Gragoatá n. 29 2o semestre 2010 Política Editorial A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e Literatura. ISSN 1413-9073 Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 1 Niterói n. 29 p. 1-278 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:33 © 2010 by Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense Direitos desta edição reservados à– Editora da UFF – Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-900 – Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288 http://www.editora.uff.br – E-mail: [email protected] É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da E ditora. Organização: Projeto gráfico: Capa: Diagramação e supervisão gráfica: Coordenação editorial: Periodicidade: Tiragem: Fernando Muniz e Lucia Teixeira Estilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. ME Rogério Martins Káthia M. P. Macedo Ricardo Borges Semestral 400 exemplares Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Editora filiada à G737 Gragoatá. Publicação dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense.— n. 1 (1996) - . — Niterói : EdUFF, 2010 – 26 cm; il. Organização: Fernando Muniz e Lucia Teixeira Semestral ISSN 1413-9073 1. Literatura. 2. Linguística.I. Universidade Federal Fluminense. Programas de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem e Estudos de Literatura. CDD 800 APOIO PROPP/CAPES / CNPq UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Vice-Reitor: Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Diretor da EdUFF: Roberto de Souza Salles Sidney Luiz de Matos Mello Antonio Claudio Lucas da Nóbrega Mauro Romero Leal Passos Conselho Editorial: Mariangela Rios de Oliveira – UFF - Presidente Dalva Calvão - UFF Fernando Muniz – UFF Jussara Abraçado - UFF Lucia Teixeira - UFF Maria Elizabeth Chaves - UFF Norimar Judice - UFF Paula Glenadel - UFF Silvio Renato Jorge - UFF Xoán Lagares – UFF Arnaldo Cortina – UNESP/ARAR Dermeval da Hora – UFPB Eneida Leal Cunha - UFBA Eneida Maria de Souza - UFMG Erotilde Goreti Pezatti – UNESP/SJRP Jacqueline Penjon – Paris III- Sorbonne Nouvelle José Luiz Fiorin – USP Leila Bárbara – PUC/SP Mabel Moraña – Saint Louis University Márcia Maria Valle Arbex - UFMG Marcos Antônio Siscar - UNICAMP Marcus Maia – UFRJ Margarida Calafate Ribeiro – Univ. de Coimbra Maria Angélica Furtado da Cunha – UFRN Maria Eugênia Lamoglia Duarte - UFRJ Regina Zilberman – UFRGS Roger Chartier – Collège de France Vera Menezes – UFMG Sírio Possenti – UNICAMP Teresa Cristina Cerdeira - UFRJ Conselho Consultivo: Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile) Cleonice Berardinelli (UFRJ) Célia Pedrosa (UFF) Eurídice Figueiredo (UFF) Evanildo Bechara (UERJ) Hélder Macedo (King’s College) Laura Padilha (UFF) Lourenço de Rosário (Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa) Lucia Teixeira (UFF) Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham) Maria Luiza Braga (UFRJ) Marlene Correia (UFRJ) Michel Laban (Univ. de Paris III) Mieke Bal (Univ. de Amsterdã) Nádia Battela Gotlib (USP) Nélson H. Vieira (Univ. de Brown) Ria Lemaire (Univ. de Poitiers) Silviano Santiago (UFF) Teun van Dijk (Univ. de Amsterdã) Vilma Arêas (Unicamp) Walter Moser (Univ. de Montreal) Site: www.uff.br/revistagragoata Rev Gragoata n 29.indb 2 11/7/2011 19:21:34 Gragoatá n. 29 2o Semestre 2010 Sumário Apresentação.................................................................................. Fernando Muniz e Lucia Teixeira ARTIGOS O estatuto da crítica ..................................................................... Luiz Costa Lima 5 9 Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis?........................ 23 Sírio Possenti Acaso e método na pesquisa das poéticas da palavra cantada: um registro de caso ...................................................... 35 Leonardo Davino de Oliveira Da problemática do método ao método como problema hermenêutica filosófica e a questão do compreender ............ 49 Paulo Cesar Duque-Estrada O estranhamento: um exílio repentino da percepção ........... 63 Olga Guerizoli-Kempinska A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance ..................... 73 Sergio Ricardo Lima de Santana A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes ..................... 93 Davi Andrade Pimentel A abordagem metodológica da análise multidimensional.. 107 Tony Sardinha Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças ...... 127 Maity Siqueira, Maitê Gil, Tamara Melo O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná ............................ 147 Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes, Loremi Loregian-Penkal Rev Gragoata n 29.indb 3 11/7/2011 19:21:34 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural .... 161 Cássio Florêncio Rubio, Sebastião Carlos Leite Gonçalves Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? ........................... Liliane Pereira Barbosa Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras .............................................................. Isabel Cristina Rodrigues, Décio Rocha Veridicção e paixão na práxis enunciativa ........................ Arnaldo Cortina Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos ..................................... Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu, Alexandre Xavier Lima RESENHAS Tatit, Luiz. Semiótica à luz de Guimarães Rosa ............... Sílvia Maria de Sousa OSTERMANN, Ana Cristina; FONTANA, Beatriz (orgs.). Linguagem. Gênero. Sexualidade: clássicos traduzidos ............................................................... Alexandre José Cadilhe COLABORADORES DESTE NÚMERO ........................... 183 205 223 239 255 263 269 NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS ........... 275 4 Rev Gragoata n 29.indb 4 Niterói, n. 28, p. 5-8, 1. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 Apresentação A questão do método nos estudos literários e linguísticos parece ser, em momento de questionamento de paradigmas, uma noção em crise. Associadas às ideias de rigor, disciplina e modelo, metodologias de abordagem dos fenômenos da linguagem parecem reduzir-se a uma atitude analítica baseada em receitas a serem seguidas, dotadas de previsibilidade e constância. A adoção de um método, assim, estaria vinculada a uma certa ideia de ciência historicamente associada a experiência controlada e objetividade. As ciências humanas, e mais particularmente as ciências da linguagem, sempre resistiram a essa concepção estreita de ciência e propuseram, ao longo da história das disciplinas envolvidas, um alargamento na direção da experiência como vivência do corpo, dos sentidos e da lógica discursiva intelectual e uma consequente problematização da perspectiva objetiva de interpretação dos fenômenos. Trata-se de restituir ao sujeito e à história suas funções no modo de produção da ciência e de acolher o esgarçamento das fronteiras disciplinares e a discussão crítica dos paradigmas. Se a atitude de questionamento tem ampliado as possibilidades de análise, há sempre procedimentos a tomar numa análise, há sempre pressupostos de leitura que a condicionam e, por essa razão, a questão do método sofre uma espécie de eterno retorno. Um panorama dos estudos de linguagem hoje no Brasil exibe uma evidente tensão entre os estudos linguísticos e os literários, que se revela, na prática, na separação das duas áreas nos Programas de Pós-graduação e Departamentos, explodindo a noção de Letras como campo unificado, abrangente e consensual. Observa-se uma crescente diferença entre a linguística, dedicada a afirmar-se como ciência por meio de métodos cada vez mais sujeitos a testes, programas estatísticos, controle de resultados e experiências, e a literatura, cada vez mais porosa ao contato com outras disciplinas e à absorção de teorias que inscrevem o problema literário no âmbito da cultura, da história e da experiência humana em sentido abrangente. É evidente que se fala aqui de oposições mais marcadas e que sempre haverá oscilações e deslizamentos que permitem flutuações de concepções e práticas. A revista Gragoatá pretende, neste volume, oferecer boa e polêmica amostragem a respeito de metodologias, esperando com isso contribuir tanto para a discussão do conceito quanto para a exemplificação de métodos. Sempre vinculados a uma posição teórica, os modos de abordagem das manifestações de linguagem são bastante diferentes na linguística e na literatura e expõem o paradoxo que deriva da tensão entre a necessidade Niterói, n. 29, p. 5-8, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 5 5 11/7/2011 19:21:34 do método como princípio de ação científica e a hiperproblematização que o abole. No entanto, o leitor, ao folhear este volume, verá que os organizadores optaram por não separar rigidamente estudos literários de linguísticos, por considerar interessante e produtivo tensionar visões diferenciadas, tanto como forma de expor as fissuras e nítidas diferenças entre os dois campos de conhecimento quanto como convite à possibilidade de estabelecer interfaces entre eles. O artigo de Luiz Costa Lima, que abre o volume, expõe exemplarmente a mencionada fratura teórica, ao recusar um método para a crítica literária no mesmo ato em que executa uma rigorosa e veemente crítica aos pressupostos e conceitos das leituras desconstrutivistas. Também aceitando a idéia da polêmica, Sírio Possenti confronta a linguística textual e a análise do discurso, apresentando os pontos conceituais que considera inconciliáveis entre as duas perspectivas teóricas, muitas vezes consideradas, especialmente pelos linguistas mais duros, como uma só teoria. Se conceitos já difundidos têm sua discussão assegurada, o volume também se abre para proposta metodológica inovadora. Leonardo Davino de Oliveira elege uma experiência pessoal de audição e análise de canções para propor um método que considere o acaso, a relação amorosa do pesquisador com seu objeto e a reelaboração de teorias consagradas como possibilidade de percurso de conhecimento das poéticas da palavra cantada. Paulo Cesar Duque Estrada reflete sobre a concepção ideal de método e encontra na própria emergência histórica da hermenêutica, segundo Gadamer, a raiz da problematização da noção. Já Olga Guerizoli-Lepinska escolhe o rigor do método, ao refazer a história do conceito de estranhamento (ostranienie) a partir de Viktor Chlovski, revelando o fundo prático-teórico que o viabiliza, problematiza e torna de novo pensável. Sergio Ricardo Lima de Santana apresenta uma proposta de análise semiótica de romance fundamentada em Pierce, que permite maior interferência do analista na obra, enquanto Davi Andrade Pimentel, de modo mais enfático, ao expor os princípios da crítica-escritura de Leyla Perrone-Moisés, investe no apagamento dos limites entre a crítica e a obra. No campo da linguística, várias são as contribuições que expõem ou exemplificam uma metodologia. O artigo de Tony Sardinha apresenta a perspectiva metodológica da Análise Multidimensional, muito usada na Linguística de Corpus. Trata-se de abordagem que lida com corpora eletrônicos para analisar padrões de ocorrências de elementos lexicogramaticais, permitindo, por exemplo, classificar textos em gêneros. Outros artigos testam métodos de análise já conhecidos, como o de Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo, que oferece dois estudos em que os autores verificam variáveis psicolinguísticas numa lista de sentenças que envolve material metafórico e 6 Rev Gragoata n 29.indb 6 Niterói, n. 28, p. 5-8, 1. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 não metafórico, tendo como base a teoria da metáfora conceitual de Lakoff e Johnson. O artigo de Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingues Fagundes e Loremi Loregian-Penkal, ao relatar pesquisa sociolinguística no âmbito do projeto VARSUL, discute resultados de análise da concordância nominal, em razão de divergência ocorrida quando das rodadas com duas cidades do Paraná, Irati e Pato Branco, propondo considerar nova sobreposição de grupo de fatores na análise. Também amparado teoricamente na Sociolinguística laboviana, o artigo de Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves aplica a metodologia a amostras do português falado no interior paulista e aponta como resultados a presença de fatores de natureza distinta, ora linguísticos, ora sociais, tanto na escolha entre as formas “nós” e “a gente” quanto na concordância verbal com tais formas. No âmbito da fonologia, o artigo de Liliane Pereira Barbosa discute, com base na Teoria da Cliticização e na Fonologia Prosódica, o estatuto da forma “cê”, defendendo sua existência como palavra e não como clítico. Alguns artigos propõem de modo crítico a construção de uma metodologia. É o caso de Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha, que reafirmam a solidariedade entre teoria, corpus e metodologia, ao apresentar uma análise dos debates a respeito da educação de surdos no Brasil, a partir da perspectiva teórica da análise do discurso de base enunciativa, considerando como fator de problematização da metodologia a prática linguageira analisada. Também Arnaldo Cortina, ao expor as novas bases da semiótica discursiva e exemplificar com um estudo sobre a veridicção e as paixões no discurso, está atento às necessidades de fazer avançar a teoria, por meio de método de análise que acolha uma práxis enunciativa feita de oscilações e gradações capazes de expressar as relações entre os sujeitos envolvidos na produção do sentido dos textos. O artigo de Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier Lima põe em discussão procedimentos metodológicos produtivos no processo de reconstrução dos perfis socioculturais de redatores de sincronias passadas da língua portuguesa, questionando a aplicação de categorias sociais, como gênero e grau de escolaridade, aos redatores dos textos analisados. Os autores indicam caminhos metodológicos que, estabelecendo conexões entre as formas linguísticas e a função social do informante, contribuem para o desenvolvimento de uma sociolinguística histórica do português. Fecham o volume duas resenhas: Sílvia Maria de Sousa deteve-se sobre o livro de Luiz Tatit, Semiótica à luz de Guimarães Rosa, que, num exemplo da possibilidade de articular literatura e linguística, propõe a leitura de contos de Guimarães Rosa, considerando-os como verdadeiras reflexões semióticas sobre Niterói, n. 29, p. 5-8, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 7 7 11/7/2011 19:21:34 a produção do sentido. Já Alexandre José Cadilhe, ao resenhar o livro organizado por Ana Cristina Ostermann e Beatriz Fontana, Linguagem. Gênero. Sexualidade: clássicos traduzidos, aponta para a importância dessa coletânea de artigos seminais desencadeadores da análise do discurso voltada para questões de gênero e identidade social. A questão do método permanece aberta, urgente e estimulante. O conjunto de artigos e resenhas aqui apresentado propõe ao leitor justamente possibilidades de reflexão sobre o problema, que tanto pode reduzir-se à clássica dicotomia necessidade versus recusa de método quanto pode ganhar densidade e rendimento com a compreensão da metodologia como condição polêmica mas sempre definidora da pesquisa científica. 8 Rev Gragoata n 29.indb 8 Niterói, n. 28, p. 5-8, 1. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 O estatuto da crítica Luiz Costa Lima Resumo O texto faz parte de um debate sobre a posição da crítica literária quanto à questão do método. De fato, contudo, o autor, não se julga defensor de algum método em critica literária, o que vale dizer, o divisor básico hoje em dia na abordagem literária não concerne ao ataque ou à defesa do método. Nem por isso, entretanto, há algum denominador comum na abordagem teórico-crítica. Isso aqui se mostra pela contraposição à chamada crítica desconstrucionista, mais especificamente contra conceitos-chaves da abordagem de Jacques Derrida. Palavras-chaves: Desconstrucionismo, Derrida, referencialidade, différance, metáfora, indeterminação, indecidibilidade Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 9 Niterói, n. 29, p. 9-24, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 Gragoatá Luiz Costa Lima Minha presença aqui decorre de meu nome haver sido sugerido para participar de um confronto entre defensores de duas posições: aqueles para os quais a crítica literária é uma atividade contra o método e os que defendem ela implicar um método. Embora me surpreenda ser incluído na alternativa, como defensor do método, o lugar em que me põem é bastante aceitável se entender que a linhagem contrária é sustentada sobretudo pela obra de Jacques Derrida. Portanto, ainda que um fator de polidez contribua para minha aceitação, não é exclusivamente por ele que decido colaborar. É oportuno que comece por argumentar por que me oponho aos chamados estudos desconstrucionistas. Ainda estando em andamento uma discussão mais longa que faço de minha discordância com o textualismo derridiano, restrinjo-me aqui ao mínimo necessário. Não creio que seja trivializar o pensamento do judeu argelino que revolucionou o sistema acadêmico norte-americano declarar que sua intuição básica esteve baseada no caráter em que via fundada a linguagem humana: sua nuclearidade metafórica. Ela implicava que, na linguagem, não há diferença entre o sentido próprio ou literal e sua significação figurada. A afirmação da metáfora resultaria de uma “mitologia branca”, como desenvolverá no ensaio de mesmo título (cf. Derrida, J.: 1971), i.e., que apaga a diferenciação das cores, que daria a peculiaridade desta mitologia quanto àquela, daquela contra aquela outra, provocando, portanto, uma usura da imagem, cujo lugar, sempre mutável e sensível à posição que ela ocupa numa cadeia de signos, é substituído por um sentido estável, tendencialmente fixo, metafísico. Metáfora e metafísica derivariam do mesmo propósito de fazer com que a estabilidade substituísse a incômoda dinamicidade incessante do mundo e da produção textual humana; a conversão seria possível porque todo signo verbal, enquanto nomeador de algo, sempre equivale a uma moeda cuja efígie fosse progressivamente desgastada pelo uso. A distinção entre sentido próprio e figurado indicaria uma arbitrariedade multissecular, acolhida pelos tratados de retórica, admitida por aquele desgaste. Todo o aparato pressuposto pela “mitologia branca”, com a corrosão da efígie que transforma a palavra em uma moeda lisa conduz ao conceito mais famoso de Derrida: o de différance – ainda que foneticamente idêntico a “différence”, deste se distingue porque deriva de différer (diferir, adiar, prolongar, procrastinar). Ou seja, submetida a um fluxo metafórico contínuo, a palavra, em vez de designar, como quem apontasse com o dedo, move-se e serpenteia, nunca se restringe a ser isso ou aquilo, pois sempre está sendo. Que, portanto, provoca esse efeito de diferir, contra o qual se erguem metafísicas e retóricas? Que, afinal, tanto se difere? Difere-se, retarda-se a conclusão de qualquer argumento – pelo menos, desde que ele não se confunda com uma resposta 10 Rev Gragoata n 29.indb 10 Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 O estatuto da crítica pragmática banal. (Que pode haver de mais corriqueiro do que um cumprimento automático? Porém, se a um trivial ‘bom dia”, respondo: “você acha?”, o interlocutor ou entenderá que a réplica é brincalhona ou ficará intrigado. O inesperado da resposta dissolve o clichê e o fluxo de logos restabelece a dúvida e a inquietação). Dito de modo mais preciso: vista em sua potencialidade, a nomeação, enquanto manifestação humana, é sempre o produto de um deslocamento – não se esqueça que ‘metáfora’ significa em grego ‘viagem, travessia’. Por conseguinte, a différance ressalta que um enunciado traz consigo a possibilidade de nunca alcançar a plena decifração. Independente da vontade de quem fala, dizer provoca o diferir do que se pretendia concluir. A decisão conclusiva é sempre passível de ser retorcida, assumir outra volta, ser entendida ao revés, a ofensa virar louvor, o louvor, advertência, etc, etc. E tudo porque o que se diz guarda um resto, imprevisto mas nele assente. Por isso supor a decifração plena da verdade corresponde à crença na verdade absoluta, produto por excelência da concepção metafísica da linguagem. A metafísica equivale a um corpo pesado que busca tornar estável a frágil leveza que somos. Daí, recorrendo ao título de seu ensaio sobre a semiologia hegeliana, “Le puits et la pyramide” (1971b), a metafísica ser comparada à pirâmide, o volume liso e pesado que guardaria o corpo mumificado do faraó. Por oposição à pirâmide, o poço corresponderia à fluidez abissal de logos. Lado a lado da oposição entre poço e pirâmide, põe-se a idêntica e drástica separação entre logos e escrita. A escrita, como já dissera em “La pharmacie de Platon”, é um “morto vivo, um morto em sursis, uma vida diferida, uma aparência de sopro” (Derrida, J.: 1968, 179); “a magia da escrita e da pintura é, portanto, a de um fardo que dissimula o morto sob a aparência do vivo” (idem, 177); enquanto identificada com a figura do estático, do piramidal, a escrita se põe ao lado da verdade “como possibilidade da repetição e da submissão (…) à lei (…)” (ibidem, 152). Logos, ao contrário, é a palavra dançarina, correspondente à formulação semi-heideggeriana: “Die Sprache spricht, nicht nur der Dichter”. Que significa que “a fala fala e não só o poeta”? senão que, por ela, a différance atinge seu máximo potencial. E assim sucederia simplesmente, porque, na ficção literária – Derrida diria apenas “na literatura” –, à sua não pragmaticidade se acrescenta a não referencialidade. (Tenho de resistir à vontade de interromper o resumo da posição derridiana porque cada vez mais me é difícil ser justo com um argumento de que discordo por completo. Introduzir aqui, contudo, a contraposição ainda não seria correto. Quando nada, preciso explicar por que Derrida e os desconstrucionistas excluem a referencialidade da ficção literária). Para me aproximar do entendimento que ofereceria o pensador francês preciso recordar a diversidade do que sucede com o conceito. Esse, para ter assegurada a univocidade que pretende alcançar, precisa Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 11 11 11/7/2011 19:21:34 Gragoatá Luiz Costa Lima manter-se como metáfora desgastada e mesmo desbastar o que ainda dela reste, ao passo que a expulsão da referencialidade no poético decorreria, ao contrário, de ele afastar-se do sentido único. O sentido único supõe o uso do sentido próprio do signo. Contra ele, ou melhor comprovando a arbitrariedade de distingui-lo do sentido figurado, a poesia potencializa a profundidade do poço, os deslocamentos do corpo coleante da palavra. Explicitadas as razões que levam Derrida e seus seguidores, com ênfase particular para Paul de Man, a relacionar o ficcional literário com a desreferencialidade, abro uma primeira brecha na linha expositiva a que acima me dediquei. Parto de uma afirmação a ser depois retomada. Se Derrida tem o inegável mérito de ser um leitor extremamente minucioso, em troca tem uma vocação generalizante no mínimo incômoda para o leitor cuidadoso. É o que tipicamente sucede no exame da referencialidade. Reconhece-se que o questionamento derridiano ressalta o fundo falso que sustentava a referencialidade: ela era considerada o correspondente extratextual do sentido próprio de um termo. Assim, ‘árvore’ teria como correspondente a figura maciça de um tronco de altura mediana para alta, encimado por galhos e folhas. É evidente que se entendermos referencialidade deste modo ela só é cabível quanto ao signo em função indicial – “sim, disse a vítima, é ele mesmo quem me atacou”. Mas uma certa diferença se estabelece se entendermos por referencialidade não o dado factual a que o signo aponta senão que o horizonte de correspondência que o signo traz consigo. Enquanto horizonte de correspondência, o referencial por certo pertence à ordem do mundo e não se esgota no campo lexicográfico. Os dicionários não seriam factíveis se pretendessem dizer do potencial de correspondência dos signos. Enquanto tal, o horizonte que traz a palavra em seu uso não cria a equivalência de duas ordens, a do mundo e a do léxico, senão que impede que as duas ordens permaneçam desconectadas. Por isso sua conexão não é pontual mas caracterizada como horizonte, pano de fundo que cria a ambientação para a cena. Feita a retificação, é absurdo dizer-se que a poesia ignora a referencialidade. Por certo, desconhece, em absoluto, a equivalência pontual mas, se ela não se relacionar com um horizonte de sentido, significará aquilo que o intérprete, de algum modo legitimado - seja por pertencer a um país “metropolitano” ou a uma instituição de prestígio, seja por representar a corrente de antemão acatada – “demonstrar” aquilo que está a dizer. Desbastado seu entendimento grosseiro, pode-se acrescentar: a referencialidade acompanha todo ato da fala. Acompanha-se pela razão absolutamente oposta àquela em que se fundamentou sua concepção corriqueira, contra a qual se levantará a filosofia da linguagem contemporânea: a que se apresenta de modo sucinto na passagem dos Tópicos: “Uma definição é uma frase que indica a essência de alguma coisa” (Aristóteles, Tóp., I, 101 a 39). (Em relação a cuja 12 Rev Gragoata n 29.indb 12 Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 O estatuto da crítica concepção Barbara Cassin bem escreve: “E porque certas palavras têm um sentido sem que lhes corresponda essência alguma, devese recusar a proposição geral conforme a qual as palavras têm um sentido porque as coisas têm uma essência” (Cassin, B.: 1989, 38). Desde a declaração mais corriqueira, ante a qual é impossível ignorá-la ou confundi-la, até o poema mais intenso em sua extrema síntese. Considere-se neste caso o “Mattina” de Ungaretti, exemplo a que em tantas ocasiões tenho recorrido. Ele consta de apenas dois versos: M’illumino D’immenso O leitor dotado de um mínimo de sensibilidade compreenderá que o sujeito da frase não corresponde ou ao eu do poeta ou a outro qualquer eu. Sua referencialidade? A agência – humana – objeto da invasão de imensidade que o transborda. Seu horizonte é o de uma claridade ímpar, que, no entanto, não se poderia dizer sem limites porque se percebe que é terrena, apenas humana, nada suprassensível ou concorrente de uma experiência mística. O referencial poético não se confunde com o de uma proposição qualquer. Mas, poético ou não poético, todo enunciado tem um referente. Tomo ainda um outro exemplo. Digamos que me defronte com a frase: “Luz! Mais luz!”. Embora banal, ela se torna incompreensível se não se conhecer o contexto a que alude. E como ignorarei que tem um referencial específico, que mais bem manifestaria a vontade de permanecer em atividade de vida do que algum conteúdo dramático, se recordo que eram as palavras pronunciadas pelo Goethe moribundo? Não se diz que a frase, por ter sido pronunciada por Goethe, se torna poesia (!), senão que, como no “Mattina”, não é entendida se não se considerar o contexto pelo qual é precisado seu horizonte de sentido. Sem que esse seja pontual, muito menos aquele ou algum outro, o horizonte referencial supõe a compreensão da ambiência em que se dá – seja a página de um livro, seja um leito de morte. Suspendi a exposição que procurava que fosse a mais imparcial possível pela afirmação terminante de uma restrição quanto a um ponto decisivo do pensamento de Derrida. Desde aí, contudo, desfiar as progressivas divergências seria algo demasiado esperável. É preferível confrontar-me com o pensamento sob exame, vendo-o sob o ângulo especial a que o submete Peter Sloterdijk, em um ensaio tão pequeno quanto notável. O propósito do pensador alemão, em Derrida, um egípcio, não era nem atacar, nem defender o autor que há pouco havia morrido, senão que pensar sobre seu legado. Procuro resumi-lo para, a partir daí, verificar que desenvolvimento lhe darei. Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 13 13 11/7/2011 19:21:34 Gragoatá Sloterdijk cita sua edição em alemão, sem indicar sua data de publicação. Como Borkenau, austríaco de nascimento, passara a viver na Alemanha, nos anos 20, e, com a ascensão do nazismo, se exilara na Inglaterra, sua obra póstuma, como acentua seu editor Richard Lowenthal, é formada tanto por textos escritos originalmente em alemão como em inglês. Na falta de cotejo com a edição mencionada por Sloterdijk, tomo a em língua inglesa como a original. 1 14 Rev Gragoata n 29.indb 14 Luiz Costa Lima Fundando-se em obra póstuma do historiador da arte Franz Borkenau1, Sloterdijk partia de as culturas derivarem de uma alternativa: Enquanto um dos tipos de cultura rejeita a morte e reage com uma doutrina da imortalidade, o outro se resigna e desenvolve, fundamentalmente, uma cultura comprometida com este mundo. Borkenau qualificava essas opções bipolares como ‘antinomia da morte’ (Sloterdijk, P.: 1986, 40). Comprometidas com a aceitação da morte, as culturas grega e moderna [não é acidental que um dos temas capitais que essa acolhe esteja no antagonismo entre a tese da secularização – “Todos os conceitos pregnantes da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados” (Schmitt, C.: 1922, 43) – e sua recusa terminante por Hans Blumenberg (cf. Blumenberg, H.: 1966)] – divergem na raiz das que asseguram a imortalidade (Egito, Jerusalém, Roma). Sloterdijk recorda a tese de seu compatriota para logo acrescentar que Derrida não optava por uma ou outra linha, senão que mantinha uma linha de compromisso entre elas. A escrita (écriture), morta-viva, é o seu lado piramidal, ao passo que a fluidez do signo seria indicativa da vida de logos, sempre entrecortada pelo incessante deslocamento do sentido. Daí caber a Derrida tanto a afirmação que valeria para o desconstrucionismo em geral – “Poder-se-ia descrever o procedimento desconstrutor como um manual de instruções, a fim de permitir a transmissão das igrejas e castelos do ancien régime metafísico e imortalista para as mãos dos mortais civis” (Sloterdijk, P.: idem, 44) – como a de direção contrária: “(A desconstrução) significaria uma tentativa de associar igualmente o pertencimento da cidade moderna dos mortais a uma opção em favor do imortalismo egípcio” (ibidem, 47). Serem as direções contrárias, não significa que Sloterdijk procurasse com elas desmerecer o amigo morto, senão apenas assinalar que esse se punha na confluência de linhagens contrapostas. xxx Se expus as teses contrárias com boa vontade e mesmo simpatia, por que não as endosso? Lembro a sábia advertência do filósofo: a qualidade de teu trabalho pode depender da escolha de teu adversário. Mas o que importa é a razão da discordância com o que expus. Resumo-a aos mínimos pontos capitais. (a)Seja a primeira a que afirma que um conjunto de enunciados formadores de uma linha argumentativa se apresenta como uma cadeia metafórica desgastada. Essa cadeia constituiria, portanto, uma “sedimentação metafórica dos conceitos” (Derrida, J.: 1971, 255), sedimentação responsável pela “camada de ‘primeiros filosofemas’ “(idem, 261), de que resulta que a suficiência dos conceitos e dos primeiros filosofemas é sempre uma ilusão de uniciNiterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 O estatuto da crítica dade; poderíamos dizer é um engano “piramidal”, pois dá a entender que, por fim, se conseguiu fazer cessar as contínuas reviravoltas e deslocamentos de sentido. Sem entrar em uma discussão filológica para a qual não sou competente, e mesmo que admita que “a teoria da metáfora (…) parece pertencer à grande cadeia imóvel da ontologia aristotélica” (ibidem, 281), que, por conseguinte, o “sol” nele se multiplica em um sistema estelar (cf. ib., 291), daí não se conclui que, ao ter sua efígie desgastada, a metáfora lisa continue a funcionar como metáfora. O que equivale a dizer: a crítica da metafísica e da verdade como substância e, assim, indestrutível, firme e inamovível assume em Derrida uma tamanha totalidade que reproduz, pelo avesso, a própria vocação totalista da metafísica. Nele, se tem a defesa do singular que paradoxalmente eleva a singularidade à condição de totalidade. Daí o engano que, como Sloterdijk observa, favoreceu o próprio Derrida: a muitos sua reflexão deu a entender que a desconstrução era “a derradeira oportunidade para uma teoria integrar por meio da desagregação” (idem, 17) quando, em verdade, era a figura final de um processo lógico, o “da virada linguística ou semiológica” a que, no século XX, foram submetidas “as filosofias da linguagem e da escrita” (ibidem, idem). Porém o mais grave não está em considerar novo o que era o ato a mais de uma peça já encenada senão na pretensão de dizer da linguagem em termos absolutos, sem considerar que sua função se modifica de acordo com a disposição discursiva em que ela está sendo usada. Ao ignorar a diversidade dos modos discursivos, Derrida converte o propósito de destruir a metafísica em equivalente ao que julga idêntico à desmistificação de toda forma de pensamento, ou seja, idêntico a negar a ambição de algum enunciado ser pura conceitualidade; (b)Papel da différance: dentro da ambição totalizante, que esperava “integrar por meio da desintegração” (Sloterdijk), para Derrida, onde haja linguagem, ao menos onde ela não se confunda com uma nomeação banalizada, o diferimento que processa significa o estabelecimento de uma indecidibilidade. Contra o decisionismo político de Carl Schmitt – cujo pensamento é aqui lembrado porque, nos mesmos anos 70, suas obras recomeçavam a circular fora da Alemanha – a indecidibilidade derridiana se mostraria como seu avesso irônico, cuja aparência radical era, na verdade, algo ocioso. Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 15 15 11/7/2011 19:21:34 Gragoatá Lembre-se a passagem de alguém que escrevia então de dentro da universidade norteamericana: “Enquanto tentativa de corroer toda autoridade, a própria descon st r ução i n st itucionalizou-se como u m e mp r e e nd i m e n to antihermenêutico, convertendo-se em um mecanismo mimético de exclusão e apropriação” (Spariosu, M.: 1984, 79). 3 Para maiores esclarecimentos acerca da distinção entre indecidível e interminável, remeto para o meu Mímesis, desafio ao pensamento. Cap. VII, “O Paradoxo em Kafka”. 2 16 Rev Gragoata n 29.indb 16 Luiz Costa Lima Pode ser proveitoso levar adiante o cotejo. Por que a indecidibilidade, do ponto de vista de Carl Schmitt, seria ociosa? Porque decisionismo era formulado como um meio para a luta política, enquanto a indecidibilidade antes se assemelharia à “conversa infinita” com que Schmitt caracterizava a atitude liberal, que, tornando o sujeito individual o verdadeiro centro do regime, convertia o liberalismo em impotente para enfrentar os regimes de força. Por que avesso irônico do decisionismo? Por dois motivos. De imediato, porque, dentro de uma ortodoxia derridiana, a postura de Schmitt ignorava a propriedade mínima da linguagem: a decisão criaria um dique que o fluxo da linguagem terminaria por rebentar. Em segundo lugar, porque o auge de prestígio da différance e, em consequência, do indecidível, nas universidades norte-americanas, levava os desconstrucionistas a discriminar autoritariamente os que não concordassem com eles. Ou seja, teoricamente desinteressados pela luta política na prática, “decidiam” pela exclusão de seus adversários.2 O contraste acentuado não teria sentido – afinal Schmitt e Derrida tratavam de objetos bastante diversificados – caso não fossem seus pontos de contato não fossem pontos de atrito: se, por um lado, o decisionismo pareceria algo rude e, portanto, diante do qual os defensores da indecidibilidade poderiam permanecer ociosos ou ironicamente separados, por outro, quando esses exerciam posições de mando mostravam saber decidir do modo mais peremptório: por exclusão dos divergentes. Considere-se o caso ilustrativo do que de fato sucede com a différance: seu desinteresse por assuntos ou disputas tão-só acadêmicas era apenas uma aparência, e decorria da entonação totalista contida no pensamento derridiano. Por efeito de seu totalismo, em vez de considerar a différance como provocadora de um inevitável indecidível, considero que, no próprio texto poético, a indecidibilidade – i.e., a terminante impossibilidade de dizer-se qual o sentido de um poema – é tão-só uma entre duas possibilidades, sendo a outra, a indeterminabilidade – i.e., o sentido é passível de ser declarado, embora nunca se possa dizer que ele seja o único e estavelmente fixado.3 Como já considerei a questão da referência não estranharia que a muitos seu retorno pareça extravagante. Sucede porém que a posição assumida por Derrida e os desconstrucionistas em peso não foi inaugurada por eles. Como já se disse acima, confundir a referência com um duplo natural do signo a tal ponto generalizou-se que ainda agora questionar sua negação chega a parecer inconcebível. Como primeiro sinal do que sistematizarei a seguir como próprio da postura que tenho assumido, devo, portanto, insistir sobre o questionamento da repulsa da referencialidade. Vale partir de uma observação que ouvi do poeta João Cabral. Visitava-o em seu apartamento do Rio de Janeiro, onde estava de férias de alguma embaixada na América Hispânica. Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 O estatuto da crítica Meio irritado, meio irônico, me contava que recebera à tarde a visita de uma professora de literatura. Conforme o poeta, ela queria saber se a referência frequente à cana de açúcar, em seus poemas sobre o Nordeste, não trazia uma carga fálica. Ainda exasperado, João acrescentava: por que esta sua colega não considerou que eu venho da zona da mata de Pernambuco onde, desde criança, convivi com a paisagem dos canaviais? Tiro do episódio uma consequência banal: a palavra, mesmo a poética, por certo que desconhece uma referência unívoca, mas tomá-la como se solta no mundo, juntando-se aleatoriamente a qualquer outra e então passível de sustentar uma simbologia qualquer, seria viável apenas para um surrealismo facilitado e/ou promotor de uma poesia que confunde o inefável a que aspira com a arbitrariedade que pratica – os exemplos são tão frequentes quanto a permanência do desdém pela teorização. Em suma, a referência, desde a imediata – alguém entra na sala e pergunta: “quem aqui é Pedro?” – até a mais alusiva é uma sombra que sempre acompanha a palavra. Seu desdém é tão estúpido como o realismo banal a que usualmente está associada. Se próprio da imagem é sua potencial plurivocidade, pela qual ela se põe na antítese do conceito, negar a referencialidade termina por implicar que, diante do mundo, o comércio com a linguagem, supõe de duas uma: ou a pura objetividade que configura o conceito ou a intensa subjetividade estimulada pela imagem. É ainda de se acrescentar: o conceito, entendido como operador científico, tem um referencial a posteriori. (Algo que se pareça com um limão não é necessariamente incluído entre os cítricos). A referencialidade do conceito, na acepção filosófica, tampouco se estabelece a priori. Ou seja, não é por sua relação com a referencialidade que o operador científico se diferencia do conceito filosófico, senão pela maneira como um e outro se “aproximam” do que tratam – o operador manipula seu objeto, o conceito o tematiza. Quanto à imagem, ser ela plurívoca não quer dizer que signifique o que pretenda nela ver quer o engenho, quer o primarismo do leitor. Mais relevante que essas considerações sobre o papel da referencialidade na ciência, na filosofia e na ficção literária é levar em conta que o fenômeno da linguagem assume feições distintas de acordo com a modalidade discursiva em que se mostra. (Modalidade discursiva, i.e., análise das distintas formas discursivas é algo que não se encontra em Derrida. Mas tampouco posso aqui mais do que dizer que a abordagem linguística do discurso muito menos é satisfatória). xxx A partir dos pontos destacados, posso agora me perguntar: sou então defensor de um método, em crítica literária? Sem qualquer sofisticação, entendo por método o conjunto de procedimentos reiterados que visam ao alcance de certo resultado previsto. Os exames médicos rotineiros a que nos acostumamos obviamente se processam de acordo com um método. A importância que as Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 17 17 11/7/2011 19:21:34 Gragoatá Luiz Costa Lima ciências assumem em nosso cotidiano é contudo responsável pelo uso abusivo do termo. E passa-se a chamar de ‘método’ não só o que é habitual na conduta de alguém como se exige a declaração de método onde ele não se dá. Assim, por exemplo, os formulários a serem enviados aos institutos de apoio à pesquisa, costumam indagar aos que pretendem bolsas ou outra forma de ajuda, nas ciências humanas, que método será usado em seu trabalho. O solicitador então terá de dar voltas à capacidade de forjar sentido para frases inócuas, enquanto seu colega em ciências da natureza simplesmente indicará o nome de um procedimento reconhecido. A competência administrativa de uma instituição por certo não se mede pela capacidade de seus funcionários em saber o que distingue a prática entre as ciências “duras” e as humanidades. Nem por isso é explicável que continuem a ser impressos formulários com semelhantes questões. Seja o caso da análise de um texto poético-ficcional. Empregar a seu propósito um método significaria supor que há etapas fixas, pelas quais se pretenderia, ante a positividade de resultados já alcançados, alcançar um certo resultado. Diante de certo procedimento analítico, o texto deveria reagir como uma substância química ao contato com certo reagente. Ora, alguém que tenha de fato aprendido com a própria experiência saberá que cada autor exige que se desenvolva uma abordagem específica. Na formulação tão sumária como precisa de Ernst Jünger: “Os autores diferem entre si como diferem os peixes, os pássaros, os insetos”. Ao contrário de uma aplicação metodológica rotineira, aqui não há qualquer previsão de um certo resultado ou mesmo de chegar-se a resultado algum. Podese até lamentá-lo, mas a rotina não é esperável na tarefa analítica no campo literário. Negar a expectativa de rotina não equivale a dizer que qualquer procedimento torne-se então válido. Se, pela dificuldade que encontro em certo texto ou autor, adoto os princípios da direção que atrás se indicou como contrária ao método, demonstro apenas que meus princípios teóricos não devem ser levados a sério. Em suma, portanto, mostrar-me contrário aos princípios que orientam a prática desconstrucionista não supõe que eu proponha algum método. Na posição que defendo e orienta minha prática analítica, o que mais se aproxima de uma afirmação metodológica seria a de que cada área discursiva (a ficcional, a das ciências da natureza, a das ciências humanas, a da filosofia, a da religião, a das interrelações pragmático-cotidianas) exige modos de indagação diferenciados. Quando algum deles admite ou mesmo passa a exigir um certo método será pela combinação de duas condições: (a) que a operação analítica já tenha apresentado resultados tão constantes que possa ser usada automaticamente e (b) que o objeto mostre uma alta previsibilidade de comportamento. Se essa combinação não fosse frequente, as ciências não teriam ganho o prestígio que hoje têm. Mas, se as próprias ciências fossem apenas 18 Rev Gragoata n 29.indb 18 Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 O estatuto da crítica Prefiro falar em nocional para não voltar a distinguir entre o conceito, em sua acepção filosófica e em sua dimensão operacional, i.e., científica. 4 reiteradoras de métodos já afirmados, elas não avançariam. E, se avançarem graças apenas à argúcia do pesquisador, enquanto o objeto mostrar condutas imprevistas? Neste caso, já não se estará tratando com uma área científica. Para comprová-lo, sugiro que – desconsiderando a patente orientação a favor da imagem, concentrada na qualificação de ‘crueza’, - leia-se a seguinte passagem: “Quem pensa em conceitos e não em imagens, procede diante da linguagem com a mesma crueza de quem vê apenas as categorias sociais e não os homens (Jünger, E.: 1949, II, 59). Mesmo desconsiderando o manifesto parti pris de Jünger, é evidente que, nas ciências humanas, só as categorias sociais podem oferecer um grau aproximado da estabilidade dos fenômenos naturais; por isso só elas são passíveis de alcançar um certo grau de cientificidade. Isso posto, posso acrescentar uma razão extra para me orientar pelo caminho que assumo: se, em vez de uma visão totalistametafísica, acentua-se a necessária diversidade de campos discursivos, assume-se, em consequência, uma indispensável visão diversificada do signo. No signo, as direções passíveis de serem tomadas dependem da relevância de uma entre duas direções: a imagética e o nocional.4 É bastante sabido que, nas ciências ditas exatas, a dimensão imagética necessariamente estiola. Que interessa ao biólogo que o termo ‘célula’ tenha como lastro metafórico original ‘pequena cela’? Em troca, se o analista do texto ficcional literário não considera essas diferenças, é arrastado a converter seu próprio texto em competidor daquele que examina. Se o ficcional literário, sobretudo em sua espécie poemática, é comparável a um poço interminável e indecidível, o texto analítico deveria então ter as mesmas qualidades. Que interessa compreendê-lo, se, enquanto poético, estará sempre aberto a outra compreensão? Para que então o analiso? Para saber-me responsável por uma de suas variantes interpretativas? Por isso a crítica desconstrucionista, ao se recusar a reconhecer uma diferença capital entre ela e o texto sobre o qual se dobra, ou assume um panficcionalismo ou afirma de si que é um gênero tão poético como seu objeto. Deste modo, sob o pretexto, correto, de que a crítica não é julgamento senão que indagação dos limites da razão, o desconstrucionista torna-se um grande juiz: sua sentença consiste em deslocar o entendimento prévio e assente e, ao mesmo tempo, em desconsiderar quem não parta de seus pressupostos. Contra tal curso, terei de dizer que a crítica por certo não é julgamento, mas juízo sobre os limites da razão – o imagético e as formas de conceitualidade (cf. nota 3) traçam limites para a razão. Se a crítica não é poética, nem por isso há de ser menos poiesis. Quando não alcança esse estágio, ela é algo que apenas serve para a premiação em concursos ou para discriminar entre autores que separa entre bons ou maus. Poiética, a crítica do ficcional literário não possui propriamente conceitos. Ora, se dela já Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 19 19 11/7/2011 19:21:34 Gragoatá Luiz Costa Lima afastamos a dominância imagética, onde, afinal, se sustenta? Em sua acepção científica, i.e., enquanto operador, o conceito é um enunciado tanto mais poderoso quanto mais unívoco. Sua univocidade é sua vantagem e, ao mesmo tempo, seu limite. O conceito da atração universal dos corpos é algo que, desde sua formulação, a humanidade não pode ignorar. Mas não se queira que ele diga mais do que diz. O conceito é literalmente Begriff, i.e., algo que agarra e prende. O latim forneceu ao alemão a possibilidade de um par, Konzept. Mas, no léxico corrente, Konzept significa ’esboço, projeto, programa’. Para que o termo diga de sua função na filosofia teríamos de ressaltar sua etimologia: konzipieren, derivado de concipere. A crítica é poiética à medida que supõe a abertura para uma concepção que ela então elabora. Longe de tornar as imagens ociosas, o poiético da crítica não compete com as voltas e giros, torsões e deslocamentos do ficcional literário, mormente de sua espécie poemática. Muito menos pretende alcançar a precisão e limite dos Begriffen. Ela visualiza o indeterminável, minoritariamente o indecidível. A crítica ativa o pensar; só ao tentar conciliar o inconciliável, passa a competir com o texto poemático: a fluidez do poço com o volume fixo da pirâmide. Contra essa possibilidade, a ativação da crítica pelos três tratados kantianos já nos tinha alertado. Não é acidental que, como corrente de agora, o desconstrucionismo ponha a crítica no ostracismo. xxx Reservo uma última observação para o modo como me distancio do desconstrucionismo. Sloterdijk já disse que ele representou a esperança de que se conseguisse construir algo novo por meio da destruição. Neste sentido, Derrida foi um continuador de Nietzsche e Heidegger. Ora, ainda que se admita que essa promessa não se cumpriu não se pode negar que os instrumentos que aguçou trouxeram um sopro novo e deram maior maleabilidade ao ato de pensar. À minha posição, ao contrário, parece caber imagem de sentido bem diverso: como que ela volta a percorrer o campo do conhecimento, de que, depois de arado por vários sistemas de pensamento, ainda apresentasse, aqui e ali, alguns brotos que tivessem escapado ou colhidos de maneira imperfeita. Seria antes com esses restos que tenho trabalhado. É tipicamente o que sucede com o que tenho feito com a mímesis. Nos vários livros em que a considerei, procurei mostrar que não cogitava nem de recuperar seu sentido aristotélico, nem de nos aproximar do sentido que receberá na acepção hegeliana, sem que tampouco se pudesse pensar em alguma afinidade fosse com a tradição clássica da imitatio ou com a reflexologia em que o marxismo recaiu. Não vou aqui repetir senão que a retomada da mímesis inverte seu perfil: se ela guarda da velha acepção o princípio de correspondência entre textualidade verbal ou visual e configuração de um certo mundo, nunca tal correspondência dá a entender que o produto da mímesis seja uma segunda natureza, i.e., 20 Rev Gragoata n 29.indb 20 Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:34 O estatuto da crítica algo que se explique antes da configuração formal. Não poderia sê-lo porque entendo que a mímesis artística supõe a dominância do vetor diferença sobre um lastro - sempre mais distante quanto mais se caminha ao longo do processo de autonomização da arte – de semelhança. Não vou nem desrotinizar a explicação acima, nem a prolongar até aos princípios de controle do imaginário e de ficção literária. Para os três casos, mantém-se correta a imagem de alguém que cuida dos restolhos que sobraram de campos amplamente cultivados. Duas interpretações seriam então possíveis: ou isso sucede por falta de inventividade de quem o tenha feito ou porque as colheitas anteriores eram feitos com instrumentos rudimentares. Por mais diferentes que sejam as duas possibilidades nomeadas, elas têm algo em comum: a primeira indicaria o reconhecimento de que o que fiz não faria falta; a segunda daria a entender um gesto de presunção insuportável: o que antes de mim a propósito foi feito, tinha ferramentas toscas. A presunção seria tamanha que provocaria o mesmo resultado: o que a motivou pode ser esquecido, porque não faz falta. Como então evitar o pensamento de haver gasto a vida com inutilidades? Sem que apresente uma resposta definitiva, lembro o que Ernst Jünger afirmava em seu ultimo diário: “Ao saber pertence a dúvida” (Jünger, E.: 1949, III, 273). Abstract The text belongs to a debate in literary criticism on the question of method. As a matter of fact, the author does not consider himself as a defensor of a definite method. This means that the dividing line in current literary approach does not concern the question of method. What does not imply that there is a common denominator in today theoretical and critical approach to literature. That is the reason why the text below is characterized by its contraposition to the so-called desconstructionist critique, more specifically against Jacques Derrida’s approach. Keywords: Deconstructionism, Derrida, referentiality, différance, metaphor, indetermination, undecidibility Referências ARISTÓTELES. Tópicos, trad. de Edson Bini, in Órganon, EDIPRO, São Paulo, 2005. Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 21 21 11/7/2011 19:21:34 Gragoatá Luiz Costa Lima BLUMENBERG, H.: Die Legitimität der Neuzeit (1966), ed. renovada em 1988, Suhrkamp Verlag, Frankfurt a. M., 1996. BORKENAU, F.: End and beginning. 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Apresenta as diferenças fundamentais em relação a determinadas questões (sujeito, leitura, multissemiose) e concentra-se nas diferentes concepções sobre um tema que os estudos de texto tornaram corrente no Brasil, a referenciação. A tese é que as soluções da análise do discurso e dos estudos de texto são incompatíveis e que temas como este deveriam ser explicitamente debatidos, como se se tratasse de “descobrir” efetivamente a melhor solução. Palavras-chave: controvérsia, discurso, texto, referenciação Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 23 Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Sírio Possenti Introdução Preciso começar este texto com duas notas quase pessoais, e bem diferentes entre si. A primeira é que tenho um gosto pelas polêmicas (embora o cultive menos do que gostaria). Já disse a amigos que, se pudesse, viveria delas. Ou seja, gastaria de bom grado meu tempo debatendo dados, análises, argumentos. De certa forma, exercito esse meu gosto nas colunas que escrevo há uma dúzia de anos na imprensa, primeiro em um jornal do interior paulista (Jundiaí), depois em mídias eletrônicas. Mas essas polêmicas privilegiam “interlocutores” da própria mídia – jornalistas, colunistas, intelectuais diversos e políticos que decidem pronunciar-se sobre questões de língua. É “contra” eles que a maioria de minhas colunas é produzida. Se tomam conhecimento delas, fazem de conta que não as leram. Só uma ou duas vezes escrevi claramente sobre leituras de textos de minha autoria feitas na academia. Mas creio que posso dizer que quase tudo o que escrevi era motivado por esta espécie de sanha de debater com alguém. A segunda nota é sobre a inexistência de debates na academia brasileira, de forma que tenho que alimentar meu gosto lendo o que ocorre em outros países. Há pouco tempo, escrevi um prefácio um pouco em desacordo com as regras do gênero (pelo menos entre nós). Estas, aparentemente, obrigam a elogiar e, quando se trata de coletâneas, a fazer um resumo de cada texto, como para ensinar a ler o livro. Fui mais ou menos execrado, pelo que sei. A consequência mais óbvia dessa quebra das regras, dessa pequena heresia (eu dizia que o livro era bom, mas indicava uma direção dissonante em relação a teses fundadoras do campo, e que cumpria esperar para ver se a tendência se afirmaria ou não) foi a diminuição de convites para bancas e outras participações similares em determinados espaços. Mas não houve uma resposta escrita, nem mesmo uma conversa direta. Um dos corolários desse estado da questão é que as resenhas são sempre amigáveis, feitas por alguém do grupo. Acrescento imediatamente que considero as resenhas “de dentro” fundamentais, porque penso que é verdade que só assim estão dadas as condições para uma leitura adequada do texto resenhado (as teorias sobre a relevância da ideologia para o “progresso” do conhecimento explicam esse fato (ver Löwy 2003, especialmente o capítulo sobre o marxismo). Mas fazem falta as resenhas “de fora”, as que explicitariam possíveis limites das obras, eventualmente, seus problemas ou defeitos, ou, mais amplamente, alternativas de análise. Um motor? Dascal (1994) defende que o “avanço” da ciência se deve às controvérsias. Constata o fracasso da epistemologia lógico-positivista, tanto em suas vertentes normativas (as que ditam com24 Rev Gragoata n 29.indb 24 Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis? 1 Apelo para esta palavra para não tomar posição em relação ao enquadramento do caso na tipologia de Dascal... portamentos aos cientistas – quer sejam indutivistas, quer sejam dedutivistas, quer estejam entre os que acreditam que devem testar duramente suas hipóteses ou mesmo ser persistentes diante do falseamento delas) quanto nas descritivas (que pretendem dizer como a ciência “avança” pela análise de sua história). Segundo ele, nenhuma dessas propostas tem espaço para a consideração do papel das controvérsias, que, a seu ver, são o verdadeiro motor da ciência. Apresenta duas teses gerais sobre as controvérsias: (I) As controvérsias são indispensáveis para a formação, evolução e avaliação das teorias; (II) A pesquisa das controvérsias é indispensável para uma descrição adequada da história e da práxis das ciências. Distingue, num terceiro passo, no interior do fato empírico “discurso polêmico”, as discussões, as disputas e as controvérsias. Caracteriza as primeiras como polêmicas cujo tema é bem circunscrito. Os participantes da discussão tendem a reconhecer que o problema é um erro relativo a algum conceito ou procedimento. Discussões permitem soluções. Uma disputa envolve, além de problemas ou procedimentos, diferenças de atitudes, sentimentos ou preferências. Não há procedimentos mutuamente aceitos para decidi-las; ou seja, elas não têm soluções. As controvérsias estão em posição intermediária entre as duas anteriores. Podem começar com um problema específico, mas logo se expandem para outros e revelam divergências profundas. Envolvem preferências, mas não se reduzem a elas. A eventual resolução pode consistir no reconhecimento de que se acumularam mais argumentos ou dados em favor de uma posição do que de outra. Um dos efeitos é que ambas as posições podem resultar em parte modificadas. As principais características das controvérsias são: a) não se confinam aos problemas iniciais; b) os contendores questionam os fundamentos da posição contrária, sejam factuais, sejam metodológicos, sejam conceituais; c) os contendores discutem os procedimentos hermenêuticos dos adversários; d) são abertas, ou seja, não se sabe onde vão desembocar; e) encerram-se sem “fechar” a questão; f) sua abertura não implica anarquia, ou seja, nelas não há vale-tudo (Dascal 1994, passim). Minha experiência de análise de um debate1 deixou a seguinte impressão: que as posições dos contendores são mais facilmente modificáveis a partir dos dados. Mostrar outros dados e/ ou que os dados que sustentam uma posição foram mal coletados enfraquece posições ou leva contendores a admitir problemas em seus trabalhos mais comumente do que apresentar argumentos metafísicos ou ideológicos contrários. Talvez valha a pena mencionar a posição de Maingueneau (1984/2008) sobre as polêmicas. Ele analisa o embate entre duas formações discursivas (que depois chamaria de posicionamentos) religiosas no espaço do cristianismo devoto. Sua tese é que a polêmica é regida pela semântica de cada FD, de forma que os Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 25 25 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Sírio Possenti contendores não se “entendem” (a polêmica é regida pelo que ele chama de “interincompreensão regrada”, que não implica nem desonestidade intelectual nem deficiências cognitivas, mas apenas decorre do fato de que cada contendor lê o outro a partir de sua semântica, do que deriva que nunca se “compreendem”). É o verdadeiro diálogo de surdos. Maingueneau compara a interincompreensão à incomensurabilidade que haveria entre paradigmas e ressalta uma diferença: no caso de teorias opostas, é possível que a controvérsia seja resolvida em favor de uma (pelos dados, eventualmente); no caso das polêmicas ideológicas, não há um juiz exterior e acima das duas posições que possa definir vitoriosos. Quando os há, os motivos são outros: um grupo desaparece, por exemplo, e o que a história pode fazer é explicar esse fato. É exatamente o caso dos jansenistas, um dos polos da polêmica que Maingueneau analisa. Um debate surdo Por isso não trato de estudos específicos e, portanto, não há citação de nenhum trabalho. Se o fizesse, talvez criasse mais problemas do que imagino criar por ora. 3 Ponho a palavra entre aspas apenas porque, em geral, não há uma teoria em cada um dos lados, mas teorias mais ou menos próximas ou que partilham de elementos comuns; essas características constituem nitidamente dois pontos de vista distintos. 2 26 Rev Gragoata n 29.indb 26 Meu objetivo, neste trabalho, é apresentar bastante informalmente2 as questões teóricas (e algumas empíricas) centrais que dividem as teorias de texto e as de discurso. Meu argumento – nada novo – é que elas não são equivalentes, nem complementares, e que não são simplesmente duas maneiras de fazer a mesma coisa. Eventualmente, trata-se de explicações concorrentes para os mesmos fatos. Mas, em geral, mais do que isso, trata-se de teorias, ou de conjuntos de teorias, que funcionam paralelamente, sem intercâmbio e mesmo sem debate. Esta característica não deixa de ser curiosa, porque pode dar a entender que não há interesse em resolver de fato determinados problemas, mas apenas em que as duas comunidades discursivas sobrevivam, cada uma resolvendo a sua maneira os problemas que formula para si e nos seus termos. O “sonho” deste texto é que, por alguma razão, passe a haver um debate sobre as diferentes soluções para problemas semelhantes. Mas ele não resulta de nenhum traço de otimismo. Nos estudos de texto e de discurso (esta terminologia vai aos poucos se fixando, em certos casos em detrimento dos termos “Análise do Discurso” e “Linguística Textual” ou “do Texto”), há aspectos que se superpõem e para os quais as palavras “texto” e “discurso” podem ser – ou têm sido - eventualmente intercambiadas. Mas há questões para as quais é de relevância crucial distinguir entre as denominações, que não são duas por mero acaso, e também propor quadros teóricos claros de cada uma delas (eventualmente, mencionando suas diferenças). Às vezes, é absolutamente necessário explicitar (ou explicitar de novo) quais são os problemas concernidos, ou fundamentais, e quais são deixados de lado ou postos em segundo plano por cada uma das “teorias”3. Antes de mais nada, creio que vale a pena fazer uma observação relativa ao que poderia parecer mera casualidade, ou Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis? simples questão de palavras, mas que, de fato, é bem mais do que isso: o termo “discurso” é frequentemente empregado em trabalhos de linguística textual e até mesmo nos de sociolinguística ou de análise da conversação em acepções que não se aproximam das que são consideradas relevantes pelos analistas de discurso (por mais que haja diferenças entre as diversas teorias que adotam ou adotaram esta denominação). Este fato parece ser sintoma de um certo prestígio (a requerer explicação mais detalhada) do termo “discurso” e dos sentidos que lhe são associados, e que a palavra “texto” não evoca. Uma hipótese é que o termo “discurso” implica ou supõe um desejo de afastar-se do que soa como apenas “linguístico” e de aproximar-se do que soa como “social” ou “cultural” ou “psicológico”. Ou mesmo “ideológico”. As linguísticas de texto deixaram há bastante tempo de ser apenas “linguísticas” e se tornaram em boa medida fortemente marcadas pela psicologia cognitiva e mesmo pela atenção a outros problemas, originariamente não textuais em sentido estrito, como, por exemplo, a intertextualidade. Creio que foi esta expansão que fez com que “discurso” parecesse um termo não incompatível com textualidade. Penso que não deveria mesmo ser, mas por outras razões. Talvez um espaço para uma compreensão mais adequada desse fenômeno, que, a meu ver, como disse, não é banal, porque indica opções diversas dos estudos da linguagem, sejam as abordagens dos gêneros (no sentido textual-discursivo, não no sentido de “sexual”, é óbvio). A noção revitalizada por Bakhtin tinha, na obra do pensador russo, claríssimos ingredientes que “ultrapassavam” a questão da estrutura interna do texto. Dado decisivo, ou constitutivo, é seu pertencimento a uma esfera ou campo. Resta verificar em que medida esse “algo mais” está presente, ou, alternativamente, ocupa o primeiro ou pelo menos o segundo plano nas abordagens que atualmente se fazem da questão. Conforme se trate de uma ou de outra “escolha”, ela indicará até que ponto se incluem de fato no próprio objeto de estudo as questões que são também, ou originariamente, “sociais” (adoto esta palavra aqui para referir o que, nas teorias “duras” de discurso, se designa com a expressão “exterioridade”), ou se elas são acrescidas ao núcleo duro de uma teoria como um elemento a mais a ser considerado e a ser explicado, então, por uma teoria específica de outro campo. O exemplo mais claro desse emprego de “discurso” ocorre nos trabalhos de linguística de texto ou de análise da conversação que consideram central a problemática da referenciação, tal como definida em Mondada e Dubois, e implementada no Brasil principalmente por Marcuschi e Koch, nitidamente em oposição a uma real ou suposta postulação da relação direta entre as palavras e as coisas, vale dizer, a uma solução “linguística” ingênua – sem “enunciação”, sem relação interacional ou dialógica etc. – para a questão. O adjetivo “discursivo” tem quase sempre, nesses trabaNiterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 27 27 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Sírio Possenti lhos, um sentido muito diferente do que tem a mesma palavra, por exemplo, em Foucault, em Pêcheux e em Maingueneau, e mesmo em Charaudeau. O processo de referenciação é concebido pela LT como sociocognitivo, por um lado, mas, por outro, está ligado a processamentos individuais ou, no máximo, interacionais, admitindo-se que o sentido, ou as diversas alternativas de referenciação (nomeação, predicação...) possam ser negociadas, eventualmente durante o próprio processamento on-line da conversação. Como se vê, a ênfase recai sobre a cognição e/ou sobre as opções individuais. Se a AD considerar os mesmos dados para análise, voltará seu olhar para o que ela considera fatos históricos: as diversas maneiras de referir-se a um “objeto” (do mundo ou do universo de discurso) serão “buscadas” no interdiscurso, na memória discursiva, e serão “selecionadas” pelo enunciador (e não produzidas por ele) segundo critérios da teoria, da formação discursiva ou do campo em que o discurso é produzido (ver os dois exemplos no final do texto). Diferenças A afirmação de Foucault de que uma obra é u m nó nu m a rede pode ser aproximada, mas certamente não é equivalente nem nasce do mesmo quadro em que nascem as teses de Bakhtin sobre o dialogismo ou as de Pêcheux ou de Maingueneau sobre interdiscurso. Certamente, porém, estão mais próximos entre si do que estão as de Chomsky ou mesmo de Halliday e Hasan, ou de Van Dijk. 4 28 Rev Gragoata n 29.indb 28 Este trabalho, como foi dito acima, pretende comentar um conjunto de opções que diferenciam as teorias de texto e as de discurso, na medida em que elas oferecem explicações claramente distintas para determinados problemas. Essas teorias consideram cruciais explicações ou psicossociológicas ou históricas; consideram a memória ou em termos cognitivos ou em termos psicanalíticos e/ou históricos; consideram fundamental um corpus institucional (mais frequentemente escrito) ou um corpus sem a consideração dos laços institucionais (independentemente de ser falado ou escrito), tratam diferentemente questões como a legibilidade dos textos, vale dizer, o processo de leitura e a figura do leitor etc. Frequentemente, trabalhos nesses campos apresentam traços marcantes de “ecletismo”, nem sempre, é verdade, com o mesmo grau ou com a mesma sem cerimônia. As diferenças básicas entre eles são de três tipos: a) há trabalhos que adotam ou dizem adotar perspectivas associadas a diversos autores, ora mais, ora menos compatíveis. Bons exemplos são Pêcheux, Foucault e Bakhtin, que, provavelmente, formam um “grupo” (seu ponto de partida é o social ou o histórico, não o individual ou o biológico) que pode ser claramente oposto a outro (que privilegie o individual e o biológico), sem que, no entanto, eles se filiem exatamente à mesma4; b) há trabalhos que adotam perspectivas que talvez possam ser compatibilizadas, mas que exigem este trabalho de compatibilização, sempre por fazer (são exemplos os diversos – na verdade, numerosos – trabalhos que incorporam teses da pósmodernidade às problemáticas formuladas pela AD, não sendo claro que, por exemplo, uma categoria como “o sujeito da pós Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis? Para Bakhtin e Maing ueneau, apesar das diferenças, é o pertencimento a um campo ou a uma esfera o ponto de partida para definir um gênero, e não seu formato textual. A tese de Marcuschi mais conhecida sobre a questão é sua postulação de um continuum entre fala e escrita (isto é, de uma não ruptura entre as duas modalidades), ou seja, sua ênfase recai sobre a “composição” do texto genérico. 