ainda que
estranhamente assessorada pelas várias instituições solicitadas pelo organizador do encontro), revela seu
potencial de tema desconfortável e mobilizante no terreno precariamente problematizado do lugar do escritor no
espaço das relações de produção. O tumulto persiste, provavelmente não será hoje que os escritores
independentes chegarão a um consenso sobre a forma ideal de se ‘unir-cooperativar-organizar’”, p.217.
87
Apud MESSEDER PEREIRA, Retrato de época, p.35-36. Segundo o autor, trata-se da Anima de abril/maio,
1976.
267
e os que foram a favor
pode aparecer.
Em minha opinião a França
até hoje não digeriu
o terror de 93.
O Brasil não havia conhecido isto.
Antes houve o caso do Estadão
que nunca perdoou ao Getúlio.
É verdade, mas a coisa do Getúlio
foi restrita e dirigida.
Desta vez foi mais longe.
Agora para ser brasileiro
é preciso assumir inclusive isto.
Em certo sentido
o país ficou mais moderno.
Pode-se imaginar claramente uma troca de impressões em uma conversa de almoço, de
(auto)exilados e amigos em algum país estrangeiro, possivelmente a França, para onde partiu
a maioria dos egressos ou banidos do país na segunda leva da ditadura, a partir de 196888. A
não-digestão do terror remete ao trauma coletivo resultante da revolução francesa e que, como
mostra E. P.Thompson89, atingiu poetas de outros países. Contudo, o trabalho de Oehler
revela, a partir da obra de Sartre, Baudelaire, Flaubert e outros tantos, que o grande trauma
sobre o qual a França silencia foram os massacres de 1848: as jornadas de junho e o genocídio
foram a tal ponto monstruosos que dividiram a nação e produziram um recalque social, do
qual a literatura foi ao mesmo turno cúmplice e vítima. O nexo entre a derrota da revolução,
os massacres e a modernidade literária se fez pela experiência comum neurótica que o país
viveu desde então. Neste ponto, a semelhança com o Brasil seria maior: não o trauma
derivado de uma revolução criadora de novas formas civilizacionais, nem da violência
jacobina, mas da derrota das alianças de classe e o esmagamento da esquerda popular, por
parte de uma burguesia que apóia um Estado autoritário, capaz de subtrair qualquer resquício
democrático em nome da condução do desenvolvimento capitalista. A literatura que daí
derivou foi tomada por alusões indiretas aos acontecimentos impronunciáveis, bem como por
sentimentos profundamente contraditórios e decepcionados com os caminhos trilhados pela
vida social e política90.
88
Segundo a autora, houve duas gerações de exilados da ditadura brasileira, com características distintas: a de
1964, após o golpe civil-militar, que se dirigiu preferencialmente para o Uruguai, e a 1968, após o AI-5, acolhida
no Chile e depois na França (não exclusivamente, mas em maior número). Cf. ROLLEMBERG, Denise. Exílio,
entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.49-52.
89
Ver observações no cap.1, a partir de Os Românticos.
90
Cf. Oehler, O Velho mundo desce aos infernos, passim. Oehler parte de observações de Sartre, em L’Idiot de
la famille, acerca da “enfermidade crônica da psique coletiva” após 1848, gerando um processo em que textos
tratando do assunto foram ignorados ou mal-interpretados. Resgatando vestígios testemunhais (cartas, diários,
artigos de jornal, canções populares) e comentários políticos (Blanqui, Proudhon, Marx/Engels, Tocqueville,
Victor Hugo), o autor busca compreender o contexto semântico da época e estuda as obras de Alexandre Herzen,
Heinrich Heine, Baudelaire e Flaubert, que teriam levado ao extremo a pesquisa sobre a patologia da
268
Analogamente, no poema acima a referência à ditadura militar é indireta, não se fala
dela, o que é uma forma de mimetizar o que é indizível socialmente. Explicita-se o tempo de
Getúlio Vargas, o “antes” quando havia relações de conciliação e ligação social (“tudo
terminava em abraço”) e a repressão do Estado Novo, como no caso do jornal Estado de
S.Paulo (apelidado de “Estadão”), era mais restrita e dirigida que “agora”. Por derivação
comparativa, a cicatriz do tempo presente consiste na ferida da ditadura posterior, que foi
mais longe em sua perseguição aos adversários, adentrando o terreno baldio do terror de
Estado e rompendo laços e consensos para implantar seu projeto de desenvolvimento. A
identidade brasileira, desde então, exigiria que se assumisse tal fissura, o que não era ainda
factível dentro do país e, mesmo quando externa, a conversa era alusiva. Sensível e quase
impronunciável, a feia cicatriz deixava o Brasil moderno como “Europa, França e Bahia”.
A idéia de cicatriz, remetendo a um corte profundo rasgando várias camadas de tecido,
aponta para um conjunto de cisões superpostas na sociedade de difícil visibilidade. Na
antologia
26
poetas
hoje,
ao
lado
das
imagens
de
sangue/feridas,
medo,
“sufoco”/estrangulamento/nó na garganta, solidão, despedidas, circos/palhaços, música na
vitrola, suicídios, amores e dissabores cotidianos, pululam aquelas de separação, corte, cisão,
sem mencionar as incontáveis cicatrizes: “que cada uma das suas muralhas/supõe a seguinte e
a anterior” (Geraldo Carneiro); “no longe corte do peito nas tontas/revoltas da cara [...]
sobrevivo/com muito esforço/e as costelas partidas” (Leomar Fróes); “... quando a luz do sol
vai entrando de novo/dividindo o quarto num tratado de tordesilhas/eu nervoso me olho no
espelho/me jogo no sofá me vejo cortado/em duas postas” ou “lances assassinatos/essa noite
acredito/cicatriz sinistra” (Adauto)91. No poema “Orate Frates”, Flávio Aguiar aborda a
fraternidade não realizada e as hesitações do poeta, em um tempo incessante e entristecido (“o
mundo roda sem festa”), onde os reflexos de si e do outro são ambíguos (“espelho claro e
escuro”), aproximando-se, assim, da imagem do fim do tempo dos abraços:
No poço fundo do mundo
Encontrei minha bela irmã.
Aquela que nunca tive,
Aquela que não terei.
[...]
À beira do poço esquivo,
92
Hesito se pulo ou recuo. [...]
modernidade, assim revelando “a parcela de experiência traumática do ano de 1848 na nova orientação dos
autores que revolucionaram a literatura romântica e fundaram a modernidade crítica.”, p.9.
91
Todos in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, respectivamente, “A muralha da China”, p.152; “Descordenada”,
p.202-203; “A pombinha e o urbanóide”, p.249 e sem título, p.252.
92
In: HOLLANDA, idem, p.135.
269
Tais imagens de uma fraternidade inviável, logo de esgarçamento de laços sociais, bem
como fissuras e cisões evidentemente possuem correspondência na experiência histórica dos
poetas. Um levantamento inicial na bibliografia estudada indica uma série de oposições que se
radicalizaram na sociedade ao longo do período da ditadura militar, criando fendas nem
sempre passíveis de sutura. “A turma da vida” e “a turma da morte” ou “do esquema geral da
morte”, de que falava Torquato Neto93, são inconciliáveis. Assim, se observa um afastamento
crescentemente tenso de setores sociais, envolvendo os seguintes itens:
a) uma cisão entre militares e civis e, dentro deste grupo, entre os que foram contra e a
favor da ditadura militar, como dito no poema de Schwarz, decorrendo em diferenças não
estritamente políticas, mas de cunho econômico – como por exemplo entre os que ganharam e
os que perderam com a modernização conservadora, a tendência à oligopolização da produção
e ao crescimento das formas financeiras e especulativas do capital – e social, entre os que se
entregaram às delações e contribuições com as comunidades de informação e segurança,
reforçando o ethos persecutório que destrói a solidariedade social, e aqueles que se recusavam
a qualquer prática autoritária, ainda que fossem obrigados a se calar;
b) uma “fissura entre dois quereres de mudar o mundo”, com divergências sobre o que e
como deveria ser mudado [que poderíamos chamar de modelos exemplares derivados do
existencialismo e do marxismo], dividindo os jovens que ingressaram na luta armada e os que
se identificavam com o modo de vida contracultural. Estes se diferenciavam ainda dos jovens
que precisavam se sujeitar à ordem do mundo do trabalho, “amigos que ficavam para trás”,
diz Francisco Carlos. Isto, no clima de incertezas e paranóias, gerava uma “tensão que iria
pontilhar, ou mesmo esgarçar, a rede que reunia todos”94.
c) diferenças profundas e talvez irrecuperáveis entre os que viveram operações
desumanizantes, como prisões e torturas físicas e psicológicas, destruidoras de traços de
civilização e por vezes de subjetividade, produzindo o conhecimento de um tipo de alteridade
incompartilhável e, portanto, inumana, e o restante da sociedade. Dentro deste grupo se
dividem torturados e torturadores. No seio das esquerdas militantes, por sua vez, acrescentamse fissuras várias, não apenas por suas diferenças ideológicas/políticas, mas pelos distintos
comportamentos diante da prisão tortura, exílio etc., e as diferentes memórias que disto
resultam95. Não há que esquecer, ainda, o abismo existente entre todos estes e os que nada
93
In: “A morte ataca”, Geléia Geral, 14/10/1971, reproduzido em Os Últimos dias de paupéria, p.108.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. 1968: memórias, esquinas e canções, in: Revista Acervo, v.11, n.1-2, jandez 1998, p.13, 15, 16 e 20.
95
No cap.7., ao final do item “Uma ruptura ética”, serão observadas as dificuldades colocadas entre aqueles que
falaram sob tortura e os que puderam calar, os que resistiram e os que morreram, os sobreviventes que foram
94
270
sabem, em razão de processos alienadores ou por pertencerem a gerações posteriores, cujo
conhecimento histórico não chega a tanto.
d) neste abismo cabe também o problema já referido do trauma da linguagem, uma vez
que a sociedade não usa homogeneamente termos-chave da experiência histórica dos anos 60,
ou seja, há uma fratura no processo de atribuição de sentidos para vocábulos que guardam
toda uma gama de idéias ou conceitos que se perderam para as novas gerações, mudando seu
campo de ressonância significativa na sociedade, como se procede, por exemplo, com
“revolução”, “expropriação de bancos”, “rapto ou seqüestro político”, e mesmo “democracia”
e “utopia”, entre outros96. Resultam daí dificuldades comunicativas para as quais nem sempre
se atenta, além de uma fissura no sentido originário da linguagem mesma, que por definição é
relação de comunalidade.
e) há cisões também entre os que partiram para o exílio e os que ficaram no país, ambos
de certa maneira idealizando a condição do outro97, e produzindo uma fenda onde antes havia
condições de unidade. Pode-se notar no Brasil um processo análogo ao ocorrido na Argentina,
onde a ditadura dos anos 70 provocou uma dupla fratura no campo intelectual, que, por um
lado se tornou cindido entre os que permaneceram dentro ou fora do país, e por outro, sofreu
os efeitos de um corte no tecido social interno, quando se isolou o contato dos intelectuais
com os espaços populares, bloqueando o trabalho que se fazia no sentido de romper fronteiras
entre cultura erudita e cultura popular98. Dinâmicas de isolamento intelectual, reavaliações
sobre a função social do pensamento e da arte, auto-exílio ou exílio em terra natal,
impossibilidades de retorno à pátria etc., que muitas vezes disputam entre si, estão
relacionadas a este ponto.
f) As diversas ditaduras militares latino-americanas, nos anos 60-80, produziram como
um todo uma mudança no cenário das relações entre literatura e política, como mostra Vidal:
a utopia, que marcara o boom literário da América Latina nos anos 60, de forjar uma
capazes de elaborar a dor de sua história e os que não foram, os arrependidos e os que ratificam suas opções e
atos, os que continuaram afirmam sua liberdade de escolha e os que justificam seus atos pelo valor da hierarquia
e da obediência...
96
No recente documentário Hércules 56, de Sílvio Da-Rin, sobre os presos políticos trocados pelo embaixador
americano, seqüestrado pelas organizações clandestinas MR-8/ALN, o uso do termo “seqüestro” foi discutido,
mostrando já o problema na época das negociações através dos jornais. O chileno Tomás Moulián sintetiza:
“Existe una carencia de palabras comunes para nombrar lo vivido. Trauma para unos, victoria para otros. Una
imposibilidad de comunicarse sobre algo que se denomina de manera antagônica: golpe, pronunciamiento,
gobierno militar, dictadura [...]”. Apud FUNES, P. Nunca Más: memorias de las dictaduras en América Latina.
In: GROPPO, B. e FLIER, P. La imposibilidad del olvido, p.56.
97
Como mostra Herbert Daniel, em Passagem para o próximo sonho, o que também é comentado por
Rollemberg em seu trabalho sobre o exílio, op.cit.
98
Cf. VIDAL, P. A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul. São Paulo: Annablume, 2004, p.3233. Esta discussão é feita sobre artigo/depoimento de Beatriz Sarlo.
271
identidade cultural-regional própria, capaz de interagir com culturas externas numa dinâmica
não dependente, passou a ser reavaliada após os golpes, sofrendo quer um distanciamento
crítico quer uma aproximação nostálgica99. No caso brasileiro, isto se vê na reafirmação da
antropofagia oswaldiana – próxima, como já dito, do conceito de transculturação de Angel
Rama, que deu suporte à mencionada utopia literária – e no desenvolvimento paralelo de uma
literatura preocupada em retratar o Brasil, quando não explicitamente nacionalista, o que
também produz divisões no campo literário em auto-avaliação, envolvendo “teóricos” e
“engajados”, estruturalistas e lukacsianos, vanguardistas e memorialistas, entre tantos mais100.
Neste processo de reconfiguração literária, cisões ainda se farão sentir em outros itens, como
se segue.
g) no que se refere ao retorno à experiência, sobretudo à individual, que foi também
tendência geral pós-golpes em toda a literatura latino-americana, fez-se sentir um quádruplo
movimento de cisão: entre impulso vitalista e qualidade estética-formal; entre experiência
subjetiva e sócio-histórica (conforme já tratado no cap.4); nesta última, a segmentação entre o
espacial e o temporal; e na tendência à presentificação, a segmentação do tempo e a rasura na
estrutura constitutiva do sujeito. Tudo isto derivou em relações bastante distintas com a
tradição literária, e os processos históricos de transmissão cultural em geral. Na visão de
Schwarz, procedera-se uma separação entre aqueles que consideravam que as condições
sociais adversas, uma vez compreendidas e dominadas, poderiam ser transformadas em força
literária, mantendo seu potencial de negatividade crítica, e aqueles que se voltavam para a
vivência pessoal e a espontaneidade como uma espécie de álibi para sua produção
conformista, tímida ou simplesmente adequada aos veículos de massa, deste modo
apequenando a intenção literária101. “Munido de papel e tinta e de sua experiência”, diz ele,
“um homem tenta dizer aqui e agora o sentido da vida atual”, mas no contexto da ditadura
poucos se imbuíram da missão de fazê-lo: “todos nós conhecemos intelectuais que têm uma
experiência ampla e desabusada das coisas brasileiras, e sabemos que morrerão sem terem
formulado o que aprenderam, o que é uma perda extraordinária”102. Por muitas motivações a
pesquisar – pela pesada teia de favores que tradicionalmente liga o escritor à classe
dominante, como ensina Antonio Cândido; pela possível carreira política; pela manutenção de
pontes com a imprensa e a televisão; por um traço de personalidade etc. –, não extraíram da
literatura a força para dizer tudo o que sabem, refugiando-se na fidelidade regionalista, na
99
Ibidem, item “da utopia ao luto”, p.30-34.
Cf. também SUSSEKIND, Literatura e vida literária, p. 62.
101
Cf. SCHWARZ, Crise e literatura, in: Que horas são?, p.159. Consiste numa comunicação na SBPC em 1979.
102
Ibidem, p.160. Para as pequenas citações que se seguem neste parágrafo, p.160-161.
100
272
experimentação de linguagem, na memória do passado, e até na violência urbana
contemporânea, mas sem se colocar “à altura da complexidade do momento atual”. A crítica
literária mesma, continua Schwarz, elogia autores por estas e outras razões, além de
escreverem bem, mas não “porque tenham compreendido em profundidade o presente”. A
própria importância que será atribuída a esta compreensão, ou não (aqui diferindo muito do
ethos geral dos anos 50-60), será motivo de dissensões nas décadas que se seguiram.
h) perpassando as questões anteriores, crescia a tensão entre as dicções poéticas mais
próximas às vanguardas, que buscavam uma linguagem erudita, formal-elaborada, com base
na dialética antropofágica do cosmopolitismo-localismo, e as dicções de teor mais próximo ao
populismo ou à cultura nacional-popular, preocupadas com a comunicação de massas e o
manuseio dos recursos da indústria cultural. Neste segundo caso, a despeito das melhores
intenções, como se viu em Cacaso ou Leminski, o pêndulo tendeu para a despolitização do
projeto político-poético em função da linguagem facilitada e não elaborada. Mas isto porque
se havia criado uma cisão no público103, refletindo-se em fratura entre linguagem-artística e
comunicação social, uma vez que haviam sido restringidos, na educação técnica voltada para
o mercado de trabalho e para o interesse individual, os elementos formadores necessários à
compreensão do papel social da poesia e sua fruição. Tudo isso, em verdade, acarretava um
conjunto de esgarçamentos internos, ou mesmo derrotas, dos projetos estéticos vigentes: no
caso pós-tropicalista, a intenção de unir as vias vanguardistas e a experiência exigia um
receptor com maior informação cultural; por sua vez os marginais, que se colaram ao
cotidiano em busca de nomeá-lo, tentando dizer o que era aquela experiência histórica dentro
de registros de comunicabilidade social, não por precisar ligação com as massas – de resto
suprida, e paradoxalmente impedida, pelos midia – mas porque tinham necessidade de
comunicar seu espanto in-forme ou a dor social de seu tempo, encontravam um público em
geral passivo, pouco disposto ou incapaz de ver ou ouvir o que tinham a dizer. Por fim, uma
derrota de todos, porque a sociedade passou a se dividir entre aqueles interessados e capazes
103
Inspiro-me aqui em Oehler, que anota, na denúncia de Baudelaire ao leitor imune ao choque poético, uma
cisão implícita do público, dividido entre os saturados, entediados, podendo suster uma aparência política
hipócrita, e a parcela dos antiburgueses, insatisfeitos com a realidade do terror repressivo. Op.cit., p.283. Em
uma chave interpretativa não-frankfurtiana, encontra-se também em Ian Watt uma crítica social ao que ele
atribui ao “fracasso da educação individualista” e ao poder corruptor dos valores humanos pelos mídia: a crise da
leitura, uma vez que o público torna-se despreparado para o esforço da interpretação, buscando crescente
facilidade; a ênfase num “sempre novo” que contudo não é perturbador nem revolucionário, pois cria uma
novidade que produz excesso, rapidez e volatilidade, mas não a consistência necessária ao aprendizado e à
memória; as promessas de felicidade publicitárias, gerando consumidores individualistas, em detrimento da
imaginação coletiva e épica. Como um todo, impera o que C.Lasch chamava de “cultura do narcisismo”, em que
a perversão de valores faz as forças coletivas parecerem irreais e qualquer sentido de história se perde, em prol
do culto ao egocentrismo, à “nova ignorância”, à frieza de sentimentos e ao hedonismo. Cf. WATT, op.cit.,
p.264-268.
273
de se envolver com o processo de formação social/nacional e aqueles que sequer o conhecem
ou não se preocupam.
Em suma, passam vigorar processos de fragmentação e corrosão do vínculo social –
“Cada um deve ser pelo menos dois”, conclui Cacaso em “Mínimo divisor”104 –, bem como
de erosão das bases da relação entre Estado e sociedade105. Isto se sobrepõe, porém, a cisões
preexistentes, intrínsecas à cultura burguesa, seu tipo específico de metabolismo com a
natureza, relações de trabalho divididas e fragmentadoras, mediações realizadas através de
coisas, rompendo a relação sujeito-objeto (homem/natureza, homem/produto), “num
movimento em que o objeto se transforma numa força estranha e hostil, que domina a
relação”, diz M.Menegat106. Assim, as relações sociais e produtivas, que seriam em si – isto é,
no processo de construção antropológica da sociabilidade – atividades criadoras, tornam-se
em perda e separação, resultando em um empobrecimento subjetivo e sensível. O homem que
é socializado e individualizado em tal contexto é levado a perder sua noção de pertencimento
à espécie e à natureza, o que significa uma “alienação da atividade vital consciente [que]
transforma o processo de produção da vida da espécie em um ato estranho, e a própria espécie
adquire essa forma estranhada, pois perde a medida de sua universalidade.”107 Esse
estranhamento vem a esgarçar e romper os mecanismo de reconhecimento social,
incrementando as condições para o aumento da violência física e simbólica, de modo que as
crises da sociedade burguesa, entendidas nessa chave, deixam de significar uma regressão
momentânea e apontam para o aprofundamento da relação cindida dos sujeitos entre si, dentro
de si e com o mundo por eles mesmos produzido. Enfim, as cisões acabam por revelar que a
sociedade burguesa apenas pode realizar a fraternidade de modo abstrato, ou seja, escondendo
suas fraturas originárias e constitutivas.
Alimenta o fato o duplo caráter do progresso nas sociedades capitalistas, que, como
observa Adorno, tanto potencializa a liberdade quanto a opressão, gerando uma situação em
que a sociedade é crescentemente integrada no processo de dominação da natureza e de
organização social, ao passo que a cultura, para atender estes fins, torna-se crescentemente
coercitiva, de modo que os indivíduos vão-se tornando incapazes de ver em que sentido sua
104
In: Lero-Lero, p.261. Pertence à parte Inéditos & outros.
“La fragmentación y corrosión del vínculo social, la desnaturalización del ejercicio del poder (asociado a
prácticas de violência ilegítima) imponía reconstruir las bases mismas de la relación entre la sociedad y el
Estado.” FUNES, P., op.cit., p.45-46. O elenco de cisões que procurei apresentar acima não tem a intenção de
esgotar a questão, estando aberto a novas incorporações e a análises mais acuradas, que não cabem aqui.
106
MENEGAT, M. Reconhecimento e violência, op.cit., p.211. O autor parte da idéia de reconhecimento de
Hegel e das discussões de Marx sobre alienação, nos Manuscritos econômico-filosóficos, para desenvolver o
tema do antagonismo entre violência e reconhecimento, que se desdobra por outros capítulos do livro.
107
Ibidem, p.216.
105
274
cultura iria além dessa integração. Assim, os homens passam a estranhar, no sentido de não
reconhecer, o próprio aspecto humano da cultura e o indivíduo vai perdendo a autonomia
necessária para realizar efetivamente o gênero. Além do mais, a liberdade de escolha dos
indivíduos para determinarem transparentemente suas vidas se retrai sob regimes autoritários,
quando nenhuma palavra de honra subsiste e nenhum contrato é obrigatoriamente cumprido,
diluindo os laços éticos. Tal diluição dos melhores laços da sociabilidade acirra a crise
existencial, produzindo nos mais sensíveis imensa carga de angústia diante das perguntas
sobre o que os sujeitos e os países são, não são, poderiam ser ou ter sido, como testemunha
Cacaso. No entanto, a ruptura entre humanidade e cultura passa a ser, sob pena de
insuportabilidade, também ela administrada... Caberá então aos poetas encontrar formas
expressivas que os permitam manipular, com alguma soberania subjetiva, a rudeza, a
insensibilidade e a estreiteza que foram objetivamente impostas ao oprimido108.
A existência daqueles estranhos seres no universo poético reencontra neste quadro uma
forma de equivalência, bem como o grande espanto, cuja in-formalidade ou dificuldade de
representação aumenta proporcionalmente às camadas de cisões superpostas. Os “pelo menos
dois” em que cada um se divide, segundo Cacaso, tornam-se pelo menos muitos, tantos
quanto as aliterações do seu poema109:
A parte perguntou para a parte qual delas
é menos parte da parte que se descarte.
Pois pasmem: a parte respondeu para a parte
que a parte que é mais – ou menos – parte
é aquela que se
reparte
A procura de compartilhamento da experiência, como antídoto deste processo de
seccionamento a que todos estavam submetidos, foi certamente o que havia levado Cacaso ao
projeto da poesia coletiva, enxergando
uma continuidade profunda de experiência entre os poetas, que de alguma forma se
manifesta na produção de cada um, com os poemas se interpenetrando, se
confundindo uns com os outros, como se fossem partes complementares de um
mesmo poemão que todos, sem qualquer combinação prévia, estivessem compondo
juntos. Estamos diante de um caso em que o movimento conjunto, cuja densidade é
crescente, balanceia e resguarda até certo ponto a falta de consistência pessoal, e
onde todas as habilidades somam na formação de algo como um acervo comum.110
108
Para estas reflexões cf. ADORNO, op.cit., aforismas 17 e 96, p.31, 129-131.
“Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém”, in: Lero-lero, p.118. Pertencente ao livro
Beijo-na-boca, 1975. O título é um verso de Vinícius de Moraes
110
BRITO/CACASO. Com a boca na botija. In: Não quero prosa, p.81-82. Trata-se de artigo publicado na Revista
Almanaque, n.6, São Paulo: Brasiliense, 1978. Em uma entrevista rememorativa sobre a poesia dos anos 70,
Chico Alvim afirma que isto exige ir além do literário e “recompor uma certa atmosfera político-afetiva”, o que
significaria mergulhar num poço. O que ele se restringe a declarar, alusivamente, consiste num elogio a Cacaso,
109
275
A insistência na formação de um acervo comum de matéria poética e experiencial só faz
sentido em um mundo onde ele não existe ou está abalado, e isto Cacaso não desconhecia. É
um tal acervo, constituído lentamente ao longo do tempo, que permite a estruturação de
tradições e daquilo que Antônio Cândido chama de um sistema literário nacional, com base,
no caso brasileiro, no legado romântico e modernista, especialmente. Toda sua poética, como
se vê, calcou-se no diálogo com esta herança, no contexto de sua erosão, e na preocupação
com os destinos das relações humanas no tempo presente. À cisão no processo de transmissão
dessas tradições (mais uma!), portanto à ameaça que se colocava a um fundamento necessário
da cultura, Cacaso reagia com a veemência de seu espanto e sua liderança articuladora do
projeto artesanal e coletivo da poesia marginal, ainda que isto fosse visto por outros colegas
como uma ambição narcísica. Mas este gesto o impedia – e com ele “os marginais” – de
submergir de todo na ferida funda das muitas cisões, sem contudo torná-los imunes, pois que
ninguém escapa inteiramente aos ditames de seu tempo histórico. Abria-se, assim, um lugar
particularmente diverso: novamente, um entrelugar específico.
Benjamin havia observado um semelhante entrelugar na flâneurie de Baudelaire, uma
vez que a mercantilização e reificação da criatividade e da sensibilidade poéticas operam de
forma lenta, ambígua, e mesmo incompleta, variando conforme se estabelece mais ou menos
intensamente o processo de organização capitalista das sociedades:
Na medida que o ser humano, como força de trabalho, é mercadoria, não tem por
certo necessidade de se imaginar no lugar da mercadoria. Quanto mais consciente se
faz do modo de existir que lhe impõe a ordem produtiva, isto é, quanto mais se
proletariza, tanto mais é traspassado pelo frio sopro de economia mercantil, tanto
menos se sente atraído a empatizar com a mercadoria. Contudo, a classe dos
pequenos-burgueses à qual pertencia Baudelaire ainda não chegara tão longe. Na
escala de que tratamos agora, ele se encontrava no início do declínio.
Inevitavelmente, um dia, muitos deles teriam de se defrontar com a natureza
mercantil de sua força de trabalho. Esse dia, porém, ainda não chegara. Até então, se
assim se pode dizer, podiam ir passando o tempo. Como na melhor das hipóteses, o
seu quinhão podia temporariamente ser o prazer, jamais o poder, o prazo de espera
que lhes concedera a História se transformava num objeto de passatempo.111
As características dessa condição de passatempo consistem no compasso de espera pelo
que virá, no prazer limitado pela sociedade mercantilizada, desdobrando-se na mescla de gozo
que confirma a importância daquele projeto: “a amizade e a camaradagem deram força à minha fraqueza. Havia
um coro de assobios e, no que me toca, procurei modular o meu com o deles. Hoje continuo na memória. Mas
como memória é distância e esquecimento, pode ser que a toada prossiga. Mas e o coro?” In: HOLLANDA.
Entrevista: 26 poetas ontem/21 poetas hoje. Observações críticas e nostálgicas. Revista Poesia Sempre, ano 5,
n.8, Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997, p.350.
111
BENJAMIN, A Paris do Segundo Império, op.cit., p.54-55.
276
e receio de uma classe que pressente seu destino, em uma sensibilidade capaz de encantar-se
diante das coisas danificadas e corroídas112 e, ao mesmo tempo, combatê-las.
Este modo específico de passar o tempo ou ocupar o entrelugar pode ser chamado de
condição intervalar do poeta de classe média no momento de consolidação da modernidade
capitalista e da cultura burguesa. Justamente o processo que, no Brasil, se adensava sob a
égide da ditadura militar e seus patrocinadores, obtendo a resposta difícil e ambígua da
geração dos poetas da década de 70.
