Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (820-825)
MUDANÇA EM TEMPO APARENTE E EM TEMPO REAL:
CONSTRUÇÕES TER/HAVER EXISTENCIAIS.
Luciene MARTINS (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Dinah CALLOU (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
ABSTRACT: Analysis of the use of the verb ter (to have) and haver (there to be) in existential clauses in
Brazilian Portuguese, in two different periods of time. The analysis shows that the process indicate age
group differentiation and is more advanced in Salvador than in Rio de Janeiro.
KEYWORDS: variation; change; trend study; sociolinguistics.
0.Introdução
É de conhecimento geral que os verbos ter e haver podem funcionar como verbos plenos,
indicando posse e existência, como verbos auxiliares e ainda como verbos funcionais. A superposição das
formas em português tem sua origem mais remota no latim. Neste trabalho, focalizam-se apenas as
chamadas construções existenciais com ter e haver no século XX, na fala culta do português brasileiro,
mais especificamente, na fala urbana culta do Rio de Janeiro e de Salvador.
Para a implementação da pesquisa, selecionaram-se quatro corpora do projeto NURC, dois
contendo inquéritos realizados na década de 70 e dois na década de 90. Os locutores, de nível superior,
estão distribuídos por faixa etária (25-35; 36-55; 56-) e gênero, com a finalidade de detectar possíveis
mudanças em curso envolvendo os dois verbos – em conformidade à teoria de variação lingüística
proposta por Labov (1994; 2001) – através de análises em tempo aparente (distribuição por faixa etária) e
em tempo real de curta duração, isto é, em dois momentos temporais, confrontando-se locutores distintos
nas duas décadas. Foram levantadas 2036 construções existenciais que foram submetidas a um tratamento
estatístico, através do pacote de programas VARBRUL.
1.Ter/ haver existenciais
As estruturas existenciais com ter e haver ocorrem obrigatoriamente com um constituinte
interpretado como objeto direto, mas, em princípio, não com um constituinte sujeito. Os verbos podem ter
valor existencial, no sentido estrito, como em (1) e (2), mas também o de ocorrer ou acontecer, como em
(3) e (4). Foi possível verificar que, no caso do verbo ter, um pronome expletivo – em geral, a forma você
e a gente – pode ocupar a posição de sujeito, como nos casos de (5) a (8):
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
(6)
(7)
(8)
tinha o Senac que atendia pra almoço (INQ.002-90/SSA)
tem uma partezinha assim pra você botar os pés (INQ.088-70/RJ)
aquele congresso que teve lá no Rio Sul (INQ.347-90/RJ)
foi oitenta e oito que... teve um...dois musicais (INQ.002-90/SSA)
no avião pequeno você não tem condições de pousar em vários locais (70/SSA)
aqui na área você tem de um a dois apartamentos por andar (INQ.004-90/SSA)
a gente tem uma aglomeração de pessoas aqui na Tijuca (INQ.002-90/RJ)
como peixes mais finos, você tem o badejo, o robalo (INQ.002-70/RJ)
2. Análise dos dados
Os resultados revelam que as duas cidades apresentam comportamentos semelhantes, embora a
penetração de ter no campo de haver esteja em estágio um pouco mais avançado na cidade de Salvador
que na do Rio de Janeiro. O confronto das duas décadas sugere uma mudança em progresso: o percentual
de ter salta de 63%, em 70, para 76%, em 90, no Rio de Janeiro e, na fala culta de Salvador, o percentual
passa de 74%, em 70, para 86%, em 90.
Luciene MARTINS & Dinah CALLOU
déc.70
821
déc.90
24%
37%
ter
63%
ter
haver
haver
76%
Figuras 1 e 2 - Fala culta do Rio de Janeiro
déc.70
déc.90
26%
14%
ter
haver
74%
ter
haver
86%
Figuras 3 e 4 - Fala culta de Salvador
Na fala culta carioca e soteropolitana, quatro fatores – dois intralingüísticos e dois
extralingüísticos – apresentam-se como relevantes, tanto em 70 como em 90: o tempo verbal, a
especificidade semântica do argumento interno, a faixa etária e o sexo do informante. A análise relativa à
fala culta de Salvador deixa evidente que nas mulheres das faixas etárias de 25 a 35 anos e de 36 a 55
anos a mudança já foi efetivada, sendo o uso de ter categórico e na faixa que se inicia aos 56 anos o uso
de ter-existencial é de 97%. A penetração de ter no campo de haver tem encontrado maior resistência
entre informantes do sexo masculino da terceira faixa etária, com apenas 45% de casos de ter existencial.