6 É evidente que tais e x pr e s s õ e s n ão t ê m sentido óbvio; mas são indicadoras de uma incompatibilidade básica. 5 modernidade” seja compatível com a categoria correspondente em Foucault, em Pêcheux, em Bakhtin ou em Maingueneau); c) há trabalhos que “misturam” claramente, e, aparentemente, como se pudessem ser apenas “somados”, procedimentos, hipóteses e “axiomas” oriundos de teorias bastante diferentes entre si em seus fundamentos mais característicos (por exemplo, as teses de Marcuschi, de Bakhtin e de Maingueneau sobre gênero5). Não pretendo concluir que há teorias melhores do que outras, nem que, se as houvesse, deveria haver alguma pressão “ética” para que as menos boas fossem abandonadas em favor das melhores (ou que deixassem de receber financiamentos). Nem por isso, no entanto, deixarei de tomar posição em relação a determinadas análises, emitindo, eventualmente, juízos de valor. A diferença fundamental entre a LT e a AD está clara em duas ou três questões filosóficas. Uma diz respeito ao sujeito: para a LT, explicita ou implicitamente, o sujeito (falante, locutor, leitor) é de tipo cartesiano: é uma unidade de consciência e de saber. Locutores e leitores são concebidos como (ou muito aproximados de) falantes e leitores empíricos. Não há na LT categorias específicas para referir-se aos indivíduos e às “personagens” textuais ou discursivas. Esta caracterização sumária (talvez simplificada) pode ser mais claramente atestada nos trabalhos de análise da conversação, cujas diferenças filosóficas de fundo em relação à LT praticamente inexistem. A consideração da memória e da atividade inferencial são outros elementos que confirmam essa concepção, frequentemente não explicitada no próprio interior da LT, cuja “psicologia” deve ser visitada nos textos próprios desta outra disciplina. O locutor está na fonte do texto e o leitor na origem da leitura (ele é mesmo “o que lê”). Para a AD (talvez essa seja sua tese mais conhecida), o sujeito é concebido como efeito, marcado pelo inconsciente e pela ideologia; é “dividido / disperso”, o que significa que, no que se refere a seu saber, à memória, à manipulação dos textos, às atividades de interpretação etc., é marcadamente concebido como “efeito”. Por exemplo, a tese da AD é que sujeitos ocupam posições “previstas” pelos discursos (pelas práticas discursivas), a cujas regras estão submetidos – eventualmente mais em alguns campos que em outros. A diferença pode ser formulada nos seguintes termos: para a LT, o sujeito é origem; para a AD, ele é efeito6. Outra diferença fundamental: a LT considera qualquer texto como texto, ou seja, como categoria primeira, sem questionar se sua natureza, ou determinado traço que o caracteriza, é condicionada de alguma forma pelo campo ou esfera em que este texto é “gerado” e circula. Trate-se de questões de coerência ou de referenciação, os fatos são analisados independentemente de explicitar se tal traço é ou não característico de certos tipos de textos (por exemplo, dos poéticos ou dos científicos). Para a AD, a consideração do campo é fundamental: para as análises discursi- Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 29 29 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Sírio Possenti vas, o ponto de partida é a inscrição institucional do texto (tanto quanto do enunciador). Um poema é “coerente” por razões que não valem necessariamente para um paper ou para um chiste. As discussões sobre gêneros textuais levadas a cabo no interior da LT poderiam modificar esta divisão, mas as análises não têm sido afetadas crucialmente por este fato. Estas duas diferenças explicam a tendência da LT a aceitar determinadas formas de negociação ou de produção de sentido (de base interacional), o que é basicamente inaceitável para a AD, que concebe o sentido como derivado de unidades como as formações discursivas ou os campos: como “negociar” sentidos jurídicos ou científicos a não ser com outros discursos jurídicos ou científicos? Outra questão, paralela, e talvez ainda mais crucial: posicionamentos diferentes negociam sentidos? Basta ver debates políticos, religiosos, jurídicos e outros, mesmo alguns científicos, para verificar que tal negociação é rara. Os enunciadores só negociam em relação a questões de pouco relevo: cerveja mais ou menos gelada, mais ou menos tempero na comida. Mas um vegetariano não “negocia” com um carnívoro, nem um abstêmio com um consumidor de álcool. Muito menos um ateu com um religioso, um machista ou um racista com defensores de direitos iguais. Estas diferenças ao mesmo tempo decorrem de e implicam outra: a LT trata do leitor empírico: uma leitura será bem ou mal sucedida, no que for relevante, em decorrência de certas competências do leitor (na verdade, dos leitores). Tanto é assim que experimentos para medir sucesso ou insucesso de leituras fazem todo o sentido para a LT. Mas, certamente, não fariam sentido para a AD, porque, para a AD (na verdade, para todas as teorias para as quais a questão da enunciação é fundamental), o leitor é uma personagem discursiva (bem como o locutor / enunciador / sujeito / autor). Ainda como decorrência dessas diferenças, ainda outra é fundamental. Diz respeito à concepção de memória. Para a LT, a memória é de certa forma pessoal, enquanto para a AD é um conceito marcadamente institucional e histórico. Para a LT, memória se aproxima de lembrança mais do que de arquivos, para usar definienda nada evidentes. Uma incursão mais detalhada no campo mostrará que esta diferença se manifesta claramente também quando se trata das memórias de longo ou de curto prazo: memória de trabalho é uma expressão que pode ser de extrema relevância (uma questão empírica a não ser desprezada) para teorias de texto, especialmente de leitura, mas certamente é um corpo estranho nas teorias de discurso. Evidentemente, memórias de fundamento neurológico só fazem sentido para falantes empíricos, não para enunciadores; para escritores, mas não para autores. Diga-se que uma questão que pode ser incômoda para a AD é em que medida ela faz sentido para sujeitos... 30 Rev Gragoata n 29.indb 30 Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis? Uma das diferenças mais cruciais entre as duas abordagens, certamente, é o tratamento da intertextualidade. Para a LT, coerentemente, o prefixo “inter” só se aplica à intertextualidade, e se aplica a textos independentemente de outros efeitos ou condições. Para a AD, a distinção entre intertextualidade e interdiscursividade é decisiva. Mas não se trata, para a AD, apenas de distinguir dois fenômenos onde, para a LT há só um. Trata-se de subordinar a intertextualidade à interdiscursividade: ou seja, para a AD, a forma de citação do Outro texto no interior do Um se define por suas afinidades ideológicas (ou teóricas) ou por sua incompatibilidade. Para a AD, haver mais de um locutor não é suficiente para que haja polifonia. Para tanto, é necessário que haja mais de uma “voz social”, ou seja, mais de um posicionamento ou mais de uma ideologia expressos no texto. Para a AD, o interdiscurso comanda o intradiscurso, de que as “vozes” e as relações (anafóricas e outras) de retomada são exemplos. Mais do que isso: para a AD, sempre há interdiscursividade, mesmo que um texto não mencione outro (“a Terra é redonda” opõe-se a “a Terra é plana”, mesmo que a menção a esta outra concepção astronômica não ocorra neste texto – o que é um bom exemplo da diferença de concepção do funcionamento da memória, aliás). Que a AD e a LT operem tipicamente sobre corpora diferentes não é mera casualidade. Um dos traços característicos da LT é fundir-se, de certa forma, à análise da conversação (textos sobre referenciação, por exemplo, incluem quase sempre dados oriundos de “língua falada”). Por outro lado, um dos traços mais característicos da AD é operar tipicamente com textos institucionais. Ambos os casos têm o efeito de poderem, intuitivamente, pelo menos, dar conteúdo empírico mais aos posicionamentos ou mais aos falantes, mais ao arquivo ou à lembrança, mais à relação institucional ou à interação. Os casos extremos são, assim, exemplares: é mais intuitivo que um sentido não possa ser negociado se ele é característico de uma teoria; e que possa sê-lo se ele parece uma questão de preferência ou gosto (mesmo que não seja). Há outra diferença relacionada aparentemente ao corpus: as teorias associadas a teses filosóficas típicas da LT tratam dos fenômenos da multissemiose em termos de multimodalidade, enquanto as teorias de AD tratam dos fenômenos de multimodalidade em termos de multissemiose. O que significa que as teorias de LT (ou que lhe são próximas) privilegiam – sem contar que fazem de conta que se trata de um fenômeno recente, quase associado à informática – a diversidade dos meios para produzir sentidos (textos são multimodais e sua leitura exige competências específicas). As teorias de AD, por sua vez, e ao contrário, privilegiam a unidade de sentido; isto é, para elas é mais relevante o fato de que os diversos meios se orientam para uma (só) significação (ou para significações retomadas, aludidas etc., típicas da Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 31 31 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Sírio Possenti interdiscursividade). Os casos mais evidentes são aqueles em que uma legenda diz a mesma coisa que uma fotografia. Casos menos óbvios são aqueles em que uma “imagem” se associa claramente a uma ideologia, a uma formação discursiva, a uma doutrina (de que a publicidade, política ou comercial, fornece excelentes ilustrações). Dois exemplos Em uma viagem ao México, há algum tempo, li noticiário sobre um desempenho ruim da seleção brasileira de futebol em um torneio que acabara de ocorrer. No meio do texto, os atletas brasileiros eram referidos ora como “los amazônicos”, ora como “los cariocas”. Perguntei a colegas de lá se nos viam como “amazônicos”, e a resposta era “sí”, em tom que implicava obviedade. Expressei minha estranheza. Então me perguntaram se nós também não os referimos como “astecas”, e eu disse que sim, mas que achava que eles são astecas. A resposta foi que eles acham que somos amazônicos... Creio que se trata de um bom exemplo para mostrar que não há “mapeamento” na relação entre as palavras e as coisas (mas quem, mesmo, defende que haja?). Mas, por outro lado, o exemplo mostra que não se trata de uma questão cognitiva ou interacional. Em nada adiantou dizer-lhes que a Amazônia é apenas uma das regiões do Brasil. Não se tratava de geografia, como ficou evidente. Nem de conhecimento ou de ausência de conhecimento prévio. Trata-se de uma questão ideológica, ou de estereótipos, de certa forma “imposta” aos mexicanos (a meio mundo, na verdade)7. Em junho de 2009, ocorreu uma ocupação do campus da USP pela polícia militar. Durante o evento, um manifesto assinado por um conjunto (não por todos, ainda bem!) de diretores de unidades incluía o seguinte parágrafo: Conclamamos toda a comunidade universitária ao entendimento em torno do respeito ao direito de greve e da livre expressão de ideias, refutando qualquer tipo de violência, seja por grevistas ou por policiais. Ao mesmo tempo, enfatizamos que, nos termos da lei, as manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas devem preservar o acesso ao trabalho, sem causar ameaça ou dano às pessoas ou ao patrimônio público, como os que geraram, em primeira instância, a necessidade das ações judiciais de reintegração de posse e a subsequente presença da polícia no campus para seu cumprimento. Nem vale a pena comentar que me pediam que sambasse! 7 32 Rev Gragoata n 29.indb 32 Segundo a AD, a ocorrência do sintagma “a necessidade” decorre de uma certa formação discursiva (ou posicionamento), de sua memória, de seus pré-construídos: é para a certa posição ideológica que defendeu (a ainda defende!) a intervenção policial na universidade que as ações judiciais e a presença da polícia no campus podem ser postas em termos de necessidade. Tanto é assim que cerca de uma dezena de diretores não assinou a nota. Ora, Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis? a discordância não diz respeito a questões de textualização, mas a posicionamentos. Não se trata de uma categorização, mas de um pré-construído. Para os que assinam a nota, “a necessidade” é uma expressão óbvia, que deriva da formulação prévia – real ou hipotética – “ações judiciais de reintegração são necessárias”. Modalidade? Sim. Mas por que a necessidade em vez da impossibilidade? Conclusão Que explicações de natureza cognitiva sejam postuladas no lugar de outras, históricas ou psicanalíticas (determinadas associações), é legítimo. Tão legítimo quanto a decisão inversa. Pode ser que se trate de preferências às quais não faltam ingredientes de ordem metafísica (o que é mesmo um ser humano? como sua mente funciona? como ele aprende? o que se deve saber para falar de certa maneira? o saber é consciente? o que é uma escolha entre alternativas? ela existe?), portanto, de certa forma indecidíveis. A questão que poderia ser proposta é se existem casos em que uma explicação histórica ou institucional é efetivamente mais correta do que uma psicológica e individual (minha posição é que sim). Nestes casos, ainda haveria lugar para escolhas? O que significa o fato de a academia não realizar debates abertos sobre temas como os aqui rapidamente mencionados? Significa que não se trata de erros contra verdades, mas de opções, e que todas têm o mesmo valor? Há teorias a serem compatibilizadas, como se sua relação fosse de inclusão, de algum tipo de inclusão, e não de exclusão? Por exemplo, para mencionar dados que a AD não considera tipicamente: uma memória “neurológica” pode incluir uma “psicanalítica” ou ser incluída por ela, na medida em que lesões produzem efeitos que não podem ser desconsiderados em sua natureza biológica? Certamente, ainda há caminhos a serem trilhados. O que é preocupante, a meu ver, é que não há debate no horizonte. Sem ele, cada uma das duas vertentes continuará seguindo seu caminho, e os adeptos de cada uma delas continuarão falando basicamente para seus pares, todos já convencidos de que estão certos. Se um dia sairmos deste estado, haverá disputas, controvérsias ou discussões? Ou estaremos imersos em uma polêmica, no sentido que Maingueneau dá à expressão? Talvez nunca venhamos a saber... Abstract This work believes that there is hardly any debates or controversy in the Brazilian academy, at least in the area of language studies. After reflecting about the theory of Dascal, which discusses the relevance of the controversies, the distinction between studies of text and studies of discourse Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 33 33 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Sírio Possenti is analyzed, since the term “discourse” is often related to both of them. It is presented the fundamental differences on certain issues (subject, reading, multisemiosis) and it is emphasized the different conceptions about a current subject in Brazil: the reference. The thesis is that the solutions from discourse analysis and from the study of text are incompatible and that issues like this should be explicitly discussed, as if to “discover” the best solution. Keywords: controversy, discourse, text, reference. Referências DASCAL, M. Epistemologia, controvérsias e pragmática. In: Revista da SBHC, 12. pp. 73-98. 1994. LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen – marxismo e positivismo na sociedade do conhecimento. São Paulo: Cortez Editora. 2003. MAINGUEANEAU, D. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola. 1984/2008. 34 Rev Gragoata n 29.indb 34 Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Acaso e método na pesquisa das poéticas da palavra cantada: um registro de caso Leonardo Davino de Oliveira Resumo O artigo relata e discute um procedimento metodológico particular, utilizado pelo autor. No entanto, pela carência de meios de abordagens da questão das poéticas da palavra cantada, em particular a canção popular mediatizada, pode ser aproveitado por outros pesquisadores. O objetivo é mostrar como a coleta de dados ao acaso, pelo rádio, pode contribuir para a restituição da relação entre poesia e canção, por meio da integração de elementos como a presença do corpo na pesquisa e a relação amorosa do pesquisador com o objeto, articuladas à utilização de uma base teórica já testada e reconhecida. Palavras-chave: canção, poesia, rádio, acaso, método. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 35 Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Leonardo Davino de Oliveira A pesquisa que venho desenvolvendo desde a minha graduação em Letras, e de que a minha dissertação de mestrado Pletora de alegria: a aventura frustra e reluzente do país mulato na poesia de Caetano Veloso significou o mais bem acabado resultado, despertou em mim, enquanto pesquisador de literatura e de canção popular mediatizada, a necessidade de verticalizar dados, teorias e dúvidas. Quando terminei o curso de mestrado, quando a dissertação estava para ser defendida, eu compreendi que a pesquisa estava apenas começando. Deparei-me com a sensação de vazio que acomete a maioria daqueles que findam um ciclo existencial. No caso, minha pesquisa sobre a obra do cancionista Caetano Veloso. Paralelo a isso, eu tinha dúvidas em relação ao projeto e ao processo de ingresso no doutorado, além da certeza de que eu estava muito longe de alcançar e desenvolver o conhecimento esperado para um pesquisador de canção. Campo do saber ainda bastante insipiente no Brasil, apesar da riqueza do corpus, e aglutinador de outras ciências: é preciso usar múltiplas chaves de leitura, tendo em vista os cruzamentos interdisciplinares. O objeto canção exige competências para as quais o pesquisador, envolvido exclusivamente com o objeto literário, não está preparado. Propus-me então, como pretendia continuar trabalhando e pesquisando canção popular mediatizada, um desafio: analisar e publicar em um blog a primeira canção que eu ouvisse ao ligar o rádio. 365 canções, portanto, maturadas dia-a-dia. Uma amostra significativa e sintomática da canção difundida pelos meios de comunicação de massa. Sem contar que eu estaria entrando em contato com aquilo que o “povo” está ouvindo, sem que minhas escolhas (atravessadas por (pré)conceitos) atrapalhassem a coleta dos dados, que eu propunha que surgissem ao acaso: com engajamento do corpo. Isso me possibilitaria tanto ouvir as “novidades”, as novas composições, quanto perceber como algumas canções parecem permanecer fixas no cotidiano (sempre renovado) das pessoas, enquanto outras somem. Por que novos intérpretes, e até compositores-intérpretes, regravam “antigos” sucessos (ou não) e dão a estas canções novos significados, mediante a mudança da performance vocal? Que diferenças de significado cada nova leitura (gravação) de uma determinada canção traz? Quais compositores tocam mais nas rádios? Quais são os mais regravados? Estas e outras dúvidas, que destacarei mais adiante, estimularam a formulação do projeto e desenharam sua metodologia. A proposta era ouvir e pensar a primeira canção que tocasse no rádio quando este fosse ligado, independente da hora do dia e de onde eu estivesse (em casa, ou na rua); reservar um tempo para sentar e articular as ideias surgidas a partir da audição daquela canção, também independente da hora e do tempo disponíveis, o que implicaria que alguns textos seriam maiores que outros, mais pela questão de tempo do que pelo fato de o objeto ser mais 36 Rev Gragoata n 29.indb 36 Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso ou menos relevante; e postar em um blog a análise (o texto), a capa do disco em que a canção foi lançada e a letra dela. Além de armazenar tudo em um banco de dados, bem como cada canção (garimpada em sites de música e afins). O acaso, obviamente, é limitado, para dizer o mínimo, no momento em que escolho uma única estação para manter o rádio (de casa, do celular, do computador e do automóvel) sintonizado. Pois, de antemão, ouvinte de rádio, escolhi uma estação em que é possível ouvir um raio maior e diverso dos matizes sonoros brasileiros. Eu precisava de uma estação que cobrisse o maior número de ritmos, compositores e intérpretes: cânones e novatos. Aqui abro um espaço para contar que cresci ouvindo rádio. No interior da Paraíba de então, de onde venho, o sol nascia e morria ao som de repentistas e emboladores. A palavra cantada, portanto, desde cedo me acompanha e me intriga: afinal, que mistério tem a palavra cantada? Como pesquisador, que métodos eu posso criar para melhor abordar um objeto que é tão efêmero quanto, e aqui corro o risco de ser redundante, encantador? Para mim, enquanto criança, ouvir canção significava entrar em contato com o gosto das pessoas ao redor, pois, se todos, em diversas partes do mundo (para mim, criança, o mundo tinha outra dimensão) estavam ouvindo aquilo, no mesmo instante, era porque aquilo tinha alguma importância ontológica. Algo que me deslocava do individual para o coletivo: conectava-me com os outros. Voltando ao meu desafio particular, decidi que o resultado desta investida seria o corpus da minha tese de doutoramento. Mas era preciso me impor critérios, mesmo, e talvez por isso, trabalhando com o acaso. Primeiro precisei aceitar o risco de permanecer trabalhando em setores em que minha competência de formação acadêmica é limitada: como a música e as artes plásticas. Demorei bastante tempo para me encontrar fazendo um curso de Teoria e Percepção Musical. Por outro lado, as capas dos discos, a contraparte visão do projeto, me cobravam atenção e leituras complexas sobre Semiótica da Cultura, entre outras. Tais lacunas eram resolvidas concomitantemente: à medida que os dias corriam, eu estudava a teoria e aplicava, de alguma forma, nas canções analisadas diariamente. Afinal, o exercício faz a interpretação e não pensar tudo com antecipação permite destravar o pensamento. Eu sabia que seria preciso modificar ou ampliar minhas perspectivas e certezas muitas vezes. A canção hoje é matéria de estudo de várias ciências. O pesquisador, portanto, na impossibilidade de dominar todos os saberes, deve escolher campos de abordagens, mas não pode prescindir dos contatos. Daí o papel fundamental que exerce a leitura dos estudos na área da etnomusicologia, que integra musicologia e antropologia, por exemplo. Ela permite a investigação, entre outros aspectos, das vozes portuguesas, indígenas e africanas, além das imigrações, dentro do panorama da entidade sonora Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 37 37 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Leonardo Davino de Oliveira nacional brasileira. Seja como for, urgia a ultrapassagem (com prudência) das disciplinas particulares ao meu conhecimento. E, além disso, havia ainda as disciplinas obrigatórias do curso de doutorado e os textos teóricos não apenas sobre canção, mas sobre literatura e filosofia, campos do saber que sempre atravessam meus pensamentos e meu trabalho. Tudo isso precisava fazer sentido dentro das análises diárias. Por outro lado, eu não poderia “pesar” (ser hermético) nas elucubrações teóricas e filosóficas, afinal meu público, já que o blog é aberto à visitação de qualquer interessado, poderia cobrar mais clareza e objetividade, como de fato em alguns momentos aconteceu. Ao mesmo tempo, eu não poderia me repetir, pois corria o risco de entediar e eu precisava do feedback, já que uma das minhas propostas era entender, também, o processo de recepção da canção mediatizada – aquela que “abole a presença de quem traz a voz e sai do puro presente cronológico, porque a voz é reiterável, indefinitamente, de modo idêntico” (ZUMTHOR, 2000, p. 14). Parti do pressuposto de que se algo canta é porque alguém quer ouvir e deve haver um motivo, mesmo inapreensível verbalmente (na escrita), para isso. O blog é também um canal com outros ouvintes de canção, assim como eu, e não apenas um contato com meus leitores. Os canais informais de comunicação, mediados pelo computador, com o advento da internet, são fundamentais aos pesquisadores pela oportunidade de troca e discussão. Além de, muitas vezes, facilitar o acesso a determinados objetos. O desejo do Projeto 365 Canções surgiu exatamente da vontade de me testar diante da surpresa das canções que surgissem, mas também para sair da zona de conforto na qual, muitas vezes, nos colocamos. Resolvi, assim, criar dois problemas principais que eu deveria responder ao longo dos 365 dias, a saber: a) responder à pergunta: que contribuição o curso de Letras pode oferecer ao estudo de canção, além da “simples” análise das letras?; e b) defender a premissa de que o cantor popular é uma neossereia na era da (re)produção e da mobilidade técnica. Para resolver a primeira questão, precisei mergulhar na leitura de textos de autores que pensam a poesia para além da palavra escrita, tais como: Haroldo de Campos (1979), Octávio Paz (1982), Alfredo Bosi (1983) e Paul Zumthor (1998; 2000), entre outros. Era preciso estabelecer conjunções e disjunções entre os pensamentos destes autores e trazer os resultados para junto do meu pensamento, enriquecendo as possibilidades das análises das canções. Já para desenvolver a minha segunda premissa era preciso um movimento verticalizado maior: a maturação diária das canções ouvidas e analisadas, a leitura atenta dos comentários deixados pelos leitores do blog e a separação, por critérios de 38 Rev Gragoata n 29.indb 38 Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso regravações, recorrência de temas (paisagens ficcionais) e gestos estéticos. Desde cedo eu sabia que não seria tarefa simples: ter a obrigação de escrever um texto inédito e estimulante (para quem lê e para mim, enquanto pesquisador na busca da solução das questões), diariamente (final de semana e feriados, inclusive), era enfrentar problemas como: falta de tempo, de ânimo, de gosto pela música ouvida e de ordem material. Quanto ao gosto, de fato, na medida em que o tempo passa, ficamos mais exigentes. A academia nos impõe posturas que, muitas vezes, nos afastam, no mau sentido, do objeto analisado: a imparcialidade nem sempre traz bons resultados. A oportunidade de analisar canções que eu talvez, pelo gosto, não parasse para analisar, era assustadora e excitante: como ser imparcial e encontrar (ou não) elementos estéticos que singularizassem uma canção da qual eu não gostasse? Eis que me surpreendi revendo meu gosto: confirmando uns e mudando outros. O simples gesto de discernimento me deu a certeza de que o processo da pesquisa estava no caminho certo: trincar fórmulas preestabelecidas de entendimento do meu objeto. Muitas vezes, “grávidos” de muita informação, passamos todo o curso para aplicar (praticar e exercitar) a teoria apenas no final do processo, nos chamados “trabalhos finais”. Eu quis o caminho contínuo, a disseminação perene mais constante: saber seria o resultado das leituras, das audições e das escritas, diárias. Tudo atravessado por tudo: revisto todo dia. Formular e defender a ideia de que o compositor popular é uma neossereia começou a se configurar no momento em que me dei conta de que eu poderia, aos poucos, ir separando as canções por temas, releituras (regravações) e informações que confirmassem minha suspeita. Parti, assim, do preceito de Paul Zumthor quando afirma que “o ponto de vista inicial que faz deslanchar o processo de confirmação, e, se aí couber, o de prova, é da ordem da percepção poética e não da dedução” (ZUMTHOR, 2000, p.11). Em relação às regravações, importava, além do cotejamento, perceber as intenções, não apenas do intérprete, mas do novo sujeito que emergia da nova interpretação. Afinal, uma boa regravação é aquela que investe em pontos que outras gravações não tocaram. Ou seja, quem são os sujeitos, e quais são os sentidos que surgem a cada novo canto de uma mesma canção? Por outro lado eu perguntava às canções: o que as fazia ser sempre novas (e inéditas) para quem as ouve várias vezes? Se na poesia escrita há uma gramática interna singular, era preciso detectar o gesto entoativo singular também. Tentei cindir com a ideia de que haveria uma primeira (e melhor, haja vista servir de modelo) interpretação: há, defini para fins didáticos e metodológicos, o retorno ao mesmo, mas de forma diferenciada. Ou seja, as versões musicais são a verdade de cada voz atendendo a determinada ânsia de dado Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 39 39 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Leonardo Davino de Oliveira público-ouvinte. E aqui tento abolir a ideia de original e puro: “A pureza é um mito”, como Hélio Oiticica grafou na instalação Tropicália, nos idos de 1967. Era preciso, portanto desenvolver uma pesquisa paralela e complementar sobre as sereias. Ao mesmo tempo em que era preciso resistir ao poder encantador delas e da canção, que arrebata o pesquisador, embaçando sua percepção e levando-o a abandonar a análise. Urgia encontrar uma terceira margem: nem se amarrar ao mastro dos (pré)conceitos, nem tapar os ouvidos: não destruir meu objeto, gesto comumente praticado, mas deixá-lo cantar. O episódio das sereias, cantado por Homero (2000) no “canto XII” da Odisséia, ocupa um espaço de particular importância na crítica literária e deve desempenhar importante lugar nos estudos de canção. Seja pelas referências filosóficas nele lançadas, seja pela força do mito em si: a ideia de um canto fundamental e fundador do ser. A quantidade de textos que comentam este episódio é bastante grande. Minha pesquisa precisava ampliar tais abordagens fazendo uma comparação entre as leituras e as interpretações dadas ao público por Theodor Adorno e Horkheimer (1985) e, mais recentemente, Peter Sloterdijk (2003). Sem deixar de mencionar as leituras feitas por Franz Kafka (2002) e Maurice Blanchot (1984). Se “o poeta diz o que o povo quer ouvir”, como o poeta Paulo Leminski declarou em entrevista ao Canal Brasil, penso que o compositor, por sua vez, canta aquilo que o povo quer ouvir. Daí a importância do cotejamento dos dados coletados que permite perceber a reincidência de casos. Obviamente, para fins metodológicos e didáticos, parto de uma generalização – o compositor popular é uma neossereia – a fim de poder perceber as estratégias particulares de cada canção. Entre elas, a presença marcante da canção que canta a si mesma: “objeto olhante e olhado”, como diria Roland Barthes (2003, p. 28). Ora, pensar sobre si, em um país com sérios problemas de identidade e aceitação como o nosso, problemas que, de fato, instituem nossa identidade, como o fazem as metacanções, implica na urgência da análise deste objeto. Nossa canção popular, por vezes, resgata o popular (tradições orais e folclóricas) de um isolamento profundo, promovido pela retórica de certa elite escrita. O cancionista percebe que preservar cegamente uma cultura, ou simplesmente desprezá-la, é uma perversão, em um país tão diverso quanto o Brasil. O cancionista assume função semelhante à da sereia de Ulisses: canta o passado, o presente e o futuro de nossas verdades. Ele assume para si a tarefa da cantar as dores e delícias do povo. Fica claro, assim, que a definição do termo “canção”, na minha pesquisa, tem sua dimensão radicalmente ampliada: cantar à vida, a existência. 