A condição intervalar se manifestou para eles de diversas maneiras, seja nas tensões
imagísticas introduzidas no corpo dos textos, seja na resistência inicial ao mercado editorial e
à indústria cultural, seja na linguagem coloquial, popular, rasgada e suja que assumiam como
matéria e instrumento do fazer poético, seja ainda no próprio nome de “poesia marginal”. Sua
margem não era exatamente “fora”, mas “entre”: no lugar da cicatriz e do corte, não estavam
de um ou outro lado do que se cindia, mas no meio do próprio rasgo, que alguns, como
Cacaso, tentavam alinhavar como podiam. É assim que as imagens poéticas entreteciam
humor e angústia; o tempo da espera e da pressa, da ação e da passividade; o falar e o calar; o
silêncio imposto, o escolhido e o necessário; as pulsões de vida e de morte; experiência
individual e coletiva; medo e ousadia; crença e desconfiança no progresso nacional e no papel
dos meios de comunicação de massa; desilusão e esperança nas relações humanas; interesse
econômico e gratuidade estética; trauma e desrecalque de elementos culturais; esquecimento e
memória. É de sua condição intervalar os textos curtos e entrecortados, a poética lacunar e a
resistência límbica que produziram, bem como seu modo muito próprio de testemunhar a
experiência histórica em curso, buscando expressar a perplexidade diante do que era ainda
incomensurável para o mundo das palavras.
Por certo esta condição se relacionava com o lugar incômodo que ocupavam, como
sujeitos-poetas, em um contexto de transformação do modo de constituição das
subjetividades, de maneira que as formas subjetivas conhecidas se dissolviam, sem que novos
sujeitos tivessem ainda emergido113, resultando em um certo estado de anacronismo ou
extemporaneidade que, vale repetir, condiz com este marginal-entre. É possivelmente isto que
explica a análise reavaliadora de Heloisa Buarque, no posfácio da antologia 26 poetas hoje,
112
Cf. Idem, p.55.
Cf. Dedicatória de ADORNO in: Mínima moralia, p.8. Isto talvez responda à pergunta de Cacaso e Hollanda,
no artigo “Nosso verso de pé quebrado”, em que discutiam o surgimento da nova poesia – na Expoesia I, como
tratado no cap.4 – e perguntavam que tipo de subjetividade residia sob aquela dicção. Não me parece que as
respostas da crítica que apontaram para um sujeito excessivamente narcísico sejam de todo satisfatórias, isto é,
elas mostram a conduta de alguns jovens poetas que posteriormente se tornou tendência geral na sociedade, mas
não explicam “tudo e todos” naquele momento particular.
113
277
não mais os considerando como “uma reapropriação do modernismo”, nem tampouco como
“um antecedente do pós-moderno”:
[...] talvez essa poesia ruim estivesse tocando em necessários pontos obscuros do
debate literário ainda em mãos ortodoxamente modernistas. Talvez arranhasse,
mesmo de forma incipiente e desorganizada, pontos nevrálgicos que já
configuravam as grandes quebras que viriam marcar a inflexão cultural das décadas
seguintes. Não diria que a poesia marginal, mesmo sinalizando mudanças
paradigmáticas e anunciando-se plural, já estaria anunciando uma inflexão pósmoderna.114
Aquela geração poética – especialmente a geração mais velha dos “marginais” –
formara-se no período do nacionalismo desenvolvimentista brasileiro, que havia propiciado
no país uma mobilização social profunda e um imaginário social novo, como diz Schwarz. A
despeito das “falácias nacionalistas e populistas”, desenvolvera-se um senso de
responsabilidade histórica – caracteristicamente moderno, pode-se acrescentar – que
incorporava a idéia de nação como um todo e a preocupação com o destino dos excluídos,
criando na esfera cultural um desejo de consistência que a fazia testar-se pela prática social e
transformar-se. A derrocada das promessas deste período com a ditadura militar não invalidou
de todo, em um primeiro momento, “o sentimento das coisas que se havia formado”,
malgrado o sofrimento que consiste em ver fogo no campo semeado, num imenso esforço
humano que ameaça desaguar em vão115. Com este sentimento renitente, provido de um senso
de historicidade e função social, ainda que dolorido e em dissolução, os poetas da década
poetaram sobre sua experiência, no fragor da hora, sem distanciamento temporal que os
permitisse ver em perspectiva o que viviam, mas intuindo e testemunhando o seu difícil lugar,
entre promessa e desvão.
Assim, a lira marginal viveu seu (contra)tempo. Vértice dessa condição intervalar –
espantado, articulador e generoso na força coesiva e tensa que produzia com sua poesia e sua
114
HOLLANDA, Posfácio à antologia 26 poetas hoje, p.262. Como indica a autora, trata-se de versão modificada
de “Observações críticas e nostálgicas?” publicado na Revista Poesia Sempre, ano 5, n.8, Rio de Janeiro:
Fundação Biblioteca Nacional, 1997. Nesta, o trecho citado está na p.347, onde, ao parágrafo final – “prefiro
pensar nos 26 Poetas como um trabalho irrecusável, visceralmente contextualizado, feito a várias mãos,
construindo um cluster político-literário que, seguramente, ainda não disse tudo a que veio naqueles idos de
1976” – a autora acrescenta uma confissão de angústia: “Há ainda uma dúvida que não coloquei, não por
esquecimento (penso nela desde primeira linha destas observações), mas por não querer pensar nisso: por que,
proporcionalmente, tantos mortos entre meus jovens de 26 poetas?” O grifo, que é meu, indica a tendência de
fuga ao luto de nossa cultura.
115
Tal sentimento só será derrotado de fato posteriormente, com os avanços da dessolidarização social nas
décadas seguintes, especialmente nos anos 90, acompanhados de processos intelectuais de desautorização da
experiência histórica e suas categorias explicativas, que vieram no bojo do pensamento “pós-moderno”. Derivo
os comentários deste parágrafo de uma análise desenvolvida por Schwarz acerca da desconstrução literária e sua
materialidade histórica no tempo presente, quando “os esforços de integração da sociedade brasileira resultaram
num quase-apartheid”. Cf. Fim de século. In: Seqüências brasileiras, op.cit., p.157-159. Por sua vez, os contos
de Ivan Ângelo, em Casa de Vidro, já apontavam um grau de violência e dessolidarização social, na década
mesma de 70, cujas perspectivas não eram boas.
278
crítica –, o poeta Cacaso se moveu, no seio do corte, como “um pássaro [que] pensava suas
penas/e já sem resistência resistia.”116
6.3. Chacal: tempo histórico, alegria e experiência no meio-fio
A diferença fundamental no modo como a chamada segunda geração dos marginais vai
traduzir a condição intervalar resulta de sua formação político-cultural, na qual aquela
experiência de mobilização social e o senso de responsabilidade histórica já vinham sendo
duramente golpeados117. Guilherme Mandaro, um dos membros da Nuvem Cigana, deixara
isto bem claro em um texto publicado na revista Anima, em abril/maio 1976118:
[...]
a liberdade popular
desapareceu de minha terra
quando comecei a crescer.
Restaram-me as arquibancadas
e alguns dias de carnaval.
Não me serviram as roupas feitas
desse tempo.
Os mais antigos passavam-me os livros
Minha turma de rua
singrava por entre seringas
por um último suspiro.
Os partidos e os programas
Já traziam as marcas das prisões
e talvez tenha sido sempre assim
entre os que discutiam o futuro
ela me ensinou a amar
e que para semear a cidade
e nele o coração dos homens
é preciso mais do que um manifesto indignado
[...]
116
Versos de “Grupo Escolar”, seu poema que intitula o livro de 1974, que caracteriza sua “conversão” à poesia
marginal. In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.39.
117
As grandes linhas dessa diferença foram comentados no cap.5. Hollanda, que trata das duas gerações em
Impressões de viagem, p.99-105, apresenta como diferenças básicas: o clima paradoxalmente ufanístico e de
“vazio” cultural; a censura violentíssima, impedindo a circulação de manifestações críticas; o salto na indústria
cultural, encontrando ressonância no consumismo da classe média; a ideologia da competência; a política
cultural estatal, favorecendo a cooptação de artistas; o deslocamento tático do debate político para a “resistência
cultural”, gerando toda sorte de mitificações e heróis quixotescos; a gradual configuração de um público que
consome política comercialmente, de modo que as obras engajadas se vão tornando rentáveis para as empresas
de cultura; o esvaziamento de conceitos como “nacional” e “popular”, que se tornam estereotipados; a
universidade tecnocratizada, onde o ensino se especializa e onde, ademais, a moda estruturalista vai-se deformar
em impostação intelectualizada, que não respondia aos anseios de alunos e professores; abertura de espaço, nos
jornais alternativos, como o Opinião, para a crítica à política cultural, a divulgação de temas da micropolítica e
do pensamento de Foucault, desdobrando-se em crítica da ortodoxia marxista e do autoritarismo de esquerda.
118
Apud MESSEDER PEREIRA, Retrato de época, p.34-35. Ver, no cap.1. a análise de Thompson sobre Os
românticos ingleses, em que o autor nota, como fruto da desilusão política, o repúdio precipitado desta, sem que
houvessem sofrido as etapas anteriores do processo.
279
Como roupas velhas, as referências até então orientadoras já não serviam mais e outras
não haviam ainda surgido (surgiriam?). O novo poeta se via despido e a própria noção do
tempo histórico se esgarçava, junto com as dúvidas que elidem as diferenças passadas (como
acontece quando se afirma “foi sempre assim”) e as perspectivas futuras, postas em cheque
pela crise das utopias e das visões teleológicas. Tal nudez, embora bela na dor de seu
despojamento existencial, não permitia porém a criação de soluções. Sabe-se que um
“manifesto indignado” não basta, mas o que basta, sobretudo para aqueles cujo instrumento é
a palavra? A esperança apresentada no final do poema – “naquela luzinha de bloco
habitacional/primeira que se acendeu/ao lado da estrada de ferro” –, frágil como uma vela no
vendaval, não traz consigo nenhum sinal indicativo de como ela se realizaria. A “turma de
rua” queimava navios sem saber construir pontes, ficando à mercê do mar, com a promessa
das “seringas”, que em breve mostraria seus limites.
A linguagem que resta é puramente lúdica e circense, uma poesia de prestidigitação,
como neste poema em que Chacal inventa, em um universo de antíteses articuladas em torno
da espera e do desespero, a possibilidade do mundo ser mudado magicamente, “enquanto o
vento marasma” e se ouve “dilan na vitrola dedo nas teclas”, lembrando que a resposta “is
going in the wind”:
[...]
espere baby não desespere
temos um quarto uma eletrola uma cartola
vamos puxar um coelho um baralho e um castelo de cartas
vamos viver o tempo esquecido do mago merlim
vamos montar o espelho partido da vida como ela é
espere baby não desespere
a lagoa há de secar
e nós não ficaremos mais a ver navios
e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida
[...]
porque nesse dia chegará a roda da fortuna
porque nesse dia se ouvirá o canto do amor
o meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite
com estampidos perdidos.
O raciocínio cede à ludicidade infantil e oscila entre o pensamento mágico e o princípio
de realidade. A predominância de verbos no futuro e a declaração dos últimos versos
desvelam pelo avesso, sob a evasão utópica, a atrocidade do tempo presente: o que não mais
ocorrerá, eis o que é (e vice-versa). Mas, novamente, nada indica como se juntarão os cacos
especulares da vida, nem como as circunstâncias se tornarão favoráveis ou como as pulsões
vitais e eróticas superarão os instintos de morte ou impulsos suicidas que ferem o corpo da
280
noite. Os meios, o poeta irá tirá-los da cartola. A auto-imagem de poeta que Medeiros119 havia
detectado na Nuvem Cigana, de uma figura enviesada, chapliniana, anti-herói como um
palhaço auto-irônico, derivada das diversas referências circenses na poesia do grupo, adquire
contornos mais precisos como um “poeta-mágico”.
Tal combinação de ausência de projeto e pensamento desejante se tornaria marca
registrada da linguagem deste grupo, que se queria desburocratizada, com o que acreditava
revelar um “sentido crítico independente de comprometimentos programáticos”, pois o
descompromisso mesmo seria a “resposta à ordem do sistema”120. Em conseqüência,
produziu-se uma literatura de visões, e não juízos, avalia Hollanda, uma vez que foi atingida
pelo processo de crescente quebra de referências filosóficas, políticas e existenciais, e,
reativamente, desmistificava a obra de arte junto com tudo o mais que pudesse ter um ar de
seriedade ou formalidade, obcecando-se por imagens comuns ou surpreendentes do cotidiano,
elevado à máxima importância em registros irônicos e ambíguos, ou seja, nada ou qualquer
coisa importava.
É possível observar aqui um processo assemelhado àquele que Schorske viu no
movimento geracional de Die Jungen (Os Jovens) austríacos no final do século XIX, marcado
por forte tensão, que podia chegar a uma hostilidade de cunho edipiano contra seus pais,
resultante da derrota política destes na sua defesa dos novos princípios liberais.
Decepcionados com a geração anterior e com a sua própria, foram tomados de desilusão, o
que os conduziu a situações de deriva existencial, despolitização ou recolhimento na vida
psíquica. Transferindo-se para esta esfera a região germinal de sentidos, desenvolveu-se a
tendência de pensar sem a história, conforme a expressão do autor121.
A relação entre derrota política de uma geração e des-historicização da experiência
histórica da geração seguinte – o paradoxo é apenas aparente, pois a experiência continua
sendo histórica, mas não é pensada ou sentida como tal – é delicada em numerosos sentidos.
Na modernidade, a fragmentação e a irregularidade temporal contribuíram para a perda do
sentido de ordem estruturada que primara no mundo antigo e medieval, bem como de
continuidade e unidade internas dos fatos. Desvanecida a crença numa ordem externa
reguladora, o tempo veio a ser cada vez mais concebido dentro do contexto, ordem e direção
da história humana. A própria verdade se tornou função do tempo e do processo histórico. Em
virtude disto e da percepção de “aceleração” dos acontecimentos, cresceu num primeiro
119
MEDEIROS, Fernanda. Artimanhas e poesia: o alegre saber da Nuvem Cigana, op.cit., p.119 ss.
HOLLANDA, Impressões de viagem, p.109 e 111. Para o restante do parágrafo, p.126.
121
SCHORSKE. Pensando com a história, p.176-178.
120
281
momento a preocupação com o tempo e a história no mundo moderno, adquirindo vulto a
compreensão temporal em sua dimensão histórica: num mundo de mutação constante, a
história se mostra o único substrato permanente, embora sua única lição pareça ser a mudança
incessante e inexorável122. A consciência histórica se tornou, assim, um problema
eminentemente moderno, como sugere Gadamer, na medida que passam a existir tradições em
confronto, cujos cruzamentos precisam ser contemplados pelo ato da interpretação,
historiográfica ou não. Se houvesse apenas uma tradição, na qual todos estivessem imersos,
não haveria possibilidade de interpretação, apenas de repetição do mesmo, e por conseguinte
não haveria consciência histórica, pois a história é formada de resquícios de uma(s)
tradição(ões) dentro do presente, os quais de algum modo restaram do passado e nos
interpelam. Assim, a consciência histórica operante desde o advento da modernidade
pressupõe a imisção de passado e presente, do estranho e do familiar, de sujeito e objeto123.
Todavia, novas transformações na experiência e no conceito de tempo adviriam com a
crise da modernidade na segunda metade do século XX. Mudanças na sociabilidade e nos
sistemas de crenças no seio da cultura ocidental se conjugam às mudanças econômicas e
políticas que caracterizam o capitalismo tardio. A concepção da história como um processo
linear progressivo, sempre voltado para adiante, revelou-se inconsistente, gerando uma
“fratura no próprio centro da consciência contemporânea”. Os fracassos do progresso material
e das revoluções políticas criaram uma atmosfera de dúvida geral, rompendo a crença na
história e no futuro, que passa a ser visto com desconfiança: como diz Paz124, desenvolveu-se
a percepção de que a modernidade teria supervalorizado “um tempo que não é”, apoiando-se
num futuro “inatingível e intocável”. Assim, uma lógica da história havia nascido no século
XIX para ser mais tarde substituída por um certo ceticismo: falta sentido para o movimento da
história, seu universo é complexo e fragmentário, não há direção de todo ou há muitas
direções, sem que, no entanto, haja significado em termos de aspirações e valores humanos. O
declínio da idéia de progresso ou desenvolvimento humano e social reforça a fragmentação e
a ausência de sentido. O tempo passa a ser experimentado como um fardo ou, numa tendência
mais recente, como um valor neutro125.
A mudança na sensibilidade da época, tendendo a afirmar a concretude e particularidade
das coisas, favoreceu a irrupção do presente, a desvalorização do futuro e o rompimento do
122
Cf. MEYERHOFF, O tempo na literatura, op.cit., p.81-87 e PAZ, Os filhos do Barro, passim.
Cf. GADAMER, O problema da consciência histórica, passim, especialmente Conferência 5. Observe-se que
neste ponto, a visão de Gadamer tem pontos de semelhança com o pensamento de Benjamin, talvez porque
ambos dialoguem com Dilthey e outros pensadores da hermenêutica.
124
As expressões entre aspas se encontram em Paz, idem, p.51-52 e 191.
125
Cf. MEYERHOFF, op.cit., p.88-91.
123
282
tempo linear. Transformou-se mais uma vez a imagem do tempo: o agora, e não o antes ou o
depois, tornou-se o valor central da tríade temporal; passado e futuro são reduzidos a
dimensões do presente, que se torna o centro de convergência dos tempos126. As
transformações incessantes, e por vezes surpreendentes, e o alto grau de violência do século
XX negam a suposta racionalidade do processo histórico; a própria história começa a ser
concebida como plural: há muitos passados e muitos futuros possíveis.
A temporalidade e a individualidade modernas, deste modo, pela força com que atingem
e transformam a vida humana em todas as suas instâncias, tornaram-se traços marcantes da
poesia do século XX. A literatura moderna, conforme sublinha Meyerhoff, passou a priorizar
a manifestação do tempo vivido subjetivamente, em detrimento do tempo público, que seria o
tempo da ação social e da comunicação, de validez objetiva na natureza, construção lógica e
cronologicamente medida. Trata-se agora de priorizar o “tempo humano”, a consciência do
tempo como um passado de experiências ou como parte da textura da vida; logo, um tempo
psicológico, experimentado direta e imediatamente. A literatura contemporânea é, então,
pródiga em obras que elaboram o tempo como dado imediato da consciência, como
experiência127, como aqui se vê.
Por outro lado, do prisma subjetivo, uma recusa absoluta de qualquer objetividade
histórica, substituída por recursos do próprio sujeito, acaba na negação dele mesmo, uma vez
que não resta medida comparativa para a “medida de todas as coisas”, conforme argumenta
Adorno128. Na fusão que conseqüentemente se procede entre sujeito e objeto, dada a
eliminação de delimitações, o eu vem a adquirir a nulidade das coisas e o humano é dominado
pelas relações objetuais da sociedade burguesa. Nas sociedades em que a cultura é
administrada por ditames estatais e industriais, os indivíduos vão-se vendo privados da
experiência de si mesmos, seus dolorosos segredos reduzidos às fórmulas banais da cultura de
massas, o que impede, ao invés de ajudar, um efetivo trabalho de autoconscientização
psíquica, para constituição de uma subjetividade mais rica. Em outros termos, os sujeitos
perdem os impulsos que não se designem por constelações reconhecidas, de modo que – ao
contrário da transgressão que pretendiam com seu descompromisso histórico – o reino da
normalização se estende. O que é incomensurável se torna, assim, falsamente comensurável,
126
Cf. PAZ, op.cit., p.51-2, 190-198.
Cf. MEYERHOFF, idem.
128
O autor brinca com a frase do sofista Protágoras que se tornou lema do antropocentrismo: “o homem é a
medida de todas as coisas”. Cf. Mínima moralia, aforismas 39 e 40, p.54-56, para o restante do parágrafo. A
crítica de Adorno se dirige a uma psicologia convencional, que acompanhou a ascensão do indivíduo burguês,
sem se dar conta que na ilusão da pura interioridade se repete o princípio da dominação do humano: o homem se
divide em faculdades como projeção da divisão do trabalho; o sujeito adquire valor-de-troca como os objetos; o
eu-privado reflete o mesmo valor que tem a propriedade no mundo burguês.
127
283
não porque tenham sido adquiridos melhores valores e recursos de percepção e reflexão,
capazes de expressar o que era antes irrepresentável, mas porque se nivelou tudo por formas
convencionais, ainda que novas.
No entanto, nada permite afirmar que a preocupação ética que Cacaso sempre frisou
na poesia de Chacal não fosse sincera. A Nuvem Cigana, como sugere Medeiros, acreditava
verdadeiramente na experiência de transgressão ou exceção, realizada pela celebração da
comunidade em festa, em contraposição à normalidade entediante da vida sob a ditadura, e
por um “alegre saber” como forma de recusa indignada à violência e abusos do poder129.
A linguagem lúdica e a alegria – características do universo infantil e juvenil (para este
ponto, o desejo de maioridade social de Cacaso não convergia) – chamaram a atenção de
todos como uma marca da movimentação poética da década. A contradição com o contexto
plúmbeo gerava indagações, assim resumidas por Simon e Dantas: “Há, de um lado,
degradação e violência, mas há também, surpreendentemente, muito prazer, algo de leve e
ingênuo e uma alegria compulsiva”.130 A alegria, sobretudo, que aparecia menos no corpo
textual dos poemas do que nos depoimentos, relatos e comentários críticos, promoveu dois
grandes blocos de opiniões a respeito. Uma primeira visão, que se pode qualificar de mais
compreensiva ou mais condescendente, seguia a leitura de Silviano Santiago, que percebia na
alegria um modo maior, e não menor, encontrado pela literatura para manifestar sua
“descoberta assustada e indignada da violência do poder” e a ela se opor. Misto de susto e
indignação, a alegria comporta um valor de nobreza humana que o autor defendia ao
diferenciá-la, como no romance Em Liberdade, já mencionado, do riso carnavalesco131.
129
Cf. MEDEIROS, idem, p.125-128. A autora segue, aqui, o raciocínio de Santiago, mencionado a seguir.
SIMON e DANTAS. Poesia ruim, sociedade pior, op.cit., p.103. Veja-se o contraste, p.ex., entre a dicção
poética de Afonso Henriques Neto e este seu depoimento a Messeder Pereira: “[...] eu saí de Brasília de terno e
gravata [...] Já estava enlouquecido, a cabeça enlouquecida, porque aquilo não tinha nada a ver comigo e quando
eu chego aqui, realmente, eu boto um tamanco no pé, deixo o cabelo crescer [...] e pra mim foi uma alegria... 72
foi um ano alegre pra mim porque foi realmente um encontro comigo mesmo [...]” MESSEDER PEREIRA, op.cit.,
p.189.
131
Silviano, pela voz do personagem Graciliano Ramos, mostra o desejo de prazer como efeito da prisão e da
tortura: “Sou mais egoísta, busco uma situação em que não tenha mais só desprazeres. Quero o meu. Procuro
menos a dor, mais e mais a alegria e o prazer”, mas também critica o uso político desse sentimento: “Os regimes
fascistas têm a loucura pelo espetáculo. Através destes, confundem alegria e tristeza [...] a tristeza é pelo
desaparecimento definitivo do outro, a alegria é porque a ordem do rei é brincar. São sentimentos impostos, não
são espontâneos”. Por isso, “se quisermos falar da liberação do povo brasileiro, não será incentivando mais o
espírito ‘alegre’, ‘fraterno’, ‘contagiante’, ‘democrático’ do carnaval. [...] O grito alegre de revolta no momento
em que se é pisado. O gosto em confundir humilhação com humildade. Os infindáveis labirintos dos
sentimentos, aparentemente livres, mas apenas permitidos.” Em Liberdade, p.114, 156, 158-159. Ver também
SANTIAGO, S. Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões. In: Nas malhas da letra. São Paulo:
Cia.das Letras, 1989. Na mesma direção seguem as observações de Pedroso e Vasquez acerca da relação de
artistas plásticos com o “incoercível anarquismo” do bloco de carnaval Cacique de Ramos, tornado símbolo de
“uma alegria que não é nem tão alienada, nem tão inocente quanto querem seus detratores, sendo, ao contrário,
130
284
Concebe-se, assim, um teor de negatividade crítica ao contentamento que o retira do âmbito
da alienação, consistindo, inversamente, na recusa de endossar a imposição de um mundo
triste.
O outro lado dessa recusa, todavia, não é refutável tampouco: uma espécie de excesso
lúdico que zombava irresponsavelmente de toda e qualquer seriedade sem distinção, diz Costa
Lima, apresentando resultados indesejáveis: “os anos esfuziantes, e não só os agentes
torturadores, escondiam as masmorras à prova de som. A chacota era tomada como antídoto
contra o terror.”132 Para além dos processos já bem conhecidas, em que a festividade e a sanha
de diversão se revelam como mecanismos de fuga ao tédio, à tristeza ou ao spleen – que
muito nutriram o imenso aparato de diversão da indústria cultural –, há também, nesta
dinâmica social da alegria em momentos históricos muito pesados, um elemento insidioso de
dominação política sutil, uma vez que “faz parte do mecanismo de dominação impedir o
conhecimento do sofrimento que ela produz”, nas palavras de Adorno mais uma vez. O lema
nazista de obter “força pela alegria” produzira uma confusão fatal na cultura que se instalou
desde então, pois manter uma linha mínima de resistência no mundo intelectual e artístico
contra a dominação em suas formas mais insidiosas passava a exigir o reconhecimento do
“inferno em que se formam as deformações”, e que, perversamente, o “evangelho da alegria
da vida” funciona como mecanismo de (auto)persuasão de que não se ouvem os gritos das
vítimas133.
Aquilo que se recusa a ouvir e ver, e sobre o que não se fala, é fruto de processos de
medusamento que imperam na sociedade, na forma de uma paralisia causada pelo horror, ou
uma movimentação só permitida para quem desvia os olhos. A metáfora da medusa, presente
nos poemas ou textos explicativos da época o confirmam. Aarão Reis utilizou este termo para
sugerir a (falta de) reação dos setores sociais que assistiram com a mesma passividade
despolitizada à luta armada, aos jogos de futebol e aos programas de entretenimento na
televisão134. O estudo de Vernant sobre as maneiras de figuração da alteridade no mito grego
mostra que a Medusa, como uma das três Górgonas, traduz a experiência de um
absolutamente outro, o outro do homem, mas que não o projeta para o alto, como na fusão
dionisíaca com o divino, e sim para baixo, jogando-o na confusão do horror e do caos. Tratase da região do insólito e da estranheza, do embaralhamento das classificações e
expressão da recusa em endossar um modelo social imposto por uma elite insensível e distanciada das
preocupações reais do povo que governa”. PEDROSO e VASQUEZ, op.cit., revista Acervo, v.II, n.1-2,1999, p.79.
132
COSTA LIMA. Abstração e visualidade, op.cit., p.136.
133
Cf. ADORNO, op.cit., aforismas 35,38 e 91, p.49, 53, e 122. Também em Oehler há discussões sobre o
significado da diversão entre escritores franceses pós-1848. Cf. op.cit., p.102 ss.
134
Cf. AARÃO REIS. Ditadura militar, esquerdas e sociedade, p.52. Comentado no cap.5.
285
enquadramentos habituais (masculino/feminino, belo/feio, celeste/infernal, humano/bestial
etc.), numa confusão que gera pavor – simetricamente à confusão de Dionísios, que produz
liberação pela alegria e beatitude – pois a imbricação produz uma deformação monstruosa dos
traços, que oscilam entre o terrificante e o grotesco. O que rompe o choque e a tristeza,
observa o autor, é um tipo de comportamento escandaloso, grotesco, anômico, como uma
sexualidade desenfreada ou um certo registro poético, de invectiva satírica e derrisória,
operando um efeito liberador pela linguagem: “ditos injuriosos, zombarias obscenas, gracejos
escatológicos”135... como se pode ver na poesia de um Roberto Piva, ou no Jornal Dobrabil
que Glauco Mattoso136 montava e enviava pelo correio no final da década, ou ainda na
pornografia que dominou o cinema brasileiro naquele período.
Mais que alegria, então, percebe-se euforia e escape: nas palavras de Chacal: “uma
gargalhada no canto da sala [...] como se alegria tivesse sido convidada. Mas não foi. Tudo
não passou de um mal entendido”137. Por outro lado, olhar nos olhos de Medusa, em
confronto direto, traria ao homem o risco de fascinar-se, de perder-se, de cegar-se ou de
identificar-se. Neste caso, quando se é invadido pela figura que se encara, diz Vernant, a
imagem toma o lugar da identidade humana e produz o terror da alteridade e da petrificação: a
terrível verdade do inumano138. Por isso, em Afonso Henriques Neto,
[...]