822
MUDANÇA EM TEMPO APARENTE E EM TEMPO REAL: CONSTRUÇÕES TER/HAVER EXISTENCIAIS.
FREQÜÊNCIA DE USO DE TER POR
FAIXA ETÁRIA EM 70 E 90 NO RIO DE
JANEIRO
100%
80%
60%
40%
20%
RJ/70
0%
FX. 1
RJ/90
FX. 2
FX. 3
FREQÜÊNCIA DE USO DE TER POR
FAIXA ETÁRIA EM 70 E 90 EM
SALVADOR
100%
80%
60%
40%
20%
SSA/70
SSA/90
0%
FX. 1
FX. 2
FX. 3
Figuras 5 e 6 - Uso de Ter por faixa etária nas duas décadas nas duas cidades
Ao contrário do que se registra na fala culta carioca, em que o comportamento lingüístico de
homens e mulheres se mostra muito semelhante, na fala culta de Salvador homens e mulheres apresentam
um comportamento distinto. Comprova-se, mais uma vez, que são as mulheres que tendem a liderar os
processos não-estigmatizados de mudança lingüística e que quanto mais jovem o falante, maior a
freqüência de uso de ter.
FREQÜÊNCIA DE TER POR FAIXA ETÁRIA E SEXO
(70/SSA)
100%
80%
60%
mulher
40%
homem
20%
0%
Fx.1
Fx.2
Fx.3
Luciene MARTINS & Dinah CALLOU
823
FREQÜÊNCIA DE TER POR FAIXA ETÀRIA E
SEXO (90/SSA)
100%
80%
60%
mulher
40%
homem
20%
0%
Fx.1
Fx.2
Fx.3
Figuras 7 e 8 - Uso de Ter por gênero e faixa etária em Salvador
Na década de 70, em Salvador, como se pode ver, entre as mulheres, há uma curva de variação
estável, mas na década de 90, o uso é praticamente uniforme, sem gradação etária. Entre os homens, é
interessante observar que os mais velhos usam menos Ter que na década de 70.
Com relação ao tipo de argumento interno, que também se apresenta como relevante para a
ocorrência de ter ou haver, o estudo considerou uma classificação que estabelece quatro especificidades:
animado (9) e (10), abstrato (11) e (12), material (13) e (14) e evento (15) e (16).
(9) há mulheres que se comportam da mesma maneira que homens (70/RJ)
(10) aqui, no Lebron, tem o padre Zeca (90/RJ)
(11) há diferença em quantidade de passageiros que leva (70/SSA)
(12) não tem muita diferença do professor pra o estudante não (70/SSA)
(13) havia muita banana (70/RJ)
(14) hoje em dia tem mais video-game (90/SSA)
(15) há as reuniões também informais onde as pessoas vão (70/SSA)
(16) quando eu fiz quinze anos, teve uma festa maravilhosa (90/RJ)
Nas duas cidades os argumentos com as especificidades animado e inanimado, que apresentam o
traço [+ MATERIAL], favorecem, nas duas décadas, a ocorrência de ter , enquanto a de haver é
favorecida pelos tipos abstrato e evento, marcados pelo traço [ - MATERIAL]. A taxa de freqüência,
contudo, se amplia, de uma década para outra, com todo tipo de argumento. Ao que parece, o uso de ter
se dava preferencialmente com argumentos [+material] mas hoje já atinge já se expandiu.
RJ/70
RJ/90
SSA/70
SSA/90
100%
80%
60%
40%
20%
0%
material humano
evento
abstrato
Figura 9 - Tipo de argumento nas duas décadas (RJ e SSA)
824
MUDANÇA EM TEMPO APARENTE E EM TEMPO REAL: CONSTRUÇÕES TER/HAVER EXISTENCIAIS.
No que diz respeito ao tempo verbal, na cidade do Rio de Janeiro, as construções no passado
favorecem a ocorrência de haver e as no presente a de ter. O percentual de ter em ocorrências no
pretérito perfeito chega a apenas 10% em 70 e 35% em 90, enquanto no presente a freqüência alcança
70% e 90%, respectivamente. No pretérito imperfeito, a distribuição praticamente não se altera de uma
década para outra, mantendo-se em torno de 65%. Nas outras formas, que somam apenas 6% das
ocorrências, a freqüência de ter passa de 47% em 70 para 62% em 90, respectivamente.
Em Salvador, na década de 70, o pretérito perfeito do indicativo favorece a ocorrência de haver.