40 Rev Gragoata n 29.indb 40 Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso Em carta a Peter Gast, Nietzsche (1888) vaticinou que “a vida sem música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio”. Tal afirmação ressoa em nós, ouvintes de música e de canções, quando percebemos o quanto esta linguagem artística está imbricada à nossa vida. Peter Sloterdijk, filósofo pós-nietzschiano, no livro Esferas I (2003), pensa o ventre materno (microesfera) como esfera sonora pré-natal, pois a mãe, em um nível mais profundo de sentido, canta a vida para o bebê. Ao mesmo tempo Sloterdijk observa que o desenvolvimento da capacidade crítica do espaço compartilhado leva o sujeito, enquanto adulto, a fechar os ouvidos. No entanto, o desejo de ser cantado não cessa. É aqui que entra a importância, por exemplo, dos artistas e, no meu trabalho, do compositor. Com ênfase na canção popular, daquela canção que toca no rádio, propus-me pensar os cancionistas como neossereias na era da reprodução técnica (BENJAMIM, 1980), visto utilizarem o ritmo já existente no mundo e em si para compor; além de conseguirem ter a sensibilidade de captar a necessidade do ouvinte e criar a experiência musical desejada. Ou seja, propus pensar, a partir das audições diárias, em como os compositores podem investir em dado aspecto, a fim de conseguir um determinado efeito no ouvinte, aproximando-os daquilo que Octávio Paz, em O arco e a lira (1982), denominou de poeta: aquele que usa o “tempo e ritmo primordiais” para compor e engendrar, em quem ouve, a sensação de realinhamento (pertencimento) no mundo. Ou, como Nietzsche (1992) definiu, a música como “afirmação da existência”. Os desvios filosóficos que empreendi, como se percebe, serviram para facilitar meu contato com o objeto. Inventariando os dados – as canções (letras e melodias) e as capas dos discos – concentrei minhas preocupações nas formas de separação, por campos de: metacanções e regravações. Não que as canções ouvidas se reduzissem a isso, mas estes seriam, ao final, os eixos temáticos e núcleos duros de minha tese. Aquelas canções que não se encaixavam eram separadas à espera de novos campos efetivamente significativos dentro do projeto. A premissa teórica da metacanção abre o campo de investigação dos diálogos entre as canções: e, como pudemos perceber nos dados coletados, estes diálogos acontecem à mancheia. A metacanção (canção que come a si mesma) se desdobra para fora (toca outras canções ou outras linguagens estéticas) e para dentro (se autorreitera/questiona: letra e melodia). Algumas canções chegam a citar títulos, versos e melodias de outras canções, trabalhando com a herança cancional, além de apontarem para a consciência de que, se tudo já foi cantado, elas cantam sobre a impossibilidade de cantar (algo novo); enquanto outras empreendem discussão interna tão profunda da definição de si que promovem verdadeiros monólogos interiores. Sem dúvida, subjacente, percebi aqui uma das formas de como a área de Letras pode contribuir para as pesquisas de canção: seja pelo desenvolvimento dos estudos sobre Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 41 41 11/7/2011 19:21:35 Gragoatá Leonardo Davino de Oliveira paródia, pastiche e intertextualidade; seja pelas investigações da escrita de si e os limites da representação, por exemplo. Como ouvintes, somos, em alguns momentos, metaouvintes: ouvimos o sujeito da canção ouvindo a si mesmo e ao outro: a própria canção cantar. Uma questão, importante, foi formulada por um leitor do blog: “e se uma canção se repetir?”. Como a proposta era ter um banco de dados com 365 canções, resolvi o problema definindo que, caso, ao ligar o rádio, uma canção já lida/ouvida surgisse, eu passaria para a imediatamente posterior. Isso agradou a mim e aos leitores. Isso particularizava minha proposta. Auerbach (1994) já apontou que somos reconhecidos pelas nossas cicatrizes, quando analisou o Ulisses homérico. Talvez a canção popular, pela pluralidade de temas e ritmos, consiga tocar nossas tais cicatrizes chamando atenção para a individuação do sujeito, mesmo, e talvez por isso, sendo canção popular e transmitida pelos meios de comunicação de massa: afinal, somos diferentes, mas estamos expostos aos mesmos apelos da existência. Aliás, como McLuhan (1969), um dos primeiros a analisar a questão, observou: a canção popular se cria na indústria cultural e de consumo: o meio acaba sendo a mensagem, ou parte dela. Hoje em dia não é mais preciso comprar um disco para curtir uma canção, a não ser os colecionadores e os fãs. Basta comprar apenas as várias músicas de desejo e pronto: cada sujeito monta sua trilha sonora particular. Daí a importância de coletar, publicar e guardar as imagens das capas dos discos cujas canções surgissem. Vale ressaltar que a audição de mais de uma canção, de um mesmo disco, aconteceu. Mas, como nosso investimento analítico era prioritariamente sobre canção, não vimos nenhum problema nisso. Esta relação com as imagens permitiu, de viés, entrar em contato com a cristalização de tempos e espaços: discos “antigos” e “novos” apontando para a fotografia dos instantes em que foram lançados, até porque, “o espaço em que se desenrola a voz mediatizada torna-se ou pode se tornar um espaço artificialmente composto” (ZUMTHOR, 2000, p. 14). A capa fixa o instante. Paralelamente a isso, pude constatar que a distância relacional entre o público e o artista está muito menor, no sentido de mais próxima e acessível. As possibilidades são enormes: a internet explode cada vez mais, e com mais recursos e eficiências, as fronteiras de separação. Assim como as soluções de feitura e de divulgação de uma canção. E, acredito, em um futuro próximo, a renda do artista virá das apresentações e dos produtos paralelos ao disco (este objeto de desejo) propriamente dito. Porém, eu não saberia precisar o nível de vantagem ou desvantagem para cada parte envolvida – cancionista / gravadora / ouvinte. Importa lembrar que a canção popular brasileira há muito rompeu com a distinção entre arte democratizada e arte de elite grafocêntrica. Letra de música não é poesia, e nem quer (nem deve 42 Rev Gragoata n 29.indb 42 Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:35 Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso querer) ser, isto já está claro. Embora uma atividade atravesse a outra, reciprocamente, o que a canção transmite “é percebido pelo ouvido (e eventualmente pela vista), mas não pode ser lido propriamente, isto é, decifrado visualmente como um conjunto de signos codificados da linguagem” (ZUMTHOR, 2000, p. 15). O pesquisador de canção, de formação em Letras, deve criar novos meios de ouvir, avaliar e interpretar canções: incluindo re-historicização e re-espacialização do objeto. A história da canção (como toda a História) é um exercício de ficção. Cada autor/pesquisador investe em determinado interesse ou aspecto, por ora considerado relevante. Processo intrinsecamente inacabado e permanente, a pesquisa não pode prescindir das questões que a motivaram à custa do pesquisador perder o foco de seus objetivos. Cabe a ele fazer o movimento que vai da pesquisa básica, geradora de conhecimentos novos e úteis, ao avanço da ciência, no estabelecimento de novas diretrizes, métodos e meios. Incipientes, os estudos de canção no Brasil precisam de modelos e solicitam olhares novos e livres para o seu imenso potencial: seja pela variedade de ritmos, seja pela convergência de temas, entre outros motivos. Parti da premissa quantitativa das 365 canções, surgidas ao acaso, para criar uma amostragem de informações estéticas, com o objetivo de apontar não só o panorama daquilo que é ouvido hoje, através das frequências modulares, mas, principalmente, da qualidade do nosso cancioneiro popular: por meio da observação sistemática. Quantificar não significa reduzir ou enquadrar os dados, mas, ao contrário, no caso da pesquisa de canção, a possibilidade de cotejar e ler as filigranas do objeto: classificá-lo e organizá-lo. Temas, sujeitos, arranjos, implicamentos da composição (letra e melodia) são alguns dos recursos de distinção estatísticos a ser utilizados pelo pesquisador, no processo de determinar a ocorrência (ou recorrência) dos fenômenos. Daqui se configura a pesquisa qualitativa: aquela que estabelece as relações dinâmicas entre os dados coletados e entre o arcabouço teórico do pesquisador e seu objeto. Manter a dúvida, tal qual o filósofo, muito mais do que achar uma verdade, é o compromisso do pesquisador que participa do levantamento, que se deixa tocar pelo objeto, sem deixar de interrogar diretamente este objeto na expectativa de cumprir os objetivos preestabelecidos. Desde que não limite o conhecimento – e um objeto como a canção, pelo poder encantador pulsante, facilita isto – a mero encaixe do objeto em quadros estanques. O objeto precisa ser cantado, mas também precisa cantar. A experiência do canto, ou melhor, a escrita do acontecimento da experiência do canto é apenas um dos registros necessários para o desenvolvimento do saber. Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 43 43 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá Leonardo Davino de Oliveira A resposta para a pergunta “o que pretendo abordar?” precisa e deve ser enfrentada continuamente. Ainda mais quando o objeto aparece sem que nós tenhamos, a princípio, qualquer domínio sobre ele: assim é a canção popular, que faz parte do exercício diário da vida; emoldura momentos afetivos das formas mais variáveis possíveis, atendendo a diversos apelos do indivíduo. Provar que o cantor popular é neossereia significou eleger, em detrimento de outros aspectos igualmente importantes, uma parcela limitada das possibilidades de ação sobre o objeto: seja por causa do tempo de duração de um curso de doutorado, seja pelo espaço físico limitado onde os resultados da pesquisa serão depositados: a tese. Para tanto, utilizando o gesto barthesiano de “saber com sabor”, é imprescindível que o pesquisador se apaixone pelo objeto, mesmo que, aos poucos, à medida que o processo decorra, o efeito da porção amorosa se desfaça: para tristeza tanto do objeto, quanto do pesquisador e do resultado da pesquisa. O risco do desencanto precisa ser encarado. Limites e restrições vão desenhando o surgimento dos capítulos, pois há prazos a ser cumpridos: o resultado “final” da pesquisa. Obviamente, alguma coisa, ou muito, do que se pretendia investigar ficará de fora e/ou perderá força no meio do caminho. Isso não significa falhas, pelo contrário, quando bem administradas, as perdas das certezas disparam novos caminhos, mais eficazes para o momento. Pesquisar é procurar respostas para inquietações, ou para um problema, que incita o pesquisador: no meu caso, como o curso de Letras pode ajudar no estudo de canção? E como argumentar e desenvolver a ideia de que o compositor popular (mediatizado) é uma neossereia, ou seja, diz (canta) aquilo que o ouvinte quer ouvir? Eu disse acima que a canção necessita de teorias e práticas de investigação e afirmo, sem me contradizer, que o número de livros, sites e outros produtos que tem a canção como mote é enorme. Há, sem dúvida, um interesse claro no tema. Afinal, como também já afirmei acima, a canção é parte integrante de nossa existência. Porém, para o pesquisador que queira chegar a outras camadas, para além da simples descrição e paráfrase, é preciso revisar com atenção a literatura existente sobre a questão. Já é possível encontrar livros que facilitam diversos tipos de abordagens do assunto. Cabe ao pesquisador fazer as escolhas que melhor atendam às suas necessidades momentâneas, sem perder de vista o senso crítico: o mesmo discernimento que ele aplicará sobre o objeto, ele deve aplicar sobre aquilo que já se escreveu e foi publicado sobre o assunto. Só assim o pesquisador de poéticas da palavra cantada, ou de qualquer área do conhecimento, poderá, não só observar as lacunas existentes, mas também propor soluções para elas. Ou 44 Rev Gragoata n 29.indb 44 Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso seja, é a revisão – teórica, empírica, histórica – que determina as diretrizes do futuro da pesquisa, bem como os resultados desta. A formulação adequada do problema a ser solucionado mantém tênue relação com os objetivos esperados. Neste momento, da montagem do projeto, pensei na relevância daquilo a que me propunha pesquisar, ou seja, qual era minha intenção com esta pesquisa, bem como investi na síntese dos caminhos a que os estudos de canção poderiam me levar. Se meu objetivo geral era provar minha tese, eu precisava de objetivos específicos que auxiliassem meu intento. Eram estes objetivos que me explicitariam os detalhes e o desdobramento da minha ideia inicial e geral. Precisei esboçar objetivos específicos na feitura do projeto, mas estes só começaram a ser marcados quando o processo, concomitante, de audição e leitura já estava em andamento. Saber quais os resultados que pretende alcançar ou qual será a contribuição significativa da pesquisa é ação que só se configura efetivamente no processo de captação das amostras acidentais, pelo menos foi assim no meu caso. Com custo financeiro relativamente barato, a pesquisa de campo e a coleta de dados, por outro lado, forçam certo isolamento do pesquisador. Nada que cause espanto em um mundo onde cada indivíduo-ouvinte pode levar sua sereia particular no bolso, basta ter um celular e acessar uma estação de rádio, ou baixar as músicas que bem quiser (aquelas que melhor cantem o ouvinte) e montar uma trilha sonora pessoal e intransferível. Esta imposição do objeto deve ser enfrentada com a ida, sempre que possível, a espaços onde a canção possa ser consumida “ao vivo”, ou onde ela repouse guardada: daí a importância dos shows (de onde os artistas têm tirado seus sustentos, com a crescente defasagem do mercado das gravadoras de disco), espaços de contato direto não só com o cancionista e sua performance, mas também com o público que, assim como o pesquisador, a princípio, consumiu a canção pelo rádio: o show é a percepção do canto pelos cinco sentidos; além de lugares como museus e institutos que trabalham com a preservação da memória da palavra cantada, fonte de muitos cancionistas contemporâneos. O pesquisador de canção precisa, portanto, sair da zona de conforto, segura, mas limitadora, do fone no ouvido e deixar o corpo se embalar e transpirar na busca de pensamentos corajosos que estimulam (e/ ou confirmem) a construção de hipóteses. Neste momento entra também o trabalho laborioso do pesquisador em distinguir quais procedimentos são empregados no estudo de problemas semelhantes ao seu e como tais fatores afetam nos resultados. Mais uma vez surge a importância da revisão bibliográfica. Ela mostra a evolução dos conceitos dentro do estudo de determinado objeto e aponta para a obtenção de informações sobre a situação atual do tema em pesquisa. Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 45 45 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá Leonardo Davino de Oliveira Para tabular e apresentar os dados de 365 canções, devido à diversidade de informações, foi imprescindível a anotação e a notação diária, que iluminaram os resultados do processo dentro do processo. O aspecto final depende da organização, desde o princípio, da coleta. O computador, com os vários recursos disponíveis (elaboração de tabelas e índices), facilita na armazenagem, mas cabe ao pesquisador cotejar, separar e direcionar os dados. A organização facilita a interpretação e a análise: momentos em que o pesquisador estabelece relação entre aquilo que foi coletado e os objetivos do projeto. De fato, nenhuma canção deixou de ter significado: se tivéssemos a possibilidade temporal e espacial de ilimitar nosso arco investigativo, mas é preciso rejeitar ou confirmar objetivos. Retornar aos pressupostos que motivaram a pesquisa facilita a síntese dos resultados. Os excedentes, ao contrário do que possa parecer, não atrapalham o resultado final. Pelo contrário, eles apontam que a pesquisa conseguiu progredir e tais “sobras” significam que o objeto ainda tem frentes de abordagens a ser investigadas, por outros pesquisadores, ou pelo mesmo pesquisador, noutro momento. Ou seja, os excedentes revigoram a pesquisa científica. Meu gesto aqui teve a intenção de esboçar um percurso, o qual se desenvolveu como metodologia, ainda (e sempre) em estado de progressão, sobre a importância dos estudos do papel da canção (da palavra cantada) popular mediatizada dentro dos cursos de Letras: colocando-me como pesquisador e ouvinte. Dito isto, este trabalho pretende contribuir para mostrar caminhos que diminuam a carência de métodos de abordagem da canção; investir na reconciliação entre poesia e canção, já que o estudo desta pode oferecer àquela o caráter original (retorno) de ser percebida pelos cinco sentidos; e, como ambição pessoal, chegar a comprovar a tese de que o cancionista popular é uma neossereia na era da reprodução e da mobilidade técnicas. A ambição é grande; os riscos também; mas o desejo e a vontade são maiores. Abstract The paper reports and discusses a particular methodological procedure used by the author. However, the lack of media approaches the issue of poetic singing words, particularly the popular song the media, can be used by other researchers. The goal is to show how data collection at random, by radio, can help to restore the relationship between poetry and song, through the integration of elements such as the presence of the body in search and loving relationship between the researcher 46 Rev Gragoata n 29.indb 46 Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso and the object, articulated the use of a theoretical base has been tested and recognized. Keywords: song, poetry, radio, random, method. Referências AUERBACH, Ereich. Mímesis. São Paulo: Perspectiva, 1994. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980. ______. Crítica e verdade. 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São Paulo: Educ, 2000. 48 Rev Gragoata n 29.indb 48 Niterói, n. 29, p. 35-48, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica filosófica e a questão do compreender Paulo Cesar Duque-Estrada Resumo Este artigo pretende oferecer uma apresentação sintética de uma parte da longa narrativa histórico-filosófica desenvolvida em Verdade e Método, na qual Gadamer se refere ao aparecimento do ideal de método no decorrer da história da hermenêutica clássica. O objetivo aqui perseguido é situar a incompatibilidade existente, segundo Gadamer, entre, por um lado, o ideal de método voltado para o tratamento de objetos históricos e, por outro, o fato deste mesmo ideal de método encontrar-se originariamente enraizado no modelo romântico da interação entre indivíduos pertencentes a uma mesma experiência histórica. Palavras-chave: Hermenêutica, Método, História, Subjetividade. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 49 Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá Paulo Cesar Duque-Estrada O presente artigo pretende situar em linhas gerais a reflexão que, em sua obra monumental, Verdade e Método, Gadamer dedica à questão do método. Na esteira de Schleiermacher e Dilthey, a reflexão de Gadamer segue o movimento de uma contínua explicitação, para além de suas práticas pontuais e concretas, do fenômeno hermenêutico. Dentro de um certo recorte, e a partir do tema de sua desregionalização, tentarei acompanhar a narrativa histórico-filosófica de Gadamer sobre a hermenêutica e suas prévias implicações com o ideal de método. Desregionalização e universalidade do fenômeno hermenêutico Gadamer, H-G: Verdade e Método., p. 277., ligeiramente modificado. Wahrheit und Methode. 2. Auflage, p. 165. Daqui por diante referido como VM. Havendo dois números de página para uma mesma citação, o primeiro número se refere à tradução brasileira. 1 50 Rev Gragoata n 29.indb 50 O termo “desregionalização da hermenêutica” se refere ao processo em que ela se emancipou de uma função meramente acessória, enquanto foi entendida como um simples conjunto de regras auxiliares de interpretação. Tais regras deveriam ser aplicadas apenas ocasionalmente, nos casos excepcionais onde a leitura se via diante de passagens obscuras que comprometiam a compreensão de um texto. Era assim que, até então, cada disciplina humana como a Filologia, a Teologia, ou o Direito, possuía, como um apêndice, o seu próprio conjunto de regras hermenêuticas, de acordo com as características específicas de seu campo de investigação. Mas, com a falência da função normativa que a tradição exercia sobre tais disciplinas – são exemplos disto o paradigma que a Antiguidade Clássica representou para a Filologia; ou a autoridade que a tradição dogmática da igreja representou para a teologia –, a compreensão que elas, tais disciplinas, proporcionavam passou a se desprender de sua função meramente servil de garantir continuidade às formas tradicionalmente legitimadas de transmissão, e a se afirmar, por si mesma, como uma questão. Ou seja, não a coisa compreendida mas o compreender de alguma coisa veio a se configurar como questão. É neste sentido que Schleiermacher iniciou um projeto, retomado posteriormente por Dilthey, de estabelecimento do que constituiria os princípios universais da hermenêutica. Progressivamente, de Schleiermacher a Dilthey, a hermenêutica irá se afirmar como um método de aplicação universal para realização do compreender (Verstehen). É assim que Dilthey, como observa Gadamer, sustentava a necessidade da hermenêutica “ter que começar a desvencilhar-se de todas as suas limitações dogmáticas e liberar-se a si mesma para elevar-se ao significado universal de um organon histórico”.1 A novidade que resulta deste processo – de desregionalização que é também e ao mesmo tempo de sua própria universalização – será exatamente esta: a reflexão hermenêutica passa a se separar das operações locais de aplicação de regras auxiliares para a compreensão dos conteúdos transmitidos pela tradição, e a se voltar para os aspectos fundamentais subjacentes ao fenômeno mesmo da compreensão. Schleiermacher e Dilthey representam dois momentos decisivos deste processo. Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender Schleiermacher: da ocasionalidade à permanência da relação entre compreensão e interpretação Cf., VM., p. 286; 171. VM., p. 276 ligeiramente modificado; 164. 2 3 A mudança de enfoque – dos conteúdos transmitidos pela tradição para os elementos que entram em jogo na compreensão dos mesmos – foi levada a cabo por Schleiermacher, através de uma retomada do modo de se pensar a relação entre interpretação e compreensão. Até então, a interpretação compunha justamente aquele conjunto de procedimentos que deveriam ser aplicados apenas ocasionalmente, nos momentos em que o encontro com alguma passagem obscura de um texto comprometia a imediata compreensão de seu conteúdo. Gadamer situa em Spinoza e Claudenius dois exemplos deste caráter ocasional atribuído à interpretação. Spinoza entendia a interpretação como um procedimento metódico que se punha em prática sempre que se pretendesse remover as obscuridades que impediam a compreensão que deveria resultar naturalmente da leitura de um texto. O seu método interpretativo visava inferir o que o autor queria dizer a partir dos dados históricos retirados do contexto em que ele vivera. Claudenius, por sua vez, também percebia a compreensão como resultante de toda e qualquer aproximação a um conteúdo já previamente familiar. A interpretação, ao contrário, só era necessária nos casos excepcionais em que uma determinada passagem se mostrasse ininteligível. O seu procedimento interpretativo apresentava, aliás, uma função pedagógica: no ato da interpretação, o mestre deveria se acomodar à perspectiva do aluno, acrescentando os conceitos necessários para a plena compreensão de uma passagem.2 Em ambos os casos, tanto em Spinoza quanto em Claudenius, sempre que um procedimento interpretativo se fizesse necessário ele deveria se orientar por um antigo princípio hermenêutico, o princípio universal da interpretação textual, já conhecido pela tradição da retórica clássica e incorporado por Lutero e seus sucessores. Segundo tal princípio, “todos os detalhes de um texto devem ser compreendidos a partir do contextus, do conjunto, bem como do sentido unitário para o qual o todo [do texto] está orientado, o scopus.”3 A seguinte circularidade encontrava-se envolvida neste princípio: as partes de um texto deveriam ser compreendidas à luz do todo do texto que, por sua vez, adquiria o seu sentido através da compreensão acumulativa de cada uma de suas partes individuais. Este mesmo princípio permaneceu válido para Schleiermacher como também para o desenvolvimento posterior da reflexão hermenêutica na obra de Dilthey. Mas Schleiermacher, no entanto, opera uma transformação no modo de se perceber a relação entre compreensão e interpretação; transformação esta que supõe uma re-colocação, em bases completamente distintas, daquele antigo princípio hermenêutico. Tal princípio, como já Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 51 51 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá Isto é, do que não é da ordem do esperado. 5 VM., p. 281; 167. 6 “superação de mal-entendidos”; outra forma de se referir ao vínculo inseparável entre compreensão e interpretação. 7 VM., p. 290 ligeiramente modificado; 174. 8 Ou seja, a cada instante pode-se interferir - interpretativamente - no desenrolar de uma situação de conversa a fim de se preservar ou restaurar a mútua compreensão entre os seus participantes. 4 52 Rev Gragoata n 29.indb 52 Paulo Cesar Duque-Estrada disse, era observado apenas ocasionalmente, quando o encontro com alguma passagem obscura comprometia a compreensão de um texto. Schleiermacher, por sua vez, e por contraste, passa a não mais perceber a situação de um mal-entendido, ou seja, de uma interrupção no fluxo da compreensão, como uma situação ocasional, esporádica. Ao contrário, o mal-entendido, segundo ele, constitui uma experiência humana universal. Não que a compreensão, para ele, seja impossível mas sim que “a experiência do que é estranho4 e a possibilidade do mal-entendido é universal.”5 De acordo com esta perspectiva, o que ocorre, de um modo imediato, não é o livre fluir da compreensão mas sim o mal-entendido. Isto quer dizer, no que se refere à relação entre compreensão e interpretação, que esta última passa a ser percebida não mais como um processo acionado episodicamente mas, antes, o tempo todo. Compreensão e interpretação mostram-se, assim, como dois momentos inseparáveis no âmbito da comunicação que se faz através da linguagem. Nesta última, cada ato de compreensão é também um ato de interpretação e vice-versa. A tarefa que, a partir de então, passa a ser atribuída à hermenêutica é a de reproduzir, num plano metodológico, o mesmo processo de superação de malentendidos6 que ocorre o tempo todo no transcorrer espontâneo da comunicação humana. O caráter geral da hermenêutica afirmado por Schleiermacher consiste, pois, precisamente nisto: no fato de o mal-entendido, por um lado, e o processo de sua superação, por outro lado, dizer respeito ao próprio desenrolar da comunicação humana; não constituindo, portanto, um fenômeno isolado, restrito ao âmbito da leitura de textos. Com tal posicionamento, Schleiermacher se contrapõe à prática dos estudos hermenêuticos que, até então, limitavam os seus respectivos campos de investigação ao domínio da palavra escrita e, mais especificamente, em línguas estrangeiras. Ele contesta, “como se a mesma coisa [ou seja, o acontecer de um mal-entendido acompanhado de um esforço simultâneo por superá-lo na realização de uma efetiva mútua compreensão] não pudesse ocorrer igualmente na conversação e no ouvir imediato de um discurso.”7 Mas enquanto a comunicação oral se processa através da participação interpretativa dos agentes envolvidos em uma situação de conversa8, na recepção de textos escritos, ao contrário, a ausência do autor, por um lado, bem como, por outro lado, a objetivação de suas palavras em estruturas estáveis de sentido que, repetidamente, podem ser lidas para além do contexto originário em que o seu discurso foi expresso; esses dois aspectos, por si mesmos, já indicam uma interrupção no fluxo interpretativo da compreensão. Interrupção esta que é estrutural à recepção e, portanto, à transmissão dos textos escritos. É aqui que a hermenêutica, enquanto disciplina metódica, se faz necessária para, a partir de tal interrupção, restaurar a continuidade do processo interpretativo da compreensão. Este Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender ponto de partida da hermenêutica romântica inaugurada por Schleiermacher será decisivo na determinação do caráter ético da hermenêutica filosófica de Gadamer. Também para o autor de Verdade e Método, a hermenêutica se associa à tarefa de garantir permanência ao processo interpretativo da compreensão. Como diz: “a hermenêutica pode designar uma capacidade natural do homem, isto é, a capacidade de um contato compreensivo com os homens.” 9 O método interpretativo e o paradigma do vínculo ético Cabe observar que esta generalização do fenômeno hermenêutico - por parte do pensamento de Schleiermacher, alçando-o à condição de método de interpretação – ocorria dentro de limites muito precisos. Ela se dava no âmbito dos estudos teológicos. O método de Schleiermacher se estruturava em dois níveis: interpretação gramatical e interpretação psicológica. Na interpretação gramatical, o intérprete deveria levar em conta a influência que a totalidade previamente dada da linguagem exerce sobre o autor, bem como a influência que uma determinada literatura exerce sobre uma obra particular.10 Na interpretação psicológica – que Gadamer considera a principal contribuição de Schleiermacher devido à influência decisiva que ela teve sobre os teóricos do século xix e, particularmente, em Dilthey -, o intérprete deveria considerar o texto como expressão de uma parte da vida do autor. Ambas as formas de interpretação se orientavam pela já referida circularidade entre as partes e o todo. Como sintetiza Georgia Warnke, a propósito da primeira forma de interpretação: Gadamer, H-G: “Hermenêutica como Filosofia Prática”; in A Razão na Época da Ciência, p. 61. 