Há uma esperança nas ruas, nas pedras, no acaso
de tudo, uma esperança, uma forma suspensa
entre o aparente e a essência, entre o que vemos
135
VERNANT, J.P. A morte nos olhos: figuração do Outro na Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988,
p.42-43. Para o restante, passim. Vernant descreve 3 modos de lidar com a alteridade: Ártemis, num eixo
horizontal, que visa à reintegração, pois a deusa que caça nas regiões limítrofes entre natureza e cultura pode
salvar o homem da bestialização; Dionísios, que embriaga de beatitude divina, projetando o humano
verticalmente para cima; e Górgona, que projeta verticalmente para baixo, arrancando o homem de sua vida e de
si mesmo em direção à fronteira infernal do mundo dos mortos: “nas paragens infernais, Treva, Pavor, aspectos e
gritos monstruosos associam-se para exprimir a ‘alteridade’ dos poderes estranhos ao domínio das divindades
celestes e ao mundo dos homens, a condição totalmente distinta [...]”, p.68.
136
A obra de Glauco obteve diferentes tipos de recepção, mas nenhuma deixou de marcar seu fascínio. Simon e
Dantas anotam, sob o pastiche de todos os procedimentos e estilos, citações glosadas, humor escatológico, uma
estratégia perversa que tira vantagens exatamente da indiferenciação estilística e do estado de nulificação do
sujeito. Sua autoconsciência, usada para desqualificar e anonimizar o texto e a experiência, mostra uma “imagem
aberrante e ameaçadora” daquela sensibilidade. Op.cit., p.102. Já Cacaso vê, nos abusos de Glauco, em que se
misturam antropofagia e escatologia em chave experimental, um “sadomasoquismo de efeito purificador”, isto é,
Glauco seria um caso à parte na poesia brasileira, uma “espécie de espírito maligno” que usa de tudo e de tudo
desconfia, satirizando tanto a falta de seriedade quanto a falsa seriedade, cujo fito maior é “dar dignidade à
dignidade e à sua falta”. Com isto, o poeta buscava o contato do leitor, mas não a cumplicidade, pois seu ponto
de equilíbrio é o desequilíbrio de formas e valores. Cf. “Vinte pras duas”, in: Não quero prosa, p.232-233.
Publicado originalmente no jornal Leia Livros, n.53, dez 1982/jan 1983.
137
Trecho de poema do 1° livro de chacal, Muito Prazer, Ricardo, escolhido pelo autor para declamar no vídeo
CHACAL. Antologia Pessoal, 29 junho 1994, Arquivo histórico do CCBB, n° 378. O poema ilustra o comentário
do poeta sobre o livro, escrito aos 19 anos de idade, quando “as coisas aconteciam de forma muito violenta em
torno de mim.”
138
Cf. idem, p.101-103.
286
e a substância, uma esperança, uma certeza talvez
de que o rio não se dissolva no mar, de que
o ínfimo, o precário, a voz, a sombra,
o estalar de carnes na explosão
não se dispersem no todo, impensável medusa da inexistência.
Há uma luz qualquer sonhando integração [...]
enquanto somos e nos oxidamos, enquanto
somos e prosseguimos.139
Neste trecho, a esperança se associa à “alegria” por seu papel de antídoto contra a
dispersão e a inexistência, como uma “forma suspensa” que pode estar ou ver entre as coisas
e, neste lugar intervalar, permitir a imagem da integração. Em sua polissemia poética, a
“impensável medusa da inexistência” pode traduzir tanto o horror diante da morte, quando se
desintegram os átomos da vida, quanto a dimensão desumana ou a-humana que se constitui
como a extrema alteridade de um corpo social. Neste caso, a impossibilidade de mover,
enxergar, pensar ou dizer remete aos mecanismos de um trauma coletivo e histórico,
conforme descreveu La Capra. Uma das engrenagens deste mecanismo consiste na construção
social de um bode expiatório sacrificial, que funciona como oferenda coletiva, promovendo
um deslocamento da violência interna da sociedade para uma figura catalisadora. Quando o
bode é eliminado, retorna o horror interno140. A função do medusamento traumático será,
então, impedir que se vejam as terríveis cisões que ferem a sociedade por dentro. De modo
semelhante, após a eliminação da luta armada e dos “comunistas”, que haviam funcionado
como bodes expiatórios no Brasil da ditadura militar, a poesia indicava a vigência, em
diversos setores sociais, destes processos traumáticos, turvando as fissuras que se produziram.
A recusa “alegre” dos poetas marginais, no entanto, não parecia chegar a tal ponto.
Obviamente, as formas festivas da alegria são um modo de evitar o luto social necessário, mas
não se pode afirmar, a partir dos textos poéticos, que predomine o impacto imobilizante de
quem vê o horror nos olhos de Medusa. Tampouco impera nos poemas a astúcia heróica de
Perseu, que recorreu à estratégia do espelho para ver a Górgona sem encará-la, obtendo, como
prêmio de sua luta vitoriosa, o cavalo alado Pégaso, que saiu da medonha cabeça cortada...
Aquela poesia revelava sujeitos entre a integridade e a desintegração, entre o luto e o trauma,
a história e a des-historicização, confirmando sua condição intervalar já abordada. À sua
maneira ponderada, Chico Alvim – que Heloisa Buarque chama de “investigador catedrático
139
“Texto”, in: O Misterioso Ladrão..., p.21.
O autor discute esta questão a partir de Derrida, que propõe a desconstrução dos pares binários (os bodes, o
bem/mal) pelo discurso radicalmente descentrado, que poria em ato o sacrifício, neutralizando-o. Contudo,
critica La Capra, isto dissemina a angústia e produz transferência, e não superação. Cf. Escribir la historia,
escribir el trauma, p.48.
140
287
dos sentimentos de sua geração” – procurou explicar, anos mais tarde, o significado daquele
sentimento, o que indica o quanto a questão foi problemática:
É comum se associar a alegria de 70 à alegria de 22. Não parece tão evidente essa
aproximação. A alegria de 22 era mais clara, mais transparente, surgia num espaço
político aberto. Ao passo que a nossa alegria é de natureza fundamentalmente
diferente, ela nasce do medo. Nossa busca de prazer é desesperada. A qualidade
desse sentimento parece ter mais a ver com a literatura do século XIX. Como agora,
as estruturas políticas estavam definidas, havia pouco a ser acrescentado, o processo
literário era fortemente dissociado do espaço político. A alegria que disfarça o
desespero.141
Independentemente das precisões históricas – pois seria preciso saber a qual literatura
oitocentista o autor se refere – é bastante elucidativa a indicação do poeta acerca das
ambigüidades e dilemas que atingiam a poesia marginal. O par alegria/desespero bem ilustra a
laceração da experiência existencial e histórica. Prisões, sumiço de amigos e parentes, mortes,
exílios, uso intenso de drogas, omissões forçadas ou não, enlouquecimentos, suicídios
marcaram poetas e poemas. A relação dos poetas com o passado e o futuro se modificava, e o
prazer presente de fazer poesia se eivava de angustiantes paradoxos. Ressoava possivelmente
em todos os ouvidos, ou ao menos nos mais sensíveis e afeitos à memória, os versos de
Torquato Neto em “Geléia Geral”, relendo a “alegria de 22” pautada por Oswald de Andrade:
“a alegria é a prova dos nove/e a tristeza teu porto seguro”...
A relação observada por Oehler na literatura francesa após 1848, marcada pela
despolitização forçada e o luto social proibido142, é também notável no Brasil, com o selo de
sua especificidade cultural: à repressão política, que põe obstáculos à elaboração
necessariamente coletiva e pública do luto social, acrescenta-se o traço cultural da alegria
como fator estruturante da auto-imagem identificatória do brasileiro, o que constitui um
elemento a mais a ser considerado na peculiaridade do teor testemunhal das obras literárias
nacionais. Entre ser alegre ou triste, os poetas marginais parecem haver seguido, ainda que um
pouco à revelia de alguns, a senda de Cecília Meireles: “Não sou alegre nem sou triste:/sou
poeta”143.
Acompanhando, assim, a condição intervalar, sua alegria era igualmente intervalar,
pendurada na corda-bamba de Cacaso ou no parapeito das janelas em que todos se punham a
141
Segundo HOLLANDA. A Hora e a vez do “Capricho”. In: GASPARI, HOLLANDA e VENTURA. 70/80 Cultura
em trânsito, p.204. Originalmente publicado no Jornal do Brasil/Caderno B, 11/04/1981. sobre a “alegria de
22”, ver p.ex. A.Cândido, para quem “ a alegria turbulenta e iconoclástica dos modernistas preparou, no Brasil,
os caminhos para a arte interessada e a investigação histórico-sociológica do decênio de 30.” CÂNDIDO.
Literatura e Cultura de 1900 a 1945..., in: Literatura e sociedade, p.114-115.
142
Cf. OEHLER, D., op.cit., passim.
143
Em “Motivo”, do livro Viagem. MEIRELES, Cecília. Obras completas. 6. reimpr., 3.ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1987, p.81.
288
espiar o mundo, à beira dos abismos de si e da história. Na metonímia do meio-fio, Chacal,
quiçá em um de seus mais belos poemas144, testemunhou a angustiante experiência da vida na
cidade, sob a política dos coturnos, no tempo dos homens e mulheres partidos e da razão
fragilizada:
tem um fio de goma
entre o chiclete e eu
recém-mascado
tem um fio de carne
entre teu corpo e teu filho
recém-nascido
tem um fio de sangue
entre a Razão e eu
recém-partido
144
tem um fio de queijo
entre eu e o misto quente
recém-mordido
tem um fio
de vida
entre eu e teu corpo
recém-amado
tem um fio de saudade
entre eu e você
recém-passado
tem um fio de luz
entre eu e mim
recém-chegado
“meiufiu”, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.222. Segundo Cacaso, este texto seria verdadeira “iluminação
avulsa” do lirismo de Chacal. In: Tudo da minha terra, op.cit., p.147. Para a metonímia como figura
característica do teor testemunhal, ver discussão efetuada com base em Seligmann-Silva, no cap.3 acerca do
poema “Cogito” de Torquato Neto.
7. Vozes Presas:
O Interregno de Alex Polari (1970-1979)
quando o sol tornar a colorir a figueira da montanha
aves iluminadas estarão cantando em teu silêncio.
escutarás então o inexistente tempo
fluindo sob o peso morno das lágrimas:
sob sob.
[...]
saberás que atrás de cada tortura
de cada assassínio
de toda a impostura
detrás de cada negação ou falsificação
do humano manancial
o olhar de vida
o permanente olhar da vida
sempre ardeu como um grito saltando do pó do avesso do ódio
dos ossos das sepulturas dos cárceres do rosto vazio implacável.
(Afonso Henriques Neto, “Quando o sol”, em Restos & estrelas e
fraturas)
A conjuntura de recrudescimento repressivo após o AI-5 configurou uma dimensão a
mais de violência do Estado na história brasileira, que, brutal desde o princípio – basta
lembrar o processo da colonização, a relação com os índios, a escravidão, além do tratamento
dispensado aos imigrantes e aos pobres no período republicano –, acumulava agora mais uma
camada de violência, com a diferença qualitativa de um amplo envolvimento das Forças
Armadas e do planejamento, por parte dos governos militares, de aniquilação física e moral de
seus opositores, como ocorreu nas diversas ditaduras latino-americanas, o que permitiu
caracterizar a especificidade daquele momento político como terrorismo de Estado1. Naquele
1
Em alguns casos, como as ditaduras argentina (cerca de 30 mil mortos e desaparecidos) e chilena (c.3 mil), a
violência foi ainda maior do que no Brasil (c.300) e Paraguai (no Uruguai, a repressão ligou-se à Argentina), o
que não justifica seu uso, mas explica algumas diferenças. No entanto, os elementos de uma ação planejada estão
também presentes no regime brasileiro, como se vê no relatório BRASIL: nunca mais. Em “Traumatismo de la
memoria e impossibilidad del olvido em los países del Cono Sur”, o historiador Bruno Groppo observa: “El
terror fue el instrumento elegido, conforme a los principios ideológicos de la doctrina de la ‘seguridad nacional’,
no solo para destruir toda fuerza de oposición, sino también para disciplinar a la sociedad en su conjunto. Este
terrorismo de Estado marcó un salto cualitativo en el ejercicio de la violencia em las sociedades del Cono Sur
cuya historia, no obstante, no había sido precisamente pacífica: desde este punto de vista, las dictaduras militares
de los años ’70 e ’80 se distinguen nitidamente de los regímenes autoritários anteriores”. O autor menciona o
relatório Nunca Más da Argentina/CONADEP, que fala de “sistema de terror institucionalizado”. In: GROPPO, B.
e FLIER, P. (org). La impossibilidadad del olvido, op.cit., p.22. Com o fito de assinalar essa diferença qualitativa
na violência, Herbert Daniel escreveu: “Tortura sempre houve – e continua havendo: qualquer preso (comum)
pode falar longamente das suas técnicas. O que caracteriza a nova fase que começa no final dos anos 60 e
encontra seu apogeu em pleno milagre econômico é que a tortura deixou de ser um simples recurso policial para
290
quadro, arrefeceram-se as convicções na efetividade de uma oposição ou resistência pacífica à
ditadura, de modo que aumentou o apoio – principalmente por parte dos estudantes – aos
setores de esquerda que defendiam o recurso às armas como estratégia de luta revolucionária.
No Brasil, a violência se exacerbou com a consolidação do aparato repressivo e as
práticas de guerrilha rural e urbana, entre 1969 e 1973, quando entre o Estado e a chamada
luta armada se criou uma espécie de mecanismo de confirmação recíproca, como denomina
Fico, quando a ação de um passava a se justificar pela ação do outro2. De todo modo, o Estado
de fato atuou com dureza, lançando mão inicialmente de diversos instrumentos legais, o que
foi um forte traço da ditadura militar brasileira, que procurava disfarçar o arbítrio sob uma
máscara de legalidade e normalidade, criando um simulacro de regime constituído e
legitimado, pois impedia que a impostura da lei autoritária fosse reconhecida por investi-la da
aparência da “força de lei”, apesar de ser sustentada efetivamente pela violência e, no
extremo, pelo terror. Tal dissimulação gerou uma estrutura perversa do funcionamento do
poder, como diz Irene Cardoso, em que a lógica subterrânea do horror era escondida pela
lógica aparente da legalidade do regime, o que certamente contribuiu para a confusão dos
setores sociais não envolvidos diretamente nas lutas contra o regime e, por conseguinte, para
o ethos persecutório que se instaurou3.
Assim, após o AI-5, o Estado legislou bastante, criando um intrincado de leis e regras
que muito dificultava o trabalho dos advogados, como mostra Annina Carvalho. Destaca-se,
no período de 1969 a 1971, uma série de normas que ampliaram o aparelho repressor: mais
duas leis relativas à segurança nacional (o decreto 510, de março de 1969, que tornava o holdup/assalto em atentado à segurança nacional e o decreto 898, de setembro 1969, que
ser erigida como ‘método de investigação da realidade’. Uma filosofia: cada filósofo tem um método de
pesquisar a Verdade. A ditadura, filosoficamente, com seu método novo, não apenas investigava, como fazia sua
verdade, extorquia com rigor, paciência e sangue. O mais extraordinário é ver como os mecanismos jurídicos
evoluíram para se adaptar a este novo sistema filosófico. [...]”. Passagem para o próximo sonho, p.39.
2
Fico discute como, na memória de militantes de esquerda e de militares, se mantém esta interação, a medida em
que a esquerda crê que foi levada à luta armada pelo AI-5 e os militares, que o Ato foi uma resposta à
“radicalização” da esquerda. Evidentemente, a história não pode se render a explicações simplistas para a disputa
de memórias. Por um lado, a guerrilha era um projeto de alguns setores (mas não todos) de esquerda; por outro, a
criação de um “setor especificamente repressivo” também era um projeto dos militares, que se integrava à
criação de outros suportes básicos do regime, como a espionagem, a censura, a propaganda, que eliminassem
qualquer dissensão à “utopia autoritária” expressa na diretriz da segurança nacional. Cf. FICO, C. Espionagem,
polícia política, censura e propaganda. In: FERREIRA, J. e DELGADO, L. (org). O tempo da ditadura..., p.182.
3
Ver CARDOSO, Irene. O arbítrio transfigurado em lei e a tortura política. In: FREIRE, Alípio; ALMADA, Izaias
e GRANVILLE, Ponce (org). Tiradentes: um presídio da ditadura: memórias de presos políticos. São Paulo:
Scipione, 1997, pp.471-483. Para as medidas legais aqui mencionadas, no mesmo livro, cf. CARVALHO, Annina
Alcântara. A lei, ora, a lei..., pp.402-413. Ver também os trabalhos de Carlos Fico, já mencionados, e o capítulo
“A montagem do aparelho repressivo e suas leis”, no relatório BRASIL:Nunca mais, organizado pelo Cardeal
Arns (Arquidiocese de São Paulo), 20.ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.69-76. Trechos dos atos institucionais
encontram-se no manual de CASTRO, F. História do Direito, p. 523-559. Uma reprodução integral dos 17 Atos
institucionais foi encontrada no sítio eletrônico: <htpp://pt.wikipedia.org/wiki/> Acesso: 9 ago. 2007.
291
reintroduzia a pena de morte no país); o AI-13, também de setembro de 1969, que criava o
banimento político, cujos efeitos na ação penal incluía igualmente efeitos de ordem pessoal,
correspondentes à “morte civil” (ao todo foram banidos 130 cidadãos brasileiros); o AI-14,
que instituía a pena de morte e de prisão perpétua para os “casos de Guerra Externa,
Psicológica, Adversa, ou Revolucionária ou Subversiva” (por pressão internacional, não foi
oficialmente aplicada a pena de morte, comutada em pena perpétua); uma renovação da Lei de
Segurança Nacional, que assegurava a objetivação da doutrina de segurança nacional
mediante o controle total dos meios de comunicação e das artes e a supressão das liberdades
civis; a Emenda Constitucional nº1, que consagrava o arbítrio estatal ao dar ao Executivo a
possibilidade de atuar “legal” ou “excepcionalmente”, sem previsão; o decreto 69.534, de
novembro de 1971, que permitia ao presidente da República redigir “decretos secretos ou
reservados” relativos à matéria de segurança nacional, em cuja publicação no Diário Oficial
constaria apenas o número e pequeno resumo sem quebra do sigilo... Datam daí as operações
de detenção em larga escala, chamadas “operações arrastão” ou “operações pente fino”, que
chegaram a prender até dez mil pessoas em poucos dias, em cidades grandes como Rio de
Janeiro e São Paulo4; a institucionalização da tortura; a criação de órgãos repressivos
especializados, como o DOPS (mais tarde DEOPS- Departamento Estadual de Ordem Política
e Social), a OBAN (Operação Bandeirantes) que deu origem aos DOI-CODIs (Destacamento
de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) e os centros de
informação das Forças Armadas (Cenimar, CEI, CISA).
A tensão política acumulou-se entre 1970 e 1973, no governo Médici, durante o qual
perdurou a assim chamada “guerra suja”, que desmantelou violentamente os grupos
revolucionários armados, perseguindo, torturando e assassinando seus membros. Presos
diversos artistas e estudantes, e estudantes-artistas, participantes mais ou menos ativos das
lutas, iniciou-se um processo de criação de arte e poesia dentro das prisões e porões dos
órgãos de repressão que ainda não está de todo estudado. O artista plástico Carlos Zílio, por
exemplo, pintava pratos de comida e papel; no presídio Tiradentes, artistas diversos
realizaram trabalhos, como Bartolomeu José Gomes (Bartô), Rodrigo Lefèvre, Sérgio Ferro,
Carlos Takaoka, Sérgio Sister. Alex Polari começou a escrever poemas depois de preso
4
A maioria era liberada após averiguações, mas centenas ficavam detidas para interrogatórios, segundo Annina
Carvalho, que constata não ser possível precisar o número de presos políticos detidos pela polícia civil ou militar
no país, no período 1968-1971, pois os advogados não tinham acesso aos autos, alguns processos incluíam vários
indiciados e a imprensa publicava informações censuradas. Relatórios de ONGs revelam ter havido, em 1971,
cerca de 5 mil presos, detidos por meses ou anos, esperando julgamento no Brasil. Cf. CARVALHO, A. op.cit.,
p.404.
292
(1971-79), como forma de suportar e dar expressão ao sofrimento5. Evidentemente, estes
trabalhos só vieram a público posteriormente, quando, sobreviventes, estes artistas
encontraram apoio institucional e/ou humano que lhes fornecesse meios materiais e psíquicos
de viabilizar a exposição ou edição de seus trabalhos.
Alex Polari de Alverga, nascido em João Pessoa (PB), veio pequeno para o Rio de
Janeiro, onde residiu e estudou até a vida adulta. Quando adolescente, conforme seu relato,
assistiu espantado aos tanques na rua e à tomada do Forte de Copacabana em 1964, quando
surfava naquela praia, momento em que se iniciou, então, nos problemas políticos e sociais do
país. Estudante universitário ativo nas lutas do final dos anos 60 e membro da organização
clandestina Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), no Rio de Janeiro, foi preso em maio
de 1971, com vinte anos, após participar do seqüestro do embaixador suíço, o último dos
seqüestros que objetivavam trocar personalidades diplomáticas por prisioneiros políticos, cuja
negociação com o governo militar foi especialmente difícil6. Diversas vezes torturado, Polari
assistiu da janela de sua cela a tortura fatal de seu amigo Stuart Angel, no pátio do Centro de
Informações da Aeronáutica, na base Aérea do Galeão (RJ), também em maio de 1971 (ver
carta em que relata os fatos a seu advogado em anexo7). A angústia dessa situação traduziu-se
posteriormente em “Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)”:
[...]
Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
[...]
Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
e a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.
5
Segundo depoimentos de Carlos Zílio, no Seminário 40 Anos do Golpe Militar (UFF/URFJ/CPDOC-FGV), e
Alex Polari, no Seminário 64+40 (CFCH/UFRJ). O registro de algumas dessas obras de artes plásticas realizadas
no Tiradentes encontra-se no livro de memórias organizado por FREIRE, ALMADA e PONCE, op.cit., p.385-393.
Algumas reproduções, que posteriormente se tornaram cartazes de exposições e capas de revista, encontram-se
também em RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro, páginas centrais, não numeradas. A Secretaria de Cultura
de Diadema/SP realizou uma exposição de obras de presos políticos nos 20 anos do assassinato de Vladimir
Herzog, outubro de 2005.
6
O relato de Polari se deu também no Seminário 64-40. Sobre os seqüestros dos embaixadores alemão e suíço,
na visão das organizações armadas (incluindo uma autocrítica), ver Passagem para o próximo sonho, narrativa
de Herbert Daniel, outro membro da VPR que, por sorte, nunca foi preso, vivendo na clandestinidade até se
exilar. Ver também RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução, já citado.
7
Reproduzida em FERNANDES, A voz humana, p.235-237. O assunto é tratado no filme Zuzu Angel, sobre a luta
da mãe de Stuart para obter informações do filho desaparecido, do diretor Sérgio Rezende, 2006. O anexo se
encontra no 2º volume desta tese, junto com o Apêndice.
293
Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.8
A exposição aos extremos da violência muda por inteiro o sentido da experiência, de
eros, de tânatos, de cronos... e a dissolução de todas as coisas se avizinha, asa sombria do
avesso de existir, mas um desfazer-se que não deixa morrer. A existência, o mundo e o Brasil
dos Polaris nunca mais seriam os mesmos e a perplexidade se instauraria.
Conforme era comum, Alex passou por várias unidades militares e prisões, como a
Ilha Grande, a Fortaleza de Santa Cruz, o presídio Hélio Gomes (ex-Presídio Policial),
quartéis da Vila Militar, até se achar no presídio Milton Dias Moreira, onde cumpria sua dupla
condenação à prisão perpétua quando foi anistiado9. Na voragem de dores, transferências,
visitas dominicais, correspondência violada, notícias fúnebres, expectativas, lembranças e
desesperos, Polari sobreviveu e continuou, escrevendo ao longo dos oito anos de prisão: o
poeta se tornou poeta ao cumprir uma das funções psíquicas da arte, como modo fundamental
de elaboração da dor do sujeito que se constitui enquanto tal. Seu trabalho foi publicado pelo
Comitê Brasileiro pela Anistia/RJ e Teatro Ruth Escobar (SP), em 1978, como parte do
processo de luta pela anistia e redemocratização no país, quando presos políticos, entre eles
Alex, faziam greve de fome de modo a obter visibilidade e pressionar as autoridades. Alguns
textos foram fotocopiados e distribuídos nas manifestações estudantis de 1976-77 ou ainda
traduzidos em outras línguas para divulgação internacional10.
O livro Inventário de cicatrizes é o que diz o título; ou melhor, é um inventário de
feridas que o título a posteriori fez cicatrizar. Nas quinze estrofes de abertura do livro que
compõem “Recordações do Paraíso”, título este que é pura ironia, se lê:
4
Eu não me lembrava
do meu antigo rosto
8
9
POLARI, Inventário de cicatrizes, p.36.
Em “Requerimento celeste com digressões jurídicas (Por ocasião do pouso da Viking I em Marte)”, o autor
ironiza: “Resolvi denunciar às amebas de Marte/(caso elas existam)/a minha sui generis situação jurídica/de
condenado duplamente/à prisão perpétua,/olvidado em várias esferas/absolvido em uma das vidas/e esperando
recurso da outra/e tendo ainda por cima/além de certas transcendências sustadas/mais quarenta e quatro anos de
reclusão/a descontar não sei de qual existência. [...]”. Idem, p.39.
10
Segundo informações constantes na 4ª capa do livro, houve uma tradução sueca pela Anistia Internacional e
em revistas de exilados chilenos impressas em Estocolmo; tradução francesa em coletânea de escritos de presos
políticos brasileiros; publicação nos Cadernos do Terceiro Mundo, em Portugal; e cópias mimeografas e
distribuídas em meios universitários da Itália e Alemanha. Outro livro de poemas, também com material escrito
na prisão, na época da greve de fome e se preparando para ser solto, foi publicado em março de 1980, pela Ed.
Global, com o título de Camarim de prisioneiro. O livro Em busca do Tesouro, uma biografia romanceada,
segundo o próprio autor, foi escrito depois de liberto, quando foi reencontrar o mundo, a família, o filho que
nascera enquanto estava preso.
294
até olhar na privada
e cuspir nele.
Não, não pode ter sido
a mesma face,
não me olhe assim, não tenho culpa.
[...]
11
Algumas marcas desaparecem
outras ficam por uns tempos
aquele gosto
aquele cheiro
aqueles gritos
estes permanecem
calados lá dentro
colados numa memória essencial
sem intervalos possíveis,
vale dizer, definitivos.
[...]
13
Esse silêncio enlouquece
se houvesse mais alguém
seria mais fácil
hoje veio o médico
falou pro coronel
que ainda dá pra bater
nas minhas costas. 11
Ao menos três conjuntos de questões relativas à experiência histórica e à interface de
literatura e história se colocam desde aqui, desdobrando-se por diversos outros poemas do
livro e propiciando as discussões que se seguem.
7.1. A ruptura ética
Um primeiro conjunto, de teor eminentemente ético, diz respeito à problemática da
conivência de determinados setores sociais com a repressão e a tortura, como os médicos
aludidos no texto; ao uso da ciência para fins destrutivos; à moralidade dos torturadores; à
degradação da dignidade humana. A participação de médicos e enfermeiros em sessões de
tortura, não somente para dirimir os sofrimentos, mas para reanimar os torturados de modo a
continuarem sensíveis, bem como na assinatura de laudos e atestados de óbito inverazes12,
11
12
POLARI, Inventário de cicatrizes, p.11-14.
O relatório BRASIL: Nunca Mais, apresenta um resumo dos 12 livros da pesquisa que reuniu quase a totalidade
dos processos políticos que transitaram na Justiça Militar, especialmente na esfera do Supremo Tribunal Militar,
entre abril de 1964 e março de 1979. Segundo o cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, um dos
coordenadores do projeto, tratava-se de reunir documentos produzidos pelas próprias autoridades encarregadas
da repressão, de maneira a obter provas irrefutáveis das denúncias já conhecidas da Igreja e da sociedade civil
(p.22). Inúmeros destes autos registram o relato oficial de presos investigados sobre sua tortura, a presença dos
profissionais da saúde, o assassinato testemunhado de companheiros, cujo atestado de óbito, entretanto,
apresentava como causa mortis atropelamentos, suicídios, tiroteios com a polícia que inexistiram. O relatório
cita o nome destes médicos. Um outro episódio que provocou escândalo foi a presença do médico e psicanalista
da Polícia do Exército, Amílcar Lobo Moreira da Silva, nas sessões de tortura no Rio de Janeiro, no período de
295
provocou sempre grande assombro, seja nos presos e seus familiares, seja na sociedade em
geral. Tal emprego da medicina, assim como de outras áreas da ciência aplicadas para o
aprimoramento dos instrumentos de tortura, foi tratado por Alex Polari em poemas que
questionam a lógica posta neste fato. “Trilogia Macabra (III – A parafernália da tortura)”
observa, ao lado dos resquícios medievais e das chacotas e prepotência dos torturadores “que
também não mudaram muito”, a modernidade do design dos aparelhos, com linhas arrojadas e
funcionais, de material polido, metálico, “digno de figurar/em um museu do futuro”13.