As construções com o pretérito perfeito são as que se mostram mais resistentes a penetração de ter nas
construções existenciais, embora o número de ocorrências de ter e haver apresente um equilíbrio: 57% de
ter contra 43% de haver. Ao contrário do que ocorre entre os falantes cultos do Rio de Janeiro, na cidade
de Salvador, o imperfeito do indicativo e do subjuntivo, na década de 70, favorecem a ocorrência de ter
com 88% de casos contra 12% de haver. Na década de 90, confirma-se o resultado do Rio de Janeiro,
com o imperfeito favorecendo a ocorrência de haver com 36%.
FREQÜÊNCIA DE TER POR TEMPO VERBAL.
100%
90%
80%
70%
DÉC. 70/RJ
60%
DÉC. 90/RJ
50%
DÉC. 70/SSA
40%
DÉC. 90/SSA
30%
20%
10%
0%
PRESENTE
PERFEITO
IMPERFEITO
Figura 10 – Uso de Ter por tempo verbal.
Tanto na fala culta carioca quanto na fala culta soteropolitana, nota-se a presença de um pronome
expletivo - em geral, as formas você e a gente - como sujeito de construções existenciais com o verbo ter ,
conforme se observa nos exemplos de (17) a (20):
(17) a gente tem uma aglomeração de pessoas aqui na Tijuca. (90/RJ)
(18) como peixes mais finos você tem o badejo, o robalo (70/RJ)
(19) é uma loja agradável, onde a gente tem uma variedade muito grande de...de artigos (70/SSA)
(20) nas casas mais simples, você tinha aquelas...aquilo que se chamava de bicas, né? (90/SSA)
A presença de pronome expletivo como sujeito de construções existenciais com o verbo ter é mais
freqüente na década de 90 tanto na fala culta carioca quanto na soteropolitana, comprovando uma
tendência geral na língua de preenchimento da posição de sujeito. Essa presença de pronome expletivo
tem sido explicada como uma decorrência da perda, no português do Brasil, do princípio “Evite pronome”
(Duarte, 1995). Segundo essa hipótese, o português brasileiro vem se aproximando de línguas em que o
preenchimento da posição de sujeito é obrigatório, como, por exemplo, o inglês e o francês. Esse
movimento iniciou-se em estruturas com sujeito de referência definida e depois estendido aos de
referência arbitrária e ainda às estruturas em que o lugar do sujeito é vazio porque é não-referencial, caso
este das construções existenciais.
Nota-se, principalmente nos dados de fala culta soteropolitana da década de 90, que é mais
freqüente o preenchimento da posição de sujeito em situações nas quais o informante faz uso de
exemplificação, descrição e/ou detalhamento de algum objeto ou atividade, principalmente se esta
atividade não faz parte da realidade/cotidiano do informante.
3.À guisa de conclusão
⇒
As estruturas existenciais no português do Brasil são construídas preferencialmente com o
verbo ter e o processo de mudança lingüística encontra-se em estágio mais avançado em
Salvador que no Rio de Janeiro.
Luciene MARTINS & Dinah CALLOU
825
⇒
⇒
Na década de 90, entre os mais jovens, o uso de ter é categórico.
Nas duas cidades, os tempos verbais do sistema passado favorecem a manutenção de haver,
funcionando, ao que parece, como verbo típico de narração (Callou & Avelar, 1999).
O preenchimento da posição de sujeito poderia, talvez, ser visto como uma estratégia
⇒
discursiva do falante em descrições, principalmente quando o tema não faz parte do seu
universo.
RESUMO: Análise de construções existenciais com ter e haver na fala culta do Rio de Janeiro e de
Salvador, em dois momentos discretos de tempo. Os resultados mostram que o processo de mudança de
haver por ter apresenta diferenciação por faixa etária, obedece a condicionamentos estruturais e se
encontra em estágio mais avançado em Salvador.
PALAVRAS-CHAVE: variacionismo; mudança lingüística; ter/haver-existenciais.
REFERÊMCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Erica Sousa de. Ter/haver-existenciais: variação e mudança na fala culta. Apresentado no L
Seminário do GEL, USP, 2002.
CALLOU, D. & J. AVELAR. Sobre ter e haver em construções existenciais: variação e mudança no
português do Brasil. Revista Gragoatá, 9: 85-100. LETRAS/UFF, Niterói/RJ, 2001.
_____. Ter e haver no português do Brasil. Conferência apresentada no Congresso Internacional sobre
os 500 anos de língua portuguesa no Brasil. Universidade de Évora, Portugal, 2000.
DUARTE, M. E. A perda do princípio “Evite pronome” no português brasileiro. Tese de Doutorado,
Campinas/UNICAMP, 1995.
FARIA, E. Dicionário escolar latino-português. 3ª ed. Rio de Janeiro, MEC, 1962.
LABOV, W. Princípios of linguistic change. Cambridge, Blackwell, 1994.
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