10 Cf. VM., p. 291-292; 174-175. 11 Warnke,G: Gadamer: Hermeneutics, Tradition and Reason, p. 13 (minha tradução). 12 Cf. VM., 292; 175. 13 Em outras palavras, o objetivo do interprete consistia em encontrar um acesso ao processo original de criação da obra com base em um “ato divinatório”. Nesta perspectiva, como sintetiza Gadamer, a compreensão passa a ser percebida como “uma reprodução referida à produção original, uma pós- con st r ução, que parte do momento vivo da concepção (...).” VM., p. 292; 175. A interpretação gramatical busca determinar os sentidos das palavras em função das frases em que elas se encontram como uma de suas partes constitutivas, e as frases em função da obra como um todo; finalmente, [a interpretação gramatical] situa a obra mesma no contexto de seu uso lingüístico e do gênero literário ao qual ela pertence. Ao mesmo tempo, a compreensão das frases, da obra, do gênero literário e do uso lingüístico se constitui através da compreensão das partes menores que compõem aquelas totalidades maiores.11 9 A interpretação psicológica, por sua vez, de acordo com a mesma lógica da interpretação gramatical, visa compreender cada estrutura de um pensamento que se encontre expresso e objetivado em uma determinada obra como um elemento integrante de uma totalidade maior que constitui o contexto da vida de seu autor.12 O pertencimento ao processo universal da vida que inclui os dois, autor e intérprete, permitiria ao último se transportar, via imaginação, para as experiências e pensamentos que engendraram a obra. Seria, deste modo, possível ao intérprete re-atualizar a mesma situação original em que a obra havia se revelado enquanto manifestação única da vida do autor.13 O pertencimento a uma totalidade é a condição que, em última ou primeira instância, garante a possibilidade de superação dos Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 53 53 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá 14 “As nossas experiências das coisas, e mesmo da vida diária, dos modos de produção, e, sim, também da esfera de nossas preocupações vitais, são, de todo, hermenêuticas.” Carta a Richard Bernstein; in Bernstein, R: Beyond Objectivism and Relativism., p. 263 (minha tradução). Sobre este tópico, cf. a seção “O problema hermenêutico da aplicação” de VM. 54 Rev Gragoata n 29.indb 54 Paulo Cesar Duque-Estrada mal-entendidos. Assim, em ambas as formas de interpretação, gramatical e psicológica, a superação de uma dificuldade inicial que um intérprete possa ter em sua tentativa de compreender uma obra é possibilitada pelo fato dele pertencer, de algum modo, à mesma totalidade na qual o autor original se encontra igualmente inserido. Na interpretação gramatical, trata-se da totalidade da linguagem que permite ao intérprete mover-se para além de seu meio lingüístico e introduzir-se na gramática e no gênero literário referentes ao autor original. Na interpretação psicológica, trata-se da totalidade da vida que, ao reunir todos os indivíduos, se constitui sempre e já como a condição por excelência para a mútua compreensão que se dá entre eles. Nos dois casos, isto quer dizer o seguinte: a alienação - o encontrar-se diante do que é outro, de outra ordem, do que não responde ao esperado ou responde de modo inesperado - é sempre acompanhada da possibilidade de sua superação, via interpretação, no restabelecimento de uma mútua compreensão. No trânsito interpretativo entre esses dois momentos, da alienação e da compreensão, o fenômeno hermenêutico segue em sua dinâmica circular do todo para as partes e vice-versa. Gadamer não deixará de se apoiar nesta dinâmica ao sugerir uma produtividade própria à verdade que, em VM, ele sustenta como mais originária, anterior à esfera da objetividade. O traço essencial a tal produtividade consiste no fato de o todo e as partes sempre se repetirem diferentemente, ou seja: o todo se re-integra a cada vez através de suas partes constitutivas que ocorrem sempre de um modo novo, segundo o caráter singular, “aqui e agora”, de cada situação que, por sua vez, é sempre e já compreendida enquanto tal à luz de uma totalidade cambiante, ou seja, uma totalidade que não é jamais a mesma, estática e auto-idêntica totalidade. A produtividade sugerida por Gadamer consiste justamente nesta determinação recíproca do todo e das partes que, aliás, é o que o seu conceito de “aplicação” quer dizer. Mais originária do que a aplicação metódica de uma lei ou regra, a aplicação, no sentido gadameriano desta recíproca determinação, diz respeito ao próprio movimento de realização da práxis humana que é o que ele se propõe a pensar em sua hermenêutica filosófica.14 Mas voltemos à nossa apresentação. Encontramos-nos a caminho do momento em que a hermenêutica passa a assumir plenamente para si o ideal de um método universal do compreender; o que ocorre com Dilthey, mas não sem a influência da escola histórica. A escola histórica: o paradigma do vínculo ético para além da relação entre autor e intérprete. Na perspectiva da passagem do projeto de Schleiermacher para o de Dilthey, a importância da escola histórica (Ranke, Droysen), segundo Gadamer, reside no fato dela ter preservado e Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender reafirmado, em uma dimensão mais ampla, aquele mesmo traço, encontrado em Schleiermacher, de um vínculo ético intrínseco à condição originária de mútua compreensão. Este vínculo ético é, portanto, preservado e pensado de uma forma mais ampla pela escola história. Da ampliação: a escola histórica promoveu, em relação a Schleiermacher, uma ampliação do campo de investigação que, da intenção de um texto - mais precisamente, do que o seu autor tinha em mente -, se deslocou para o âmbito da história. Com esta mudança, o que passa a interessar já não diz respeito à significância da individualidade de um autor para o intérprete, mas sim do passado de uma tradição para o presente. Da preservação: apesar da mudança, o mesmo princípio hermenêutico do todo e das partes que valia para a interpretação textual - ou seja, para a interpretação do que o autor quis dizer seguiu válido para a interpretação da história. Como diz Gadamer: “o esquema fundamental, em conformidade com o qual a escola histórica pensa a metodologia da história universal, não é pois nada mais que o que é válido face a qualquer texto. É o esquema do todo e das partes.”15 Isto quer dizer também, em outros termos, que as operações hermenêuticas que se voltavam para o domínio da história seguiram obedecendo a mesma lógica das operações hermenêuticas que tinham por paradigma a individualidade do autor. Assim, do texto, enquanto obra da individualidade de um autor, à história, enquanto significância do passado relativa ao presente, o esquema do vínculo ético com o outro – pensado por Schleiermacher nos termos da relação entre autor e intérprete e com base, como vimos, no modelo da interação entre os participantes de uma conversa - é preservado e re-situado em uma esfera mais ampla. Com tal ampliação do campo da interpretação,16 a escola histórica se viu diante da seguinte dificuldade: como submeter a história à reflexão metódica? Se, no âmbito do método interpretativo de Schleiermacher, a transmissão do sentido em questão era pensada com base na experiência (Erlebnis) do autor que, via imaginação, deveria ser re-atualizada pelo intérprete; agora, com o novo cenário aberto pela escola histórica, não há mais lugar para a experiência vivenciada e re-vivenciada por indivíduos. Aqui a transmissão do sentido se propaga através de um nexo histórico que, no dizer de Gadamer, “já não é vivido nem experimentado por indivíduo algum”.17 Mas será com Dilthey que tal problema receberá uma clara formulação. VM., p. 307; 186. Ampliação que é também do campo da teologia para o campo da “história universal”. 17 VM., p. 343; 210. 15 16 Dilthey: explicitação da afinidade do método historiográfico com a hermenêutica romântica. Não foram os representantes da escola histórica, segundo Gadamer, mas sim Dilthey quem percebeu com toda a clareza a Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 55 55 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá Paulo Cesar Duque-Estrada semelhança estrutural entre a interpretação textual e a interpretação histórica. Assim, ele pôde realizar que a questão sobre como submeter a história à reflexão metódica deveria ser recolocada no interior do próprio âmbito em que ela, tal questão, tomava corpo; ou seja, o âmbito do princípio hermenêutico do todo e das partes. Na verdade, além da semelhança, tratava-se ainda de uma interpenetração, se assim podemos dizer, entre as estruturas da interpretação textual e da interpretação histórica: VM., p. 307; 186., modificado. 19 VM., p. 308; 186., ligeiramente modificado. 20 “Com essa transferência da hermenêutica para a historiografia, Dilthey torna-se o intérprete da escola histórica. Ele formula o que Ranke e Droysen, no fundo, pensavam.” VM., p. 308; 186, 21 O termo “metafísica da individualidade”, na a rg umentação de Gadamer, reporta a um legado, por assim dizer, da hermenêutica de Schleiermacher. Arrisco uma breve descrição da “lógica” interna a tal metafísica do seguinte modo: antes de tudo, a individualidade é tomada como um segredo que jamais pode ser completamente explicado; ou seja, há sempre algo em toda individualidade que permanece opaco às perspectivas, valores e verdades da vida corrente. Numa palavra, há, em cada indivíduo, uma alteridade em relação a todos os outros indivíduos. Mas, ao mesmo tempo, a individualidade de cada indivíduo é também uma manifestação da universalidade da vida. Schleiermacher vai afirmar, neste sentido, que cada indivíduo traz em si uma diminuta parcela de todos os outros indivíduos. Assim, além da alteridade, há também familiaridade e, conseqüentemente, a possibilidade de um indivíduo se transportar para o lugar de um outro. É isto o que, para Schleiermacher, constitui fundamentalmente o ato do compreender. Cf. VM., p.294-297; 177-179. 22 VM., p. 308; 186. 18 56 Rev Gragoata n 29.indb 56 A interpretação histórica pode servir como meio para compreender a coesão interna de um texto, embora, na perspectiva de um outro interesse, ela [a interpretação histórica] possa ver o texto apenas como uma fonte que se integra no todo da tradição histórica.18 Com base nesta constatação, Dilthey foi capaz de retomar a hermenêutica romântica e ampliá-la, “até fazer dela uma metodologia histórica e até uma teoria do conhecimento das ciências do espírito”19, logrando, assim, explicitar e aprofundar a reflexão iniciada pela escola histórica.20 Isto, para Gadamer, significa algo muito importante; precisamente, que a hermenêutica romântica e seu pano de fundo, a metafísica panteísta da individualidade21 foram determinantes para a reflexão teórica da investigação da história no século xix. Isso foi decisivo para o destino das ciências do espírito e para a concepção do mundo da escola histórica.22 Conclui-se, portanto, que entre o princípio hermenêutico do todo e das partes e o ideal de cientificidade perseguido pela pesquisa histórica não há ruptura e sim continuidade. A distinção entre explicar e compreender. Dilthey poderá, a partir daí, estabelecer uma distinção entre a experiência que é própria das ciências humanas e a experiência das ciências da natureza. Nestas últimas, a experiência constitui o momento em que uma hipótese a respeito de um dado fato vem a ser confirmada ou não. Mas, no plano das ciências humanas, o que se dá à investigação nunca é alguma coisa fixa ou completamente estranha, mas sim algo feito. Por esta razão, a estrutura da experiência comporta uma interioridade histórica que a diferencia da experiência das ciências da natureza. Com base nisto, Dilthey vai afirmar dois tipos distintos de conhecimento: a explicação (Erklärung), própria às ciências da natureza, e a compreensão (Verstehen), própria às ciências humanas. Na explicação, o conhecimento dos objetos naturais é obtido isolando-se relações entre causa e efeito dos conteúdos sensíveis da percepção. Os vários âmbitos de tais relações constituem os diferentes contextos (leis, princípios, etc) à luz dos quais as coisas do mundo familiar são apreendidas (explicadas) na condição de objetos de investigação das ciências da natureza. Por sua vez, na Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender compreensão, o conhecimento de um objeto histórico se ancora na homogeneidade entre o objeto investigado e o contexto à luz do qual ele, o objeto, se mostra enquanto tal. Isto quer dizer que, em contraste com o isolamento de um campo de relações causais através de operações intelectuais, como ocorre nas ciências da natureza, o contexto que antecipa a inteligibilidade do objeto de uma investigação historiográfica não se dá por abstração, quer dizer, por meio de construções intelectuais, mas, antes, através do sofrimento e da instrução (das Leiden und die Belehrung) que o sujeito do conhecimento recebe de sua própria vida histórica. E é com base nesta última que o sujeito já se encontra relacionado ao objeto de sua investigação. No dizer de Dilthey, “a primeira condição de possibilidade da ciência da história consiste em que eu mesmo sou um ser histórico, em que aquele que investiga a história é o mesmo que a faz.”23 O inseparável envolvimento com o objeto não constitui aqui uma carência em relação ao poder de objetivação das ciências da natureza. Comparado com o explicar das ciências da natureza, o compreender se apresenta como um outro tipo de conhecimento que se funda, como sua condição primeira, não no isolamento de relações causais intelectualmente construídas, mas, antes, no fluxo histórico da vida mesma. Estabelecimento do método científico da compreensão Apud Gadamer; VM., p. 340; 209. 23 O primeiro aspecto, na realização do compreender - ou seja, do conhecimento de objetos históricos com base na universalidade de um método – consiste na vivência imediata subjacente a cada manifestação da vida de um indivíduo. Dilthey reconhece o caráter contingente das vivências; algo que, de pronto, poderia barrar qualquer pretensão de universalidade. No entanto, a contingência, segundo ele, não é a primeira e última verdade das vivências. Basta ter em mente que elas ocorrem sempre no âmbito de uma coesão ou “con-juntura” (Zusammenhang) que constitui a continuidade da vida do indivíduo. É esta coesão, a que Dilthey se refere com o conceito de “estrutura” (Gebilde), que constitui o elemento de estabilidade, ou de continuidade, que torna possível a realização do conhecimento. A estrutura será, assim, afirmada em distinção às relações causais; a primeira como âmbito do conhecimento de objetos históricos, a segunda como âmbito do conhecimento de objetos naturais. No primeiro caso, a base da continuidade garantidora de conhecimento não consiste na seqüência de relações causais, mas nas vivências efetivas dos indivíduos. Do ponto de vista metodológico, tal diferença pode ser estabelecida do seguinte modo: ao contrário das relações causais, que não podem ser vistas no fenômeno que é por elas regulado, mas apenas deduzidas, as relações históricas podem ser vistas como partes de um todo estrutural – ou seja, como partes componentes de um fato histórico. Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 57 57 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá Paulo Cesar Duque-Estrada Gadamer oferece a seguinte ilustração deste “nexo estrutural” que, aliás, constitui o que Dilthey entende por significado: ... uma estrutura psíquica, como por exemplo, um indivíduo forma a sua individualidade na medida em que desenvolve suas tendências naturais ao mesmo tempo em que sofre o efeito condicionador das circunstâncias. O que daí resultará, a própria “individualidade”, isto é, o caráter do indivíduo, não é uma mera conseqüência dos fatores causais, nem pode ser entendida meramente a partir dessa causalidade, mas representa uma unidade compreensível em si mesma, uma unidade vital que se expressa em cada uma de suas manifestações e que pode, por isso, ser compreendida a partir de cada uma delas. Independentemente da ordem das relações de causa e efeito (der Ordnung des Erwirkens) algo se integra aqui em uma configuração única.24 Numa palavra, ao contrário da causa que não pode ser vista a partir de seu efeito, a unidade do todo da vida de um indivíduo não permanece oculta mas sim expressa em cada uma das manifestações deste mesmo indivíduo. Expressão é, aliás, um termo chave em Dilthey. Ele significa a simultaneidade entre a imediaticidade de uma expressão e a mediaticidade do que é expresso na expressão. Como diz Gadamer, o que é expresso na expressão “está presente na expressão mesma (im Ausdruck selbst) e é compreendido quando a expressão é compreendida.”25 Há que se notar, contudo, que o conhecimento obtido aqui, com base na continuidade da vida de um indivíduo, não é ainda histórico mas biográfico. O conhecimento histórico requer, assim, um salto para além do nível psicológico das vivências ou experiências particulares de um indivíduo, a fim de se alcançar o momento da experiência histórica – que não é experiência de nenhum indivíduo particular. Do plano psicológico ao plano lógico do sujeito da história: a vida histórica. VM., p.344-345; 212., ligeiramente modificado. 25 VM., p344; 211 , ligeiramente modificado. 26 VM., p. 343; 211., modificado. 24 58 Rev Gragoata n 29.indb 58 Dilthey reconhece a insuficiência que significa permanecer no plano das vivências de indivíduos reais e que, portanto, apesar de seu compromisso com as vivências - e não com construções intelectuais, apriorísticas, das ciências naturais -, é necessário postular a existência de sujeitos lógicos - não reais - no campo da investigação histórica. Isto não significa, contudo, uma invalidação de seu projeto. Gadamer: Dilthey vê claramente essa dificuldade. Mas responde a si mesmo que isso não pode ser inadmissível em si, na medida em que a pertença mútua dos indivíduos a um todo – por exemplo, na unidade de uma geração ou de uma nação – representa uma realidade espiritual (eine seelische Wirklichkeit) que teria de ser reconhecida como tal, precisamente porque não se pode retornar para trás dela a fim de explicá-la.26 Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender Esta passagem, do plano dos sujeitos reais (wirklicher Subjekte) ao plano lógico do sujeito histórico, constitui o momento de transição, no projeto de Dilthey, da fundamentação psicológica para a fundamentação hermenêutica das ciências humanas. A questão epistemológica que Dilthey terá que responder, para poder realizar com sucesso esta transição, será a seguinte: de que modo uma coesão – ou “con-juntura” (Zusammenhang) –, que não é a vivência de nenhum indivíduo em particular, pode ser conhecida? Ele tentará responder à questão lançando mão dos mesmos conceitos já desenvolvidos na “etapa psicológica” de sua análise. Assim como os momentos pontuais da experiência (Erlebnis) de um indivíduo encontram-se reunidas no todo coeso de sua própria vida, do mesmo modo, as experiências históricas encontram-se reunidas no todo coeso de uma determinada vida histórica. Os conceitos de expressão e estrutura seguirão válidos também aqui, neste segundo momento. Juntos, eles vão constituir o seu conceito mais amplo de “vida”. Dilthey fará do conceito de vida a base de sua hermenêutica das ciências humanas. Contra a perspectiva idealista, ele percebe a idealidade do significado como situada não no plano do sujeito transcendental, mas na efetividade histórica da vida. Ora, se a vida pode, assim, ser afirmada como o solo das ciências humanas, isto quer dizer que ela, a vida, comporta a sua própria inteligibilidade. O mesmo esquema do todo e das partes entra novamente em cena: a vida [o todo] se objetiva [se expressa] em estruturas estáveis de sentido [obras de arte, leis, enfim, textos] que são transmitidas através das situações particulares [partes do todo] em que elas, tais estruturas, são compreendidas. Sobre a estrutura hermenêutica deste processo, diz Gadamer: É a vida mesma que se desenvolve e se configura rumo a unidades compreensíveis, e é o indivíduo particular que compreende essas unidades como tais. ... O nexo (Zusammenhang) da vida tal como se oferece ao indivíduo ... se fundamenta na significância de determinadas vivências (Erlebnisse). A partir delas, como a partir de um centro organizador, constitui-se a unidade de um decurso de uma vida, do mesmo modo em que uma melodia adquire o sentido de sua forma – não a partir da mera sucessão de tons passageiros, mas a partir dos motivos musicais que determinam a sua unidade formal.27 Mais sinteticamente, A própria vida, essa temporalidade em constante fluir, está voltada à configuração de unidades de significado duradouras. A própria vida se auto-interpreta. Tem estrutura hermenêutica. É dessa forma que a vida constitui a verdadeira base das ciências do espírito.28 VM., p.342; 210., ligeuramente modificado. 28 VM., p. 345-346; 21227 No entanto, apesar de todas as suas inovações possibilitadas pelos seus conceitos de “expressão”, “compreensão”, “estrutura”, “vida”, etc, o fato é que Dilthey não teve sucesso no enfrentamento Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 59 59 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá Paulo Cesar Duque-Estrada da questão: como a unidade coesa de um todo histórico, que não é vivência de nenhum sujeito particular, pode ser conhecida? O problema: do método. Para irmos diretamente ao ponto, eis o problema: se o ser da consciência particular de cada indivíduo se constitui no âmbito de uma coesão estrutural29 da vida histórica, cabe perguntar: qual é a distinção da consciência histórica - face a todas as demais formas de consciência da história –, para que seus próprios condicionamentos não devam suspender a sua pretensão fundamental de alcançar um conhecimento objetivo?30 Em outras palavras, se a consciência metodológica própria à investigação histórica – ou seja, a “consciência histórica” – não pode escapar de sua imersão na história; então, em que bases se pode afirmar que, em distinção a todas as outras formas de consciência que se encontram igualmente imersas na história, a consciência histórica é capaz de fornecer um conhecimento objetivo da história? Gadamer vai apontar para uma incompatibilidade no cerne do projeto de Dilthey. Há, segundo Gadamer, uma incompatibilidade entre, por um lado, o seu ideal de um conhecimento histórico baseado em um método científico e, por outro lado, a sua tentativa de fundar este método na imanência da vida histórica. É neste sentido que ele vai falar de um “cartesianismo não resolvido” existente em Dilthey. Ou seja, por um lado, em um estilo cartesiano, Dilthey exigirá uma reflexão filosófica que se estenda a todo o campo em que “a consciência já tenha sacudido toda autoridade e procure chegar a um saber válido do ponto de vista da reflexão e da dúvida.31 Ou “nexo estrutural”, seg uindo a t radução brasileira de Verdade e Método. 30 VM., p. 357; 221. 31 VM., p. 362; 224. 29 60 Rev Gragoata n 29.indb 60 Por outro lado, ao contrário de uma perspectiva cartesiana, o exercício sistemático da reflexão e da dúvida que é reivindicado aqui deve se fundar no fluxo espontâneo da vida histórica. Mas, pela sua própria natureza, o tipo de conhecimento fundado “na reflexão e na dúvida” não se inscreve num movimento imanente à vida mas sim em um movimento que se dirige à mesma. Daí a sua tentativa sem sucesso de combinar o seu ideal de método com uma reflexão imanente à vida. A conseqüência, em última análise, é a de que o tratamento do objeto histórico se reduz à condição de uma decifração do mesmo; uma operação que se precipita sobre o mesmo, mas nunca um movimento imanente ao próprio objeto; nunca uma experiência histórica (Erfahrung) como ele gostaria de ser. Para Gadamer, leitor de Heidegger, seria preciso que a subjetividade intrínseca ao ideal de método fosse desconstruída em seus fundamentos para que a interpretação, enfim, se tornasse experiência imanente à vida histórica. Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender Abstract This article intends to offer a synthetic presentation of part of the long historical and philosophical narrative developed in Truth and Method, where Gadamer refers to the appearance of the ideal of method within the history of classic hermeneutics. The aim pursued here is to situate the incompatibility that exists, according to Gadamer, between, on one side, the ideal of method for approaching historical objects and, on the other side, the fact that this very ideal of method be originally rooted in the Romantic model of the interaction among individuals belonging to one and the same historical experience. Keywords: Hermeneutics, Method, History, Subjectivity. Referências GADAMER, H-G. Wahrheit und Methode. 2. Auflage. Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1960. _________. Verdade e Método. Trad. Flávio Paulo Meurer. 2ed. Petrópolis: Vozes, 1998. _________. Hermenêutica como Filosofia Prática. In: A Razão na Época da Ciência. Trad. Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. [Biblioteca Tempo Universitário 72] __________. Carta a Richard Bernstein. In BERNSTEIN, R. Beyond Objectivism and Relativism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1988. WARNKE, G. GADAMER. Hermeneutics, Tradition and Reason. Stanford University Press, 1987. Niterói, n. 29, p. 49-61, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 61 61 11/7/2011 19:21:36 Rev Gragoata n 29.indb 62 11/7/2011 19:21:36 O estranhamento: um exílio repentino da percepção Olga Guerizoli-Kempinska Resumo Partindo de uma visão do conceito do estranhamento (ostranienie) enquanto um conceito dinâmico, o presente ensaio se debruça sobre a tumultuada história de sua formação pelo jovem Viktor Chklovski. Babélico e traduzido de diferentes maneiras, o conceito de estranhamento é impensável sem a discussão entre a teoria da arte e a prática literária e pictórica da vanguarda futurista. Conceito aberto e frutífero, o estranhamento remete à solicitação da arte enquanto invenção de uma forma radicalmente nova de percepção. Palavras-chave: Estranhamento. Formalismo russo. Viktor Chklovski. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 63 Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:36 Gragoatá Olga Guerizoli-Kempinska O presente artigo propõe-se retraçar brevemente a história da concepção da noção de “estranhamento” (остранение), concentrando-se em especial naquelas suas particularidades que tornaram o primeiro conceito da teoria moderna da literatura tão babélico, confuso e aberto. As traduções múltiplas, o nãoacabamento conceitual, para não dizer o caráter contraditório, e a abertura aos usos que excedem o campo da literatura são, com efeito, características pertencentes desde o início ao termo “estranhamento”. E seu início situa-se claramente no seio de uma teoria jovem e feita por jovens, no tempo onde não havia fronteiras estanques entre a prática artística de vanguarda e a atividade teórica. O “estranhamento” carrega traços da situação de sua elaboração nas condições de ruptura dos limites entre arte e vida, traços de solicitações violentas e contraditórias, de reivindicações extremas da revolução russa, por um lado, e de exigências estéticas da forma da obra de arte, por outro. Sem escapar às contradições próprias à visão do progresso, o “estranhamento” aproxima anelos tão inconciliáveis como a visão prometeica da máquina, relacionada a uma valorização entusiasta do funcionalismo e do “procedimento”, e a crescente urgência de liberar a experiência e a percepção humanas de todo caráter mecânico alienante. O “estranhamento” é, finalmente, impensável sem o diálogo, livre e aberto, da literatura com uma outra linguagem, a da pintura, diálogo que naturalmente vai contra as pretensões sistemáticas e o rigor da teoria. O objetivo da arte consiste em dar a sensação das coisas enquanto visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento de “остранение” das coisas e o procedimento da forma dificultada, que aumenta os obstáculos e a duração da percepção, pois, em arte, o processo da percepção é o próprio fim e deve ser prolongado; a arte é uma maneira de viver o fazer-se das coisas, e aquilo que está pronto não importa na arte. (ШКЛОВСКИЙ, 1990, p. 63). Nesta longa e densa frase, dividida nas traduções em duas ou mesmo três, Viktor Borisovitch Chklovski introduz pela primeira vez o termo “остранение” (ostranienie), um neologismo formado a partir do adjetivo “странный” (strannyi) e por isso escrito entre aspas. Como em russo “странный” significa “estranho”, a tradução literal e segura de “остранение” para o português é sem dúvida “estranhamento”. Mas, devido a traduções indiretas, o termo de Chklovski é também freqüentemente transposto como “singularização”, palavra decalcada da tradução francesa (TODOROV, 1965, p. 82) e usada na tradução brasileira do texto de Chklovski (OLIVEIRA TOLEDO, 1971, p. 39-56) e ainda como “desfamiliarização”, decalcada da tradução em inglês (LEMON e REIS, 1965, p.12). Há algo de irônico nas aventuras do neologismo proposto por Chklovski, que, ao inaugurar a aventura da primeira teoria moderna da literatura com fortes pretensões ao 64 Rev Gragoata n 29.indb 64 Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 O estranhamento: um exílio repentino da percepção caráter científico, desencadeia ao mesmo tempo uma verdadeira confusão terminológica. A palavra “остранение” não deixa de fato de ser traduzida e re-traduzida, tornando-se altamente hesitante e incerta através de propostas tão ousadas como “étrangéification” em francês (JACCARD, 2005, p. 52) ou ainda de tentativas de transposição explicativa, a saber, “desautomatização”, que traz uma descrição do efeito do estranhamento, a superação do automatismo da percepção. Se o termo “estranhamento” apareceu apenas no famoso artigo “Arte como procedimento” (“Искусство как прием”), publicado em 1917, considerado um dos manifestos do grupo ОПОЯЗ (OPOIAZ – Sociedade de Estudo da [Teoria] da Linguagem Poética) e, com isso, um dos manifestos do formalismo russo, a própria reflexão sobre a necessidade de uma revitalização da percepção pela arte foi o centro do interesse teórico de Chklovski desde o início de seu engajamento intelectual. Este início teve lugar em dezembro de 1913, quando Chklovski, à época um estudante de filologia de 19 anos, apresentou em um ilustre café literário de Petersburgo uma pequena conferência sobre o lugar do futurismo na história da língua, suscitando escândalo com a radicalidade de seus argumentos e o caráter incisivo de seus exemplos. As idéias desta conferência foram retomadas no artigo “Ressurreição da palavra”, publicado no início de 1914. Nele, Chklovski compara a linguagem habitual a um cemitério, mostrando como, não apenas palavras, mas também metáforas, contextos e obras literárias inteiras, na medida em que são repetidos, perdem gradualmente sua vitalidade, tornam-se rígidos e morrem, ou seja, deixam de ser vivenciados para serem apenas automaticamente reconhecidos: Cf. “(...) não vemos as coisas mesmas; limitamo-nos, no mais das vezes, a ler etiquetas coladas sobre elas. Essa tendência, oriunda da necessidade, acentuou-se ainda mais sob a influência da linguagem. Pois as palavras (com exceção dos nomes próprios) designam gêneros”. (BERGSON, 2004, p. 114). As palavras – porque usadas pelo nosso pensamento no lugar dos conceitos, no papel de, por assim dizer, signos matemáticos, devendo ser desprovidas de caráter metafórico, porque usadas na linguagem de todos os dias, em que não as falamos nem as ouvimos até o fim, tornaram-se comuns e tanto sua forma interior (metafórica) quanto exterior (fonética) deixou de ser vivenciada. Nós não vivenciamos o habitual, não o vemos, apenas o reconhecemos. Nós não vemos as paredes de nossos quartos, temos dificuldades para ver um erro de impressão em uma cópia a corrigir, sobretudo quando se trata de um texto escrito em uma língua bem conhecida, porque não podemos nos forçar a ver, a ler, e não “reconhecer” a palavra habitual (ШКЛОВСКИЙ, 1990, p. 36). 