Esta vocação da técnica é típica do mundo contemporâneo, onde um “véu
tecnológico”, como observou Adorno, encobre uma relação em que “há algo de excessivo,
irracional, patógeno”, uma vez que a técnica, como meio seminal de autoconservação da
espécie humana, passou a ser tomada como fim em si, e, deste modo, tornou-se mais um meio
fetichizado, posto que se atualiza em detrimento dos fins primordiais, de uma vida humana
digna, que têm sido velados e esquecidos14. Transformada em finalidade, à técnica é conferida
uma aura de coisa boa ou neutra, que apaga das consciências a indagação sobre sua aplicação
prática e suas conseqüências últimas. Em breves termos, ao poeta não escapou que a razão
científica e tecnológica se instrumentalizava para a produção do horror e da degradação
humana, em nome da segurança nacional e da civilização ocidental, com aquiescência de
alguns setores sociais:
Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre
hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
com muito maior urbanidade
1969 a 1973. Em difícil entrevista ao Jornal do Brasil, em 1986, Lobo negou as acusações dos torturados,
afirmando não haver praticado tortura, mas admite ter sido conivente. Quando soube, após quinze anos de
silêncio, que seria reaberto o caso do desaparecimento de Rubens Paiva, cuja morte havia assistido, resolveu que
contaria sua história. A professora e atual vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, relata
haver descoberto o nome de Lobo por acaso, quando presa no DOI-CODI/RJ, e que o teria denunciado quando
solta, testemunhando contra ele nos Conselhos Regional e Federal de Medicina. O registro profissional de Lobo
foi cassado em 1988, quando se iniciou o processo contra Leão Cabernite, presidente da sociedade Psicanalítica
do Rio de Janeiro no início dos anos 70 e analista que respaldou as práticas de Lobo, atuando também junto a
equipes de torturadores no DOI-CODI/RJ, entre 1970-74. Cf. COIMBRA, Cecília. A caixa preta da ditadura. Caros
Amigos, ano 8, n. 92, nov. 2004, p.30-36 [Entrevista], e Algumas práticas ‘psi’ no Brasil do ‘milagre’, in:
FREIRE, ALMADA e PONCE, op.cit., p.423-438. Coimbra fala também da participação de profissionais “psi” em
pesquisas encomendadas pelo exército para traçar o perfil psicológico dos presos políticos, e da formação
positivista predominante na área, contribuindo para construir o estereótipo dos militantes segundo as categorias
de “drogado” e “subversivo”, filhos de famílias “desestruturadas”, de modo que a responsabilidade da opção
política, e por desdobramento da violência estatal, era deslocada da esfera pública e histórica para a esfera
privada da família e do indivíduo. Para a entrevista de Lobo, cf. A Psicanálise da tortura, por Zuenir Ventura,
com colaboração de Jorge Antônio Barros e Susana Schild. Jornal do Brasil, 14/09/1986. Reproduzido em
GASPARI, HOLLANDA e VENTURA, Z. 70/80 Cultura em Trânsito, pp.289-307.
13
POLARI, Inventário de cicatrizes, p.31. Diz Coimbra: “Depois houve a reforma, para eles transformarem o
DOI-CODI num lugar mais ‘científico’, as torturas mais ‘científicas’. Então, em 1972-73, eles transformaram
essas solitárias em ‘geladeiras’ [...]”. Entrevista à Caros amigos, p.31.
14
Cf. ADORNO, Educação após Auschwitz, in: Palavras e sinais, modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, pp.104123. Ver esta discussão especificamente na p.118.
296
sem precisar corar as pessoas bem educadas
sem proporcionar crises histéricas
nas damas da alta sociedade
sem arrefecer os instintos
dessa baixa sociedade. 15
A rima pobre entre urbanidade e sociedade ressoa como um eco, incluindo as “pessoas
bem educadas” segundo a má-fé de uma ideologia que impunha a disciplina de Moral e Cívica
a todas as instituições educacionais, das escolas às universidades, e fazia questão de “parar o
país” nos festejos cívicos e datas comemorativas da pátria, como sói acontecer nos processos
de construção da tradição nacional16, à revelia do respeito à pessoa humana, criando um
campo magnético entre patriotismo, moral e violência de tal magnitude que o senso-comum
dos educandos da nação se via impedido de estabelecer os necessários discernimentos, que o
bom-senso exigiria, entre ordem, razão e disciplinamento a ferro e fogo (e eletricidade, água,
substâncias químicas etc.) dos corpos e do espírito. Formas diversas de organização da
sociabilidade, da sensibilidade e da razão, bem como projetos distintos de nação, ficam
excluídos do processo social, reduzindo-se as inúmeras e difíceis dinâmicas da construção da
eticidade a uma associação fácil entre moralidade e civismo institucional.
Por isso, os torturadores, como diz o texto “Trilogia Macabra (I – o torturador)”,
particularizam-se socialmente por uma “patologia singular” (mas não esquizofrênica, pois sua
unidade interna está mantida por esta ideologia moral) que os faz ir “da infantilidade total/à
frieza absoluta”, isto é, da impossibilidade do uso público da razão, para usarmos uma
expressão kantiana, que caracteriza as crianças17, à insensibilidade psicopática18. Acreditandose “macho, nacionalista”, diz Alex, o torturador considera a violência como recurso
necessário à preservação de valores morais e “trabalha em ambientes assépticos/com
distanciamento crítico/– não é um açougueiro, é um técnico –”, sendo-lhe simples
“racionalizar/que apenas põe a serviço da pátria/da civilização e da família/uma sofisticada
15
Trecho final de “Trilogia Macabra (III – A parafernália da tortura)”, POLARI, loc.cit.
Remeto novamente à obra de HOBSBAWM e RANGER, A invenção das tradições. A crônica da época
menciona, por exemplo, o culto à figura de Tiradentes tornado herói nacionalista oficial; o périplo da ossada de
D.Pedro I chegando ao Brasil; as paradas militares nos feriados comemorativos da Independência e da
proclamação da República.
17
Não se aplica aqui o conceito de infância de Agamben, conforme tratado em Infância e história, que o delimita
como uma pré ou não-voz, não participante ainda na esfera histórica, ao passo que os militares e civis aqui em
questão são, contrariamente, os dominadores da voz que impede a fala do alter, o que permitiria toda uma
digressão sobre que (não)voz e (des)razão estava colocada nos crimes cometidos pelas ditaduras contra os
direitos humanos. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Op.cit. Este poema encontra-se em POLARI, idem, p.29.
18
“A frieza das mônadas sociais, do competidor isolado, enquanto indiferença frente ao destino dos demais, foi
precondição para que só uns poucos se movessem. Bem o sabem os torturadores; tantas vezes o comprovam!”
ADORNO, Educação após Auschwitz, op.cit., p.120.
16
297
tecnologia da dor/que teria de qualquer maneira/de ser utilizada contra alguém/para o bem de
todos”.
Tais meadas, emboladas pela doutrina de segurança nacional em países de capitalismo
periférico de tão violenta história, produzindo impactos brutais sobre a psicologia coletiva,
gerou estranhos conceitos políticos... É assim que aos verdugos se permite, no mesmo dia,
torturar alguém e participar de uma solenidade oficial, “segurando uma bandeira/e um monte
de crianças/emocionado feito o diabo/com o hino nacional”. Esta, a lição irônica de “Moral e
cívica – II”, na qual a expressão coloquial “feito o diabo”, que substitui o advérbio de
intensidade “muito”, amplia-se por efeito do contexto, constelando a imagem de um diabo
movido a paixões e provido de tecnologia, o qual constitui o vértice da aporia ética da
situação19.
A violação da dignidade humana perpetrada em larga escala, como projeto de Estado,
perpassou a vida social além limites imagináveis. A 14ª estrofe, ainda do poema
“Recordações do paraíso”, condensa um sentimento à beira do insuportável e dificilmente
traduzível em palavras. Uma sutileza depositada nos dois primeiros versos quase encobre a
terrível contingência a que alguns presos políticos foram coagidos:
A roupa que eu vesti hoje
para cobrir um ponto frio
não era a minha e podia ser
a de alguém assassinado.
A camisa tinha sangue coagulado,
um cheiro estranho de súplica. 20
Pior que vestir a roupa impregnada dos sinais da morte humana – não a morte de
alguém que completou seu ciclo natural de existência, mas cujo florescimento vital foi
arbitrária e brutalmente interrompido – era ser obrigado a se apresentar (“cobrir”) em um
encontro secreto de militantes de organizações políticas clandestinas (“ponto”), na condição,
desconhecida dos parceiros, de preso acompanhado pela polícia à paisana, para que outros
militantes fossem também identificados e presos. “Cobrir um ponto frio” (a gíria “uma fria”
significava algo errado, insolúvel) representava a coação à traição e à indignidade, sob pena
de se perder a própria vida. Da psique esfrangalhada que disto resulta pouco se comenta. Há
um grau de violência não explícita atuante na repressão política que quase passa
19
Ver no relatório BRASIL:Nunca mais a frase do torturador que se tornou título de capítulo: “aqui é o inferno”.
Para o poema, ibidem, p.49.
20
POLARI, idem, p.14.
298
despercebido, uma vez que, como lembra Pietrocolla21, a literatura sobre os direitos humanos
e a anistia privilegia uma abordagem das dores em modalidades mais evidentes, como no
suplício da tortura e da morte. Mas essa “dor moral” existiu e é testemunhada por todos os
que viveram a experiência de terem seus sentimentos manipulados como instrumento de
coação, como por exemplo nos casos em que se era obrigado a assistir a tortura de familiares
e amigos, o que algumas vezes incluiu a presença de crianças e bebês, ou nos casos do “ponto
frio” ou da falsa volta para casa. O que poderia restar, senão “um cheiro estranho de súplica”
e gritos colados à memória auditiva, para sempre?
Os poemas de Alex Polari trazem indícios deste tipo de sofrimento, ao qual se
acrescentam sucessivos maus-tratos, e de sua lentíssima elaboração. Suas diversas
perambulações em torno da vestimenta e da nudez22, dos verbos vestir, despir, revestir, cobrir,
acenam para um jogo difícil de revelação e encobrimento de fatos e sensações por demais
penosos para serem enunciados de diferente maneira – ainda que o poeta tentasse, em outros
momentos, falar das sevícias diretamente.
[...]
tiraram nossa roupa
nos revistaram, nos vestiram
nos revestiram de oco
e fizeram a chamada. [...] 23
Associado ao número de registro carcerário que dá título ao poema (“12.207”), o oco
intraduzível é o reverso do ser, índice da desumanização do sujeito, de ambos os sujeitos,
vítima e perpetrador da violência. “Eu vivi a coisa da desumanização, quer dizer, quando você
desumaniza o outro, vale tudo. Eu senti que não era humana em alguns momentos”. Esta
declaração de Cecília Coimbra – na época professora de história e estudante de psicologia,
presa por haver abrigado militantes clandestinos em sua casa – completa um círculo de
raciocínio com sua observação sobre como, até os dias de hoje, produzem-se torturadores nos
treinamentos das Forças Armadas, num processo de dupla reificação, em que, mediante as
humilhações, os exercícios físicos forçados, a perda de auto-estima, os aprendizes se
coisificam e vão passando a ver o outro, contra quem serão levados a lutar, também como
coisa, e não como ser humano24.
21
Sobre a violência implícita e a dor moral cf. PIETROCOLLA, Luci Gati. Um tempo sem trégua: as prisões
políticas nos anos 60/70, in: FREIRE, ALMADA e PONCE, op.cit., p.449-470.
22
Que se mantém no segundo livro, como no poema “Reminiscências”: “Vestido de um velho/terno encanto/já
surrado/numa cela insuspeita/nu e sozinho/suportei/todos os equívocos.” POLARI, Camarim de Prisioneiro, p.92.
23
Trecho do poema “12.207”, POLARI, idem, p.23.
24
COIMBRA, Entrevista à Caros Amigos, p.32 e 34.
299
A diferença essencial consiste, é evidente, em qual pólo da relação de brutalidade o
sujeito-coisa se encontra, pois que sofrer sem condições de defesa um ato bestial não é o
mesmo que executá-lo. D.Paulo Evaristo Arns, em seu prefácio ao relatório Brasil: Nunca
Mais, lembra haver sido advertido por um general contrário à tortura que “quem uma vez
pratica a ação, se transtorna diante do efeito de desmoralização inflingida. Quem repete a
tortura quatro ou mais vezes se bestializa, sente prazer físico e psíquico tamanho que é capaz
de torturar até as pessoas mais delicadas de sua própria família!”25 Muito já se discutiu sobre
os excessos produzidos pelo sadismo nestas circunstâncias, esgarçando a ordem a ser
“defendida” a ponto de rompê-la. Muito ainda se discute acerca da tentativa dos oficiais de
alta patente em se isentarem das ações de tortura, praticadas sistematicamente em todo o país,
procurando atribuí-las aos policiais ou militares de baixa patente26. Muito ainda há que se
discutir sobre os efeitos desumanizantes de todo este processo, do elo da cultura que estala
quando em uma sociedade se ultrapassam os limites do que é considerado dignidade humana.
O aviltamento de uns, a desonra obrigada de outros, a degradação de todos,
consolidam obstáculos ao reconhecimento social, bem como ao autoreconhecimento. A 4ª
estrofe de “Recordações do Paraíso”, supracitada, traz um sujeito lírico que cospe no próprio
reflexo, reflexo de seu rosto nas águas de um vaso sanitário, escoadouro de dejetos humanos,
e recusa o espelhamento: “Não, não pode ter sido/a mesma face,/não me olhe assim, não
tenho culpa.” O poeta fora colocado em uma incômoda posição, ao mesmo tempo vítima e
sobrevivente daquele contexto de violência amplificada. À semelhança de Primo Levi –
quando indaga É isto um homem? em sua literatura de memória e perplexidades27 –, o horror
da própria imagem e a recusa em admitir como dimensão humana a degradação que se sofria
25
Arns, Cardeal. Prefácio a BRASIL: nunca mais, p.13.
Vale lembrar a formulação, transformada em estereótipo, do vice-presidente de Costa e Silva, Pedro Aleixo,
para quem o risco dos excessos da ditadura militar residia nos “guardas-de-esquina”. Como diz Carlos Fico,
porém, “não se deve confundir a independência operacional com que trabalhava a polícia política com uma
suposta autonomia em relação aos oficiais-generais” [grifos do autor]. É já comprovado que a tortura e o
extermínio eram aceitos pelos comandantes e governos militares, que a viam como um mal menor ou
necessidade conjuntural, ainda que diferenciassem a morte de um guerrilheiro no Araguaia e de um estudante
comunista torturado. Provocou celeuma recentemente a revelação de Elio Gaspari sobre uma conversa gravada
do Gal.presidente Ernesto Geisel com o Gal. Dale Coutinho, quando Geisel afirmou que “esse negócio e matar é
uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”. GASPARI, A ditadura derrotada. São Paulo: Cia.das Letras,
2003, p.324. Deste modo, nas palavras de Fico, a tese dos “excessos” é hoje apenas parte de um discurso
fraudulento, pois há evidências empíricas de que “a tortura e o extermínio foram oficializados como práticas
autorizadas de repressão pelos oficiais-generais e até mesmo pelos generais-presidentes”. FICO, C. Versões e
controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, Revista Brasileira de História, n.47, op.cit., p.35-36.
27
No poema de abertura do livro, em que o autor elabora sua experiência do campo de concentração nazista, se
lê: [...] pensem bem se isto é um homem/que trabalha no meio do barro,/que não conhece paz,/que luta por um
pedaço de pão,/que morre por um sim ou por um não./Pensem bem se isto é uma mulher,/sem cabelos e sem
nome,/sem mais força para lembrar,/vazios os olhos, frio o ventre,/como um sapo no inverno.[...]”. LEVI, Primo.
É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p.9.
26
300
e se via ao redor levaram à noção de inumanidade como potência criadora de negatividade
crítica e força de resistência. Por outro lado, percebe-se o sentimento característico dos
sobreviventes, como observou Enzo Traverso, em que se mesclam pudor, culpa e humilhação,
que não se aplacam de todo ainda que se esteja convicto de que a escolha de seguir com vida
se deve ao justo motivo de que sua morte resultaria inútil28. Com efeito, estudos sobre a
resistência a situações de violência mostram que ela consiste não em uma reação/oposição a
esta lógica, mas em uma quebra, uma abertura de outras regras e encadeamentos, em que
medo e esperança se embaralham e a ambigüidade diante da morte – pois embora negar a
morte seja um modo de reificar a vida, para os sobreviventes é preciso não pensar na morte
para poder criar imagens vitais – permeia a experiência, formando o substrato afetivo do
resistir29. Por isso, o “permanente olhar da vida”, que o poeta Afonso Henriques afirma na
epígrafe, sempre arderá, como o grito que salta “do pó do avesso do ódio/dos ossos das
sepulturas dos cárceres do rosto vazio implacável.”
No entanto, os problemas éticos colocados por este contexto histórico trazem seqüelas
sociais até hoje não sanadas, não se sabe se cicatrizáveis. Os depoimentos e a literatura
especializada sobre a época comportam numerosos sinais de uma impossibilidade de
reconhecimento social e uma disputa de memórias talvez inconciliável, entre militares e civis,
torturados e torturadores, os que falaram sob tortura e os que conseguiram calar, os que
resistiram e os que preferiram (?) morrer, os sobreviventes que foram capazes de elaborar a
dor de sua história e os que não foram, os arrependidos e os que ratificam suas opções e atos,
os que sartrianamente afirmam sua liberdade de escolha e pensamento e os que se justificam
pelo valor da hierarquia e da obediência... Benjamin dizia, em suas teses sobre a história, que
todo documento de cultura é também um documento de barbárie e que esta afeta igualmente a
transmissão cultural, que corre o risco de ter seu conteúdo reduzido por interesses privados e
setoriais, reduzindo-se portanto seu alcance público30. Cabe então ao historiador resgatar não
28
Estudando as diversas reações dos intelectuais diante de Auschwitz, em L’Histoire dechirée, o autor os agrupa
em quatro tipos: colaboradores; sobreviventes; cegos perante a ruptura de civilização em curso; e “alertadores de
incêndio”. O sobrevivente é analisado especialmente com base em Karl Jaspers que, em trabalho sobre a culpa
alemã, escreveu: “Nós, os sobreviventes, não buscamos a morte. Quando levaram nossos amigos judeus, não
baixamos à rua, não gritamos até que nos destruíssem. Preferimos seguir com vida por um motivo muito débil,
ainda que justo: nossa morte não teria servido de nada. O fato de que sigamos com vida nos converte em
culpados. Sabemo-lo ante Deus, e isto nos humilha profundamente” [tradução livre]. Citado por TRAVERSO, La
historia desgarrada: ensayo sobre Auschwitz y los intelectuales. Barcelona: Herder, 2001, p.32.
29
Cf. PIETROCOLLA, op.cit., p.454-458. Mas os sobreviventes podem também desenvolver uma descrença total
nas estruturas coerentes da existência, perdendo a confiança nos elos sociais e, no extremo, viver a experiência
da morte em vida, p.465. A autora trabalha a questão da ambigüidade ante a morte com base em P. Ariès e W.
Benjamin.
30
Cf. BENJAMIN, Tese VI e VII segundo tradução de Jeanne Marie Gagnebin e Marcus Lutz Muller, in: LÖWY,
Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo:
301
as imagens do passado construídas pelos grupos vencedores – que sempre disfarçarão e
perpetuarão a violência e a barbárie para manterem suas posições adquiridas –, mas as
imagens dos perdedores, tornadas em cacos pela força da guerra e da opressão, cujos
fragmentos o historiador precisa reunir como num quebra-cabeças, para vislumbrar e
transmitir a existência, um dia, de possibilidades outras de experiência e vida humana, que,
embora perdidas, possam quiçá valer como potência. Na história brasileira dos anos 70,
haveria que se olhar com cuidado o legado da violência exacerbada, da ciência
instrumentalizada, das fissuras políticas e sociais, observando a dimensão das forças de
reificação e destruição e das forças humanizadoras capazes de estabelecer laços éticos, para
avaliar, no inventário de feridas, a possibilidade de experiências históricas melhores que,
porventura, tenham sobrevivido ao naufrágio.
7.2. Experiência violenta e voz testemunhal
A denegação da culpa expressa no poema de Alex Polari – “não me olhe assim, não
tenho culpa” – transporta, em seu bojo, o sentimento ambíguo e mesclado característico dos
sobreviventes, criando uma zona de ambivalência entre culpa e inocência típica do
mecanismo traumático.
As ocorrências catastróficas, como se sabe, podem provocar grandes desarranjos
psíquicos, interferindo no processo de subjetivação dos indivíduos, uma vez que
desencadeiam um transbordamento de afetos e intensidades que não comportam sentido em si,
de modo que a psique buscará soluções para dar significação àquilo que se configura como
dor, o que sempre dependerá de uma rede intersubjetiva que inclui elementos intra e extra
psíquicos, ou seja, dependerá tanto das possibilidades “internas” de quem sofreu o trauma
Boitempo, 2005. “O perigo ameaça tanto o conteúdo da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o
perigo é único e o mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em cada época é preciso
tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la”. Tese VI, p.65.
Na interpretação de Löwy, o perigo “único” é duplo: o de transformar em instrumento das classes dominantes
tanto a história do passado, a tradição dos oprimidos, quanto as classes dominadas atuais, como sujeito histórico
depositário daquela tradição, o que significaria subjugar-se aos vencedores e sua historiografia confiante no
progresso, quando para os oprimidos o passado não é uma acumulação gradual de conquistas, mas,
inversamente, um série de derrotas catastróficas. Ou seja, trata-se do perigo de falsificação do passado em grande
escala e de manipulação das massas populares, que o fascismo acabou por realizar – embora, é óbvio, Benjamin
não pudesse prever Auschwitz, “apesar de sua vocação de Cassandra”. Isto, contudo, não quer dizer que
Benjamin defendesse um “populismo cultural” que rejeita as obras de “alta cultura” como reacionárias. Ao
contrário, ele se havia convencido que muitas dessas obras são aberta ou secretamente hostis à sociedade
capitalista. Em seus últimos ensaios e nas teses, não fala mais da superação por amelhoramento (Aufhebung) da
cultura tradicional burguesa, mas da necessidade da crítica dialeticamente preservar e explicar o “potencial
utópico secreto contido no cerne das obras de cultura tradicionais”. Idem, p.67 e 79-80.
302
quanto da sustentação propiciada pela rede sociocultural. Segundo o estudo de Marisa Maia31
sobre as experiências traumáticas, estas podem ter aspectos positivos ou patológicos,
consoante seus desdobramentos sejam subjetivantes ou dessubjetivantes. Em outras palavras,
quando a afetação operada chega a modificar relações sociais vigentes, os códigos
lingüísticos, a forma de ser e estar no mundo, acionando mecanismos psíquicos capazes de
viabilizar a criação subjetiva e, por conseguinte, gerando sentidos e significações para o
indivíduo e a coletividade, como na arte e na narrativa, então se trata de um processo
subjetivante. Inversamente, quando o impacto traumático gera um efeito paralisante dos
processos de simbolização e significação, seu efeito pode vir a ser aniquilador ou
dessubjetivante, pois os excessos emocionais inassimiláveis e irredutíveis ao campo das
significações imperantes na sociedade desafiam a memória e as possibilidades de elaboração e
relato para além dos limites da integração do self. Deste modo, o que se vive é da ordem da
violação-violência, “um campo de dor sem possibilidade de mediação”, em que o efeito do
choque consiste numa comoção psíquica que traz a fragmentação, a desorientação e os
mecanismos de defesa que produzem a clivagem do eu.
Nestes casos, é comum que se instaure, mais que o recalque, o silêncio, pois nem
aquele que vivenciou o trauma é capaz de criar uma rede de representações, nem a sociedade
sustenta uma interlocução com ele. Antes, o senso comum costuma apresentar a falsa
convicção de que o tempo e o silêncio resolvem por si só as feridas, o que produz o efeito
cruel da solidão e da dor tornada em segredo a ser guardado, ocultado e esquecido, de forma
que se cria uma espécie de atemporalidade ou suspensão – suspensão histórica, inclusive – do
evento traumático, que não pode ser lembrado como fato vivo no tempo e no espaço.
Funcionando como um buraco-negro, o segredo toma corpo no sujeito, seccionando-o em
partes e endurecendo suas vias de afetação com o mundo. Os destinos desse imperativo de
silenciar são imprevisíveis, diz a autora, “podendo trazer conseqüências tanto num âmbito
pessoal, familiar e intergeracional, quanto num registro social e coletivo”32. Em geral, o
silêncio social tende a ser adoecedor, patógeno à medida que produz clivagens talvez
insuperáveis: “Esse silêncio enlouquece/se houvesse mais alguém/seria mais fácil”... É o
conhecimento desse poder disruptivo da solidão silenciosa, por sinal, que subjaz ao castigo,
31
Cf. MAIA, Marisa S. Extremos da alma. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. As reflexões aqui tratadas
encontram-se principalmente na parte II: Trauma ou catástrofe na experiência subjetiva.
32
Idem, p.155. A autora lembra, com base em Ferenczi, não ser incomum em relatos de torturados uma
dissociação entre psique e corpo que lhes permitiu sobreviver ao sofrimento, como em pensamentos do tipo
“quem sofre não sou eu, mas uma parte de mim”, o que constitui um tipo de clivagem psíquica. Cf. p.175. Uma
outra clivagem, comentada por Pietrocolla, com base em M.Chauí e H.Pelegrino, é a que se cria entre corpo e
mente, uma vez que, sob tortura, o alívio da dor física exige a dor psíquica, e vice-versa. Cf. PIETROCOLLA,
op.cit., p.464-465.
303
hoje já considerado tortura pelos órgãos internacionais de defesa de direitos humanos, de
trancafiamento de prisioneiros nas celas “solitárias”. No entanto em muitos casos, perante a
falta de acolhimento e a incompreensão da sociedade e de si próprio, o silêncio pode
constituir a única maneira do sujeito continuar sobrevivendo, mantendo em segredo o que não
é passível de ser narrado, nem mesmo para si.
Tendo por base esta explanação, tudo indica que a poesia de Alex Polari facultou um
processo de elaboração da dor que, compartilhada com o leitor, permitiu a criação de sentidos
comuns necessários à configuração de uma experiência traumática subjetivante, que o
impediu de mergulhar nas sombras da desumanização que o rondavam. O exercício da poesia
parece ter-lhe capacitado a se manter inteiro pela construção de um sujeito lírico que busca
fidelidade a si mesmo: seja mediante poemas de amor, ciúmes e erotismo no cárcere, ou de
raiva e de desejo de fuga; seja por elegias e réquiens; pela imaginação do mundo externo,
onde se poderia ser um outro que nada mais seria que a projeção de si mesmo em condição
livre; seja mediante numerosas críticas éticas e políticas; seja por certa habilidade em se
subtrair à relação desumanizadora dos algozes33; seja, enfim, por todo um processo de autoavaliação geracional que, todavia, não invalidou o que foi intentado: “[...] Hoje a coerência
dos sistemas/me parece ridícula/e se nos livramos/de uma certa pressa/entendendo melhor/a
vida e a teoria,/isso não significa que o problema da opção mudou.”34 A crítica à afobação
juvenil que se amalgamava ao anti-intelectualismo, obliterando a compreensão de uma melhor
relação entre ação política e pensamento, como já comentado, não se convertia em niilismo ou
narcisismo, mas possibilitava reafirmar, ao invés, o valor daquela experiência coletiva, como
também se vê nesta “Idílica estudantil – III”:
Nossa geração teve pouco tempo
começou pelo fim
mas foi bela nossa procura
ah! moça, como foi bela nossa procura
mesmo com tanta ilusão perdida
quebrada,
mesmo com tanto caco de sonho
onde até hoje
a gente se corta. 35
As palavras com que o poeta finaliza os versos criam uma cadeia de associações
bastante significativa, se temos em mente a efervescência político-cultural interrompida:
33
Como se vê, p.ex., no poema “Conclamação”, de Camarim de Prisioneiro, p.93: “[...] A todos os convertidos
[...]/poetas de estrofes feridas de sonhos/curados ou não pelo exercício do cotidiano/das esperanças veneráveis/e
ilusões variadas/varridas dia a dia/por verdugos e verruga/ávidos de sangue/e dignos de pena”.
34
POLARI, “Indagações – I”, Inventário de cicatrizes, p.15.
35
Ibidem, p.18.
304
tempo-fim-procura-procura-perdida-quebrada-sonho-hoje-corta. Mas a idéia de “como foi
bela nossa procura”, duplamente reiterada, enfatiza o senso de beleza – como um dos
elementos fundantes da cultura e do humano36 – atribuído ao projeto de transformação
subjetiva e social que a derrota transfigurou em ilusão onírica, e que, malgrado tudo, descobre
ainda nas assonâncias ao mesmo tempo cortantes e ondulantes do fim do poema a forma de se
fazer valer: a aliteração anasalada da vogal (sonho-onde-hoje) sugere a sensação da
continuidade de uma onda, sustentando a permanência de uma beleza que a força incisiva da
aliteração consonantal oclusiva (com-tanto-caco-corta) chega a retalhar, mas não a destruir.
Contudo, para outros tantos que passaram por experiências traumáticas semelhantes às
de Polari, a via da elaboração subjetivante e criadora de sentidos compartilháveis não se abriu.
Seus cacos, talvez, se tenham estilhaçado demais e a solidão do silenciamento deles se
apoderou, trazendo por vezes a loucura, o suicídio ou outras modalidades de dor e morte.
Também neste sentido seu direito à expressão lhes foi subtraído. Assim, diversamente da voz
encarcerada de Alex, que no entanto foi relativamente livre para fazer seu inventário de
cicatrizes, tais outras vozes estiveram (e quantas ainda estão?) presas, dentro ou fora do
cárcere. E é deste modo, caladas, que paradoxalmente elas falam da violência, para além do
visível e audível, no país imperceptivelmente tornado em campo de concentração, como
dissera Herbert Daniel37, mostrando mais uma vez pelo avesso a face impronunciável deste
Brasil Grande.
Mas há outra possibilidade para o silêncio, além da escolha ou da dessubjetivação.
Trata-se da resistência à elaboração, discutida por La Capra como um movimento
relativamente comum de pessoas traumatizadas por acontecimentos-limite, bem como
daquelas que desenvolvem empatia com a situação, que mantêm um sentimento que se pode
qualificar de fidelidade ao trauma, baseado em uma dinâmica melancólica que lhes dita a
sensação inconsciente de que elaborar o passado para participar novamente da vida
significaria trair os que restaram aniquilados ou destruídos pelo passado catastrófico. O laço
com os mortos pode conferir valor ao trauma e gerar uma espécie de apego, que desautoriza
qualquer forma de delineamento conceitual ou narrativo, como se este fosse uma clausura
degradante para o que se sente, de onde a resistência a qualquer força que se lhe oponha, até
mesmo as forças do luto, entendido não como pesar incessante, mas como “processo social
que pode ser eficaz em parte para devolver àquele que sofre as responsabilidades e exigências
36
37
Cf. FREUD, Mal estar na cultura, op.cit.
Conforme citado no capítulo 3.
305
da vida social.”38 A cultura e o pensamento contemporâneo, continua o autor, tenderam a
converter o trauma em ocasião propícia para o sublime, transfigurando-o em uma porta de
acesso ao extraordinário, posto que no sublime o excesso do trauma se transforma em fonte de
euforia ou êxtase39. Funcionando como uma sorte de sacralização deslocada, a recusa da
elaboração associada ao sublime também pode produzir “traumas fundacionais”, que se
tornam tão preciosos para um indivíduo ou grupo que paradoxalmente passam a sustentar a
identidade, ao invés de serem fatos que colocam e problematizam, até mesmo porque a
cindem, a questão identitária.
É certo que a modernidade produziu deslocamentos mais ou menos secularizados do
sagrado e seus conseqüentes paradoxos, diz La Capra, e isto adquiriu teor traumático uma vez
que o velamento, a morte ou a ausência de fundamentos absolutos, quer religiosos, quer
éticos, políticos ou filosóficos, tornou a existência uma cena dominada pela angústia, que
ameaça tomar e às vezes confundir todas as relações. Deriva também disto o mecanismo de
fidelidade ao trauma, produzindo a aporia do luto incessante e impossível, correlato à recusa
da elaboração. Em decorrência, o indivíduo e a sociedade imersos nesta situação ficam
possuídos pelo passado e envolvidos no retorno traumático e na compulsão à repetição, o que
lhes dificulta discernir a diferença entre passado e presente, bem como desenvolver a
percepção da alteridade empática para além da lógica binária de identidade e diferença, além
de juízos críticos mais agudos, necessários a uma vida social reinvestida, e este conjunto de
dificuldades pode vir a tornar-lhes incapazes de uma conduta eticamente responsável40.
No que se refere ao trauma histórico, a ausência de debate nacional – decorrente da
falta de acolhida do relato e da memória traumática por parte de amplos setores sociais –,
aliada à tendência moderna de se vivenciar as comemorações cada vez mais como
formalidades ocas, tornam ineficaz um processo social de luto. O exemplo de regimes
políticos surgidos após grandes cisões violentas – La Capra menciona o pós-guerra na Áustria
e Alemanha e o apartheid na África do Sul – demonstra que algumas sociedades talvez não
38
“processo social que puede ser eficaz en parte para devolver al deudo a las responsabilidades y exigencias de
la vida social”. LA CAPRA, Escribir la historia, escribir el trauma, p.46-47.
39
Dialogando com Derrida, Lyotard e Kant, La Capra discute a relação do trauma com o sublime do prisma da
sacralidade e do problema ético que se coloca: sendo o trauma e o sublime dois pontos de fuga de uma
contraposição extrema que ameaça romper com toda continuidade e mediação, eles se aproximam na medida que
o excesso de abjeção, próprio do terror traumatizante, se torna uma transcendência negativa e, como tal, passível
de sacralização. O sublime, assim, seria uma secularização extática do sagrado em uma forma excessiva ou
transcendente que, sem contornos, é irrepresentável. Mas “o sublime, o excesso sacralizador e o abjeto parecem
transgredir ou excluir a existência de limites, inclusive dos que concernem ao belo na arte e na vida ética [que,
por definição, exigem limites e formas], que poderiam operar como mediação, ainda que não houvesse
reconciliação plena entre os dois extremos” [tradução livre]. Idem, p.196.
40
Cf.Ibidem, p.86-90.
306
queiram admitir a necessidade de um contexto em que os perpetradores reconheçam seus atos
passados e tentem construir uma relação distinta com as ex-vítimas e os sobreviventes, de
maneira a permitir uma resposta social empática e o luto coletivo, para os quais a autocrítica e
mesmo a tristeza são necessárias, ainda que não se deva confundi-las com as formas
melancólicas e nostálgicas, que tenderiam a ser dessubjetivantes ou imobilizantes. Enquanto
isto não ocorre, perambulam no mundo pós-traumático fantasmas do passado, os quais não
pertencem a nenhum indivíduo ou grupo particularmente, mas que aparecem como sintomas
sociais que não se apascentam porque há uma perturbação na ordem simbólica, derivada de
um déficit no processo ritual, ou uma cisão tão atroz, ou uma morte tão injustificável e
transgressora que excede os recursos de luto e expressão da dor de que a sociedade dispõe.
Entretanto, qualquer reconciliação viável em âmbito coletivo, é preciso frisar, não depende
apenas de processos de empatia e luto, mas igualmente de mudanças econômicas, sociais e
políticas em contexto mais amplo, dentro do qual o luto adquiriria um sentido mais vasto,
efetivamente político41.
A violência não mediada, isto é, sem meios culturais de expressão, significação,
representação e canalização das diferenças, das memórias e dos conflitos, tende a aumentar,
trazendo empecilhos para o diálogo e as dinâmicas democráticas. Em contrapartida, a
literatura e a arte em geral, por sua forma específica de linguagem aberta, têm sido meios
privilegiados para abrigar a voz traumática em que afetos e representações se dissociam,
melhor dizendo, para abrigar o esforço de elaboração daqueles que, desconcertados por não
poderem representar o que sentem, ou por representarem anestesiadamente o que não podem
sentir, tentam voltar a articular afeto e palavra/imagem. Diante de tudo isto, diz ainda La
Capra42, abordar o trauma ou suas diversas formas de elaboração exige um modo ética e
cognitivamente responsável, em que as reivindicações de verdade e veracidade não sejam
unidimensionais, nem estreitas.
Mas não há nada de simples nessa proposição. Em seu trabalho sobre a literatura dos
anos 70, Flora Sussekind se preocupa com o que considera uma tendência ao neonaturalismo,
a seu ver inadequado para o tratamento literário da violência. A autora critica a diluição do
efeito de choque provocada pelas descrições detalhadas de tortura, cuja “retórica
emocionada”, descritiva em exagero, em tom jornalístico, bloqueia a catarse do leitor, por
criar uma espécie de “horror ornamental”:
41
42
Cf. Ibidem, p.216-217.
Cf. Ibidem, p.64. Sobre violência e democracia, p.81.
307
Porque é mesmo muito difícil falar do que se passa propriamente no corpo. Tanto o
prazer quanto a tortura chegam a parecer quase irredutíveis ao plano discursivo. Por
isso quanto mais minuciosas e emocionais as descrições, mais o assunto e a sensação
que se buscava produzir parecem escapar. Como o erotismo, também a tematização
da dor e da tortura física exige da linguagem uma espécie de ascetismo, de
depuração, uma quase frieza capaz de, por via transversa, chegar onde se deseja.43
A lapidação da linguagem permitiria um tratamento que, depurado ou indireto, criaria
um efeito menos passível de reduzir o impacto emocional do mal e a decorrente reflexividade
ética, o que não ocorreria diante da crueza da expressão. Esta, diz Flora, estaria ao gosto do
leitor-vampiro que se constituiu na época, com clara preferência por relatos tristes e
detalhados de cenas de tortura, perseguições policiais e confinamentos, que cresceram
numericamente após o retorno dos exilados, no fim da década). Na verdade, há que precisar
dois tipos distintos de leitores: uma jovem geração, cujo conhecimento da história recente do
país era fragmentário e contraditório, marcado pelas versões oficiais, e por isso liam esse tipo
de narrativa, para poder reordenar e reintrepretar a história; e o leitor ávido da experiência
carcerária ou dos sofrimentos alheios, pontuando uma espécie de mea culpa da classe média
que apoiara o golpe militar de 1964, ou se mantivera alheia, e agora, desencantada, se
comprazia com “as minúcias do horror”, como uma forma de se penitenciar mediante a leitura
de suas conseqüências44. Assim sendo, um poema como “Aquela Tarde”, de Francisco Alvim,
não saciaria a sede deste tipo de leitor, atendendo, antes, aos que demandam sutileza, o que
ilustra o que a autora pretende dizer:
Disseram-me que ele morrera na véspera.
Fora preso, torturado. Morreu no Hospital do Exército.
O enterro seria naquela tarde.
(Um padre escolheu um lugar de tribuno.
Parecia que ia falar. Não falou.
A mãe e a irmã choravam.)45
De fato, a questão é espinhosa. Se não representar a violência produz conseqüências
sociais maléficas, representá-la mal, no sentido de impropriamente, também o faz. Imerso no
violento seio da clandestinidade, rodeado de amigos torturados ou mortos, Herbert Daniel fez
reflexões em uma direção semelhante, movido pelo pesadelo de que mais cedo ou mais tarde
seria também ele preso e torturado e, portanto, precisava preparar-se para aquele sofrimento e
para esquecer o que sabia, o mais que pudesse:
43
44
SUSSEKIND, F. Literatura e vida literária, p.88.
Cf. Ibidem, p.74-75. Para a autora, essa literatura crua seria representada por obras como Em câmara lenta, de
Renato Tapajós; O que é isso companheiro?, de Fernando Gabeira; Os carbonários, de Alfredo Sirkis; Cadeia
para os mortos, de Rodolfo Konder, entre outros, em oposição à boa literatura de Caio Fernando Abreu, Rubem
Fonseca, Sérgio Santana, Silviano Santiago, João Gilberto Noll, que trataram da temática da violência de forma
criativa e condizente com a literariedade, ou seja, segundo exigências do critério de arte. Ver p.70-88.
45
In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.19.
308
Talvez, não sei, por causa deste pesadelo repetitivo eu detestava ouvir relatos de
tortura. Particularmente descrições mais ou menos detalhadas do tormento e dos
torturados. Saber da existência da tortura, conhecer as técnicas utilizadas, sempre me
pareceu desagradável, mas necessário. Saber do nome e dos detalhes envolvendo um
torturado sempre me foi terrificante.46
Há, sem dúvida, diversas significações possíveis para esta sensação “terrificante”, das
mais óbvias, resultante da associação de um rosto conhecido à dilaceração, até o horror da
desumanização, do outro e de si. Compõe, por certo, esta sensação um fator de recusa à
indiferença ante a dor e ao que se sucede com os demais, ou seja, recusa à frieza e à ordem
social que a produz47, quando inverte a relação entre meios e fins, coisa e pessoa, valor de
troca e de valor de uso, interpondo nas relações sociais burguesas uma série de mediações que
afastam a afetividade, por definição direta e imediata, e impedem que se crie a identificação
humana alicerçada na dialética de reconhecimento e alteridade, necessária à construção de
uma sociabilidade realmente civilizada. Trata-se, então, de um modo de resistência àquilo que
Adorno e Horkheimer viram como uma função sócio-pedagógica da tortura, qual seja, a de
induzir à rápida adaptação dos indivíduos à coletividade, entendida como uniformização do
pensar, do sentir e do agir à qual se deve obedecer, sob grave pena, mas à custa do processo
de subjetivação, potencialmente capaz de constituir individualidades autônomas, éticas e
ricas, se as circunstâncias fossem radicalmente diversas48.
No entanto, a recusa à frieza e à expressão crua da violência não significa, ou não deve
significar de maneira alguma, uma subtração ao confronto com o horror, pois isto conduziria
ao recuo, ao invés da força de resistência requerida para se evitar a repetição de
acontecimentos que, por sinal, não deveriam jamais ter ocorrido em uma civilização que se
queira digna do nome e que pretenda manter-se enquanto tal. O aparente paradoxo entre as
exigências de delicadeza e do princípio de realidade coloca problemas à expressão artística,
especialmente poética, de experiências catastróficas. Já é bem conhecida a assertiva de
Adorno a respeito, não sem haver provocado numerosas controvérsias interpretativas:
46
DANIEL, Herbert, op.cit., p.40. Daniel relata um movimento interessante do ponto de vista da memória: ele
recorria a técnicas mnemônicas tradicionais para esquecer nomes, telefones, endereços etc., embaralhando-os
propositalmente, de modo que operou uma inversão da função dessas técnicas.
47
Ver uma bela discussão destas questões em ADORNO, Educação após Auschwitz, op.cit., p.119-120. O ensaio
discute a necessidade de um novo tipo de educação política, centrada na exigência de se impedir que as
condições formadoras do fascismo e de Auschwitz se repitam. Para isso, é preciso conhecê-las e indagá-las,
histórica, psicológica, sociológica e antropologicamente, para esclarecer que espécie de jogo de forças sociais
subjaz à superfície das formas políticas, como se vê, por exemplo, no conceito de razão de Estado, manipulado
para colocar o direito estatal e os interesses que ele representa acima dos membros da sociedade, quando então
“já está colocado, potencialmente, o horror”, p.123.
48
Cf. Ibidem, p.116 ss. Uma análise aprofundada dos processos de reificação e alienação na modernidade,
impedindo a subjetivação no sentido de constituição de individualidades ricas e a própria formação social
encontra-se em MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo, a crise da modernidade e a barbárie, esp.cap.1.
309
quanto mais totalitária for a sociedade, tanto mais reificado será também o espírito, e
tanto mais paradoxal será o seu intento de escapar por si mesmo da reificação [...] A
crítica cultural encontra-se diante do último estágio de dialética entre cultura e
barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até
mesmo o conhecimento de porque hoje se tornou impossível escrever poemas.49
Segundo Enzo Traverso, isto, que constituiria um “imperativo categórico adorniano”50,
significava um chamado à urgência de se refletir sobre a profunda transformação que a
violenta história do século XX exerceu sobre as práticas culturais e sobre as próprias noções
de cultura e civilização. Auschwitz não representou um momento de decadência ou um
parênteses histórico, mas uma hipertrofia da razão instrumental, levada ao genocídio e ao
irreparável, convertendo-se portanto na metáfora da culminação da história moderna na mais
abjeta violência: “marca um vinco radical, um rasgo da trama mais profunda da solidariedade
humana e de nossa civilização, sob a qual o pensamento se extravia do caminho de uma
reconciliação com a experiência e as palavras padecem uma metamorfose”51. Assim, o que se
tornava impossível depois, diz o autor, não era criar poesia, mas fazê-lo como antes, visto que
a ruptura civilizacional produzida mudou o conteúdo das palavras, ou seja, mudou a matéria
mesma da poesia, a relação da linguagem com a experiência, desfigurada para sempre pela
catástrofe. Assim, a cultura só poderia subsistir como manifestação de uma dialética negativa,
a elaboração estética de uma ferida que rechaça tanto o consolo lírico quanto a pretensão de
recompor uma totalidade rompida52. Este conjunto de questões levou Adorno, acrescenta
Gagnebin, a tentar juntar as duas exigências paradoxais que se dirigem à arte contemporânea:
por um lado, lutar contra o esquecimento e o recalque, o que significa lutar pela rememoração
e contra a repetição catastrófica53, mas por outro lado, impedir que a lembrança do horror se
transforme em mais um produto de consumo cultural, como uma mercadoria, o que a
integraria perversamente na (in)cultura que a gerou! Isto supõe a tarefa paradoxal de, ao
49
50
ADORNO, T. Crítica cultural e sociedade. In: Prismas, p.26. Grifo meu.
Em referência aos imperativos categóricos que Kant, na Crítica da Razão Prática, estabelece como
imperativos éticos necessários à civilização. Diz Traverso que, sobretudo na Dialética Negativa, Adorno insistia
em que a experiência de Auschwitz mudou o olhar sobre a cultura e a história, e passou a exigir das novas
gerações uma nova postura ética: “um novo imperativo categórico: pensar e atuar de modo que Auschwitz não se
repita, que nunca ocorra nada parecido”, nas palavras do próprio Adorno. Cf. TRAVERSO. La historia
desgarrada, cap.5, p.154.
51
TRAVERSO, idem, p.154. A frase citada traz a bela imagem da “história rasgada” que o título sintetiza. Os
demais raciocínios do autor aqui trabalhados estão no mesmo capítulo, passim.
52
Cf. Ibidem, p.134. Caso contrário, a cultura tornar-se-ia aderente à desumanização que a dizima, à sua própria
dissolução, pois que, por definição, a cultura funda os laços sociais imprescindíveis ao humano.
53
Diz Gagnebin: “Criar em arte – como também em pensamento – “após Auschwitz” significa não só rememorar
os mortos e lutar contra o esquecimento, uma tarefa por certo imprescindível, mas comum à toda tradição desde
a poesia épica, mas também acolher, no próprio movimento da rememoração, essa presença do sofrimento sem
palavras, nem conceitos, que desarticula a vontade de coerência e de sentido de nossos empreendimentos
artísticos e reflexivos.” GAGNEBIN. “Após Auschwitz”. In: SELIGMANN-SILVA, M. (org). História, Memória,
Literatura. O testemunho na era das catástrofes, p.91-113, citação na p.106.
310
mesmo tempo, transmitir e reconhecer a irrepresentabilidade daquilo que há de ser
transmitido, porque não se deve esquecer. Tal coisa requer uma especial delicadeza, que não
pode ser proporcionada pelo comportamento mimético tradicional ou a estética clássica,
baseados na relação de domínio do sujeito sobre o objeto. Este domínio, as ingerências da
delicadeza substituem por uma dialética da distância e da proximidade, por uma relação
cognitiva e expressiva de outro jaez, em que o sujeito não se apossa do objeto, mas ambos se
tangem, se atingem mutuamente, dando lugar ao reconhecimento do não-idêntico, como se vê
na lírica celaniana54.
Com efeito, a obra poética de Paul Celan tem iluminado caminhos para se pensar a
difícil relação entre poesia, história e violência. Havendo sobrevivido ao Holocausto, sua
criação poética traz a marca do doloroso esforço de encontrar palavras para a experiência de
uma fratura insuperável, como uma necessidade imperiosa que o conduziu a misturar léxicos,
línguas55 e silêncios, compondo uma obra simultaneamente original e prototípica da
linguagem testemunhal de um tempo de catástrofes. Sua visão de história como inferno e
ferida tem como contrapartida uma concepção, que se poderia chamar de visceral, da função
social e histórica da poesia, como uma linguagem que a experiência de dor alimentou com
sentidos outros, de modo a poder alcançar uma história em ruínas e restituir a imagem de seus
restos, porque a poesia passa através das asperezas e abismos do tempo, e não fora ou sobre
ele, imersa em seu presente como um “acento agudo”. Carregando as cicatrizes do tempo, é
capaz de conduzir, em sua grande fragilidade, fragmentos de verdade como “uma mensagem
em uma garrafa”56, deixada ao mar para quem possa ou saiba recolhê-la e, assim, conhecer
sua função restitutiva e orientadora, como a de um meridiano terrestre ou de um aperto de
mão:
Somente mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo diferença de
princípio entre um aperto de mão e um poema. E não nos venham aqui com ‘poieín’
ou coisa parecida. Isto significa, com todas as suas proximidades e distâncias, algo
54
Isto seria o “comportamento mimético autêntico”, ao qual, segundo a autora, Adorno chegou no final da
Teoria Estética, ao analisar a obra de Paul Celan, em contraponto ao mimético dominador e não-dialético
estudado em Dialética do Esclarecimento e outras obras. Cf. GAGENBIN, idem, p. 109.
55
Traverso discute o surpreendente uso do alemão como língua poética preferencial de Celan, e cita uma carta
que comprova sua tenacidade poética como necessidade existencial: “Não há nada no mundo que possa levar um
poeta a deixar de escrever, nem sequer o fato de ser judeu e o alemão a língua de seus poemas”. [tradução livre].
Na paisagem de ruínas e morte, permaneceu apenas a língua. Cf. o cap.6, Paul Celan y la poesía de la
destrucción, in: TRAVERSO, op.cit., p.158.
56
A visão de história e poesia de Celan é estudada por Traverso em seus poemas e nos dois discursos que
proferiu, quando recebeu o prêmio literário da cidade de Bremen, em 1958, e o prêmio Georg Büchner, em 1960,
bem como no texto “Conversa na montanha”, op.cit., p.167-173. Uma tradução em português do discurso do
prêmio Georg Büchner, “O Meridiano”, junto a uma seleção de poemas de Celan por Claudia Cavalcanti
encontra-se em CELAN, P. Cristal. São Paulo: Iluminuras, 1999. Vale notar que a mesma imagem, de uma
mensagem numa botelha ao mar, é apresentada por Haroldo de Campos na Revista NAVILOUCA. Cf. cap.3 deste
trabalho.
311
bem diferente do que no seu atual contexto. [...] Vivemos sob céus sombrios, e... são
poucas as pessoas. É por isso que existem tão poucos poemas. As esperanças que
ainda tenho não são grandes; tento conservar o que me restou.57
O trabalho de Marcio Seligmann sublinha o compromisso ético requerido pelo
testemunho e o teor testemunhal, requerendo de autores e leitores um cuidado com a
experiência passada à qual se tenta dar forma, tanto no que diz respeito à veracidade histórica
quanto à qualidade mimética posta em ato, isto é, ao modo como se lida com as aporias da
representação58. Seligmann, juntamente com outros tantos críticos de arte e cultura, põem-se
contra o que se pode chamar de estetização da catástrofe ou do horror, mediante um uso literal
da palavra ou da imagem, em que a realidade é apresentada cruamente, como se não passasse
por um processo de simbolização, canalizando a linguagem para a manifestação de um mal
absoluto que impede a operação associativa da metáfora. Sobretudo no que concerne ao
abjeto, se os limites da representação são elididos a obra perde seu teor de arte59.
Movendo-se em tais meandros, os trabalhos de La Capra e Flora Sussekind aqui
mencionados apontam para um leque semelhante de inquietações de cunho ético-literáriohistoriográfico. Particularmente, o que Flora considerou como efeitos perniciosos do
neorealismo ou da má incorporação das formas da reportagem pelo romance, resultando na
descrição das minúcias do horror, como ela disse, demonstram apreensão com um processo de
criação-recepção literária que pode embrutecer, em vez de sensibilizar.
No entanto, a tendência ao realismo e ao documental é característica da tradição
literária de testimonio e do teor testemunhal, mediante os quais a experiência histórica
encontrou expressividade no seio da literatura latino-americana, conforme mostrou
Seligmann60. O trabalho de Renato Franco, sobre o romance brasileiro das décadas de 60 e 70,
segue nesta direção, divergindo, por conseguinte, de críticas como a de Sussekind em diversos
pontos. Em especial no que se refere à interpretação do livro Em Câmara Lenta, de Renato
57
Carta a Hans Bender, reproduzida em Cristal, p.165-166. Segundo Traverso, Celan participou com certo
entusiasmo das manifestações de maio de 1968, em Paris, onde morava, acompanhado por seu filho e cantando a
Internacional em várias línguas. Seu débil fio de esperança parece ter-se rompido em abril de 1970, quando o
poeta se suicidou nas águas do rio Sena. Idem, p.179.
58
Cf. SELIGMANN-SILVA, “O testemunho: entre a ficção e o ‘real’”, in: op.cit., p.382-384. O assunto foi tratado
no cap.1, acerca do conceito de testemunho do autor. Para uma discussão sobre o compromisso ético da
historiografia, em uma outra chave teórica (entre a hermenêutica de Ricoeur e a 3ª geração da Escola de
Annales), ver VIEIRA, B.M. Poesia e História: diálogo e reflexão. ArtCultura (Dossiê História e Poesia),
Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia/Instituto de História. v.7, n.10, jan./jun. 2005. p.7-21.
59
Cf. SELIGMANN-SILVA, idem, p.82. Esta problematização é aplicada à filmografia do Holocausto, quando os
críticos comparam, p.ex., o cinema de Alain Resnais, Marcel Olphus, Chris Marker e Claude Lanzman, que se
recusam a mostrar imagens de documentários, substituindo-as por palavras ou registros indexais, e aqueles que
apresentam a imagem sem depuração.
60
Cf. o assunto no cap.1 a partir de SELIGMANN-SILVA, idem, p.34-35 e 83-85 e PENNA, Camillo, neste mesmo
livro de Seligmann, pp.355-374.
312
Tapajós, a diferença é clara: para Flora, este era exatamente o exemplo da narrativa diluidora,
porque detalhada e explícita, a ser evitada pela literatura. Para Franco, porém, trata-se de uma
escrita que tem a tarefa de lembrar acontecimentos dramáticos tornados quase inverossímeis
por sua natureza, absurda e bárbara: a execução de sua companheira Aurora, sob tortura, sua
impotência na prisão e o simultâneo desmoronamento do projeto político revolucionário que
acalentavam. Assim, as minúcias do livro se referiam à narração repetida, como um flash back
cinematográfico em câmara lenta, do núcleo do trauma – a morte de Aurora – por um sujeitoautor incapaz de enfrentar a dimensão da dor, bem como de entender a cadeia de fatos que
culminou naquilo, sendo a repetição a tentativa de assimilar e representar a intensidade de
uma experiência dolorosa que carece de significação. A despeito de tudo, urge comunicar que
algo de fundamental ocorreu, e que precisa ser registrado por correr o grave perigo de ser
esquecido ou apagado da história61.
De certo modo, os dois autores parecem ter razão, alicerçada sua argumentação em
prismas distintos. O teor testemunhal justifica as motivações e o caráter literário particular do
texto, mas não subtrai os riscos estéticos apontados por Flora. Há que se pensar se a “solução”
do problema reside na busca de “voz média” barthesiana, discutida por La Capra62, como tom
adequado para tratar de acontecimentos traumáticos. Neste caso, seria interessante discutir se
o poema “Réquiem para uma Aurora de carne e osso”, dedicado a esta triste história por Alex
Polari, adequa-se ou não a esta classificação...63
De todo modo, para a historiografia, os testemunhos e testimonios são importantes
como fontes, podendo prescindir de qualidade estética, embora seja crucial que o historiador
saiba discernir em suas fontes literárias/artísticas os limites entre estetização grosseira e
elaboração do trauma, o que não é tarefa fácil. Mas, porque influi em suas conclusões, tal
avaliação é necessária, exigindo da historiografia um alargamento de suas fronteiras em
61
FRANCO, R. Literatura e catástrofe no Brasil: Anos 70, in: SELIGMANN-SILVA, História, Memória,
Literatura, pp.355-374. Esta discussão está nas p.364-366. Cabe lembrar que Renato Tapajós é cineasta, de onde
o recurso cinematográfico na narrativa. Seu depoimento encontra-se no livro de Freire, Almada e Ponce, sobre as
memórias dos presos políticos do presídio Tiradentes. O assassinato de Aurora é mencionado no relatório Brasil:
nunca mais.
62
O autor discute a proposta de Barthes para uma “voz média” como modo adequado de falar do sofrimento
humano, mas redargúi também que muitas vezes os excessos, as formas hiperbólicas, antitéticas à voz média, são
imprescindíveis para a elaboração do trauma. Cf. LA CAPRA, op.cit., p.91.