1 Mas como uma tal postulada desde 1913 em termos fortemente bergsonianos1, “ressurreição” da palavra e que tem por objetivo forçar a passagem do mero reconhecimento à visão, chegou a se transformar para Chklovski, em 1917, em “estranhamento”? Não é fácil acompanhar esta passagem, pois o pensamento de Chklovski nunca completa trajetos retos, preferindo avançar por linhas oblíquas, evocadas pela imagem do Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 65 65 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá O próprio Chklovski sentia, aliás, cada vez mais a falta da oportunidade de aprofundar e de organizar o trabalho teórico de OPOIAZ. Nos anos 20, houve projetos de uma revista de grande alcance e de um trabalho coletivo sobre a história da literatura russa. No contexto dessas tentativas, frustradas pelas pressões ideológicas e institucionais, é também difícil avaliar a sucessiva inclusão do contexto social de produção da obra nas discussões dos formalistas: trata-se de concessões em prol do ma rxismo ou de um verdadeiro amadurecimento de OPOIAZ? 2 66 Rev Gragoata n 29.indb 66 Olga Guerizoli-Kempinska movimento da figura do cavalo do jogo de xadrez, privilegiada a tal ponto que deu título à coletânea de ensaios daquela época, reunidos em 1923. O pensamento do jovem Chklovski avança por movimentos quebrados, por artigos breves e belicosos, por parágrafos concisos, operando com uma diversidade extraordinária de exemplos da literatura e de outras artes, usando as idéias dos mestres, Potiebnia e Viesselovski, para em seguida negá-las com vigor. A pressa e o gosto da negação, presentes nos movimentos quebrados que ritmam a formulação daquela que foi a primeira teoria da literatura, sem dúvida também refletem as condições tumultuadas em que o jovem Chklovski trabalhava. Naquela época, o Chklovski formalista era também o Chklovski voluntário de guerra em 1914, o Chklovski terrorista que, durante a guerra civil, no âmbito do partido socialista de direita, organizava ações contra os bolcheviques, o Chklovski emigrante que fugia das perseguições políticas rumo à Finlândia e a Berlim, o Chklovski terrorista arrependido, que fazia um pedido, não desprovido de ambigüidade, de voltar à Rússia (Cf. “Террорист Шкловский”), e, finalmente, o Chklovski escritor, autor de três romances. “O cavalo não é livre, - ele anda de lado porque a via reta lhe é proibida” (ШКЛОВСКИЙ, 1990, p. 74), explica Chklovski. E nesta afirmação, que se assemelha a uma confissão, é possível ler não apenas as condições de formulação do conceito de estranhamento, mas toda história do formalismo russo. Os movimentos do pensamento do jovem Chklovski, figura de proa da OPOIAZ, têm o caráter de violentas ofensivas com vistas à defesa do formalismo, primeiro contra o psicologismo, o biografismo e o historicismo, tradicionalmente solidários com o tratamento da literatura como ilustração de idéias e de vidas dos autores, logo depois no âmbito do conflito contra o marxismo. Iniciado pela inteligente crítica de Trotsky que, em 1923, no texto “A Escola poética formalista e o marxismo” (OLIVEIRA TOLEDO, 1971, p. 71-85), apontava para a insuficiência da abordagem puramente formal da arte, tal conflito transforma-se, no fim dos anos 20, em uma impiedosa exclusão ideológica da “heresia formalista”. Fadada assim a ser sempre polêmica, a produção teórica de Chklovski carece de uma oportunidade de um movimento reto, pleno, puramente afirmativo, no qual fosse possível desenvolver algo do início até o fim.2 Formulado nos passos quebrados da figura do cavalo, em um tom sempre desafiador, o próprio conceito de estranhamento aparece como instável e disperso. Este seu caráter fragmentário e um tanto fugidio reflete-se, por um lado, na já evocada multiplicidade de suas traduções e, por outro, na prodigiosa diversidade de propostas de suas origens. Já foram evocados como seus precursores pensadores tão diferentes como Marco Aurélio, Tolstoi, Kant, Novalis e Bergson. O “estranhamento” de Chklovski é, afinal, também contemporâneo do conceito freudiano do “estranho”, “das Unheimliche”, definido Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 O estranhamento: um exílio repentino da percepção “Pode ser verdade que o estranho [unheimlich] seja algo que é secretamente familiar [heimlich-heimisch], que foi submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa co nd iç ão”. ( F R EU D, 1996, p. 154). 3 como a experiência de “rever as coisas, pessoas, impressões, eventos e situações que conseguem despertar em nós um sentimento de estranheza, de forma particularmente poderosa e definida” (FREUD, 1996, p. 142). Mas se o estranhamento de fato compartilha, por um lado, com o conceito freudiano a força da experiência da singularização, i.e., da separação dos objetos do cotidiano de seu contexto ordinário, por outro lado, sem dúvida, lhe opõe sua visão do sujeito e sua fé revolucionária na possibilidade de uma percepção radicalmente nova, desprovida de origens e alheia a todo reconhecimento.3 Para aproximar-se do conceito de estranhamento e de suas fontes históricas que, mesmo sendo múltiplas, não deixam de se dividir em diretas e indiretas, concretas e vagas, parece-me inevitável levar em conta, sobretudo, a maneira como ele foi concebido e formulado, ou seja, o fato de sua formulação encontrar-se dispersa em vários artigos escritos por Chklovski entre 1914 e 1922. O fato de o “estranhamento” ser nomeado no artigo “Arte como procedimento”, o único texto de Chklovski amplamente traduzido e conhecido, deixa freqüentemente despercebidos alguns elementos importantes. Em primeiro lugar, que o estranhamento é o procedimento, “прием” (priom), geral da arte, que deve ser compreendido no sentido de “técnica”, “artifício” ou “mecanismo”, e que este procedimento geral consiste, por sua vez, em uma multiplicidade de diferentes procedimentos. Em segundo lugar, as relações decisivas do conceito de estranhamento com o futurismo russo, que, mesmo sendo mencionadas no famoso artigo, parecem ocupar uma posição secundária na reconstrução da história do conceito e não adquirem a relevância que de fato tiveram em sua formulação. E, finalmente, analisado exclusivamente à luz do artigo “Arte como procedimento”, o conceito de estranhamento não revela suas relações com a reflexão sobre a linguagem pictórica, nem suas aspirações a ultrapassar o campo da teoria da literatura para se tornar “o procedimento geral da arte”. É preciso então investigar como o jovem Chklovski desenvolve o trabalho sobre a arte como procedimento, como faz do estranhamento o procedimento da arte e como analisa, um por um, uma enorme diversidade de procedimentos concretos, presentes não apenas nas obras literárias, mas também nos quadros dos pintores suprematistas. A leitura de seus artigos daquela época dá de fato a impressão de uma tentativa de fazer um inventário completo dos procedimentos da arte, recolhidos nas obras das mais diversas épocas e dos mais diversos gêneros literários, impossíveis de serem reunidas sob algum denominador comum, a não ser sob a presença do funcionamento de procedimentos formais. Estes procedimentos, cuidadosamente recolhidos, como se se tratasse de elementos de alguma fórmula científica, são abordados de uma maneira analítica em diferentes artigos, nos quais o próprio termo “estranhamento” nem mesmo vem à Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 67 67 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá Este procedimento será desenvolvido por Bertold Brecht enquanto o efeito de Verfremdung, cuja tradução posterior para o russo aumentará ainda o caráter babélico do “estranhamento”, transformando o остранение e m о ч у ж д е н и е, d i s t a n c i a m e nt o. (C f. ТУЛЬЧИНСКИЙ, 1980). 4 68 Rev Gragoata n 29.indb 68 Olga Guerizoli-Kempinska tona. Como aquele que afirma, em uma carta a Roman Jakobson, saber como é feita a vida, como é feito Dom Quixote e como é feito um automóvel, Chklovski dedica-se à pesquisa de procedimentos formais nas obras de arte e de relações entre esses procedimentos. O primeiro, segundo Trotsky, a pensar a arte não como alquimista, mas como químico, o jovem líder da OPOIAZ, empreende um esforço de explicar se não todos os procedimentos da obra de arte, literária e pictórica, com certeza uma considerável amostra. Os esforços de desvelar sucessivamente todos os mecanismos da arte que dificultam a forma, prolongam o tempo da percepção e produzem o estranhamento deixam-se perceber na prodigiosa diversidade de procedimentos particulares analisados por Chklovski: o procedimento de “quebrar palavras” para potencializar o alcance emocional de sua sonoridade praticado por poetas futuristas (em “Saiu o livro de Maiakovski ‘Nuvem de calças’”, de 1915, e “Sobre a poesia e a linguagem trans-mental”, de 1916); o procedimento de criar uma barreira psicológica através do procedimento da “ilusão cintilante”, possibilitada pelo desvelamento das convenções da representação teatral (em “Sobre a barreira psicológica”, de 1920, e “A respeito de ‘Rei Lear’”)4; vários procedimentos da construção da novela e do romance, tais como contraste, paralelismo, deformação de proporções, retardação, encaixamento, colocação em fileiras (em “A construção da novela e do romance”, de 1921); o procedimento da digressão (em “A literatura além do assunto”, de 1921). Quebrando os limites disciplinares e aventurando-se para o domínio da teoria da pintura, Chklovski debruça-se sobre o caráter convencional da representação do espaço pictórico, sobre o papel do espectador na sua configuração e ainda sobre a importância da “faktura” para a constituição da pintura enquanto um objeto estético e não como representação da natureza (em “O espaço na pintura e os suprematistas” e “Sobre a factura e os contra-relevos”, de 1919). Esta longa lista de procedimentos analisados por Chklovski não é exaustiva, mas já é possível constatar que se trata em todos os casos de artifícios formais suscetíveis de impossibilitar uma percepção fácil e que o procedimento geral de estranhamento está sendo trabalhado através de uma acumulação de análises de procedimentos particulares. Visto a multiplicidade de procedimentos investigados por Chklovski em diferentes artigos, os procedimentos de retirar um objeto do contexto habitual e o de chamar um objeto com um nome inabitual, descritos no famoso texto “Arte como procedimento”, aparecem não como explicitações completas do procedimento geral do estranhamento, mas como exemplos dentre outros. Para chegarmos mais perto das origens mais diretas e mais concretas do conceito de estranhamento é importante notar que, ao exemplificar os procedimentos de estranhamento com obras de Tolstoi e com charadas eróticas populares, o artigo “Arte como Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 O estranhamento: um exílio repentino da percepção procedimento” deixa praticamente despercebida a importância das conexões deste conceito com a prática poética e a produção teórica dos poetas futuristas. A própria necessidade de forjar uma nova palavra, “остранение”, que substitui a um tanto obsoleta “ressurreição da palavra”, mais apropriada ao contexto da poesia simbolista, corresponde perfeitamente a solicitações de renovar radicalmente a linguagem, próprias aos futuristas. Maiakovski, amigo de Chklovski, vê em um artigo de 1914 intitulado “Guerra e língua” a vocação do poeta como um trabalho com palavras que devem ser “trocadas” e “quebradas” para que se recupere sua novidade e, com isso, a força de seu efeito. O quanto este trabalho e o próprio efeito são violentos o demonstra um exemplo, emprestado por Maiakovski ao próprio Chklovski: Em uma aula, Chklovski deu este bruto, mas muito instrutivo exemplo. Um professor de matemática sempre chamava o aluno: burro, burro e burro. O aluno acostumou-se, olhava inexpressivo e indiferente. Mas quando certa vez no lugar do esperado ‘burro’ o professor lançou-lhe ‘burra’, o menino chorou. Por quê? Porque, ao quebrar a palavra, forçou-o a compreender que ela era ofensiva. (МАЯКОВСКИЙ). Além da reivindicação de um novo vocabulário que revitalizasse a percepção, o trabalho dos futuristas de “quebrar” as palavras para “quebrar” o automatismo da percepção tem ainda outra conseqüência, muito importante para o surgimento do “estranhamento”. Quando radicalizado, aquele trabalho faz com que as palavras pareçam não pertencer à língua russa. A idéia de que a nova linguagem poética fosse muito dificilmente compreensível e que mal lembrasse a língua russa aparece já no primeiro artigo de Chklovski, “Ressurreição da palavra”, sendo amplamente retomada no artigo de 1916, “Sobre a poesia e a linguagem trans-mental”. Nele, Chklovski analisa a permanência da linguagem trans-mental, (заумный язык, termo conhecido também como заумь, “zaum”), aquela que, partindo da sonoridade, escapa à determinação semântica. Ao mostrar as relações entre o “zaum”, os jogos gratuitos infantis com palavras e a glossolalia, ou seja, o dom de falar em línguas estrangeiras desconhecidas, manifesta em práticas místicas de diversas seitas, Chklovski detém-se longamente na reflexão sobre a importância do efeito emocional, além da significação, das “estranhas palavras”, que compõem a linguagem trans-mental. A própria formulação do conceito de estranhamento (остранение) deve muito à reflexão sobre as deformações vitais da língua praticadas pelos poetas futuristas, que ao quebrarem as palavras tornam-nas “estranhas” (странные) e parecidas com palavras de uma língua “estrangeira” (иностранный). Importantes traços desta influência do futurismo e da linguagem trans-mental na elaboração do conceito de estranhamento deixam-se detectar afinal no próprio artigo “Arte como Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 69 69 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá Olga Guerizoli-Kempinska procedimento”. Ao começar o artigo com um ataque à idéia de Potiebnia, segundo a qual a arte seria um pensar com imagens, Chklovski argumenta não contra a própria imagem (na qual ele reconhece, de fato, um dos procedimentos da arte), mas contra a idéia de uma economia específica da imagem que pouparia as forças mentais do leitor. O próprio procedimento de estranhamento funciona de acordo com uma lógica exatamente oposta: ao invés de facilitar a percepção, cria-lhe obstáculos; ao invés de visar uma aproximação, provoca distanciamento. No seu mais famoso artigo, Chklovski opõe-se com violência à visão da imagem que explica o desconhecido através do conhecido e propõe, justamente através do procedimento de estranhamento, ver na experiência da arte uma experiência do desconhecido, do novo, do radicalmente “estranho”, tal como os barulhos sugestivos e incompreensíveis do “zaum”. Além disso, o procedimento do eufemismo presente nas charadas eróticas populares, é também descrito em termos da busca pelo significado de uma palavra retirada do contexto próprio e colocada em um outro contexto ou em um contexto “estranho”. Nos famosos exemplos dos procedimentos de troca de pontos de vista, que, nas obras de Tolstoi, desautomatizam a percepção, os artifícios formais forçam a percepção a mudar de lugar, a adotar, como ponto de vista, outro lugar ou o lugar do outro. A própria palavra иностранный, que significa “estrangeiro” em russo, e que tantas vezes serviu à descrição do efeito das experiências com a linguagem trans-mental dos futuristas, remete de fato à combinação do “outro”, do “diferente”, (иной), e do “país”, “lugar” (страна). O conceito do procedimento da arte que é o estranhamento, que pode se desdobrar nas obras literárias em procedimentos tão diferentes como, por um lado, o uso de uma palavra incompreensível e estranha por Khlebnikov e, por outro, a construção de um ponto de vista diferente e estranho, o de um estrangeiro, tal como a perspectiva do cavalo em na novela de Tolstoi intitulada “Kholstomer”, onde a humanidade é vista pelos olhos do animal, escapa à firmeza e à unidade. Trata-se de um procedimento cuja plena definição e cujo aprofundamento teórico foram adiados e, finalmente, frustrados pelas condições ideológicas da União Soviética. Os precursores do conceito de estranhamento são tão múltiplos quanto vagos. Ele encontra-se (apenas?) muito bem exemplificado através da análise de uma diversidade desnorteante de procedimentos formais, manifestos em diferentes obras de arte e cuja lista, apesar dos esforços de Chklovski, está sempre aberta. A única verdadeira unidade de todos esses procedimentos de estranhamento está em forçarem a percepção a experimentar (não sem violência) o radicalmente estranho, novo, outro e diferente. Conceito em obra, em busca de uma nova forma de percepção, o “estranhamento” sempre extrapolou o campo dos 70 Rev Gragoata n 29.indb 70 Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 O estranhamento: um exílio repentino da percepção estudos da literatura, buscando o novo e o diferente no diálogo com a linguagem visual. É também na experiência das artes visuais, em busca acelerada do novo, que o “estranhamento” se manifesta da maneira mais genuína e talvez por isso o eco mais autêntico da teoria de Chklovski não seja a teoria do efeito estético de Wolfgang Iser, mas a confissão frustrada de Leo Steinberg. Ao situar-se francamente dentro do primeiro público da pintura americana dos anos 60, Steinberg relata a perda, o tédio, a frustração e o imenso desconforto que acompanham o estranhamento. Recuperando dessa maneira a violência da experiência da arte, postulada pelos fulturistas russos, Steinberg compara a experiência da arte não a uma viagem da percepção mas a seu “exílio repentino”: Sei que há pessoas que se sentem verdadeiramente perturbadas com certas mudanças como as que ocorrem em Arte. Este fato deveria dar ao que chamo de “situação do público” uma certa dignidade. Há um sentimento de perda, de exílio repentino, de algo que foi voluntariamente negado – às vezes o sentimento de que a cultura ou a experiência acumulada sofre uma irremediável desvalorização, deixando a pessoa exposta à privação espiritual. (STEINBERG, 1975, p. 248). Abstract Taking the dynamic character of the concept of desfamiliarization (ostranienie) as its starting-point, the present essay aims to reconstruct the complicated history of that concept by the young Viktor Chklovski. Translated in several different ways, the concept of desfamiliarization was largely motivated by the dialogue between the theory of art and the practice of the futurist poets and artists. As an open and fecund concept, desfamiliarization stresses the necessity to radically reinvent, through the art, the ways of the perception. Keywords: Desfamiliarization. Russian Formalism. Viktor Chklovski. Referências BERGSON, Henri. O riso. Ensaio sobre a Significação da Comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CURTIS, M. James. “Bergson and Russian Formalism”. In. Comparative Literature. Vol. 28, n˚2, primavera de 1976, pp. 109-121. FREUD, Sigmund. “O estranho”. In. História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Obras completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Niterói, n. 29, p. 63-72, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 71 71 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá Olga Guerizoli-Kempinska GINZBURG, Carlo. “Making Things Strange: The Prehistory of a Literary Device”. In. 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Pôde-se concluir que, diante da complexidade contemporânea no que se refere à multiplicação de signos, a abordagem pode trazer vantagens, ao tornar necessária a análise dos aspectos do romance, sem desprezar a participação da própria subjetividade do analista. Palavras-chave: Romance; semiótica; metodologia Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 73 Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá Sergio Ricardo Lima de Santana 1. Introdução A ideia da qual partimos aqui é que, dentro de um contexto de explosão semiótica, no qual os signos multiplicam-se continuamente e desafiam nossa capacidade de compreensão, qualquer arte ou linguagem, assim como qualquer obra em particular, é uma tradução de outros signos, por meio de um código relativamente específico. Esta ideia tem implicações: primeiramente, torna necessário que consideremos a literatura dentro de uma rede semiótica, indissociável dos outros saberes, artes e ciências, com os quais necessariamente ela interage. Em segundo lugar, lembranos de que, ainda que assim o seja, a literatura e sua teoria têm suas próprias convenções, tradições e vocabulário, com os quais precisamos lidar para tornar possível algum entendimento e uma comunicação sobre o assunto. Além disso, chama atenção para o fato de que uma realização particular – como um romance, ou uma crítica, ou uma adaptação cinematográfica de um romance, entre outras – pode ser considerada uma atualização da literatura, ao desvendar e produzir novos signos, dentro da grande rede semiótica e diante de todos os outros textos existentes. Já se constitui um lugar-comum afirmar que, no mundo atual, os sistemas de signos se multiplicam, e é necessário criar ferramentas para compreender e lidar com os signos em constante produção. Podemos perceber que, tanto os romances produzidos contemporaneamente, como as leituras e releituras atuais de romances atuais ou antigos, estão impregnados dessa qualidade, ou seja, tanto na sua forma, quanto no seu conteúdo, é provável que reproduzam a característica atual de produção constante, em ritmo exponencial, de novos signos. Diante disso, algumas perguntas podem ser colocadas: Primeiramente, de quais ferramentas, por exemplo (uma vez que não há limites para as possibilidades), podemos nos munir, a fim de adquirirmos a competência para lidarmos com tal criação frenética de signos? Em segundo lugar, até que ponto é possível ou necessário nos dedicarmos à rede semiótica como um todo, ou nos atermos a determinados limites que denominamos estudos de literatura? Parece ser necessário que encontremos uma abordagem que esteja na interseção entre o reconhecimento do todo – a rede semiótica – e a concentração em uma subrede mais específica – a literatura e os estudos literários. Tendo isto em vista, nosso objetivo neste artigo é delinear uma possível metodologia para a análise do texto literário, mais particularmente o romance. Para isso, nossa proposta é a aplicação de conceitos da semiótica peirciana, com o intuito de forjar um método de análise do texto literário envolvendo três níveis de significação, correspondentes às categorias peircianas da primeiridade, secundidade e terceiridade. O filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce desenvolveu uma teoria semiótica com um caráter bastante geral 74 Rev Gragoata n 29.indb 74 Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance e abstrato (SANTAELLA, 1992, p. 43). Dessa forma, sua teoria não visa a uma aplicação prática (SANTAELLA, 2005, p. XI; XII); antes, Peirce buscou desenvolver uma semiótica, que ele mesmo chamava de lógica, a qual procurava, entre outras coisas, investigar o modo como apreendemos algo com que nos deparamos. Isso significa que a sua proposta se voltava à compreensão do processo de pensamento mais que à investigação sobre um sistema de signos em particular. Ainda assim, podemos utilizar a lógica estabelecida por Peirce para abordarmos o texto literário de acordo com a sua suposta especificidade e, ao mesmo tempo, dentro de um contexto semiótico complexo e em constante mutação. As categorias peircianas mencionadas acima configuram uma lógica que procura dar conta de como se dá o fenômeno da significação; de certa forma, constituem a base da fenomenologia peirciana. Para Peirce, um Terceiro é algo que traz um Primeiro para uma relação com um Segundo. Podemos considerar o Terceiro como sendo um resultado (parcial) do processo de significação. O Primeiro, relacionado à categoria da primeiridade, é algo apresentado de forma imediata, aquilo que está presente como uma impressão ou sentimento; o Segundo (secundidade) é a relação ou embate que se estabelece, por exemplo, na tentativa de compreensão do Primeiro; o Terceiro (terceiridade) relacionase à camada da inteligibilidade, do conhecimento racional, da interpretação. À qualidade do signo corresponde a categoria universal da primeiridade, a qual se relaciona à percepção ou sensação, à possibilidade de significação. A existência singular remete à secundidade, categoria associada ao campo da experiência e da ação, ou seja, à realidade. Por fim, ao caráter de lei corresponde a terceiridade, categoria que está ligada ao pensamento, à convenção, à apreensão racional e à necessidade (WALTHER-BENSE, 2000, p. 3; LIMA DE SANTANA, 2009, p. 29). De acordo com a mesma lógica, Peirce define o signo como uma tríade formada pelo representamen – que é o signo propriamente dito –, o objeto que ele representa e o interpretante, que é forma como o signo se configura na mente de alguém (PEIRCE apud SANTAELLA, 2004, p. 12). O objeto só existe enquanto tal quando veiculado por um representamen e gerar uma imagem mental. Do mesmo modo, um signo só pode ser considerado signo se houver um objeto que seja por ele manifestado segundo alguma concepção. Assim como só existe um interpretante se for veiculado por um signo, ao denotar um objeto. Deve-se esclarecer que um interpretante não deve ser confundido com uma interpretação, sendo antes uma relação lógica necessária para que o signo possa ser definido como tal. A semiose não está confinada à necessidade de um interpretante mental, o que não quer dizer que o intérprete seja desprezível ou inexistente (SANTAELLA, 1992, p. 189). Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 75 75 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá Sergio Ricardo Lima de Santana Em relação ao objeto representado, o signo pode ser um ícone, quando imita a aparência do objeto, estabelecendo com ele uma relação de semelhança e despertando sensações análogas; um índice, quando apresenta uma conexão ou uma relação de causa e efeito com o objeto, estando organicamente ligado a ele; ou um símbolo, quando representa o objeto por uma convenção ou lei, que deve ser aprendida para que o signo funcione, de fato, como símbolo (PEIRCE, 1999, p. 73). Partindo dessa lógica, podemos propor a análise do romance da seguinte maneira: o conjunto de elementos próprios do romance ligados à construção de uma atmosfera, às sensações e sentimentos (primeiridade), formariam uma base da qual partiríamos para observar a relação entre o romance e os existentes, sejam estes referências à chamada realidade ou simplesmente inventados pelo autor, bem como a outros textos os mais variados (secundidade); finalmente, tal observação nos daria subsídios para traçarmos conjecturas sobre os conceitos trazidos pelo romance, sobre possíveis significados (terceiridade). É possível notar que tanto os elementos imediatos e formais, os quais se relacionam à primeiridade; quanto os dêiticos, narrativos, factuais ou intertextuais, ligados à secundidade; assim como os conceituais e convencionais, os quais correspondem à terceiridade, apontam para uma comunicação ou interação com os processos de construção sígnica em funcionamento no mundo. Isto significa que a análise de obras artísticas atuais potencialmente revela os signos contemporâneos ligados ao sentimento e à impressão, ao embate e à luta pela compreensão e desenvolvimento de uma ideia, bem como à convenção e à inteligibilidade. Entretanto, exatamente por estarmos impregnados dos signos de nossa própria época, o contrário também acontece: tendemos a identificar elementos icônicos, indexicais e simbólicos mais significativos do ponto de vista da época da leitura. Daí porque podemos sugerir que uma crítica diz mais sobre a época em que ela (a crítica) surge do que sobre a obra criticada. Consequentemente, a análise de obras artísticas, sejam elas contemporâneas ou não, potencialmente revela, em grande parte, signos próprias da contemporaneidade. As próximas seções apresentam uma proposta metodológica para abordagem do texto literário, mais especificamente o romance, e a aplicação da referida proposta na análise do romance O talentoso Ripley, da escritora norte-americana Patricia Highsmith (1921-1995). Finalmente, alguns comentários adicionais concluem este trabalho. 2. Proposta metodológica de análise do romance Um romance pode ser visto como uma tradução de uma história ou de uma ideia para a linguagem literária. Ao mesmo 76 Rev Gragoata n 29.indb 76 Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance tempo, podemos considerar que uma tradução é uma crítica, a qual faz o texto-fonte necessariamente passar por uma série de operações (seleção, recorte, transformação, recriação, conformação etc), para gerar o texto-alvo. Portanto, um romance é uma crítica, seja da estética, dos conceitos ou da moral relacionados à história contada. Sendo uma crítica, fala principalmente de sua própria época e contexto. Utiliza-se de signos icônicos, indexicais e simbólicos próprios de seu tempo e espaço. Também, uma leitura (ou interpretação) de um romance é uma tradução para a complexidade do pensamento, uma atualização, uma crítica, que fala mais sobre o(a) próprio(a) leitor(a), sua época e referências, do que sobre o romance em si. Assim como, por exemplo, uma adaptação cinematográfica é também uma tradução, uma crítica, que revela principalmente a maneira de ver o mundo, as aspirações e interesses dos realizadores (diretor, roteirista, produtores etc) do filme (LIMA DE SANTANA, 2009, p. 116). É interessante notar que a fortuna crítica de um romance, por meio da crítica propriamente dita, da leitura, da adaptação cinematográfica e tradução para outros sistemas de signos – ou seja, da sua constante atualização – é em grande parte responsável pela sua importância no conjunto da cultura e pelas significações que lhe são atribuídas. Por extensão, concorre também para a afirmação do gênero romance e do próprio sistema de signos literário. Assim, há uma conexão indissociável entre o romance e os demais sistemas de signos que participam do contexto no qual ele surge. Do mesmo modo, há uma ligação necessária entre a leitura, a crítica ou a análise do romance e os sistemas de signos que formam o contexto no qual tais atividades se realizam. Isto posto, podemos enumerar, em correlação com as categorias peircianas e levando em conta a capacidade que elas apresentam de, simultaneamente, considerarem o todo e o específico, três momentos de uma análise literária, os quais poderiam constituir um método de análise possível: 1) A percepção da forma como o romance veicula sentimentos, sensações, especialmente a uma primeira vista e com respeito àquilo que é imediatamente apresentado, provocando impressões que escapam à racionalidade. Em outras palavras, quais são os atributos ou signos icônicos do romance, aqueles que tendem a colaborar na formação de uma atmosfera, na veiculação ou produção de sentimentos? 2) A identificação do processo de atualização provocado pelo romance na sua construção, isto é, dos elementos que se conjugam para construir uma narrativa, das referências textuais e intertextuais particulares da obra em questão. Trata-se aqui dos elementos indexicais, dos Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 77 77 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá Sergio Ricardo Lima de Santana índices que conectam o romance com o mundo, veiculam ou criam um embate na direção do significado e possibilitam a compreensão por parte do(a) leitor(a). 