63
“AURORA/perseguida/quase linchada/AURORA torturada/AURORA militante/da manhã/da noite/e das
tarefas/AURORA literal e metaforicamente/assassinada/AURORA/nome de companheira/e de palavra de
ordem.//Na sala de tortura/te estraçalharam o crâneo/com o capacete de Cristo/mas o furor deles/as trevas
deles/não serão capazes de impedir/o surgimento de novas AURORAS/hoje clandestinas.” Em Inventário de
cicatrizes, p.53. Polari não era infenso às preocupações estéticas, como mostra seu poema “Escusas poéticas –
II”, p.47, onde responde às “reclamações” críticas e políticas de companheiros de prisão sobre sua poesia. A
última estrofe é reveladora das angústias que permeavam a relação entre poesia e política na época: “Quanto às
outras críticas,/o que posso dizer é que a falta de lógica de meus sentimentos/não acompanha a lógica dos
manuais de dialética/e que minhas intenções e objetivos/nem sempre correspondem à minha vida real”.
313
direção à arte, como propunham Benjamin e tantos outros autores desde então64, pois esta é
uma das poucas maneiras – senão a única e se é que ainda há tempo – de fazer dos
documentos de barbárie também um documento de cultura.
7.3. Da (im)possibilidade de esquecer e lembrar
“aquele
gosto/aquele
cheiro/aqueles
gritos/estes
permanecem/calados
lá
dentro/colados numa memória essencial” [...] Retomando o poema “Recordações do Paraíso”
de Alex Polari, estes versos remetem à vasta discussão da dialética memória-esquecimento
que é parte integrante da voz testemunhal e da dinâmica política das sociedades. A noção de
se ter vivido uma experiência indelével e possuir uma memória que não se apaga – “sem
intervalos possíveis/vale dizer, definitivos” – e com a qual, direta ou indiretamente, o sujeito
terá que lidar sempre, ainda que preferisse esquecer, é característica da dinâmica traumática.
Para quem viveu experiências deste tipo, como já discutido anteriormente, configura-se um
duplo movimento em que, ao mesmo tempo em que é preciso esquecer o ocorrido, pois o ônus
dessa lembrança é pesado demais, é também necessário lembrá-lo e dizê-lo, justamente
porque é apenas mediante a memória e a expressão que a elaboração do passado doloroso se
fará, trazendo o almejado alívio. Ademais, no que diz respeito ao trauma histórico
principalmente, o fato de lembrar e registrar, mostrando ao mundo uma experiência
inimaginável que contudo foi vivida, a despeito da maior ou menor receptividade que se
obtenha, permite ao indivíduo ir recompondo sua memória e sua história, ameaçada de
inverossimilhança por ter sido feita de acontecimentos até então inconcebíveis, segundo os
cânones sociais de sua época. O testemunho, fragmentado e confuso que seja, obriga o
mecanismo de reconhecimento social a se modificar e, conjuntamente, transforma a
concepção e a escrita da história, levada a incorporar aquela memória e o substrato histórico
que a gerou.
Alguns poemas de Alex Polari, como “Cemitério de Desaparecidos” e “Cardume de
Mortos”, operam desta maneira, isto é, trazem o teor testemunhal-poético que busca relatar,
registrar e repetir, como que para se convencer e convencer a todos da inacreditável história
64
Ver SELIGMANN-SILVA, Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da
memória, op.cit., pp.391-418. O autor considera que as formas da historiografia tradicional, positivista ou
representacional-mimética, já não dão conta do mundo a historiar, pois as catástrofes contemporâneas
produziram um corte na história-experiência, tornando-a em estilhaços. Para lidar com as ruínas que sobraram, é
preciso novas formas historiográficas, que, como o catador de trapos de Benjamin, possam recompor imagens,
carregadas de tensões, a partir dos restos. Para ser capaz de tratar do choque e do trauma, mantendo uma força
ética e política, a historiografia precisa assimilar princípios da memória e da arte, como procura fazer este autor.
314
dos corpos de militantes políticos que foram clandestinamente jogados ao mar pelas forças
militares da repressão, sem qualquer registro de seus nomes ou trajetórias, que hoje apenas o
oceano poderia dizer:
[...]
Faz silêncio nesse cemitério marítimo
onde o ritmo das ondas
não ocasiona nenhuma paisagem
apenas afaga vagamente
uma planície de fantasmas submersos
que mal se localiza ou adivinha.
[...]
São nossos mortos
decerto com os rostos ainda crispados
de tortura
em cujo leito de sargaços e anêmolas [sic]
as algas já não rimam
com seus próprios algarismos
nada corresponde a mais nada
tamanha a desproporção do que foi sentido
do instante de despencar do céu
até o momento do impacto.
[...]
até afundar, sempre afundar,
afundar tão fundo e tanto
que a impressão que se tem é que continuam afundando
apenas para manter nossa ilusão
de retê-los ainda em vida?
[...]
Vocês que passeiam por praias desertas
por favor, ouçam com atenção qualquer ruído,
o barulho de um corpo no mar
é assim como o estalar da asa de uma mariposa muito frágil.65
Uma planície de fantasmas submersos soaria a realismo fantástico ou ficção científica,
não fosse a triste verdade que veio a transformar o sentido das águas, de paisagem rítmica em
silencioso cemitério. O mar já não é o mesmo. O poeta exorta aos que “perambulam pelos
mares e pelo oceano” que o percebam e “prestem atenção a tudo que de sua entranha aflore:
algum sinal, víscera, qualquer indício estranho”, que não são restos de navios de piratas (outra
imagem recorrente em Polari), mas tesouros outros, resquícios de um mundo sonhado que
desapareceu antes de se realizar, pagando o preço de uma dor tão incomensurável (“tamanha a
desproporção do que foi sentido”) que desarticula toda coerência e correspondência possível,
sem rimas que possam restabelecê-las: as algas já não encontram seus alga-r-ismos, como na
matemática os números corresponderiam aos dados do mundo, e nas teorias (“ismos”) o
65
“Cardume de mortos”, in: Camarim de Prisioneiro, p.89-90. O poema “Cemitério de Desaparecidos” pertence
a Inventário de cicatrizes, p.50: “Fala-se à boca miúda/nos corredores do Cisa,/Cenimar e Doi/que a Vanguarda
Popular Celestial/(como eles denominam o local que os/guerrilheiros vão depois de mortos)/está sediada em
algum ponto da Restinga de Marambaia./É lá que os corpos dos militantes presos/são jogados à noite de
helicóptero: [...]”
315
pensamento e as palavras tratariam das coisas. Ainda assim, para não perder o fio da
memória66 que possa conferir algum sentido à existência pessoal e coletiva, o poema realiza
uma sorte de testemunho secundário, relatando uma experiência que não foi vivenciada pelo
autor, mas que este soube e imaginou, por meio de um exercício de alteridade que pergunta
em vários versos como aquilo pode ter ocorrido e o que teriam sentido aqueles que o viveram
e não podem mais recordar e contar. A imaginação poética que os mantêm continuamente
afundando, para alimentar a ilusão “de retê-los ainda em vida”, efetua de fato um movimento
de construção de memória: pôs em uma garrafa ao mar, como pensava Celan, seu canto de
réquiem, com a função de registrar para o futuro o que não pode ser esquecido, e nem de todo
lembrado, cabendo à sociedade e à historiografia um cuidado muito especial, capaz de atentar
para acontecimentos tão sutis quanto “o estalar da asa de uma mariposa muito frágil”. Sem
embargo, não são corpos ao mar que fazem este ruído: é todo um espírito, um projeto de vida,
país e mundo, toda uma dimensão da cultura brasileira que submergiu no cemitério marítimo
– o ruído de asa quebrada é seu resquício e memória.
Exatamente por essa fragilidade, é necessário que se diferenciem as lacunas
necessárias da memória das disputas sócio-políticas em torno da dinâmica coletiva de
lembrar-esquecer. É sabido que, à imagem da rede, a memória se faz de uma tessitura de fios
e vazios, indispensáveis por definição, ao processo de armazenagem, seleção e reorganização
de vestígios, como fragmentos de lembranças que são mobilizados pela recordação67. Se
assim não fosse, ter-se-ia um continuum de momentos passados que impediriam o presente e o
futuro e, por conseguinte, o próprio processo mnêmico. A questão que se coloca desde este
ponto, acerca dos limites entre lembrança e esquecimento, tem sido longamente discutida,
66
O processo da memória é quem tece o fio que liga o passado ao presente e ao futuro, garantindo sentido aos
movimentos dos sujeitos na história, permitindo a construção das identidades pessoais e grupais. Paolo Rossi
mostra como a questão da memória/esquecimento foi recentemente retomada tendo como motivações,
individuais e coletivas, o medo da descontinuidade que o esquecimento provoca e a busca de uma continuidade
temporal que, podemos acrescentar, garanta um senso de identidade ou um fio de sentido para a história:
“l'attuale, quasi spasmodico interesse per la memoria e per l'oblio è legato al terrore che abbiamo per l'amnesia,
alle sempre nuove difficoltà che si frappongono ai nostri tentativi di connettere insieme, in un qualche accettabile
modo, il passato il presente e il futuro.” ROSSI, P. “Ricordare e dimenticare”, in: Il passato, la memoria, l’oblio:
sei saggi di storia delle idee. Bologna: Il Mulino, 1991, p.13-34. Citação na p.24.
67
Para esta imagem da memória como rede, Cf. VIEIRA, B. Itinerários da memória na poesia de Manuel
Bandeira. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Instituto de Letras, UFF. Niterói, 1997. [mimeo]:
“enquanto releitura e reescritura, a memória é construção social, relação historicamente tecida, cujo espaço
simbólico é a interseção, o cruzamento de vetores individuais e coletivos, isto é, constrói-se memória pelo
entrecruzamento de agentes, de temporalidades, de espacialidades; entrecruzamento do oral e do escrito; do
passado e do futuro; de acaso e intenção; de registro e ocultação. Envolvendo elementos conscientes e
inconscientes, valores e pulsões, alterações e obliterações de fatos, signos e silêncios, a memória é uma rede
cujos fios são constituídos de lembranças e perspectivas individuais e coletivas, indissociáveis de lacunas feitas
de esquecimento e de ausência de significação. Esta rede, pedra de toque do conhecimento histórico, é fator
essencial também ao discurso ficcional e poético.”, p.28.
316
com constantes referências a Nietzsche, por sua concepção do peso de um “excesso de
história” no mundo moderno, e ao personagem Funes, de Jorge Luis Borges, que por ser
incapaz de esquecer qualquer detalhe ou diferença, tornava-se incapaz de pensar – o que exige
generalizações e abstrações, portanto, esquecimento de particularidades – e quedava
imobilizado por um passado sempre presente. No entanto, se para a modernidade é necessário
“lembrar de esquecer”, como condição do movimento de superação da força das tradições,
sem o qual os aspectos da cultura moderna não se teriam afirmado, é mister igualmente “não
esquecer de lembrar”68, porque além de dimensões culturais importantes terem ficado
soterradas por este movimento – acarretando consigo a tendência de declínio da memória
coletiva e da consciência do passado, contra a qual autores como Benjamin tanto lutaram –,
somaram-se a isto os muitos processos contemporâneos de violação da memória, realizados
em diversos países e de numerosas maneiras, seja pela mentira deliberada, pela reinvenção de
passados idealizados ou míticos, pela deformação de fontes e destruição proposital de
arquivos, pelo tráfico de documentos, pelos “apagamentos de arquivos” vivos (pessoas
assassinadas por “saberem demais”), pelo revisionismo histórico que, intencional ou
ingenuamente, rende-se a variadas armadilhas ideológicas.
O cerne da questão, portanto, não reside na disputa entre lembrar e esquecer, mas sim
entre o que se lembra e o que se esquece, e quais os critérios para esta dinâmica. Os
problemas da memória na história contemporânea européia, especialmente a literatura e a
historiografia italiana e alemã acerca do nazifascismo, têm contribuído como base de reflexão
para a compreensão das ditaduras militares latino-americanas. Mantidas as devidas diferenças,
evidentemente – os regimes dessas ditaduras não se caracterizam como fascistas, nem
tampouco houve na região um processo de disciplinamento de mesmo teor, havendo o Estado
induzido a população à obediência mais propriamente pelo medo –, a comparação é factível
em razão do caráter traumático que todos estes regimes apresentam nas histórias de seus
respectivos países69. Nas palavras de Bruno Groppo:
68
Este jogo de expressões é de Seligmann, que discute o problema aqui tratado em “Reflexões sobre a Memória,
a História e o Esquecimento”, op.cit., p.59-89. O autor conclui pela consideração de que uma nova ética e
estética da historiografia se pôs em curso em virtude da memória, uma vez que “a historiografia sobre Auschwitz
e a sua metarreflexão têm-nos ensinado a cada dia a impossibilidade de segmentar radicalmente os campos da
história e da memória. Nesse sentido, ela é paradigmática. Graças a ela desencadeou-se um processo de revisão
crítica dos dogmas centrais da historiografia positivista advindos do século XIX, processo este que já havia sido
iniciado com as obras de eminentes autores, tais como Nietszche, Bergson, Proust, Joyce, Maurice Halbwachs e
Walter Benjamin.”, p.69. Sublinhe-se que a revisão crítica de que fala o autor não é o mesmo que o revisionismo
histórico abaixo mencionado.
69
Cf. GROPPO, B. op.cit., p.26 e 30-39, e no mesmo livro Patrícia FUNES, Nunca más: memoria de las
dictaduras en la América Latina, p.43-46.
317
Qualquer sociedade confrontada com um passado trágico e difícil de assumir
desenvolve mecanismos de inibição, esforçando-se por esquecer os acontecimentos
e as experiências cuja evocação provoca sofrimento e ameaça sua identidade, sua
auto-estima ou seu equilíbrio. Voluntária ou involuntariamente, tenta arrancá-los de
sua memória. Amiúde o logra, mas somente por um certo tempo, mais ou menos
longo, depois do qual o passado reprimido volta à superfície. Não existe, com efeito,
uma técnica ou uma arte do olvido que permita apagar voluntária e definitivamente
uma parte do passado, ao passo que existem, desde a antiqüidade, técnicas de
memória que ajudam a recordar.70
Realizando um estudo comparativo da Alemanha após o nazismo e da França após o
governo colaboracionista de Vichy durante a Segunda Guerra Mundial, bem como após a
Guerra da Argélia71, com os processos de redemocratização das sociedades americanas do
Cone Sul, Groppo observa o papel essencial tanto de lembranças quanto de esquecimentos
compartilhados na constituição da memória coletiva requerida à identidade grupal e nacional.
Este processo de constituição, longe de consistir em campo neutro, é um âmbito privilegiado
de embate de memórias/esquecimentos contrapostos, em que cada grupo social tenta fazer
valer sua leitura do passado, disputando lugares, objetos e datas comemorativas que dêem o
suporte físico necessário à materialização ou objetivação da memória.
A experiência européia indica a impossibilidade de um total olvido social, isto é, uma
sociedade não consegue esquecer pura e simplesmente acontecimentos traumáticos e, cedo ou
tarde, acabará por se confrontar com eles. Este “retorno do recalcado” só é superável quando
o passado se converte totalmente em passado, o que não ocorre pela recusa em se lidar com
eventos ou lembranças dolorosas, mas, ao invés, mediante a apropriação do que se passou até
o restabelecimento da verdade, o que também se pode chamar de elaboração social do trauma.
Contudo, como a sociedade que tenta recusar o passado e aquela que se vê às voltas com seu
retorno não são iguais – pois, transcorrido o tempo, novas gerações cresceram, figuras
importantes morreram e os problemas já não são exatamente os mesmos –, observam-se fases
ou ciclos de memória social, em que se alternam períodos mais quietos e mais agitados,
70
“Cualquier sociedad confrontada con un passado trágico y difícil de asumir desarrola mecanismos de
inhibición, esforzándose por olvidar los acontecimentos y las experiencias cuya evocación provoca sufrimiento y
amenaza su identidad, su autoestima o su equilíbrio. Voluntaria o involuntariamente, intenta arrancarlos de su
memoria. A menudo lo logra pero solo por um cierto tiempo, más o menos largo, después del cual el pasado
reprimido vuelve a la superficie. No existe, en efecto, una técnica o um arte del olvido que permita borrar
voluntaria y definitivamente una parte del pasado, mientras que existen desde la antigüedad técnicas de la
memoria que ayudan a recordar.” GROPPO, idem, p.31. O autor anota que a anistia, ao impor um esquecimento
oficial, não pode, porém, apagar a recordação. A irrupção da memória nos países do Cone Sul após as ditaduras
militares tem, segundo o autor, três motivos básicos: a natureza dos crimes cometidos, contra a humanidade, pelo
Estado; a importância crescente do tema dos Direitos Humanos em âmbito internacional; a “obsessão da
memória” que se vê desenvolver em todas as sociedades ocidentais, como um fenômeno central desta época,
marcada por um nível tal de violência que a constituiu como “era dos extremos”. Cf. ibidem, p.20-21.
71
Esta, em especial, tem relações diretas com a história das ditaduras latino-americanas, uma vez que a doutrina
militar francesa, acumulada durante os conflitos do Vietnã e da Argélia, prevendo o recurso à tortura e ao
desaparecimento de pessoas, exerceu influência significativa na formação de quadros militares na Escola das
Américas. Cf. ibidem, nota 50, p.34.
318
conforme fatores externos ou especificamente nacionais reativem os debates, ou ainda um “rio
subterrâneo” remonte à superfície. A história européia ensina também que são imensas as
dificuldades para uma sociedade encontrar soluções satisfatórias depois da experiência
traumática72 de um regime ditatorial e violento. Dos confrontos entre os setores que querem
esquecer e os que precisam lembrar aos problemas suscitados por anistias não consensuais,
passando pelos grandes tribunais de justiça e pela denúncia e definição dos crimes
perpetrados, até hoje não se encontraram boas soluções, mas apenas, quando muito, o menor
dos males.
Sem embargo, ainda que todas “guerras de memória” estejam orientadas em direção
ao futuro, disputando o tipo de sociedade que se deseja construir, a memória das vítimas
ocupa um lugar especial na medida que é a única totalmente interessada no estabelecimento
da verdade, impulsionando a sociedade a olhar o passado de frente, portanto a evitar que ele
se repita, a criar políticas de memória e processos de reconstrução de sentidos, que significam,
inclusive, dinâmicas de ressemantização da linguagem a respeito de termos que, ao longo do
período ditatorial, passaram a designar conteúdos distintos, por grupos distintos (como
revolução, governo, golpe, ditadura, nação etc.).73
Este é o quadro em que se têm produzido os movimentos políticos pela memória e os
testimonios literários na América Latina. Na Argentina, é exemplar o caso das mães e avós da
Praça de Maio que, girando por tantos anos em torno do obelisco, em frente ao palácio de
governo, pedindo explicações sobre seus filhos desaparecidos, trouxeram para a dimensão
simbólica e pública a questão quase irrepresentável da dor, da vida e da morte74, obrigando a
sociedade argentina a representar um passado não oficial e a se modificar. Algo de semelhante
envergadura social não ocorreu no Brasil, a despeito de algumas iniciativas importantes de
recuperação de testemunhos e das memórias da ditadura militar. Se na Argentina alguns
intelectuais se preocupam com o que consideram um certo exagero memorialístico ou
vingativo75, no Brasil a tendência inversa não parece ter efeitos menos perniciosos, uma vez
72
Cf. as duas conclusões, ibidem, p.38-39.
Cf. ibidem, p.39-40 e FUNES, op.cit., p.56.
74
Cf. MAIA, Marisa, op.cit., p. 159. A autora trabalha a partir de considerações de G.G. Reinoso (Le
psychanaliste sous la terreur), para quem as Mães e Avós tornaram gradualmente uma dor privada em dor
pública, inscrevendo-a no campo simbólico-social.
75
Para Patrícia Funes, a “voracidade memorialista” em relação ao passado recente que se assiste hoje naquele
país “não necessariamente supõe uma profunda reflexão social que contribua a uma ação decididamente
superadora do autoritarismo e da intolerância. Às vezes, inclusive, se logra o efeito contrário, ou seja, a
trivialização por repetição”, embora essa “explosão memorialista” seja também ela fruto das limitações e
pendências do tema dos direitos humanos e da recuperação da democracia política. Cf. op.cit., p.54. Em recente
entrevista, Beatriz Sarlo discute a questão em outro viés: a dimensão jurídica dos testemunhos pessoais foi
fundamental para provar os crimes cometidos pelo Estado, quando todas as outras formas de prova haviam sido
73
319
que a ausência de um amplo debate social obstaculiza o trabalho da memória e o processo de
elaboração da dor por parte de grupos e indivíduos e, por conseguinte, traz questões especiais
para a pesquisa e escrita da história. A este respeito, é bastante elucidativa uma declaração de
Ivo Herzog, filho mais velho de Vladimir Herzog – jornalista e membro do PCB morto sob
tortura no DOI-CODI de São Paulo, em outubro de 1975 –, em que revela um choque
emocional tão grande que deixou seqüelas em sua memória e comportamento por longo
tempo:
Eu tive um problema que não sei bem o que foi, agora estou fazendo análise. Parece
que depois que meu pai morreu eu entrei numa depressão muito forte. Os médicos
nunca fizeram um diagnóstico preciso, mas hoje parece que tudo não passou de uma
grande depressão. Perdi muito peso, era muito introvertido [...] Estou descobrindo
76
que talvez [a depressão] tenha durado trinta anos.
Tal declaração aponta para os processos de medusamento social e conseqüente turvação
da transmissão histórica, no Brasil, que se desvelavam também mediante a poesia, conforme
se viu no capítulo anterior. De fato, tais processos não afetam apenas a geração que
experimentou o ato traumático, mas também as seguintes, pois, como mostra o trabalho da
EATIP (Equipo Argentino de Trabajo e Investigación Psicosocial), as afetações dolorosas
possuem caráter multi e transgeracional, ou seja, a situação traumática incide tanto sobre os
que a sofreram diretamente, como sobre o conjunto do corpo social, com as várias gerações
que o compõem, e a elaboração dos lutos, quando não realizada por uma geração, permanece
pendente para as que se sucedem77. Uma vez que são afetados os sistemas de valores,
destruídas, não havendo, portanto, discussão sobre este ponto. Mas isto não exclui os problemas típicos da
memória – “todo tipo de manobras, os gêneros literários, a ideologia e os interesses em jogo”, motivados pelas
batalhas político-culturais do presente – nem exime a sociedade de discutir também a violência revolucionária.
Sobretudo, o testemunho tornou-se, como manifestação contemporânea tanto da cultura letrada quanto de
massas, uma forma de excessiva legitimação da primeira pessoa na construção historiográfica, configurando uma
“era do depoimento” que traz numerosos problemas à intelectualidade, aos historiadores em especial. SARLO, B.
A história sou eu. Folha de São Paulo, São Paulo, 8 abr. 2007, Caderno Mais!, p.8. Entrevista a Sylvia Colombo.
76
HERZOG, Ivo. Filho de Herzog revela depressão e revolta. Folha de S.Paulo, 23 out 2005, p.A12. [Entrevista a
Ricardo Melo]. É interessante observar como o trauma pode dificultar também a percepção ou compreensão de
fatos aparentemente óbvios ou socialmente reconhecidos: Ivo diz, p.ex., que só há dois ou três anos lhe “caiu a
ficha” (entendeu) que o pai era filiado ao PCB, embora existissem reportagens e livros a respeito, além de amigos
à volta que lhe poderiam contar a história. Acerca da anistia – que no Brasil deixou os torturadores impunes –
sua postura é conciliadora, seguindo a tendência geral: “É difícil, mas você tem que levar em conta o bem maior,
e no caso a anistia era esse bem maior. Outra coisa que temos que lembrar é que as pessoas que torturaram eram
operários de uma linha de produção, não eram diretores da fábrica. O importante é entender por que aquelas
coisas aconteciam”. Num viés distinto, um dos filhos de desaparecidos argentinos declara: “não quero
desaparecer eu também. Há muitas formas de desaparecer”, o que também indica a diferença das duas
sociedades, brasileira e argentina. Ver NIETOS, vídeo produzido pela associação das Avós da Praça de Maio e
pelos H.I.J.O.S. (Hijos Identificados por la Justicia y contra el Olvido Social), Buenos Aires, apresentado no
painel História e memória na América do Sul, no Seminário Desafios da Integração Sul-Americana, CFCH/UFRJ,
Rio de Janeiro, 26 mai. 2006.
77
Cf. KORDON, D.; EDELMAN, L.; LAGOS, D. et al. (EATIP - Equipo Argentino de Trabajo e Investigación
Psicosocial). Memoria e Identidad: Trauma social y psiquismo. Afectación inter y transgeneracional.
Construcción de redes biológicas y sociales. Buenos Aires, fevereiro 1999, pp.1-16. Disponível em:
320
resultam disto dinamismos éticos, semânticos e psíquicos, no sentido de uma crise da
identidade individual e coletiva, desdobrando-se em uma tendência à des-historicização e à
desvalorização da experiencia histórica enquanto tal:
O traumático infecciona e modifica, às vezes estruturalmente, os sistemas de
valores, mitos, fantasias e crenças no âmbito pessoal, familiar e social, e se articula
com os ideais e cadeias de significação predominantes socialmente. […] O impacto
do ocorrido fica instalado como um corpo estranho. Em alguns casos, as respostas
que o sujeito tenta implementar entram em conflito com seus sitemas de valores. A
pessoa entra assim em crise com relação à auto-estima ou à sua identidade em
geral.//Seja então pela violência, massividade ou destrutividade da ação traumática,
ou pelo que há de inaceitável para o próprio eu nas respostas implementadas, uma
parte das vivências não é metabolizada e resta silenciada, para o próprio sujeito, que
a repudia e repudia também esta parte de si mesmo e da história, que portanto
permanece incomunicada.78
Assim, lembrando que tudo aquilo que acontece com o indivíduo é fruto de um
cruzamento de dimensões pessoais e sócio-históricas indissociáveis, há experiências da
década de 70 que a historiografia brasileira ainda precisa incorporar, em nome de uma melhor
compreensão que possa ter sido a vida naquele período. Há gostos, cheiros, gritos e sutilezas
“colados a uma memória essencial”, como diz o verso de Alex Polari, que aguardam o
reconhecimento de sua dimensão de testemunho para que lhes seja conferido aquilo que Pierre
Nora chamou de “a dignidade virtual do memorável”79. Ainda que esta experiência seja a da
mais profunda perplexidade, como atestam os versos de abertura do poema “Inventário de
Cicatrizes”80, indicando o quanto o plexo daquela geração foi perpassado – dos que, “de
Bonsucesso a Amsterdan” espalhados, “estão marcados” por “pálidas cicatrizes/esmanecidas
pelo tempo/bem vivas na memória envoltas/em cinzas/fios cruzes/oratórios” e “se demitiram
do direito da própria felicidade futura” – e, com ele, a cultura brasileira e, com ela, dimensões
fundamentais da Cultura com “c” maiúsculo:
Estamos todos perplexos
à espera de um congresso
dos mutilados de corpo e alma.
<http://www.eatip.org.ar/> Acesso em: 30 jul. 2006. Agradeço a Vera Brasil, do Grupo Tortura Nunca Mais, esta
indicação.
78
Ibidem, p.10: “Lo traumático infisiona y modifica, a veces sustancialmente, los sistemas de valores, mitos,
fantasías y creencias en el ámbito personal, familiar y social y se articula con los ideales y cadenas de
significaciones predominantes socialmente. […] El impacto de lo ocurrido queda instalado como un cuerpo
extraño. En algunos casos las respuestas que intenta implementar el sujeto, entran en conflicto con sus sistemas
de valores. La persona entra así en crisis en relación a la auto estima o a su identidad en general.//Ya sea
entonces por la violencia, masividad o destructividad de la acción traumática o por lo inaceptable para el propio
yo de las respuestas implementadas, una parte de las vivencias no son metabolizadas y quedan silenciadas, para
el propio sujeto, que las repudia y repudia también esa parte del si mismo y de la historia, que por o tanto
permanece incomunicada.”
79
NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”, p. 28.
80
POLARI, Inventário de cicatrizes, p.51. Os versos destacados abaixo são o terceto de abertura do poema.
Conclusão: Mudança de Voz e Perplexidade (1977-1979...)
eu não sou eu
nem o meu reflexo
especulo-me na meia sombra
que é meta de claridade
distorço-me de intermédio
estou fora de foco
atrás de minha voz
perdi todo o discurso
minha língua é ofídica
minha figura é a elipse
(“Metassombro”, Sebastião Uchoa Leite)
A relação entre poesia e experiência histórica que aqui se procurou caracterizar, entre
1968 e 1977, sofreria inflexões a partir desta data aproximadamente, acompanhando as
modificações no contexto histórico, especificamente político, sempre na forma dialética como
literatura e realidade interagem.