3) A interpretação gerada a partir das análises anteriores ou, colocando-se de outro modo, a sugestão de um significado, ainda que transitório e relativo, por ser particular e pontual e por estar sujeito à cadeia de significados próprios do contexto onde a interpretação é feita. Quais são as ideias que o romance defende ou que lhe são subjacentes? É necessário ressaltar que nem o romance, conforme salientamos, nem a sua análise, estão isentos da infindável rede sígnica estabelecida. Assim como o romance traduz determinados sentimentos, narrativas e ideias sob a influência de um contexto maior, também sua análise sofre ação de um contexto semiótico próprio do período, lugar e situação em que é feita. Uma vez que nossa época procura abrir espaço para diferentes discursos, ao invés de aceitar ou assumir um discurso hegemônico e central, uma análise contemporânea tende a buscar no romance diversos discursos explícitos ou implícitos. Similarmente, é plausível que as análises literárias tornem-se cada vez menos profundas e abrangentes e se voltem mais a aspectos específicos, assumindo um formato de comentários hipertextuais, à medida que nosso aparelho sensorial vai se acostumando cada vez mais com as mídias digitais, sua alta capacidade de armazenamento e recuperação de informações, com a aceleração do tempo e as mudanças constantes, as interfaces gráficas e hipertextos. Na próxima seção, aplicamos os procedimentos acima especificados em uma breve análise do romance O talentoso Ripley, da escritora norte-americana Patricia Highsmith. 3. Três vezes Ripley Apesar da aversão que Hollywood lhe inspirava na época, Patricia Highsmith considerava-se afortunada por Alfred Hitchcock ter se interessado em adaptar o romance Pacto sinistro, escrito em 1951. Embora ela não tenha recebido royalties, uma vez que o cineasta adquiriu direitos perpétuos sobre o romance, essa adaptação foi um marco fundamental para que a escritora passasse a ser reconhecida e cultuada (CINÉMA, 1988). Nas narrativas policiais de Highsmith, a maior parte das ações se dá na mente dos seus principais personagens. São os sentimentos, os reflexos, a intuição, os pensamentos mais secretos dos personagens centrais que conferem às suas narrativas a atmosfera de suspense e tensão. Em virtude disso, o(a) leitor(a) é incitado(a) a se identificar com as suas razões e ações, mesmo que não necessariamente as aprove do ponto de vista ético. Um exemplo disso é a potencial cumplicidade que se pode estabelecer com o personagem principal da série Ripley, composta 78 Rev Gragoata n 29.indb 78 Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance por cinco romances. Em Nova York, o jovem Ripley do primeiro romance (O talentoso Ripley [The talented Mr. Ripley], publicado em 1955) recebe uma proposta do empresário Herbert Greenleaf: Ele deve ir à Europa para tentar convencer o filho de Herbert, Dickie Greenleaf, que vive na pequena cidade de Mongibello com sua namorada Marge, a voltar para os Estados Unidos e reassumir suas obrigações, dando continuidade aos negócios do pai. A oferta é vista por Ripley como uma possível saída para sua difícil situação financeira, uma vez que já pensava em deixar Nova York, onde vive em um apartamento sujo e decadente. Nesta cidade, Ripley leva uma vida difícil e sem perspectivas; não tem emprego fixo, faz pequenos bicos e aplica alguns golpes para tentar sobreviver. Na Europa, Ripley conquista a confiança e a amizade de Dickie, contando-lhe os planos de Herbert Greenleaf. Ripley se fascina por Dickie e sua forma de viver. Faz planos para continuar desfrutando dos prazeres da vida na Europa. Porém, após algum tempo de convívio, em um momento de rejeição, no qual Dickie deixa claro que a brincadeira terminou, a reação de Ripley é matar o rapaz e assumir a sua identidade. Posteriormente, assassina também Freddie Miles, o desconfiado amigo de Dickie que lhe aparece como um obstáculo. Com seu talento para imitar assinaturas, bem como sua inteligência para se esquivar das desconfianças, Ripley não somente sai impune dos homicídios, como ainda forja uma carta, supostamente escrita por Dickie, deixando-lhe uma significativa herança, em agradecimento pela sua fiel amizade. Em O talentoso Ripley, podemos encontrar signos que potencialmente conectam-se à ordem do sentimento, da sensação e da incerteza. Além disso, há signos que apontam para outros objetos, como índices do mundo do qual o romance emerge. A partir desses signos, é possível realizar uma análise que nos permita estabelecer algum nível de generalização ou interpretação, a qual pode funcionar como um novo signo que, por definição, não se esgota, mas que gera novas significações ad infinitum. 3.1. Análise de signos icônicos No primeiro caso, é possível sugerir que, na linguagem literária, que tem como matriz a linguagem escrita, é com dificuldade que o(a) analista consegue se desprender dos aspectos racionais, lógicos e sintagmáticos, para identificar aquilo que foge à regra, que não obedece a uma determinada ordem ou convenção e, dessa maneira, assume potencialmente outras possibilidades. Aquilo que não pode ser generalizado, que estabelece uma relação icônica com seu objeto, são especialmente as questões ligadas à forma, ao caráter qualitativo da narrativa e, finalmente, às descrições e metáforas (SANTAELLA, 1980, p. 151; LIMA DE SANTANA, 2009, p. 75-76). Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 79 79 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá He needn’t ever tell her where he was. No more of the snidely digging letters, the sly comparisons of him to his father, the poddling checks for the strange sums of six dollars and forty-eight cents and twelve dollars and ninety-five, as if she had had a bit left over from her latest bill-paying, or taken something back to a store and had tossed the money to him, like a crumb […] Aunt Dottie insisted that his upbringing had cost her more than his father had left in insurance, and maybe it had, but did she have to keep rubbing it in his face? (HIGHSMITH, 1999, p. 37) 2 He thought suddenly of one summer day when he had been about twelve, when he had been on a cross-country trip with Aunt Dottie and a woman friend of hers, and they had got stuck in a bumper-to-bumper traffic jam somewhere. It had been a hot summer day, and Aunt Dottie had sent him out with the thermos to get some ice water at a filling station, and suddenly the traffic had started movi ng. He remembers running between huge, inching cars, always about to touch the door of Aunt Dottie’s car and never being quite able to, because she had kept inching along as fast as she could go, not willing to wait for a minute, and yelling, ‘Come on, come on, slowpoke!’ (p. 37-38). 3 He remembered the vows he had made, even at the age of eight, to run away from Aunt Dottie, the violent scenes he had imagined – Aunt Dottie trying to hold him in the house, and he hitting her with his fists, flinging her to the ground and throttling her, and finally tearing the big brooch off her dress and stabbing her a million times in the throat with it (p. 39). 1 80 Rev Gragoata n 29.indb 80 Sergio Ricardo Lima de Santana Uma narrativa que se imiscui e desvia a atenção do que está sendo narrado para qualificar o personagem, por exemplo, estabelece uma relação com o objeto da narração que não se determina de maneira totalmente lógica, predominando nela o nível da sensação, da possibilidade. Por exemplo, quando, no romance, Ripley está no navio a caminho da Europa, ele escreve uma carta para sua Tia Dottie, fato que o faz sentir-se melhor, pois representa para ele uma forma de se separar definitivamente dela. Ao relembrar momentos desagradáveis, nos quais Tia Dottie o humilhava ou diminuía, a narrativa opera, ao mesmo tempo, como um comentário que dá informações a mais sobre o personagem, como um desvio que enseja novas possibilidades e sensações: Ele não precisava contar para ela onde ele estava. Não haveria mais cartas maliciosamente sarcásticas, comparações dissimuladas entre ele e seu pai, os cheques de somas estranhas como seis dólares e quarenta e oito e doze dólares e noventa e cinco, como se ela tivesse ficado com um restinho da última vez que pagou uma conta ou devolvido algo a uma loja e atirado o dinheiro para ele, como uma migalha [...] Tia Dottie insistia que sua educação tinha custado a ela mais do que o pai dele tinha deixado de seguro, e talvez tenha, mas ela precisava ficar passando na cara dele? (HIGHSMITH, 1999, p. 37).1 De repente ele pensou em um dia de verão quando ele tinha doze anos, na ocasião em que ele tinha viajado com Tia Dottie e uma amiga dela e eles ficaram presos em algum lugar, em um lento engarrafamento. Era um dia quente de verão e Tia Dottie o tinha mandado sair com uma garrafa térmica para buscar água gelada em um posto de gasolina, e repentinamente o trânsito começou a andar. Ele se lembra de ter corrido entre carros enormes que se deslocavam aos poucos, sempre perto de tocar na porta do carro de Tia Dottie e nunca conseguindo, porque ela continuava deslocando o carro o mais rapidamente que podia, incapaz de parar por um minuto e gritando, ‘Anda, anda, sua lesma!’ (p. 37-38)2. Ele lembrava a promessa que fez, mesmo aos oito anos de idade, de fugir de Tia Dottie, as cenas violentas que ele imaginava – Tia Dottie tentando segurá-lo na casa e ele batendo nela com os punhos, jogando-a no chão e estrangulando-a, e finalmente arrancando um grande broche do vestido dela e cravando-o um milhão de vezes na garganta dela (p. 39)3. Essas narrativas espaciais (SANTAELLA, 2005, p. 326) atuam na estrutura do romance, na sua materialidade, dando lugar a impressões subjetivas e afastando o romance do domínio da lógica sintagmática da linguagem escrita. O caráter qualitativo é responsável pela quebra da linearidade dos eventos por meio do uso de organizações paralelísticas que provocam uma multiplicidade de visões sobre um mesmo evento. No romance em questão, diversas narrativas qualitativas, acontecimentos hipotéticos e descrições contribuem para a Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance construção sensorial da atmosfera, como, por exemplo, a seguinte passagem, na qual o narrador revela o que se deduz ser o pensamento e o sentimento de Ripley enquanto este cogita e planeja o assassinato de Dickie: A água. Mas Dickie era tão bom nadador. Os penhascos. Seria fácil empurrar Dickie de algum penhasco enquanto eles caminhassem, mas ele imaginou Dickie se agarrando a ele e puxando-o consigo, e ele enrijeceu na cadeira até que seus músculos doessem e suas unhas formassem conchas vermelhas nos seus polegares. Ele teria que tirar o outro anel também. Mas ele não viveria em um lugar claro, onde morasse alguém que conhecesse Dickie. Ele só tinha que parecer com Dickie o suficiente para usar o seu passaporte (HIGHSMITH, 1999, p. 100-101).4 The water. But Dickie was such a good swimmer. The cliffs. It would be easy to push Dickie off some cliff when they took a walk, but he imagined Dickie grabbing at him and pulling him off with him, and he tensed in his seat until his thighs ached and his nails cut red scallops in his thumbs. He would have to get the other ring off, too. But he wouldn’t live in a place, of course, where anybody who knew Dickie lived. He has only to look enough like Dickie to be able to use his passport. Well, he did. If he – (HIGHSMITH, 1999, p. 100-101). 5 San Remo. Flowers. A main drag along the beach again, shops and stores and French and E ng l i sh a nd It a l i a n tourists. Another hotel, with flowers in the balconies. Where? In one of these little streets tonight? The town would be dark and silent by one in the morning, if he could keep Dickie up that long. In the water? It was slightly cloudy, though not cold. Tom racked his brain […] ( HIGH SMI T H, 1999, p. 101). 4 A ação não se converte em fato na narrativa, mas no pensamento do personagem, revelado pelo narrador. A narrativa assume um caráter qualitativo, aproximando o(a) leitor(a) do personagem. Assim, o(a) leitor(a) se torna o único a saber o que se passa na mente de Ripley e, portanto, estabelece com ele uma relação de cumplicidade. Não pode denunciar – e talvez nem mesmo o desejasse fazer, impedido mesmo pelo seu voyerismo –, mas somente compreender e esperar o que a narrativa apresentará como fato concreto. Ripley continua os seus planos: San Remo. Flores. Uma caminhada ao longo da praia outra vez, lojas e turistas franceses, ingleses e italianos. Um outro hotel com flores nas varandas. Onde? Em uma dessas ruas pequenas hoje à noite? A cidade estaria escura e silenciosa uma da manhã, se ele pudesse manter Dickie acordado tanto tempo. Na água? Estava ligeiramente nublado, embora não frio. Tom queimava as pestanas [...](HIGHSMITH, 1999, p. 101).5 Aqui se observa como Ripley continua o seu esforço mental para encontrar uma solução. A focalização, tendo Ripley como referência, torna acessível ao(à) leitor(a), de forma fragmentada, como o personagem raciocina, como e o que ele vê, como se sente. Em ambos os trechos, a formatação do discurso, ao imitar o processo de pensamento, extrai da linguagem convencional um certo caráter icônico, que se apresenta tanto como incerteza quanto potência, possibilidade de significação. Além disso, as descrições e metáforas podem incrementar tal teor qualitativo, como se vê no trecho seguinte, que expõe o momento em que Ripley definitivamente se dá conta de que Dickie não o quer mais por perto: Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 81 Ele olhou fixamente nos olhos azuis de Dickie que ainda estavam franzidos, o branco das sobrancelhas decoradas pelo sol e os olhos brilhantes e vazios, nada mais que pedaços pequenos de geleia azul com um ponto preto dentro, sem significado, sem nenhuma relação com ele. Devia-se ver amor através dos olhos, o único lugar onde você poderia olhar outro ser humano e ver o que realmente estava lá dentro, e nos olhos de Dickie 81 11/7/2011 19:21:37 Gragoatá Sergio Ricardo Lima de Santana Tom não viu nada mais do que ele veria se olhasse a face dura e sem sangue de um espelho (HIGHSMITH, 1999, p. 91).6 A metáfora feita na descrição do olhar de Dickie como vazio, bem como a comparação entre os olhos dele e a face dura e sem sangue de um espelho, reforçam, ao menos potencialmente, a sensação de perigo que ronda, de ameaça, de risco de perda da vida. Não é amor que Ripley encontra nos olhos de Dickie, mas o seu próprio reflexo, rígido, uma auto-imagem sem vida. As metáforas e descrições frequentemente funcionam, em conjunto com os elementos icônicos citados e com o próprio conteúdo narrativo, como possibilidade de significação. Isso quer dizer que o contexto em que esses elementos aparecem faz com que eles ganhem tal qualidade e atuem no sentido aqui atribuído. Para além dos aspectos formais, como acabamos de sugerir, o próprio conteúdo narrativo pode contribuir para a construção dos sentimentos e sensações do romance. A narrativa começa com Ripley fugindo de Herbert Greenleaf, a quem não conhecia e que desconfiava ser um agente da polícia que descobrira seus pequenos golpes. Antes, há a fuga de Tia Dottie, que tratava Ripley com um misto de sadismo e indiferença (HIGHSMITH, 1999, p. 37), os esconderijos e frequentes trocas de casa (p. 11; p. 26), as fraudes que tornam necessárias constantes dissimulações e a própria capacidade que o personagem tem de forjar e fingir. A recorrência de um tema – neste caso, a fuga e a clandestinidade – atua potencialmente sobre a atmosfera da narrativa. Após esses breves exemplos de elementos icônicos, tratemos agora dos índices ou elementos indexicais, aqueles que travam contato com o mundo e o contexto. 3.2. Análise de signos indexicais He stared at Dickie’s blue eyes that were still frowning., the sun-bleached eyebrows white and the eyes themselves shining and empty, nothing but little pieces of blue jelly with a black dot in them, meaningless, without relation to him. You were supposed to see love through the eyes, the one place you could look at another human being and see what really went on inside, and in Dickie’s eyes Tom saw nothing more than he would have seen if he had looked at the hard bloodless face of a mirror (HIGHSMITH, 1999, p. 91). 6 82 Rev Gragoata n 29.indb 82 Os índices são as referências do romance ao seu contexto, que conectam o romance com sua própria realidade. Trata-se da realização particular da história, dos temas, textos e intertextos estabelecidos na construção da narrativa (categoria da secundidade). Na casa dos Greenleaf, ainda enquanto faz os acertos para sua viagem à Europa para convencer Dickie a voltar para casa, Ripley observa Dickie em um álbum de fotografias. Chama-lhe a atenção o fato de Dickie ter mudado muito pouco desde os dezesseis anos, até o momento em que foi para a Europa, aos vinte e três ou vinte e quatro. Por intermédio das imagens fotográficas, Ripley faz inferências sobre a inteligência de Dickie, observa-o em Paris e em uma praia, conhece Mongibello e recebe suas primeiras impressões sobre Marge. Ripley percebe que Dickie parece mais amadurecido nas fotos europeias, diferente do bobo que aparentava antes (HIGHSMITH, 1999, p. 19-20). Na sequênNiterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:37 A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance cia, a força das imagens é demonstrada contundentemente, como mostram os trechos abaixo: […] Tom permaneceu de pé, com as mãos na cintura, sua cabeça para cima. Em um grande espelho na parede ele pôde se ver: novamente o jovem ereto e respeitável […] (p. 20). […] Mr. Greenleaf entrou na sala. Sua figura parecia pulsar e crescer mais e mais. Tom piscou os olhos, sentindo um repentino terror em relação a ele, um impulso para atacar antes de ser atacado […]. […] É como um filme, pensou Tom. Em um minuto, a voz de Mr. Greenleaf ou de alguma outra pessoa diria, ‘OK, corta’!, e ele relaxaria de novo […] (p. 21)7. […] Tom remained standing, his hands at his sides, his head high. In a large mirror on the wall he could see himself: the upright, self-respecting young man again […] (p. 20). […] Mr. Greenleaf came into the room. His figure seemed to pulsate and grow larger and larger. Tom blinked his eyes, feeling a sudden terror of him, an impulse to attack before he was attacked […]. […] It’s like a movie, Tom thought. In a minute, Mr. Greenleaf or somebody else’s voice would say, ‘Okay, cut!’ and he would relax again […] (p. 21). 7 Percebe-se que o romance de Highsmith carrega em si referências imagéticas e meta-narrativas ao cinema e à fotografia. O primeiro dos trechos acima remete à imagem especular e ao fato de que o personagem se orienta pelas imagens que vê, além de se preocupar com a imagem que os outros podem fazer dele. No segundo trecho, Ripley associa a forma como Mr. Greenleaf se aproxima dele a uma espécie de ameaça. A referência à imagem de Mr. Greenleaf se aproximando, como um movimento de câmera ameaçador e aterrorizante, é usada para revelar algo da subjetividade de Ripley, que age como um animal acuado, medroso, assustado com os seus próprios fantasmas. Afinal, não haveria motivo plausível para Mr. Greenleaf fazer-lhe algum mal, mas a própria consciência de Ripley, que sabia estar simulando situações que agradassem ao pai de Dickie, parece fazê-lo imaginar algo irreal a partir do que estava vendo. No terceiro trecho citado acima, há uma referência direta ao cinema, quando Ripley aparentemente constata a insanidade de sua própria imaginação. Além disso, toda a sequência é marcada pela encenação de Ripley diante do casal. Ripley finge interesse pelos assuntos, luta para não decepcionar os pais de Dickie, tenta se mostrar disponível, quando, na verdade, toda a situação beira o insuportável, chegando quase a fugir ao seu controle. O cinema aqui pode ser visto como uma simulação ou farsa por meio de imagens. No trecho seguinte pode-se notar mais uma vez a ocorrência de referências imagética e intertextual, constantes ao longo dos romances: Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 83 [Tom] sentiu que poderia desmaiar se ficasse mais um minuto naquele foyer mal iluminado, mas Mr. Greenleaf ria mais uma vez, perguntando-lhe se ele havia lido um certo livro de Henry James. 83 11/7/2011 19:21:38 Gragoatá Sergio Ricardo Lima de Santana ‘Lamento dizer que não, senhor, não esse’, disse Tom. ‘Bem, deixe pra lá’, disse Mr. Greenleaf, sorrindo. Então apertaram as mãos, um longo e sufocante aperto de Mr. Greenleaf, e acabou. Mas a expressão dolorida e assustada permanecia no seu rosto enquanto descia no elevador, percebeu Tom […] (p. 24).8 [Tom] felt t h at he could faint if he stayed one minute longer in the dimly lighted foyer, but Mr. Greenleaf was chuckling again, asking him if he had read certain book by Henry James. ‘ I’m sor r y to say I haven’t, sir, not that one’, Tom said. ‘Well, no matter.’ Mr. Greenleaf smiled. Then they shook hands, a long suffocating squeeze from Mr. Greenleaf, and it was over. But the pained, frightened expression was still on his face as he rode down the elevator, Tom saw […] (p. 24). 9 O título original do romance de Highsmith e do filme de Hitchcock é Strangers on a train (Estranhos num trem). 8 84 Rev Gragoata n 29.indb 84 O livro de Henry James, como é revelado depois, quando Ripley tenta comprá-lo no navio, é Os embaixadores, escrito em 1903. Nesse romance, é contada a história de Lewis Steher, que é incumbido da missão de trazer da Europa o filho da viúva Mrs. Newsome, chamado Chad. Steher tem um interesse direto em ser bem sucedido na sua tarefa, pois crê que as chances de casarse com a viúva aumentarão se conseguir lhe dar essa felicidade. Entretanto, Steher percebe que Chad está envolvido amorosamente em Paris, e que não seria correto convencê-lo a voltar para a América. Outros “embaixadores” são enviados, mas Steher se decide por agir da forma que considera moralmente correta, que é a desistência da tarefa inicial. Obviamente, o parentesco de O talentoso Ripley com o romance de Henry James é direto, pelo próprio motivo da história, e declarado, ao se fazer a citação. Assim, logo nas passagens iniciais do romance de Highsmith, pode-se antever a enxurrada de imagens e referências que constituirão a narrativa. O texto faz supor a inevitabilidade das citações e referências imagéticas, que, se não o saturam, fazem parte de sua composição de modo praticamente indissociável. Também o romance Pacto sinistro, da própria Highsmith, e, por extensão, sua adaptação para o cinema por Hitchcock, aparecem como referências narrativas intertextuais. Nessa história, Guy Haines conhece, em uma viagem de trem9, o perturbado Charles Anthony Bruno. A partir da conversa que se desenvolve entre os dois, Bruno fica sabendo que a esposa de Guy está criando problemas para lhe conceder o divórcio do qual precisa para poder casar-se outra vez. Por outro lado, Bruno demonstra nutrir um forte ódio pelo pai. Propõe, então, que os dois “troquem” crimes, cada um matando a pessoa que representa um problema para o outro, de forma que nenhum tipo de suspeita recaia sobre eles. A fala de Bruno, extraída do romance, pode esclarecer uma das relações que há entre as histórias: [...] Mas eu não estou a fim de trabalhar. Não preciso, percebe? Não sou escritor, nem pintor, nem músico. Por que uma pessoa deve ser obrigada a trabalhar, se não precisa? Não passa de uma maneira de ter uma úlcera. Meu pai tem úlcera. Pois é. Ele ainda tem esperanças de que um dia eu participe do seu negócio de ferragens. Mas eu lhe digo que negócios, qualquer espécie de negócios, não passam de falcatruas legalizadas, do mesmo jeito que casamento é a fornicação legalizada. Não estou certo? (HIGHSMITH, 2006, p. 16). Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:38 A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance O diálogo entre os romances O talentoso Ripley e Pacto sinistro parece claro, não somente em virtude da visão amarga presente em ambos, mas pelo argumento narrativo em si. Herbert Greenleaf pede a Ripley para buscar o seu filho na Europa, julgando que ele deveria voltar para assumir suas responsabilidades (HIGHSMITH, 1999, p. 5). Na Itália, Dickie Greenleaf dizia estudar pintura, mas na opinião de seu pai, ele não tinha nenhum talento (p. 6), fato comprovado por Ripley, ao ver as pinturas de Dickie (p. 60). O fato é que tanto Dickie quanto Bruno recusam-se a realizar o desejo do pai. A utilização deliberada de referências intertextuais e imagéticas não é particularidade de um período ou movimento literário, sendo, em geral, um traço do próprio romance. Do mesmo modo, a proliferação de imagens torna inexorável a sua assimilação pela literatura, seja como uma questão cognitiva e relacionada à experiência de vida do autor, seja como um empréstimo por meio do qual a literatura luta por sua sobrevivência (CRUZ, 2003, p. 215). Ainda assim, as diversas referências intertextuais e imagéticas do romance em questão apontam para questões como intermediação do mundo por meio das imagens, a farsa, a fraude e a imitação, conforme poderemos concluir em seguida, ao tratarmos do terceiro nível de análise, no qual sugerimos um significado ou interpretação para o romance, com base nas análises anteriores. 3.3. Análise de signos simbólicos Se em Crime e castigo (1866), de Dostoievski – um dos autores preferidos de Patricia Highsmith –, o personagem central tem o desejo de melhorar o mundo matando uma agiota e, sem planejar, acaba matando também a irmã da agiota, que tinha visto o corpo, no romance de Highsmith há também o planejamento de um homicídio e a ocorrência de um outro não planejado. Uma diferença fundamental, porém, é que Ripley não pensa em melhorar o mundo, a não ser o seu próprio. Além disso, Ripley não é descoberto e passa a desfrutar de uma vida relativamente tranquila, como podemos ver nos romances posteriores da série. Dificilmente se pode encontrar um traço de julgamento em relação às atitudes do personagem. Suas reflexões, transmitidas pelo narrador, demonstram o seu sentimento em relação aos outros ou às situações, mas não veiculam nenhum juízo moral a respeito de suas próprias atitudes e emoções. Por outro lado, nas suas relações e no seu modo de agir e pensar, Ripley parece se tratar de uma pessoa comum, que não se diferencia especialmente das outras. O romance de Patricia Highsmith, ao passo que esclarece os acontecimentos do ponto de vista do personagem Thomas Ripley, o faz de forma pouco linear e com uma série de lacunas e interrogações. Não se sabe se alguém fez algo, mas sim que Ripley suspeita que isso aconteceu. As idas e vindas do seu pensamento, Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 85 85 11/7/2011 19:21:38 Gragoatá Sergio Ricardo Lima de Santana as narrativas espaciais, as constantes descrições de lugares, ações, gestos e expressões, sob a perspectiva de Ripley, dão um tom subjetivo que, ao mesmo tempo, potencialmente provoca no(a) leitor(a) uma cumplicidade com os sentimentos e atitudes de Ripley. Este não está certo o tempo todo, não é um herói infalível nem digno de admiração, mas é, parodiando Nietzsche, “humano, demasiado humano”. Considerando-se que todo discurso tem uma vontade de verdade (BARTHES, 1996-7, p. 43), a tese de Highsmith parece estar ligada à existência de uma ilegalidade difusa e de uma farsa subjacentes à própria sociedade. Se para Bruno, de Pacto sinistro, qualquer negócio é uma falcatrua legalizada (HIGHSMITH, 2006, p. 16), para Ripley, uma vida prazerosa seria aquela em que ele tivesse dinheiro o suficiente para colecionar peças de arte, ler bons livros (HIGHSMITH, 1999, p. 250), conhecer a arte de diversos países e ajudar jovens artistas talentosos que precisassem de dinheiro (p. 284). O Ripley de Highsmith sai impune e ainda fica com a herança de Dickie. Posteriormente, no romance Ripley subterrâneo, saberemos que o personagem passa a investir também na falsificação de pinturas. Será um sujeito comum, amante das artes, casado e vivendo em uma pequena cidade perto de Paris. A ideia da farsa mencionada acima pode ser sustentada se analisamos as temáticas sugeridas ou abordadas, como a falsificação de pinturas, por meio da qual o pintor Derwatt, mesmo depois de morto, acaba se tornando cada vez mais renomado. Aquele que nota a farsa, o personagem Murchison, é eliminado por Ripley. Além disso, Tufts, que tinha sido discípulo do verdadeiro Derwatt e passa a ser cúmplice da fraude, sofre em sua consciência por sentir que está traindo o seu mentor e acaba cometendo suicídio. Ripley, sempre se reinventando, chega a se disfarçar de Derwatt, para, por meio de uma conferência de imprensa, provar que o pintor falsificado continua vivo. É insistente o tema do apagamento das diferenças, após o que tudo volta à sua (aparência de) normalidade. Voltando ao romance O talentoso Ripley, os dias de Ripley, desde que ele conheceu Dickie, tinham sido dias da mais plena felicidade, a ponto de ele chegar a pensar que, mesmo se fosse descoberto e condenado à cadeira elétrica, tais dias teriam valido a pena: […] supondo que o pegassem pelas impressões digitais, ou pelo testamento, e sentenciassem-no à cadeira elétrica – será que a morte na cadeira elétrica poderia se igualar no sofrimento, ou a própria morte aos vinte e cinco anos seria tão trágica, a ponto de ele não poder dizer que os meses desde novembro até agora não tinham valido a pena? Certamente que não (HIGHSMITH, 1999, p. 284).10 O Ripley de Highsmith é um herói amoral, fiel somente aos seus sentimentos e gostos. Sonha conhecer outros países, especial86 Rev Gragoata n 29.indb 86 Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:38 A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance [...] supposing they got him on the fingerprints, and on the will, and they gave him the electric chair – could that death in the electric chair equal in pain, or could death itself, at twenty-five, be so tragic, that he could not say that the months from November until now had not been worth it? Certainly not (HIGHSMITH, 1999, p. 284). 10 mente depois que a estada na Europa lhe despertou um grande interesse pelas artes e, em especial, a pintura (p. 284). Colecionaria pinturas e incentivaria novos artistas, se tivesse dinheiro. De fato, acaba recebendo o dinheiro de Dickie, pois o testamento forjado é aceito por Herbert Greenleaf. Ainda que tema, por alguns instantes, que encontrará policiais em todos os portos pelos quais passar, ele está livre (p. 290). A sua preocupação em ser descoberto algum dia parece ser simplesmente um traço ou uma fantasia de qualquer falsário – quando falsificava cartas de cobrança de impostos, em Nova York, também temia ser preso. No entanto, a vida que pretende levar é de contemplação e prazer, usufruindo das artes e provavelmente daquilo que o mundo tiver de melhor para lhe oferecer. Nessa história, é colocada em xeque a diferenciação essencial entre certo e errado, bem e mal, verdadeiro e falso, o que acontece em virtude da própria estrutura da narrativa. De certa forma, o(a) leitor(a) tem conhecimento do que se passa na mente do anti-herói amoral Thomas Ripley e fica sujeito à sua simpatia. Pode-se dizer que o(a) leitor(a) corre o risco de cair em uma armadilha, uma vez que não é necessário concordar com os atos de Ripley para perceber o quanto os seus pensamentos e emoções são comuns e tipicamente humanos. Por um lado, o personagem Ripley é aquele sujeito que consegue se livrar, mesmo com alguns arranhões, das diversas situações em que precisa manter o status que atingiu e do qual não deseja abdicar. Suas motivações podem parecer levianas do ponto de vista de uma ética humanista, mas não daquilo que faz sentido para o personagem de Highsmith: os bens materiais, as obras de arte, a livre circulação entre as cidades, as atividades simples do dia a dia. Tanto no que concerne à cultura e à arte, como ao ser humano e suas motivações, o personagem e os romances parecem advogar que o sistema que constrói as diferenças é o mesmo que as apaga, quando isso é conveniente. Por outro lado, a construção do romance em questão tem como algumas de suas principais características o diálogo com outras obras e outras linguagens, como livros, filmes, o próprio cinema e as imagens, mas também a pintura e a música. Como meta-narrativa, o romance já carrega em si um confronto de discursos e ideologias, uma pluralidade de vozes (CRUZ, 1997, p. 11). Entre as características da condição pós-moderna está a ênfase na imagem, a qual tem sido multiplicada pela fotografia e pelo cinema (e ainda mais intensamente na atualidade, por meio das mídias digitais). A literatura tem incorporado, em sua própria estrutura, bem como nas escolhas temáticas, essa característica tão marcante e sem sinais de arrefecimento na cultura atual (CRUZ, 1997, p. 6-9). Se seguirmos esse raciocínio, poderemos supor que o personagem Tom Ripley pode ser considerado como criação de uma lógica em que a força da imagem sobre os sentidos já se Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 87 87 11/7/2011 19:21:38 Gragoatá Sergio Ricardo Lima de Santana faz presente. A reprodução de imagens, da forma como se dá em nossa cultura contemporânea, frequentemente designada como pós-moderna, denota e implica uma saturação de cópias do mundo atual. Diminui o contato direto do sujeito com os objetos, sejam eles materiais ou abstratos, e o conhecimento ocorre sob a intermediação das imagens, como em alguns exemplos citados anteriormente – por exemplo, quando Ripley começa a conhecer Dickie pelas fotografias. 