A crise econômica e a conseqüente crise de legitimação da ditadura militar levaram à
gradual liberalização do regime, o denominado processo de “distensão” política, em que o
grupo no poder conduziria as rédeas da “abertura lenta, segura e gradual” do regime sob o
governo do general Geisel, não sem antes garantir a total destruição dos últimos focos
clandestinos de esquerda, formados pelo PCB e PC do B; instituir a Lei Falcão que acabava na
prática com a propaganda eleitoral gratuita na televisão, prejudicando o avanço da oposição
legal; criar o “pacote de abril” de 1977 que cassava líderes moderados, impunha a figura do
“senador biônico”, significando que 1/3 dos senadores seriam eleitos indiretamente, e
redimensionava os coeficientes eleitorais de modo a beneficiar os estados federativos de
maior apoio ao partido governista. Deste modo, garantia-se estabilidade para suspender
gradativamente a censura e para uma sucessão tranqüila, por parte do general João Batista
Figueiredo, responsável pela continuidade da “abertura” e pela condução da controvertida
anistia recíproca. Mas se propiciara espaço para que as reivindicações que se encubavam
reprimidamente desde o princípio da década aflorassem em torno de 1976-77, ensejando o
início de um processo de criação de alternativas de participação popular. Estas se deram por
meio das Associações de Moradores e Sociedades de Amigos do Bairro, que proliferaram em
todo o país a partir de 1976; das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) vinculadas a setores
progressistas da Igreja Católica; da atuação clandestina de organizações da sociedade civil,
322
que futuramente seriam denominadas Organizações Não-Governamentais (ONGs); do
ressurgimento dos protestos estudantis em 1976-77 e a reorganização da União Nacional dos
Estudantes (UNE) em 1979; da organização dos Comitês de Anistia, pedindo contas à
ditadura, lutando pela desmobilização dos aparelhos repressivos e por uma anistia ampla,
geral e irrestrita; da onda de greves na região do ABC paulista nos anos de 1978-79, quando
surgiria um novo tipo de movimento operário.
A trajetória desta abertura, porém, foi marcada por avanços e recuos, a cada passo das
manifestações de oposição correspondendo um ato fortemente autoritário, resultando em nova
vaga de operações repressivas entre 1975-79. O controle e desautorização da polícia política e
da comunidade de segurança só se deu após os assassinatos sob tortura do jornalista Vladimir
Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, em São Paulo (1975), nas dependências do DOICODI, quando houve a demissão do comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila e,
posteriormente, do ministro do Exército, Sylvio Frota. O propagandeado patrocínio do Estado
à abertura política encobria a pressão das reivindicações sociais e a resposta repressiva por
parte do governo. Estes novos atos de força, contradizendo as intenções de normatização
institucional, provocaram forte reação social, que passou a envolver, além dos grupos
mencionados, a comunidade científica, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a
Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB). Embora heterogênea, esta reação culminou por obter ganhos, como a extinção do AI5 em fins de 1978 e a adesão de setores “liberais” da sociedade ao projeto de abertura, como
saída desejável para o impasse político que se vivia no país. O fim do AI-5, ao repor algumas
liberdades legais – fim da censura à imprensa, prisões regularizadas, habeas-corpus – e ao
reduzir mecanismos excepcionais de controle do Executivo sobre o Congresso e a sociedade,
propiciou melhor organização da frente oposicionista, que liderou uma ampla mobilização
pela anistia política, mantendo debates, passeatas, comícios e manifestações parlamentares,
malgrado os esforços de desunião das oposições intentados pelo governo Figueiredo. As
pressões impuseram à linha-dura a necessidade de negociar a forma de viabilização da anistia,
cuja Lei foi decretada em agosto de 1979, quando se iniciaria um lento processo de disputa
pela interpretação do texto jurídico até hoje vigente, uma vez que os militares estenderam as
cláusulas legais a toda a corporação, incluindo os torturadores, baseados na tese de que havia
ocorrido no país uma guerra revolucionária, cujos dois lados caberia anistiar1.
1
Para o quadro contextual, cf. AARÃO REIS, Ditadura militar, esquerdas e sociedade, p. 65-73; e MENDONÇA e
FONTES, op.cit., p.70-77.
323
A “nova poesia” da década de 70 ou poesia marginal se envolveu profundamente neste
contexto de repolitização social, tanto em sua temática quanto na participação ativa de poetas
nas associações, comitês de anistia etc., a ponto de em certa medida se “dissolver” aos poucos
no discurso político mais direto, assumindo formas cada vez mais explícitas de exposição dos
temas de luta por cidadania, redemocratização e direitos humanos, como se observava em
novas antologias/grupos como Ebulição da escrivatura (RJ), Contramão (SP), Águas
Emendadas (Brasília), entre muitos outros. Um quarteto de Samaral, poeta que se destacaria
nos anos 80, fundador da revista Urbana, condensava o anelo coletivo: “Com as massas
tudo/sem as massas nada/ou amassa tudo/ou não amassa nada”2. Nas palavras de Cacaso,
todavia, “essa falta de especificação que dissolve numa mesma retórica os interesses do
cidadão e do poeta, com prejuízo para este último, acaba por esvaziar de sentido político a
atividade literária enquanto tal, e tudo em nome de um desejo de maior participação política
do poeta...”3 Como se vê, a complexa relação entre experiência histórica e poesia continuava e
continuaria repleta de contradições. Ocorria que as mudanças político-institucionais,
sobretudo a partir de 1978, como diz Hollanda4, repercutiram no campo da produção cultural,
onde papéis e espaços se redefiniriam, de maneira geral apontando para o deslocamento do
lugar privilegiado que a literatura, as artes e sua crítica haviam ocupado, durante a ditadura,
como arena por excelência de debates sobre a vida nacional. O circuito alternativo de poesia e
cultura, da maneira como se configurara ao longo do decênio de 70, começaria a se diluir no
início dos anos 805, tomando outros rumos, fosse com novíssimos personagens ou com os já
conhecidos.
Tal mudança de eixo, no entanto, aconteceria gradualmente e desde dentro da intensa
movimentação poética que marcou os últimos anos da década de 70, quando proliferaram
2
Samaral já se tornara conhecido no PoemAção, realizado no MAM (RJ) em 1974, mas sobressai nos anos 80 e
90, quando organiza eventos artísticos no Castelinho do Flamengo, no Rio de Janeiro. O tablóide Urbana –
poesia fanzine foi transformado em revista em 1992. Este poema se encontra na edição comemorativa dos 15
anos da revista, e homenagem a Samaral, falecido pouco antes. Ver Urbana, n.22., ano 15, outono, Rio de
Janeiro, 2001, p.104.
3
CACASO/BRITO, “Com a boca na botija”, in: Não quero prosa, p.83. Texto original de 1978.
4
Cf. HOLLANDA, “Depois do poemão”, in: GASPARI, HOLLANDA e VENTURA, op.cit., p.186-190; publicado
originalmente no Jornal do Brasil, 13/12/1980.
5
Cf. SUSSEKIND, F. Literatura e vida literária., p.122. Na mesma direção, Mª Amélia Melo – coordenadora do
Centro de Cultura Alternativa, organizado junto a RioArte (RJ) no início dos anos 80, que hoje se encontra na
Editora José Olympio – avaliava: “a produção independente diminuiu bastante, já não se vê mais pessoas
vendendo seus livros [...] na literatura há uma grande vazio, os suplementos literários acabaram. Há um grande
marasmo, as pessoas estão perdidas, talvez pela mudança de contexto histórico”. Texto de 1983, em Perspectiva
Universitária, citado por Leila Miccolis, que entretanto discorda de tal avaliação. Cf. MICCOLIS, op.cit., p.70.
324
antologias e grupos6, os ensaios críticos se avolumaram, juntamente com debates e seminários
que abrigariam no meio acadêmico a “poesia marginal” – como na SBPC de 1978 –, a
despeito das contradições deste gesto e de uma certa reclamação por parte dos poetas
envolvidos. Já se organizara também uma espécie de “rede editorial alternativa” em diversos
estados do país7, onde frutificavam e reverberavam aquilo que podemos chamar de
acontecimentos poéticos: em várias cidades, varais de poesia expunham trabalhos de poetas
independentes que encontravam nas cordas estendidas em ruas e praças um meio de acesso ao
público na luta pela divulgação de sua arte. Em São Paulo, os grupos Pindaíba, Poesia e Arte,
Poetasia e Sanguinovo realizavam diversos eventos, de espetáculo a passeatas, levando às
ruas palavras-de-ordem poéticas: “interferir no marasmo urbano de São Paulo, estimular uma
participação popular e, principalmente, abrir espaços e conquistar corações.”8 A frase indica,
mais uma vez, o incômodo sensível contra a frieza de relações e o automatismo rotineiro da
vida nas grandes cidades (o “marasmo urbano”), que resultavam na inação e alienação de boa
parte da população, cuja não-participação nas atividades artísticas e políticas destoava, não
apenas da tentativa de resistência dos poetas marginais, como também de todo o processo
altamente participativo das décadas de 50 e 60, anteriores à ditadura militar.
Dentre os eventos da época, destacou-se ainda, em 1977, a “I Feira de Poesia e Arte”,
organizada por Cláudio Willer no Teatro Municipal de São Paulo, reunindo poetas do eixo
Rio-São Paulo como uma forma de comemoração dos 55 anos da Semana de Arte Moderna.
Mobilizando um grande número de escritores, leitores e curiosos – cerca de 8 mil pessoas,
segundo estimativa de poetas e críticos –, a feira se realizou “em clima de alta tensão”,
consistindo no grande acontecimento literário daquele momento9. A quantidade de eventos e
manifestações revelava o imenso desejo de unir poesia e vida, intervindo no cotidiano e
alçando-o em grau máximo à condição de matéria poética. Fechando a década, as manchetes
dos jornais paulistas noticiavam uma chuva de poesia no centro da cidade de São Paulo.
Integrantes do grupo Poetasia, por volta do meio-dia de 14 de dezembro de 1979,
6
Ver Quadros Informativos no Apêndice. Estas informações da movimentação poética do final dos anos 70
encontram-se principalmente nos trabalhos de Miccolis, Hollanda e Messeder Pereira. Ver resumo em Poesia
jovem/Anos 70 (col. Literatura comentada) dos dois últimos autores.
7
A título de exemplo, ver as editoras Trote, Nuvem Cigana, Cais (RJ); Sanguinovo, Pindaíba, Taturana (SP);
Noa Noa (SC); Beija-Flor (PR); Cemflores (MG); Bandavuô (PE); Corisco (PI); entre tantas outras listadas nos
Quadros apresentados no Apêndice.
8
Citado por HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, Poesia Jovem..., p.7-8.
9
No mesmo ano, a Bienal de Artes Plásticas (SP) realizada em novembro, expunha a nova poesia, enquanto a
vanguarda-processo organizava na cidade de Natal (RN) a Expoética 77. Em 1978, a mostra “Poucos e Raros”
expôs no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MASP) uma retrospectiva da produção independente da década.
No Rio de Janeiro, a Casa do Estudante Universitário promoveu a “Mostra Nacional de Publicações
Alternativas” e a partir de 1979/80, Flavio Nascimento liderava na Cinelândia a “Feira de Poesia”, às sextasfeiras à noite, que teria a duração de alguns anos. Cf. Ibidem.
325
precipitaram do 43º andar do Edifício Itália 40 mil folhetos com poemas sobre a cidade. A
tentativa de poetizar o cotidiano, como marca fundamental e fundante desta geração poética,
saudava a anistia política e a esperança de novos tempos com o mais pressuroso gesto. À sua
maneira, todos confirmavam os versos de Leminski:
Ainda vai chegar o dia
em que tudo que eu diga
seja poesia
Isto, sim, seria um milagre, a plena realização da arte num país de capitalismo periférico
e tardio, sob a vigência de uma ditadura militar, na crise da modernidade! Mas o que se viu,
infelizmente, foi o momento de maior repressão política sobre a poesia. Já em 1970, conforme
relatado, o poeta Flavio Nascimento havia sido detido por vender folhetos poéticos na feira
hippie e, em 1976, o primeiro número do Almanaque Biotônico Vitalidade, teve problemas de
liberação pela Censura Federal10. O ano de 1978 foi, porém, o mais profícuo em efeitos
repressivos: sofreram-nos os poetas Ulisses Tavares e Aristides Kafke, convidados a depor no
DOPS de São Paulo para responder pelo Jornal de Poesias Populares e, em Brasília, Nicolas
Behr foi processado judicialmente por “porte de material pornográfico”, tendo libretos seus e
alheios apreendidos11. Behr presume que seu material de impressão foi confundido com um
“aparelho subversivo”. Como militava contra a manipulação exercida pela cultura oficial em
Brasília, recebeu provavelmente uma leitura perversa ou moral de seus poemas, cujo tom
predominante é ironicamente ácido:
se é para o bem de todos
e felicidade geral da nação
diga ao povo
que direitos direitos, humanos à parte
eu sei que errei
mas prometo
nunca mais
usar a palavra certa
Também em 1978 responderam inquérito os membros do conselho editorial do jornal
alternativo Lampião da Esquina (RJ), porta-voz de grupos sexuais estigmatizados, e no início
de 1979 a imprensa noticiava que o Centro de Informações do Exército (CIEX) havia
preparado um documento no qual analisava as causas e características da imprensa alternativa,
com o objetivo de propor medidas indiretas que coibissem a atividade, tida como nefasta, da
imprensa nanica contestatória, como a dos jornais Pasquim, Em Tempo, Movimento etc. que
10
A repressão sobre a poesia e imprensa alternativa é relatada por MICCOLIS, op.cit., p.60-63. Sobre Flávio
Nascimento ver cap.4, e para a apreensão do Almanque, ver relato de Ana C. no cap.6.
11
Miccolis relata o episódio anedótico da detenção de Tavares e Kafke, que, defendidos por um advogado-poeta,
Souza Lopes, viram ao final um dos investigadores tirar da gaveta um poema e pedir sua opinião! O processo
contra Nicolas Behr provocou reações espantadas e repercussão na imprensa (ver Quadros no Apêndice). O
poeta foi absolvido em 1979. Seu caso também é relatado por MESSEDER PEREIRA, Retratos de época, p.51.
Para as outras informações, ver MICCOLIS, ibidem, p.62. Os poemetos a seguir foram extraídos de ambos.
326
deveriam ser atingidos por sanções econômicas, cujo efeito prático seria mais rápido do que
ações judiciais12.
A repressão diz respeito não apenas ao conteúdo e forma de apresentação daquela
“cultura alternativa”, como também ao comportamento e ao modo de inserção dos artistas e
intelectuais, especialmente os mais jovens, no recrudescimento do movimento estudantil e na
mobilização política em geral. Embora pareça estranho que a vigilância aumentasse
justamente no momento de “distensão e abertura”, os estudos de Carlos Fico demonstram que,
diferentemente da censura de imprensa, que acompanhou as cassações de mandatos,
suspensões de direitos políticos, prisões, torturas, etc., cujo auge se deu entre final dos anos
60 e início dos 70, a censura de diversões públicas teve sua fase mais punitiva exatamente no
final dos anos 70, em virtude da politização ocorrida nesta esfera devido ao controle dos
costumes, o que gerara embates entre os grupos mais conservadores da sociedade e aqueles
que haviam promovido mudanças comportamentais13, entre os quais sobressaíam os poetas
marginais. A maior repressão à poesia era condizente, portanto, com sua maior movimentação
na linha “alternativa”.
Mas este não era o único caminho seguido por aquela poesia. A literatura, que liderara
uma espécie de heterogênea frente ampla de oposição à ditadura revelaria, no final da década,
suas diferenças ideológicas, formais e comportamentais. Na verdade, o declínio do boom
editorial de 1975, acompanhando a crise econômica e a descompressão política nos moldes
mencionados, impunha mais obstáculos à edição autofinanciada e gerava maior adesão dos
poetas às editoras convencionais ou melhor estabelecidas no mercado, como a Brasiliense
(SP), que no início dos anos 80 veio a publicar trabalhos de Chico Alvim, Ana Cristina Cesar,
Leminski, Alice Ruiz, Chacal e, posteriormente, Cacaso. Tal processo, que se realizaria com
relativo sucesso de público, ampliado de quinhentos conhecidos para cerca de dez mil leitores,
provocou à época novos debates sobre a “cooptação” ou “rendição” dos marginais, agora mais
à indústria cultural do que ao Estado, cujas agências culturais não puderam manter o mesmo
ritmo de absorção de artistas de meados da década. A autores como Leminski, contratado
12
Cf. MICCOLIS, idem, p.63-66. Noticiado, segundo a autora, em artigo de Evandro Paranaguá, no Estado de
S.Paulo, 18/4/1979 e no Jornal do Brasil, 19/4/1979.
13
Cf. FICO, C. Versões e controvérsias..., op.cit., p.37-38. O autor afirma que essa distinção entre as duas formas
de censura aponta “para a necessidade de maiores pesquisas sobre fenômenos não explicitamente políticos (em
sentido estrito)” em vista de uma visão mais global do período, para o quê a poesia marginal ainda tem muito a
contribuir: “Em relação à censura de diversões públicas, por exemplo, sobrelevam, evidentemente, os conflitos
entre setores mais conservadores da sociedade de então e questões referidas às mudanças comportamentais
(como o movimento hippie, a liberalização das práticas sexuais e as manifestações artístico-culturais das
‘vanguardas’). Do mesmo modo, a perspicácia da TV globo a levou a criar o inovador produto que foi a novela
de perfil realista-naturalista retratando, sobretudo, a vida urbana nas grandes cidades brasileiras, gerando alguns
dos maiores problemas de censura de costumes do período.” Idem, p.38.
327
como poeta-tradutor pela Editora Brasiliense, ou Flávio Moreira da Costa, que recebeu um
“salário de romancista” na Editora Record, ou ainda Bernardo Vilhena que migrou da Nuvem
Cigana para as letras de rock, contrapunham-se aqueles que tentavam manter uma conduta
alternativa à maneira dos anos 70, como Glauco Mattoso com seus Jornal Dedo Mingo e
Jornal Dobrabil. O sistema literário brasileiro vivia uma crescente industrialização que, ao
lado do Estado-mecenas, promovia a afirmação da lógica de mercado e da espetacularização
na esfera da cultura, dentro das quais se abriam as portas da tão ansiada profissionalização do
poeta14.
Deste modo se explica o fenômeno, que muito espantou o público e os críticos literários
brasileiros, de diversos artistas, militantes e intelectuais de oposição haverem mudado, no
final dos anos 70, para posições que antes condenavam, efetivamente cooptados pelo Estado
ditatorial ou premidos pela necessidade de trabalhar, tornando-se em certa medida apóstatas,
esquizofrênicos ou mesmo cínicos, quando não yuppies bem-sucedidos ou oportunistas15. Na
opinião de Costa Lima, os adeptos da contracultura no Brasil, ao contrário dos hippies norteamericanos, “que hoje exibem, nas ruas de Berkeley, suas tristes carecas e barrigas”, sumiram
sem deixar vestígios, premidos pela estagnação econômica – que se estenderia aos anos 80 e
90, já chamados de décadas perdidas –, que conseguiu secar o otimismo mais do que o terror e
a tortura o fizeram, segundo o autor, pois “o horror ao trabalho tinha de cessar. Cada um, se a
morte não evitou a catástrofe, se ajeitou como pôde. Os poetas procuraram bicos, coerências
deixadas à parte, antigos guerrilheiros se integraram a agrupamentos de direita.”16
Não se deve omitir, porém, que esta mudança não se fazia sem sofrimento e nunca é
demais repetir que se trata de uma dinâmica difícil e contraditória, que atingia diferentemente
os diversos indivíduos nela envolvidos e com diversas opiniões a respeito, como por exemplo
a de Hollanda, que mostraria Cacaso mantendo sua verve alternativa ao articular a coleção
Capricho, no início dos anos 80. Mas, com gosto ou agonia, por desejo ou necessidade,
14
Cf. SUSSEKIND, op.cit., p.122 e 152-155; e Entrevista em que Julio Cesar Monteiro Martins avalia o boom e o
crack literário, considerando que as características dos anos 70, de panorama confuso, cético, patético e lúdico,
foram substituídas pelos mais variados valores na década seguinte. Cf. HOLLANDA e GONÇALVES, A ficção da
realidade brasileira, op.cit., p.155-157. Os críticos da “cooptação” não costumam ver em largo espectro os
problemas derivados da crise econômica ou nada dizem acerca da sobrevivência do poeta fora da esfera pública
ou da indústria cultural, de modo que a colocação do problema permanece insolúvel. Há que considerar também
o fato de a Editora Brasiliense, a principal veiculadora das obras marginais, pertencer à época à família Prado
(SP), que mantinha uma linha editorial politicamente à esquerda.
15
Há ainda um fator explicativo, seguindo um raciocínio de Adorno, para quem não é boa psicologia supor que a
exclusão das tradições desperta apenas ódio ou ressentimento por parte dos excluídos; antes, também desperta
interesse obsessivo e intolerante, de modo que não é incomum se ver aqueles que foram rejeitados pela cultura
excludente e repressiva se tornarem seus maiores defensores, especialmente quando foram recrutados para
grupos radicais quando jovens e ingênuos, acabando por desertar tão logo hajam adquirido consciência da força
da tradição. Cf. ADORNO, Mínima Moralia, aforisma 32, p.44.
16
COSTA LIMA, Abstração e visualidade, op.cit., p.138.
328
reconciliados com o “sistema” ou não, a maior parte dos produtores culturais foi integrada nos
esquemas institucionais antes combatidos, o que aponta para a derrota do veio anti-capitalista
de seus projetos estético-políticos, que seriam então ressignificados como uma resistência
democrática contra a ditadura militar, de onde seu caráter límbico17.
De modo geral, retornando à criação poética dos anos 70, podem-se observar duas
grandes vertentes ou tendências que ressaltam de toda aquela movimentação: primeiramente,
despontam em fins da década os que serão considerados pela crítica os melhores poetas
daquela geração, adentrando a seguinte: os nomes de Duda Machado, Sebastião Uchoa Leite,
Dora Ribeiro, Ronaldo Brito, Paulo Henriques Britto, são apenas alguns entre eles, ao lado de
Francisco Alvim, Ana Cristina César, Leminski e Armando Freitas Fº, resgatados do novelo
anterior. Em segundo lugar, mas não menos importante, um fenômeno de diluição da lírica
marginal, que nela se enredara desde cedo e já observado pelos críticos desde os idos de 1973
aproximadamente18– e que talvez se pudesse chamar de epigonia se o termo não fosse tão
impróprio para uma cultura que se queria alternativa – tornara-se fortemente predominante,
tendo então selado aquela poética com sua fisionomia.
A crítica de Cacaso ao grupo Pindaíba (SP) demonstrava a preocupação do poeta-crítico
com a estereotipia assumida positivamente pelos novos “marginais”, que alimentavam uma
imagem já esvaziada de seu conteúdo social de início da década. Naquele momento inicial,
haviam-se aberto as comportas da poesia, permitindo emergir uma multidão de novos poetas
cuja expressão direta da experiência era estrategicamente mais relevante que a qualidade
estética ou a individualização da voz lírica, porque significava o testemunho de verdade de
um mundo em que tudo estava cindido e o doloroso processo de aprendizagem de uma
consciência desencantada e crítica. A atitude mais recente, todavia, cultivava mais o
desempenho social do poeta do que a poesia em si, mostrando, como no caso do grupo
Pindaíba, um espírito pragmático revestido de ânsia de autenticidade, mais preocupado em
obter os ganhos finais do que em vivenciar o jogo artístico ou criticar a fundo a própria
17
O autor vê semelhante dinâmica entre os ex-militantes das esquerdas armadas, cuja memória teria operado um
deslocamento de sentido durante os debates sobre a anistia, quando a perspectiva revolucionária teria sido
transformada em resistência democrática. Cf. AARÃO REIS. Ditadura militar, esquerdas e sociedade, p.70. O
tema é porém controverso, pois nem toda perspectiva revolucionária é antidemocrática e há nuances a considerar
no fato de ter sido “em plena exceção, no mais fundo dos exílios, que as esquerdas descobriram os valores
democráticos”, embora o autor pareça correto ao afirmar que a cultura autoritária foi reatualizada e exacerbada
no Brasil pela ditadura militar. Ibidem, p.72.
18
Ver no cap.4, p.ex., as críticas à nova lírica que surge na Expoesia, como as de Cacaso e Hollanda em “Nosso
verso de pé quebrado”, e as de Affonso Romano de Sant’Anna, entre outras. Os poetas aqui destacados como
melhores se encontram sugeridos nas obras de Sussekind e Costa Lima.
329
experiência histórica19. Isto derivava, e ao mesmo tempo estimulava a existência de condições
para a desqualificação técnica da forma artística e a indiferenciação generalizada do
“profissional” da poesia, em virtude, diz ainda Cacaso20, da valorização da informalidade
como ideologia de resistência cultural pautada na multiforme contracultura brasileira,
estendida do comportamento à estética: se arte e vida não deviam distinguir-se, concluiu-se
equivocadamente que a possibilidade de criar não supunha maior capacitação e que todos
indistintamente eram potenciais artistas...
As críticas mais severas a este estado de coisas se seguiram na década seguinte,
culminando na suma quase arrasadora de Simon e Dantas: aquela expressão poética que não
se distanciava da experiência e da linguagem cotidianas, nas quais via possibilidades de
desidentificar-se, logo de libertar-se, da ordem burguesa e do valor literário da poesia,
engendrara involuntariamente seu contrário. Imersos em uma crise de representação e
concebendo a espontaneidade e informalidade do cotidiano como brechas do mundo
sistêmico, os poetas criaram raízes neste solo de modo pouco exigente e quase confortável,
sem talvez perceber que era o mesmo solo da sociedade de consumo, regida pela lógica
burguesa que se espraiava pela crescente atuação da indústria cultural, a qual incide no cerne
mesmo da vida diária e da sensibilidade, entrando rotineiramente pelos olhos, ouvidos e
mentes das pessoas através das programações de rádio e televisão, da propaganda e de
quantos forem os meios da comunicação de massas. As formas antiliterárias e atitutes
anticonvencionais dos marginais se adequavam melhor que o imaginado à linguagem
simplificada e ao ritmo antitradicionalista requerido pela dinâmica cultural do mercado
capitalista em expansão no país. Sem projeto comum de linguagem nem meta utópica
construída, diferentemente dos pós-tropicalistas, recusando as perspectivas vanguardistas,
tidas como autoritárias, e a tradição ligada a João Cabral de Melo Neto, tida como
intelectualista, aquela poesia queimava navios, de modo que seu “recuo estratégico” aos
modernistas se produziu sem refinamento estético ou intelectual, com clichês, ambigüidades,
inconformismos sem alicerces, os quais os induziam a pastiches e paródias lacunares que
esvaziavam a força paródica e a irreverência modernista, ao invés de incrementá-las, como se
poderia esperar de uma herança mobilizada. Em prol da comunicabilidade, acabou-se por
ajustar os recursos disruptivos da linguagem poética moderna à sensibilidade corrente, mais
fluente e menos agoniada, cuja percepção da vida é imediatista, direta e parcamente seletiva,
19
Cf. CACASO/BRITO. Pindaíba de Tatu, in: Não quero prosa, p.90-94. Publicado originalmente no jornal Leia
Livros, n.51, 15/10 a 14/11/1982.
20
Cf. BRITO, Tudo da minha terra, op.cit., p.139.
330
quando não impregnada de indistinções. Resultava disto uma solução artística singela, mas
deveras precária, que ao construir poemas com a forma do dialeto cotidiano, naturalizava a
percepção poética e os sentimentos dúbios e misturados, “de caos e paixão, gozo e horror,
sedução e solidão, simpatia e rancor, vitalidade pessoal e anonimato geral”, tudo cifrado por
uma constrangedora desqualificação, pois “nem a experiência emotiva tem qualidade como
tal, nem a experiência estilística e literária pode dignificá-la”21, pois se carece dos meios
expressivos e da dinâmica coletiva necessários para tal.
Os problemas convergiam para dilemas parecidos, enfrentados pela arte de vanguarda e
pós-vanguarda no mundo europeu, conforme descritos por Peter Bürger. As vanguardas, ao
buscarem uma realização social da arte, negando sua autonomia e institucionalização e
procurando diminuir a distância entre arte e vida haviam-se deparado com o papel
contraditório oferecido à função estética na sociedade burguesa, na qual uma relativa distância
da práxis se tornara condição do conhecimento crítico e, inversamente, uma aproximação,
projetando uma imagem melhor do mundo, acabava por gerar acriticidade, ao aliviar a
sociedade de pressões por mudanças. A derrota da proposta histórica vanguardista, de
reorganizar a práxis da vida mediante a arte, não foi superada pelos gestos de protestos das
neo-vanguardas dos anos 60, para as quais restaram sérias questões a tratar, assemelhadas às
da poesia brasileira dos anos 70, quais sejam, lidar com a falência estético-política da geração
anterior e, por conseguinte, com a arte como instituição reconhecida e com a impossibilidade
de simplesmente negar o estatuto de autonomia artística e pretender efeitos diretos sobre o
público, por mais que se esforçasse em organizar os mais criativos happenings22.
O que se resgatava de válido em tudo isto, tal qual pequenas flores em meio às ruínas,
como fez Silviano Santiago em um artigo reavaliador da prosa literária da década, exigia um
cuidadoso discernimento entre as diferentes formas de inserção do artista na politização e
mercantilização do fazer literário num país de modernização tardia, ou seja, seria preciso
compreender as dificuldades de um quadro social catastrófico, como o do Brasil
contemporâneo, sem entregar-se à ausência de critérios que permite os equívocos do vale-tudo
mercadológico. O artigo realizava acurado trabalho de discernir, por exemplo, entre a
banalização do objeto-livro e do objeto-corpo e a força de um saber literário e erótico; entre o
narcisismo e o desrecalque do indivíduo no tecido social e político; entre a inspiração nos
processos revolucionários de expressão democrática e o liberalismo clássico; entre um
21
22
SIMON e DANTAS, Poesia ruim, sociedade pior, op.cit., p.100.
Cf. BÜRGER, P. Theory of the Avant-garde, p.50-57. É claro que a situação das vanguardas retratada pelo
autor não é idêntica à brasileira, cujas diferenças já foram discutidas no cap.3., mesmo assim há semelhanças na
experiência e nos problemas com que foi preciso lidar.
331
vitalismo irresponsável e uma força de vida que afirma o desejo “pelo liberdade e pelo prazer,
desprezando o ser humano o gosto pelo martírio e pela dor no processo de civilização”; entre
novas formas de lidar com a questão nacional e as já esgotadas, ou o desinteresse. Os relatos
autobiográficos dos ex-exilados, após seu retorno a partir de 1979, e a poesia/prosa das assim
chamadas minorias sociais – a literatura de mulheres, homossexuais, ambientalistas,
regionalistas fora do eixo Rio-São Paulo – eram as boas-novas que exigiam a descentralização
das instâncias de poder e de discurso, cujo desdobramento consistia na superação da
concepção de história familiar-oligárquica, herdada da República Velha, e sua substituição
por uma história do tempo presente, preocupada com a vida recente do país e com a memória
dos grupos secularmente desprovidos de voz e ignorados pela História oficial, sendo sua
marginalização compreendida como infindável exílio interno [grifo do autor], agora a
superar23.
Tratava-se do início das tendências políticas e literárias que, juntamente com o resgate
dos movimentos de memória, ganhariam visibilidade e se consolidariam como corrente
estética e comportamental nos anos 80, sob a égide da liberdade sexual, do discurso de
gênero, do culto ao corpo, compondo o conjunto de manifestações que afirmavam os
conceitos de diferença e fragmentação, que vieram a ser assumidas como micropolíticas do
poder e do desejo, de veio foucaultiano24, e mais tarde, como políticas da diferença, de cunho
derridariano, passando a incluir as discussões da relatividade cultural em lato senso. Mas estas
manifestações podem ser e foram lidas também na chave da teoria crítica frankfurtiana, que
fornece instrumentos outros para desvendar no texto literário a dor social que o hedonismo e a
leveza, ainda que bem intencionados, não têm sido de todo passíveis de resgatar. Daí a busca
deste trabalho em refletir acerca da poesia dos anos 70 nesta linha, tendo em conta,
especialmente, a concepção de testemunho e teor testemunhal da literatura, conforme proposta
23
Cf. SANTIAGO, S. Prosa literária atual no Brasil, in: Revista do Brasil, ano 1, n.1., Rio de Janeiro: Secretaria
de Ciência e Cultura do Governo do Estado/RioArte-Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 1984, pp.46-53.
Citação à p.51.
24
Foi exemplar disto a obra de Caio Fernando Abreu e, do ponto de vista da agitação espetacular, o Movimento
Pornô, organizado no Rio com a participação de representantes do RS, SP, CE, MT, RN, que ao lado dos cariocas
discutiam projetos para os anos 80, entre os quais a passeata pelo Topless literário, a elaboração do Manifesto
Pornô, as “barricadas do desejo” na Cinelândia, as publicações da revista Gang. Cf. HOLLANDA e MESSEDER
PEREIRA, op.cit., p.8. Os trabalhos de Hollanda, Miccolis, Cacaso analisam igualmente a voga da literatura
feminina e feminista, que se consolida desde então. Afirmam-se nomes como os de Ana Cristina César, Olga
Savary, Alice Ruiz, Josely Vianna Baptista, Hilda Hilst, ao lado de Lígia Fagundes Telles, Nélida Piñon, na
prosa. Estas indicações não têm intenção de esgotar a lista, de incontáveis bons nomes, e nem mesmo de
hierarquizá-los; apenas procura ilustrar o que foi dito. Por fim, cabe mencionar a existência de críticas que mais
recentemente têm sido dirigidas a este tipo de política, que não teria sido eficaz em agir nas microestruturas da
sociedade de massas para modificá-la, de modo que resquícios patriarcais, conservadores e autoritários se
mantêm ativos, com a violência que lhes é peculiar, como atesta o crescimento de movimentos neofascistas entre
os jovens, ou a conduta agressiva de skinheads ou “pitboys”, entre outros.
332
na obra de Seligmann-Silva, bem como as discussões ético-político-estéticas articuladas por
Adorno e Benjamin, procurando enxergar e compreender, como sugeriu este último a respeito
da obra de Baudelaire25, uma experiência que é tão intrínseca à poesia que seus temas não
chegam a ser descritos, uma experiência que o texto lírico evoca incessantemente, mas não
explicita.
O que se pode ver, assim evocado como um perfume pela poesia em questão, é a
incomensurabilidade de uma estranha mudança na experiência histórica, uma transformação
em curso na década de 70 na própria estrutura da experiência social, segundo uma expressão
de Benjamin, ou na estrutura de sentimentos, conforme proposição de Raymond Williams26.
Em termos metafóricos, estava em andamento um vasto processo de mudança de voz, do qual
as modificações de entonação observadas no fim do decênio são um arremate sem nó. A
poesia marginal havia tentado dizer sua experiência histórica, mantendo diálogo com os
impasses estéticos, econômicos e políticos da modernidade brasileira e com a opressão
asfixiante da vida cotidiana sob a ditadura militar, mas é somente em textos posteriores, que
se configuram como memória e reflexão dos personagens daquela época, que a compreensão
daquela mudança seria gradualmente estabelecida.
Na recente reedição do trabalho organizado por Adauto Novaes – Anos 70: ainda sob a
tempestade – publicado primeiramente em 1979, os artigos da época contam com um
comentário inicial, em que os diversos autores reatualizam cada qual o seu texto, funcionando
portanto como um depoimento em que reviam tanto as artes naquele período quanto sua
maneira de concebê-las. Quase todos os comentários apontam a “transformação cultural” ou a
“mutação histórica” então ocorrida naquela “era de intensa transição”, ou recorrem ainda a
termos correlatos que indicam mudanças na percepção – no tom, perspectiva e modo de
entender – da cultura e da política no Brasil dos anos de chumbo27. Dos mais variados modos,
os autores que tratam da época referem alguma forma de mudança mais profunda ou
estrutural do que apenas o transcorrer do curso histórico. Não se trata, contudo, das rupturas
revolucionárias pretendidas nos anos 60, em nenhuma de suas faces. Ao invés, são as
25
Cf. BENJAMIN, Sobre alguns temas em Baudelaire, op.cit., p.115.
Cf. BENJAMIN, idem, p. 104 e para Raymond WILLIAMS, ver cap.1, onde o conceito é mencionado com base
em Marxismo e Literatura e na obra de Elisa Cevasco a seu respeito, já referenciados.
27
Além da Introdução de Adauto Novaes, que define a “mutação histórica” por meio da presentificação do
tempo, positivação da ciência e tecnologia, desvalorização da história e decadência do espírito nos valores
culturais, o livro traz artigos e revisões de : José Miguel Wisnik, Ana Mª Bahiana, Margarida Autran (música);
Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves, Armando Freitas F° (literatura); José Arrabal,
Mariângela Alves de Lima, Tania Pacheco (teatro); Jean Claude Bernardet, José Carlos Avellar (cinema); Mª
Rita Kehl, Elizabeth Carvalho, Santuza Cambraia Naves, Isaura Botelho (TV).
26
333
transformações trazidas pela interrupção de uma intenção revolucionária na cultura28,
resultando na manutenção de um ritmo de progresso avassalador, destrutivo e excludente,
logo, na dialética de continuum histórico e mudança que Benjamin havia chamado de
catastrófica e que, tanto por seus efeitos planejados quanto por suas seqüelas inimaginadas,
modificava a experiência histórica nas suas dimensões fundantes do espaço-tempo, da
sociabilidade, das formas culturais. Ou seja, a velha tradição política brasileira de “mudar
para não mudar” adquiria lamentável vulto; as estruturas econômicas continuavam
solidamente injustas e desiguais, enquanto as relações políticas e sociais perdiam coesão, os
sujeitos se fragmentavam ou autodevoravam e a esfera cultural vivia acelerado frenesi. Como
se as peças de uma engrenagem funcionassem em distintos ritmos, era na estrutura da
experiência que esse processo de mudança/continuidade fazia suas maiores fissuras29. Não é
de estranhar que a poesia de então fosse permeada de espanto e confusão.
Em “Contos possíveis de 1970”, o ex-exilado Herbert Daniel apontava uma inflexão na
esperança, que era ainda real até que “houve uma ruptura – quem sabe não no apogeu daquela
batucada que chamava a nova década –, um rompimento despercebido onde a força de revelar
o futuro foi substituída pela inércia de desconhecer o atual.”30 Autores marxistas, como Celso
Frederico, falam em “uma mudança estrutural [que] se passava em nossa estrutura de classes,
sem que na época se pudesse perceber com clareza”, e que veio a formar um vasto
contingente de produtores e consumidores de cultura31. E Roberto Schwarz, em artigo que
analisa o documentário, Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, que retomava
nos anos 80 o projeto inicial desbaratado pelo golpe de 1964, transformando o tempo
decorrido em matéria de reflexão, notava que o fio da meada se rompera e aqueles
personagens, camponeses, diretor, equipe cinematográfica, que se reencontravam depois da
provação da ditadura, já não eram os mesmos: “esta mudança que está inscrita em bruto na
28
A validade das idéias revolucionárias de então é outra história. De todo modo, em recente matéria jornalística,
a força da intenção ou efervescência revolucionária no Brasil dos anos 60 é reafirmada pelo então embaixador
dos EUA, Lincoln Gordon, que justifica o Plano de Contingência para o Brasil – documento preparado pela
embaixada norte-americana no país, indicando que os EUA interviessem na situação política brasileira, em apoio
a uma “tomada militar interina”, recebendo aprovação de Washington – dizendo que o Brasil “poderia virar uma
segunda Cuba”. Os documentos sobre o envolvimento dos EUA no golpe de 1964 tem sido liberados e
transformados em arquivo eletrônico em virtude de uma lei de liberdade de informação daquele país. Notícias
eventuais têm sido publicadas e segundo consta, o historiador Carlos Fico tem procurado organizar este material.
Cf. DÁVILA, Sergio. Plano dos EUA antecipou ação dos militares. Folha de S.Paulo, 15 jul. 2007, p.A12 e A13,
incluindo entrevista do ex-embaixador.
29
É nesta chave de mudança/continuidade, produzindo estranheza e atingindo especialmente o âmbito da
experiência, que as discussões que se seguem devem ser entendidas; ainda que seja priorizada a idéia de
mutação, muitas vezes reiterada nas fontes, é da mudança histórica catastrófica, no sentido benjaminiano, que se
trata.
30
DANIEL, H. Passagem para o próximo sonho, p.70.
31
FREDERICO, C. A presença de Lukács na política cultural do PCB e na universidade, op.cit., p.188.
334
matéria documentária do filme, é sua densidade e seu testemunho histórico. [...] Sob as
aparências do reencontro o que existe são os enigmas da situação nova, e os da antiga, que
pedem reconsideração”.32
No âmbito da crítica literária, Antônio Cândido, em debate de 1975 no qual analisava os
traços formais da época e seus nexos sociais33, observava uma desconfiança latente quanto à
ordenação verbal do mundo que não era, a seu ver, fruto de arbítrio ou capricho autoral, mas
de uma “motivação cultural muito profunda”, vinculada ao “limiar desse novo ritmo de
civilização” que se vivia. O que se indicava, portanto, possuía a escala ou a potência de uma
mudança civilizacional, produzindo modificações na formação discursiva, na constituição dos
sujeitos, nas relações sociais, na experiência histórica como um todo, de onde seu caráter
incomensurável para a percepção imediata, ainda que as antenas sensíveis da arte pudessem
fremir sugestões.
A grande polêmica ocorrida em 1985, em torno do poema concreto de Augusto de
Campos, “póstudo”, cuja crítica efetuada por Schwarz foi mal-recebida, gerando acalorado
debate público em que se envolveram vários críticos34, revela que a dimensão e a direção da
mudança em curso não eram ponto pacífico ou sequer claras.
QUIS
MUDAR TUDO
MUDEI
TUDO
AGORAPÓSTUDO
EXTUDO
MUDO
Do texto, cuja dimensão espacial-visual compõe sentidos tanto numa leitura horizontal
quanto vertical, infere-se em cômputo geral que o desejo de mudança engendra mais
mudança, e isto era naturalizado pelos debates sobre a cultura pós-moderna que começavam a
32
33
SCHWARZ, R. O fio da meada. In: Que horas são?, p.72.
Muito sucintamente, tais traços, em busca de uma ordem espaço-temporal não linear, tendiam ao esgarçamento
dos nexos, passando do discurso contínuo, analógico, metafórico, realista, referencial, para o descontínuo,
paranomásico, fragmentário, anti-mimético, obcecado pelo recurso à visualidade, à ambigüidade e à polissemia,
tornando a obra aberta em condição legitimadora do literário Cf. CÂNDIDO. Vanguarda: renovar ou permanecer,
in: Textos de Itervenção, pp.214-225, em especial p.218.
34
O poema – que aqui se reproduz em detrimento de sua configuração gráfico-visual dada pelas letras
desenhadas com linhas quádruplas – foi divulgado pela Folha de S.Paulo, em janeiro de 1985, e a polêmica foi
travada nos meses de março e abril daquele ano, no suplemento dominical Folhetim, entre o crítico, o poeta e
outros participantes. Para Flora Sussekind, as polêmicas literárias nos anos 70-80 significavam uma “prática
autoritária revestida de prática democrática”, que têm tradição na história da literatura no Brasil. No regime
militar, marcado por momentos alternados de repressão e cooptação de artistas, ter-se-ia reatualizado “a
necessidade de polêmicas como duelos necessários para aproximar a discussão crítica da linguagem do
espetáculo tão cara ao autoritarismo brasileiro.” Cf. SUSSEKIND, Literatura e vida literária, p.69-70. Cacaso
rebateu esta visão, considerando-a um equívoco míope de Flora, defendendo o caráter democrático das
polêmicas, desde que educadas, e explicando as posições de Schwarz, no artigo “Você sabe com quem está
falando? (as polêmicas em polêmica)”, publicado na Revista do Brasil, n.5, 1986. Cf. BRITO, Não quero prosa,
pp.102-111.
335
se acirrar no país. A leitura de Schwarz trilhava esta via, criticando-a, uma vez que a mudança
em grande escala, tornada em norma e sem especificação – “o que é ‘mudar tudo’?”
perguntava ele, para além de uma fala popular genérica que o concretismo costumava rejeitar?
–, ocultava que a modernização havia desembocado “no equilíbrio do terror, sem saída à
vista”, de modo que o termo mudança, “na sua generalidade se esvaziou, ou melhor, tornou-se
ideologia conservadora, e requer particularização para ter sentido”. As escolhas,
especificações e explicações históricas que faziam parte da condição moderna se esvaíam – e,
pode-se acrescentar, os sujeitos já não agiam fausticamente sobre seu destino social. Por isso,
o poema de Augusto era um “marco histórico”, aquele que sinalizava no Brasil a profunda
transformação do programa da arte moderna35. A reflexão se aproxima da imagem do “limiar”
de uma nova dinâmica civilizacional apresentada por Cândido e as fortes controvérsias
demonstram o quanto a situação era incômoda. O último verso (“mudo”), se desfolhado,
desvela o entrelaçamento nuclear de mudança e mudez, confirmando o quanto era espinhoso
discutir a experiência de uma “continuidade e transformação” estrutural naquele contexto.
Vivia-se de fato, conforme coloca Ismail Xavier, o esgotamento da constelação
moderna, cujo dinamismo perdia o impulso e se diluiria, em meados dos anos 80, num
contexto regido por novas forças36. Assim, no Brasil, como na América Latina em geral, os
regimes militares não haviam significado um intervalo político ou uma intervenção
temporária, mas uma modificação estrutural dessas sociedades, em seus aspectos econômicos,
políticos, sociais, discursivos, imaginários... marcando uma guinada de conseqüências
duradouras, como também sublinham historiadores latino-americanos37. Em outros termos,
tratava-se de mudanças deveras espantosas, que, acompanhadas do aumento de grau na
violência de Estado, de inúmeras cisões sociais, crises de identidade e corrosões na autoimagem humana, resultavam em penosas feridas. Como se viu, sendo a experiência um
vértice onde convergem as transformações históricas de curta e longa geração, a amplitude
dessas mudanças/continuidades produzia um corte traumático, simultaneamente subjetivo e
35
Para o autor, o programa moderno se transformava em “ideologia de consumo e conduta”, o que não era uma
particularidade brasileira. Cf. SCHWARZ, Marco histórico, in: Que horas são?, p.57-66, citação à p.65.
36
Segundo Xavier, foi curiosamente no limiar da Nova República, a partir sobretudo de 1985, que se definiu “o
marco mais decisivo da atomização e perda de élan – embora não o desaparecimento completo – da constelação
moderna”. Esta havia sido hegemônica por mais de duas décadas, como “produto de duas gerações que viveram
condições materiais particulares”, impulsionadas pelo processo do nacional-desenvolvimentismo, entre os anos
JK e o período Geisel (1956-1979), com base no modelo de substituição de importações que desde então foi
sendo transformado em arcaísmo pela nova ordem mundial. Cf. XAVIER. Cinema moderno brasileiro, p.34 e 40.
37
Estes regimes “modificaron estructuralmente las sociedades latinoamericanas, en sus bases econômicas,
sociales, políticas y simbólicas”, de modo que o período “no constituyó um simple parêntesis sino que marcó um
viraje y acarreó consecuencias duraderas”, dizem respectivamente FUNES, P. Nunca más..., op.cit., p.46 e
GROPPO, B. Traumatismos de la memória..., op.cit., p.25.
336
objetivo, individual e coletivo, que não encontrava caminhos fáceis de representação, vindo a
exigir reconsiderações também nos métodos historiográficos38.
A poesia dos anos 70, situada no meio deste corte, ao mesmo passo sofreu e construiu
aquela experiência histórica. Desde 1968, com os movimentos contraculturais e o AI-5, a
cultura brasileira vivenciou inflexões que a poesia pós-tropicalista e a poesia marginal
testemunharam, ao assumir crescentemente a vivência e a linguagem cotidiana como matéria
lírica. Sua forma lacunar, sua mistura expressiva de alegria e amargura, denúncia crítica e
alienação, seu modo peculiar de resistência límbica revelavam a condição intervalar da
experiência poética e histórica em curso, vivida na corda bamba e muito esgarçada – de onde
sua enorme tensão, por contraditório que pareça –, estendida entre as configurações modernas
e o seu depois. Sua voz era entrecortada, seja na modulação interrompida, sufocada ou presa,
que deram contorno às seções deste trabalho, tanto por ser isto característica do teor
testemunhal literário, quanto por ser atravessada de silêncios, pois aos silêncios fundantes se
misturavam o que é historicamente indizível, por não ter adquirido ainda significação social; o
que se sabe mas não é dito, pela imposição da censura, lesando a elaboração e circulação de
sentidos39; e os silêncios propriamente traumáticos, derivados de uma dor impronunciável.
A profunda e tão criticada necessidade de fazer da experiência subjetiva a matéria
poética por excelência solicita, por sua vez, uma indagação mais atenta do historiador: o que
ela significa historicamente? Porque um esforço tão imenso em falar de si? Se a experiência e
a subjetividade não estivessem de algum modo ameaçadas, seria preciso tal chão cotidiano? O
registro voraz e reiterado da experiência, como um traço típico dos movimentos de memória,
aponta o desejo de reter algo que se intui passível de se perder no roldão do tempo, e que se
quer guardar por ser irrepetível ou, ao contrário, por constituir um fato atroz que não se deve
esquecer para não repetir, ou ambos, configurando o paradoxo característico dos testemunhos
de catástrofes. A busca de sentidos por parte da literatura da época, da prosa mais referencial,
preocupada com os retratos do Brasil, à poesia mais subjetiva, espelhando-se como narciso,
encontra sua chave naquela experiência histórica tensionada, que ameaçava com o ardor da
extrema crise ou da dissolução as possibilidades de construção de identidades pessoais,
sociais e nacionais que haviam consistido no substrato literário romântico e modernista,
formadores das tradições culturais brasileiras. Por isso “o poeta, o tão difícil” qual “o diverso
38
Ver reflexões de Koselleck, no cap.1, sobre a relação entre mudança na experiência histórica e na
historiografia, e também as observações de Seligmann sobre arte, ruína e historiografia, no cap.6 desta tese.
39
Orlandi mostra a história prejudicada pela ditadura até mesmo na produção dos seus silêncios: “O gesto da
censura lesa o movimento da identidade do sujeito na sua relação com os sentidos. Ele lesa de algum modo a
história.” Cf. ORLANDI, As formas do silêncio, p. 133.
337
amante/Sendo o nenhum e o dobro de si ao mesmo instante” – que habita solo incerto, sem
desenho no mapa, o país de “Nenhures./Terra de difícil acesso/sujeita tanto/aos
roedores/quanto à ação/das irradiações atrozes”, onde “os acontecimentos desencadeiam-se
fatais/ou, ao contrário, lúdicos” – se diferencia da avestruz que tudo engole e indaga presto:
Com quantas letras escreve-se “destroço?”
e “pútrido”?
com quantas “estrutura”?
[...]
para romper certas palavras
o que se morde? O que sangra de início,
a língua?40
Naquele momento, a língua principiava a sangrar e ainda não encontrara todas as letras
necessárias. Tratar da experiência nesse contexto, como insistia Cacaso, significava falar de
uma perda, entrevista, vislumbrada, mas sem nitidez, um alumbramento bandeiriano
enevoado pela poeira das desconstruções e tristes alegrias. Por motivos que amalgamavam
carência de maturidade intelectual, de recursos trágicos e de respaldo coletivo, o esforço
individual para criar representações tornava-se enorme, o que talvez permita uma melhor
compreensão dos “dedos gagos” de um Armando Freitas F°, do esconder-e-revelar da
linguagem lacunar de todos, das confusões e indistinções de alguns, e da dignidade simbólica
da tentativa do “poemão”.
Assim, a dinâmica do dizer e calar, como parte normal das construções lingüísticas e da
composição poética em particular, adquiria sentido especial e força de testemunho, com um
componente traumático. As imagens trazidas por Sebastião Uchoa Leite na epígrafe, da carga
bipartida, venenosa e vital da “língua ofídica”, de um sujeito “fora de foco” e figurado pelo
misto de suspensão e sugestividade que a elipse comporta, como recurso criador de sentidos,
indica que o somatório final dos vetores daquela experiência histórica se traduzia mesmo pelo
meta-assombro do título. Tal espanto, como foi visto, não significava naquelas circunstâncias
o impulso cognitivo de uma dúvida filosófica, mas a crisálida da mais pura perplexidade,
quase imobilizante. De dentro da prisão, inventariando suas cicatrizes, Alex Polari havia
anunciado:
Existem muitas filosofias
e racionalizações para tudo
mas você verá, um dia,
no rosto dos usuários,
perplexidade.41
40
Trecho de “Termos de comparação” de Zulmira Ribeiro Tavares, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.97-101; o
verso do diverso amante que é nenhum e o dobro de si pertence a Capinam, em “Poeta e realidade (o poeta de
si), in: ibidem, p.82-83.
338
Os textos críticos, jornalísticos ou entrevistas que aqui serviram de fonte abrigam
incontáveis menções aos impasses vividos na arte poética – não apenas por problemas
estéticos intrínsecos, mas sobretudo em sua relação com o mundo extrínseco, sabendo-se que
seus nexos são inextrincáveis – e à perplexidade decorrente. É significativo que Herbert
Daniel sintetizasse um conjunto de reflexões com a curta assertiva: “A palavra perplexidade
resumiu tudo”42. Resumia o que se passava não só entre os militantes de esquerda derrotados
e os exilados, mas em toda a sociedade, nos meios culturais e políticos, entre os medusados e
aqueles que estavam, como no poema de Duda Machado, “tão lúcido[s]/que era um suicídio”.
Antônio Cândido já havia notado, no período pós-guerra, que “o presente momento
[era] de perplexidade”, cuja motivação ele encontrava, entre outros fatores, no fato de
justamente no momento em que a literatura brasileira conseguia forjar um sistema expressivo
que a ligava ao passado e ao futuro, um conjunto de tradições literárias, estas começaram a
não mais funcionar como força estimulante da cultura, ou seja, as formas de expressão e
comunicação baseadas na leitura-escrita atingiram simultaneamente o auge e a crise, ante a
concorrência dos novos meios expressivos fundados na palavra oral, na imagem e no som,
exigindo um outro tipo de espírito e de enquadramento de público43. Se a sociedade de massas
trazia à literatura situações de crise e perplexidade desde os anos 40-50, no período nacionaldesenvolvimentista, o que dizer da sua consolidação com a plena vigência da indústria
cultural nos anos 60-70, senão que se superpunham crise sobre crise e perplexidade sobre
perplexidade?
Os principais problemas formais apontados pela crítica concernem ao modo como essas
camadas atravessam as obras literárias, agindo na sua estrutura mesma, assim como
atravessava os sujeitos em seu centro nervoso de compreensão sensível, como se depreende
da própria palavra per-plexo. O descaso com a forma estética e os cuidados gráficos, por parte
da “geração mimeógrafo” e boa parte dos marginais, remete a uma espécie de
“desorganização formal da sensibilidade”44 que em última instância revela, mais do que
simples iconoclastia, uma extrema dificuldade de reordenamento social sensível, ou mesmo
desistência quanto à forma pela qual se vai estruturar a sociedade a partir de então. Perdia-se,
com a derrota da utopia e de todo e qualquer telos, a rosa-dos-ventos que um dia fora criada
como recurso cultural para fornecer rumos, pelos quais os homens se orientam para organizar
41
“Questão de Sistema – II”, in: Inventário de cicatrizes, p.32.
42
DANIEL, H, op.cit., p.64.
43
CÂNDIDO, A . Literatura e cultura..., op.cit., p.125-126.
44
Derivo esta idéia de Antônio Cândido, que observara nas revistas e agrupamentos poéticos e críticos dos anos
50 um fascínio por “problemas de organização formal da sensibilidade”. Cf., idem, p.117.
339
seu presente, imaginar o futuro e ler o passado. A imagística que se construiu, mostrando
sujeitos inclinados à contemplação passiva do mundo pela janela, abdicando por vontade ou
fracasso da tentativa de ação sobre a história e escolha dos destinos comuns, é fruto desta
dinâmica. A forma interrompida e fragmentada, assim, é correlata a tal perda dos referenciais
de sentido, cujo rompimento impede que se confira significação ao todo de uma experiência.
Disto, bem como da vida modernizada a grande velocidade, emana também a forma rápida
dos poemas curtos, instantâneos fotográficos encarnando a particular brevidade das certezas
na condição intervalar. Este era o crisol das alegorias, metonímias, metáforas e demais tropos
daquela poética em seu gesto de manter-se sempre viva.
A incomensurabilidade para os coetâneos das transformações/continuidades em curso
nas percepções espaço-temporais e nas relações sociais, materiais e espirituais, produzindo
cisões e dores incalculáveis, além de uma dimensão de violência e desumanização
dificilmente imagináveis, propiciava certamente uma sensação de estranheza-familiaridade
que comporta o sentido do ominoso freudiano. Como sói acontecer, sobretudo no país do
samba, do futebol e da novela televisiva, a sociedade o recalcou e seu luto resta inacabado, e
tão mais incompleto quanto mais se considera que já esteja resolvido45. A indistinção que se
cristalizou entre anistia e amnésia o confirma, relegando as atrocidades cometidas durante os
vinte anos da ditadura militar, em nome do desenvolvimento nacional, aos interesses do
olvido, e ao futuro incerto, sua dura e necessária memória.
Tudo isto, a poesia dos anos 70 testemunhou como pôde: com a palavra perplexa
daqueles que viveram no meio do rasgo da história do Brasil contemporâneo.
45
Seligmann comenta a impunidade e o esquecimento na América Latina, onde a situação é agravada pela
colonização do imaginário, de culturas marcadas pela tradição mista do oral e do escrito, pela via tecnológica:
“Em vez de uma herança viva, os traumas do passado são considerados ‘superados’, uma vez tendo sido
devidamente expostos/cultuados na mídia.”. [grifo do autor] Cf. Reflexões sobre a memória, a história, o
esquecimento, op.cit., p.83-84. Também Aarão Reis, em sua conclusão, resume um raciocínio comum em nossa
cultura: “Até que ponto o exercício da memória não passa de autoflagelação? Não seria melhor e mais saudável
cultivar a paz das consciências? E olhar para frente, deixando o passado sossegado, e as feridas,
cicatrizando?//Entretanto, há alguns nós que precisam ser desatados [...]”, op.cit., p.72.
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