4. Comentários finais Esta breve análise do romance, na qual aplicamos a proposta metodológica esboçada, deve ser vista, em primeiro lugar, como um exemplo possível, entre muitos outros, e que pode ser desenvolvido e tomar outras direções. Para a análise da construção de sentimentos e das possibilidades de significação, na qual reconhecemos a categoria da primeiridade, diversos outros fatores poderiam ser tomados em consideração, como a estrutura das orações e dos períodos, a escolha lexical etc.. Similarmente, a identificação de elementos relacionados à categoria da secundidade (como outros intertextos, dêiticos e fatos), assim como a discussão sobre a interpretação provisória, poderiam seguir caminhos os mais variados. Entretanto, uma vez que nosso objetivo é delinear uma proposta metodológica no âmbito restrito de um artigo, os resultados encontrados parecem suficientes para prosseguirmos com a discussão. Sendo um romance particular a tradução de uma ideia para o código literário do gênero ‘romance’, sua análise semiótica idealmente deve permitir tanto a identificação da ideia traduzida, quanto dos processos semióticos utilizados para veiculá-la. Adicionalmente, tal análise pode proporcionar uma maior compreensão do próprio gênero narrativo em questão, ao menos da maneira como ele era concebido no momento de sua produção. De fato, pudemos identificar instâncias de signos icônicos e indexicais utilizados na composição do romance, bem como um interpretante plausível, obtido a partir das análises iniciais. Podemos afirmar que elementos marcantes do romance em questão, como as narrativas espaciais, as descrições e metáforas, bem como a recorrência de temas, situam-se no campo do icônico, da primeiridade. Com isso, podemos supor que esses elementos ou são características do romance, ou do romance da época (meados do século XX), e testar essa hipótese em outros romance. Por outro lado, é possível que encontremos, na análise de outras obras, signos icônicos diferentes destes observados aqui. Em relação aos signos indexicais, hipóteses semelhantes podem ser levantadas. Por exemplo, a intertextualidade que destacamos no romance, apesar de ser uma característica presente em toda a literatura, provavelmente é utilizada, em determinadas 88 Rev Gragoata n 29.indb 88 Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:38 A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance obras, de forma deliberada, para, por exemplo, sustentar a ideia defendida pelo romance. Pode-se supor que a exacerbação do uso da intertextualidade faça parte da poética contemporânea. As referências imagéticas do romance em questão, ao passo que concorrem para sustentar ainda mais o tema da farsa, da cópia e da fraude, refletem os signos que estão presentes no contexto de surgimento do romance, no qual os objetos são mediados por suas representações. É possível se investigar como as mídias digitais e a cibercultura têm reconfigurado a literatura, da mesma maneira que a fotografia e o cinema têm feito desde o advento destes sistemas de signos. No que concerne ao interpretante, a exemplo da análise aqui realizada, acaba se constituindo em um meta-signo ou tradução na forma de um outro texto, desta vez acadêmico. Assim, a análise apresentada no item 2 anterior é uma tradução do romance para um artigo acadêmico. Este mesmo texto, sendo signo, é uma tríade, formada pelo representamen (o próprio texto), o seu objeto (o romance O talentoso Ripley) e o interpretante (aquilo que a referida análise apresentada gera na mente de quem a lê). O signo aqui gerado oferece uma visão parcial, que pode continuar sendo infinitamente desenvolvida e colocada em contato com outras visões. O objetivo deste processo é fazer o interpretante voltar-se para objeto, o que é a função mesma do signo. A percepção aqui exposta de O talentoso Ripley, como sendo a denúncia de uma farsa disseminada na sociedade, onde as cópias se multiplicam e as imagens substituem os objetos – assim como o dinheiro suspende a moral –, é, portanto, um interpretante que tentamos fazer voltar-se para o objeto, mas que, ao mesmo tempo, o fabrica. Em um mundo cada vez mais mediado, o objeto, se algum dia existiu, parece estar para sempre perdido. De qualquer sorte, uma das vantagens da metodologia apresentada é a orientação do processo de análise do texto literário de forma que tanto suas características internas quanto as relações estabelecidas pelo texto com o contexto exterior sejam igualmente consideradas. Além disso, é requisito lógico da proposta que o(a) analista se insira na própria análise, por meio das relações que ele mesmo estabelece entre o texto investigado e outros textos, teorias e conhecimentos, sem que a análise se reduza a impressões subjetivas e opiniões pouco embasadas, nem tampouco caia na ilusão da objetividade pura. Antes, a abordagem que apresentamos permite um exercício interdisciplinar virtualmente ilimitado. Uma outra vantagem está na percepção de que todas as coisas funcionam como signos, não havendo hierarquia entre os seus diferentes tipos e formas de apresentação. Por exemplo, um romance pode, em algum caso, ser a tradução de uma teoria ou de um tratado filosófico, e a identificação deste fato depende das ferramentas das quais dispõe o(a) leitor(a) ou analista. Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 89 89 11/7/2011 19:21:38 Gragoatá Sergio Ricardo Lima de Santana Abstract This paper proposes a methodological approach of the novel based on Charles Sanders Peirce’s semiotics, by using the universal categories of the firstness, secondness and thirdness for analysis of literary texts. A brief analysis of the novel The Talented Mr. Ripley, by Patricia Highsmith, is made, in order to demonstrate the applicability and relevance of the proposed methodology. It was concluded that, given the contemporaneous complexity in terms of the multiplication of signs, the approach can be advantageous for requiring the analysis of the aspects of the novel, without neglecting the participation of the analyst’s own subjectivity. Keywords: Novel; semiotics; methodology Referências BARTHES, Roland. Aula: Aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França. Tradução e pósfácio de Leila Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 1996-7. CINÉMA Cinemas 66. Don Kent; Joan Dupont; Patricia Highsmith: 6 parts, starting with “Good Morning, Vietnam” with Robin Williams; No. 6: Patricia Highsmith (A2). 11 set. 1988. 66’ (Highsmith part from 30’ to 40’). VHS, son., color. Fr. CRUZ, Décio Torres. Post-modern meta-narratives: literature in the age of image. Scott’s Blade Runner and Puig’s novels. 1997. 302f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada). State University of New York, Buffalo. ______. O pop: literatura, mídia e outras artes. Salvador: Quarteto, 2003. HIGHSMITH, Patricia. The talented Mr. Ripley, Ripley under ground, Ripley’s game. New York: Everyman’s, 1999. ______. Pacto sinistro. Tradução Tite de Lemos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. LIMA DE SANTANA, Sergio Ricardo. As várias faces de Ripley: entre a literatura e as adaptações cinematográficas. 2009. 254 f. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal da Bahia, Salvador. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 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Niterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 91 91 11/7/2011 19:21:38 Rev Gragoata n 29.indb 92 11/7/2011 19:21:38 A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes Davi Andrade Pimentel “a escrita é uma realidade ambígua” (BARTHES, 2004, p. 15) Resumo Este artigo analisa a abordagem metodológica, denominada de crítica-escritura, apresentada pela pesquisadora Leyla Perrone-Moisés em seu livro Texto, crítica, escritura. Neste livro, Perrone-Moisés estuda textos dos escritores Maurice Blanchot, Michel Butor e Roland Barthes, demonstrando o novo percurso da crítica literária, datado do final do século XIX, que se baseia numa postura de aproximação com o objeto literário, não mais o afastando, não mais permanecendo à sua sombra, mas imergindo deliberadamente em sua arquitetura discursiva, confundindo-se, muitas vezes, com o próprio objeto. Palavras-chave: Crítica-Escritura, Literatura, Blanchot, Butor e Barthes Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 93 Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:38 Gragoatá De acordo com Blanchot, a busca da obra literária em tentar entender-se, em tentar procurar respostas para as suas perguntas, nunca deixará de ser uma esperança, uma esperança que se afirma no/pelo desejo de nunca ter aquilo que se espera: “a esperança proclama a vinda esperada daquilo que não existe ainda senão como esperança.” (BLANCHOT, 2001, p. 84). Caso a esperança trouxesse as respostas às perguntas desejadas, a obra literária deixaria de existir, pois o grande alicerce que estimula a sua sobrevivência atemporal e, consequentemente, a ininterrupta produção de sentidos desapareceria. Estamos falando da ambig uidade: “Na literatura, a ambiguidade é como entregue aos seus excessos pelas facilidades que ela encontra, e esgotada pela extensão dos absurdos que pode cometer.” (BLANCHOT, 1997, p. 327-8). 2 PERRONE-MOISÉS, 2005, p. XII. A partir daqui, as referências ao livro Texto, crítica, escritura serão indicadas apenas com o número da página entre parênteses. 1 94 Rev Gragoata n 29.indb 94 Davi Andrade Pimentel Aquele que escreve está disposto a se perder deliberadamente, diz-nos Blanchot. Barthes comenta que a liberdade é permitida ao crítico quando ele se entrega ao corpo erótico da linguagem. Butor revela que somente se pode fazer crítica inventando. Nessas três concepções de escrita, presenciamos algo perturbador e apaixonado: o novo movimento da crítica literária, que deixa o seu posto inferior, subalterno, de simples auxílio/explicação de obras literárias, para tornar-se texto de escrita, texto produtivo, e não mais texto representativo de uma narrativa ficcional. Nesse novo percurso, fora das hierarquias, o texto crítico alcança uma beleza semelhante à poeticidade das obras que fazem parte do seu jogo textual. Assim, a escrita crítica, como salienta Leyla Perrone-Moisés, no livro Texto, crítica, escritura, passa a ser escritura: movimento simbiótico, movimento ambíguo, movimento produtivo, movimento avassalador, movimento literário, como só soem ser o movimento da escrita poética. O surgimento dessa nova crítica, segundo Perrone-Moisés, na obra acima referida, é datada do final do século XIX, quando a obra literária deixa de ser representação da Natureza para voltar-se para si, para os conflitos de sua constituição, para os questionamentos de sua elaboração, dialogando consigo mesma e perdendo, aos poucos, o diálogo representativo com o mundo: “Desde então, a obra literária tem-se tornado, cada vez mais, uma reflexão sobre a literatura, uma linguagem que contém sua própria metalinguagem” (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. XI-II). Desse modo, não há mais lugar para a crítica institucionalizada, uma vez que a nova obra literária rompe com os paradigmas estratificados, não precisando, por sua vez, de um texto que tente explicá-la ou desvendá-la, visto que esse trabalho, metalinguisticamente, já se efetivava no próprio discurso literário1: “A crítica institucionalizada entrou em crise: as novas obras a repeliam, tornavam-na supérflua.”2 A crítica, baseada na “função explicativa, função informadora, função didática” (p. XII), torna-se material obsoleto, não mais necessário às obras e aos leitores. A decadência da crítica institucionalizada deve-se, também, à queda do Ser/Sujeito/Autor/Deus em todas as ciências humanas a partir do início século XX. O Sujeito é posto em questão, não havendo mais espaço para autores-deuses ou autores à luz do Criador, pois as hierarquias não mais existem: o eu somente existe a partir do outro ou, como salienta Barthes, a obra somente começa a existir através da leitura. O que se percebe, nesse entremeio, é uma crescente partilha de poderes e de saberes, não há mais o tirano que impõe o seu saber ou a sua Verdade, não há mais elementos a serem copiados. Agora, a obra literária não é vista à sombra de seu Autor, de elementos extraliterários ou como reflexo da realidade. A obra literária liberta-se, uma vez que o seu carcereiro está morto: “Sabemos agora Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:38 A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas” (BARTHES, 2004 A, p. 62). Em outras palavras, diz-nos Deleuze: “Escrever não é certamente impor uma forma de expressão a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento” (DELEUZE, 1997, p. 11). Na mesma linha de pensamento, Blanchot comenta: O escritor não pode permanecer junto da obra: só pode escrevê-la, pode, quando ela está escrita, somente discernir nela o acercamento do abrupto Noli me legere que o distancia de si mesmo, que o afasta ou que o obriga a regressar àquela situação de “afastamento” em que se encontrou inicialmente, a fim de se converter no entendimento do que lhe cumpria escrever. (BLANCHOT, 1987, p. 14, grifos do autor) Com a morte do Autor, a obra pode ser vista e lida livremente. Não há mais a reverência à obra literária, o “respeito” ao autor, não há mais a prática da cópia edificante, efetuada pela crítica anterior, que não ousava ir contra os preceitos da obra lida. Não mais existindo autor a ser reverenciado e não mais existindo obra a ser dada como representante da Natureza e, por isso mesmo, obra sagrada, a crítica reinventa-se, como salienta PerroneMoisés: “Assistimos, então ao aparecimento de um novo tipo de discurso literário, aflorando no lugar anteriormente ocupado pelo discurso crítico: um discurso crítico-inventivo” (p. XII). Do mesmo modo que surge uma nova literatura, há o surgimento de uma nova crítica, baseada no texto-escritura, que deseja desgarrar-se do laço de dependência com as obras analisadas. Ou seja, assim como a obra mata o seu autor, a crítica-inventiva deseja acabar com a submissão ao texto analisado, já que eles participam de um mesmo espaço, o espaço literário, com suas perdas e suas ambiguidades. A nova crítica e a nova literatura perdem o ranço do opressor e do oprimido para instaurarem-se como textos de escritura: textos produtivos por excelência, no que se refere à interpretação e à pluralidade de significações. A nova crítica não buscará mais verdades ou parâmetros a serem seguidos, pois desejará a pluralidade das formas e das significações do texto comentado e do seu próprio texto: “Não se trata mais, para o crítico, de simplesmente escrever bem e de assumir por vezes um estilo poético. Trata-se de aceder, na sua prática de linguagem, à liberdade total que é a de todo escritor.” (p. XII). Nesse momento, duas observações são necessárias: primeiro, na crítica-escritura, o texto crítico não perderá o seu caráter avaliativo e nem explicativo; todavia, esses dois critérios serão subvertidos em uma não-busca pela verdade, ambos optando por apresentar a ambiguidade do texto poético. Em relação a essa opção crítica, fala Perrone-Moisés: “O crítico não se porá diante dela [obra] como Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 95 95 11/7/2011 19:21:38 Gragoatá Davi Andrade Pimentel um explicador de ambiguidades mas como um desenvolvedor de ambiguidades, isto é, como um escritor.” (p. 78-9). No texto-escritura, não haverá escalas de valores, embora a questão do valor de uma obra já exista na escolha do crítico em tê-la junto ao seu texto. Ao escrever sobre uma narrativa, o crítico está nos oferecendo o seu olhar sobre o objeto analisado, por mais que a linguagem crítica esteja isenta de objetividade e por mais que o crítico se perca nesse comentário, silenciando-se ao falar e ausentando-se ao se apresentar, como é o caso de Maurice Blanchot, visto que a obra literária não apresenta verdades indubitáveis, mas possibilidades: “Esses textos refletem o mal-estar de uma leitura que busca conservar o enigma e a solução, o malentendido e a expressão desse mal-entendido, a possibilidade de ler a impossibilidade de interpretar essa leitura.” (BLANCHOT, 1997, p. 13). Segundo, no surgimento da crítica-escritura, datado do fim do século XIX, em que a linguagem crítica se aproxima da linguagem poética, alguns podem contestar, afirmando que sempre existiu a crítica poética (os críticos-artistas), bem como sempre existiu o poeta crítico (os artistas-críticos). Em relação a essa contestação, Perrone-Moisés comenta: Os críticos-artistas – um Sainte-Beuve, um Thibaudet – eram bons estilistas sem ser verdadeiramente escritores; seu objetivo primordial era explicar, classificar, avaliar, mesmo se, além disso, seus textos eram semeados de imagens, de “belezas” literárias. Por sua vez, os artistas-críticos – um Hugo, um Baudelaire – continuavam sendo antes de tudo poetas, e neles o objetivo crítico inicial se esfuma, quando não se perde totalmente. (p. 92) O Canto das Sereias é uma interpretação literária de Blanchot para a passagem de Ulisses pelas Sereias. De acordo com o crítico, o escritor tem de agir diferente de Ulisses, não tapando os ouvidos, mas entregando-se por completo às belas moças. É uma forma meta fórica de expressar a imersão e o perigo daqueles que adentram o espaço da escrita literária. 3 96 Rev Gragoata n 29.indb 96 Antes da crítica-escritura, houve textos parecidos; contudo, os muros de separação ainda prevaleciam no momento da análise, não se podia misturar a crítica (análise) com a literatura (criatividade/produtividade). É com a escritura que ocorre o apartheid textual, onde se condensam esses dois tipos de textos, num ritmo melódico e poético, em que a crítica se deixa levar pelo Canto das Sereias3 e a literatura se deixa ser olhada pela crítica-escritura, igualmente, Eurídice a Orfeu, ambos soltando-se dos mastros, ambos perdendo-se no inferno: “Ele [Orfeu] perde Eurídice e perde-se a si mesmo, mas esse desejo e Eurídice perdida e Orfeu disperso são necessários ao canto, tal como é necessária à obra a prova da ociosidade eterna.” (BLANCHOT, 1987, p. 173). Com o muro derruído, a liberdade da escritura se evidencia de várias formas, uma delas está na intertextualidade. De acordo com Perrone-Moisés, ao citar Butor, tudo num texto é intertextualidade, e mesmo as citações, que parecem ter um ar inocente e de comprometimento com o texto original, escondem uma espécie de paródia: Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:38 A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes “A citação mais literal já é, em certa medida, uma paródia. O simples levantamento a transforma, a escolha na qual eu a insiro, seu recorte (dois críticos podem citar a mesma passagem, fixando seus limites de modo bem diverso), as supressões que opero em seu interior, e que podem substituir a gramática original por uma outra, e, naturalmente, o modo como eu a encaro, como ela é tomada em meu comentário.” (BUTOR apud PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 69-70) Tanto o texto literário quanto o texto crítico são intertextuais, ou seja, comentam, rememoram, fazem lembrar, parodiam, parafraseiam outros textos. E todo ato intertextual é um ato de absorção, de deglutição, de aprimoramento, de deslocamento e de transformação textual, tornando-se, por vezes, um processo complexo quando não conseguimos destacar o que é próprio ao texto lido e o que não o é, embora saibamos que as partes do texto original, imersos em outro texto, deixam de pertencer àquele que lhes deu origem. No entanto, há uma considerável diferença entre a intertextualidade crítica e a poética. A intertextualidade na crítica tradicional deve ser comprovada, uma vez que se está a falar de outro texto em termos científicos; e toda e qualquer omissão da comprovação pode gerar ônus ao crítico: “a intertextualidade crítica é declarada” (p. 70, grifos da autora). A comprovação não descarta a submissão do texto crítico ao poético. Em contrapartida, devido à liberdade de criação, “a intertextualidade poética pode ser tácita (e na maior parte das vezes o é)” (p. 70). A comprovação intertextual instaura, novamente, o muro entre a crítica tradicional e a literatura. A crítica institucional está amarrada aos grilhões da obra analisada, não lhe é permita a liberdade da escrita, a invenção poética. Contudo, no texto-escritura, a comprovação é optativa, o que demarca a produtividade do texto da nova crítica, pois há, nessa escrita, a possibilidade de interação total com o texto comentado, o que a aproxima da escrita literária: “Só a crítica-escritura pode ser um discurso verdadeiramente intertextual. Nela, não se trata de recobrir explicitando, mas de recobrir ambiguizando (isso é a disseminação, isso é a significância).” (p. 78, grifos da autora). Em textos de Blanchot, por exemplo, muitas vezes não conseguimos identificar a que obra ou a que autor o crítico faz referência em seus textos: ou por somente colocar entre aspas a citação sem o número da página ou por colocar o nome do autor sem a obra referida ou por colocar pura e simplesmente uma citação, o leitor que se esmere em identificar o texto citado. Isso comprova o poder de inovação/invenção da crítica-escritura, que procura absorver o texto comentado num nível tão literário que não é possível fazer a distinção entre os dois, o que provoca a pluralidade do novo texto crítico, como também a possibilidade de múltiplas interpretações desse texto. Exemplificaremos com este fragmento d’O espaço literário: Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 97 97 11/7/2011 19:21:38 Gragoatá Davi Andrade Pimentel Escrever apresenta-se como uma situação extrema que supõe uma reviravolta radical, à qual Mallarmé fez breve alusão quando disse: “Ao sondar o verso a esse ponto, encontrei, lamentavelmente, dois abismos que me desesperaram. Um deles é o Nada...” (a ausência de Deus, o outro é a sua própria morte). (BLANCHOT, 1987, p. 31) No trecho acima, Blanchot não comprova de qual texto mallarmeano essa citação pertence, ratificando a liberdade de criação da escritura, que não se submete a revelar a sua constituição, e por isso não se deixa subjugar, abrigando-se em seu véu subtendido e enigmático. Desde o início deste artigo, pontuamos a palavra escritura. Mas, o que seria, realmente, a escritura? Perrone-Moisés tenta nos explicar: Antes de empreender qualquer definição da escritura, devemos munir-nos de certas precauções: trata-se de um conceito (abstrato) operatório que não pode nem pretende recobrir exatamente nenhuma obra ou trecho de obra concretos. Menos (ou mais?) do que um conceito, trata-se de um conjunto de traços que permitem distinguir, em determinados textos, um aspecto propriamente indefinível como uma totalidade. (p. 29, grifos da autora) As tentativas de definição do termo escritura, dadas por Perrone-Moisés, em Texto, crítica, escritura, seguem as definições levantadas por Roland Barthes em sua extensa obra, como esta, por exemplo: “Na escritura múltipla, com efeito, tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado; [...] a escritura propõe sentido sem parar, mas é sempre para evaporá-lo: ela procede a uma isenção sistemática do sentido.” (BARTHES, 2004 A, p. 63, grifos do autor). Leitora assídua do teórico, a pesquisadora tece várias definições do termo escritura, que, igualmente a Barthes, tem como matéria-prima de sua constituição a mobilidade e o deslocamento, sempre agrupando certos conceitos para depois abandoná-los ou reagrupá-los. Num primeiro Barthes, autor d’O grau zero da escrita, a escritura tem um compromisso com a sociedade, pois é do meio social que a escrita surge e é para o social que ela se direciona. Não há escrita sem História. E quando a escrita tentar demonstrar a ausência da História, é nesse momento que ela se afirma enquanto “História profunda” (BARTHES, 2004, p. 4). E todo ato de escrita sustenta uma função: Língua e estilo são forças cegas; a escrita é um ato de solidariedade histórica. Língua e estilo são objetos; a escrita é uma função: é a relação entre a criação e a sociedade, é a linguagem literária transformada em sua destinação social, é a forma captada em sua intenção humana e ligada assim às grandes crises da História. (BARTHES, 2004, p. 13) N’O grau zero, Barthes salienta que a escrita literária é “uma realidade formal independente da língua e do estilo” (BARTHES, 98 Rev Gragoata n 29.indb 98 Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:38 A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes 2004, p. 7). Ela seria uma terceira dimensão da forma, que teria traços da língua (traços gerais de uma língua comum a todos os habitantes de um determinado espaço social) e traços de estilo (características próprias do autor, aquele dom que nasce com o sujeito criador). Como salientamos no parágrafo anterior, a escrita teria que ter uma função no meio social e ter um direcionamento. Nessas definições, que não deixam de ser um pouco contraditórias entre si, como é característica de Barthes, o escritor nos diz que o estilo “tem sempre algo de bruto: ele é uma forma sem destino, é o produto de um surto, não de uma intenção, é como uma dimensão vertical e solitária do pensamento. [...] ele é a ‘coisa’ do escritor, seu esplendor e sua prisão, é a sua solidão” (BARTHES, 2004, p. 10-1). Por não ter um vínculo com o real ou por ser particular demais, o estilo não é dado como participante da sociedade e, por consequência, está fora da arte: “Por sua origem biológica, o estilo se situa fora da arte, isto é, fora do pacto que liga o escritor à sociedade.” (BARTHES, 2004, p. 12). A noção de escrita ligada a uma função social e vinculada à História, logo, ao seu Autor, será abandonada por Barthes em seus demais escritos. Em O rumor da língua, Barthes nos diz: “A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve.” (BARTHES, 2004 A, p. 57). Nesse momento barthesiano, a noção de escritura perde a funcionalidade com o meio social, perdendo também o vínculo com o autor: o autor está morto, dirá Barthes. E as características de definição do estilo, elaboradas n’O grau zero, deixarão de ser características fora da arte para inteirarem-se como características elementares da escritura. Antes, o sugerir, o indecifrável e o indefinível pertenciam ao estilo do autor, agora, em O prazer do texto, essas características do gozo liberto, sem amarras, pertencerão à escritura: “O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu.” (BARTHES, 1999, p. 26). A linguagem da escritura passa a exercer no autor e no leitor um objeto de fetiche, de gozo, de suspensão das ideias, instalando-se na liberdade do inconsciente, onde tudo é desvendado e produzido à luz do nãodito. No que se refere ao inconsciente barthesiano, Perrone-Moisés comenta: “A valorização progressiva do inconsciente nos textos de Barthes leva-o assim a uma sutil reformulação dos problemas da escritura.” (p. 35). O texto-escritura não tem um pacto com a verdade, já que a obra literária, seu “objeto de estudo”, nada diz: “a obra – a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. [...] Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime.” (BLANCHOT, 1987, p. 12). Grande parte da literatura do início do século XX não tem um objetivo único, não tem uma mensagem a ser dada ao final de sua narrativa, ela Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 99 99 11/7/2011 19:21:38 Gragoatá Davi Andrade Pimentel apenas se apresenta; e, apresentando-se, deixa-se flanar nas interpretações que suscita o seu roldão ambíguo discursivo: “Escrever é praticar uma linguagem indireta, cuja ambiguidade não é de fim mas de fato.” (p. 33). O texto-escritura não é uma forma/instrumento de comunicação, ele não diz o mundo, diz apenas de si mesmo, uma vez que ele elabora um espaço narrativo de regras próprias, em que o seu referente é o próprio texto-escritura. A característica principal da escritura é a produção, é a disseminação de vários textos a partir da leitura de outros textos, é a concomitância textual, é a quebra de hierarquias, é o desenvolvimento poético. Aquele que escreve está perdido, pois se deixou perder nos amavios eróticos da linguagem poética. E é próprio ao crítico que exerce a escritura o deixar-se levar, o deixar-se escrever sem fim, sem propósito, escrever sem funcionalidade, escrever por escrever. Sobre essa questão, diz-nos Perrone-Moisés: “O crítico-escritor é um ser de aparição e de desaparecimento, de prazer e de gozo, de consistência e de perda e, como tal, um exemplo significativo do escritor em crise – o escritor de hoje.” (p. 60). A pesquisadora cita três críticos-escritores em seu livro Texto, crítica, escritura: Maurice Blanchot, Michel Butor e Roland Barthes. De acordo com a autora, “Blanchot fala a obra literária de dentro da escritura, na vizinhança perigosa do ‘centro da esfera’ (origem, silêncio e morte).” (p. 96). A concepção de literatura, para Blanchot, é bastante singular. Ao falar o que seria literatura, o crítico acerca-se, como todo e qualquer pensador, de um corpus particular, onde ele apresentará as bases do que para ele seria literatura: Kafka, Beckett, Artaud, Bataille, Sade, Borges, Breton, Gide, Mallarmé, Valéry, Virginia Woolf, dentre outros. Em relação aos autores escolhidos por Blanchot, Perrone-Moisés comenta: “Os grandes, para Blanchot, são os que assumem a louca empresa de autodestruição que é a escritura” (p. 103). Na perspectiva de Blanchot, a literatura é um mundo próprio, com regras próprias, instituído pela ambiguidade, sua força produtiva e sua própria negação. Esse mundo poético produtivo é constituído de uma linguagem literária distante da linguagem utilitária com a qual nos comunicamos no dia-a-dia, uma vez que a palavra poética nasce e se relaciona com o espaço literário que a originou. Na perspectiva blanchotiana, a literatura nunca faz uma relação imediata com os referentes do mundo prático, ou seja, a literatura não é representação, não serve para, ela simplesmente é, não tendo uma função prática no mundo organizacional, ela apenas apresenta-se: “Sob essa perspectiva, reencontramos a poesia como um potente universo de palavras cujas relações, a composição, os poderes, afirmam-se, pelo som, pela figura, pela mobilidade rítmica, num espaço unificado e soberanamente autônomo.” (BLANCHOT, 1987, p. 35). Não pensemos que por não representar e por não servir para um objetivo imediato, a literatura é um mero espaço inocente. 100 Rev Gragoata n 29.indb 100 Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:38 A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes Blanchot comenta que somente se pode chegar ao espaço literário através da perda: “A obra exige do escritor que ele perca toda a ‘natureza’, todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros e consigo mesmo pela decisão que o faz ‘eu’, converta-se no lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal.” (BLANCHOT, 1987, p. 50). Aquele que decide escrever responde a um demônio interior (um chamado, uma força, que o impele a escrever), despojando-se do eu para se tornar ele, para se tornar um ser múltilplo, perdendo-se nos ambientes, no tempo e nos personagens literários. O escritor se divide, se multiplica, despoja-se de si mesmo, de seus conceitos mundanos, para poder adentrar no espaço das impossibilidades literárias: seja a impossibilidade de estabilização discursiva, seja a impossibilidade da morte4, seja a impossibilidade de respostas para os questionamentos que surgem ao longo do espaço narrativo. E não apenas o escritor se perde, mas também aquele que escreve sobre as narrativas literárias, pois somente se pode falar da ausência perdendo-se nessa ausência. A escritura, para Blanchot, é perda, é afundamento, é desrazão: Escrever é a loucura própria de Sade. Dessa loucura, provocada pela prisão ou que pelo menos veio a tornar-se o que é – uma força subterrânea e sempre clandestina – a partir dela, a liberdade não o livra, antes a duplica de uma outra loucura que o fará crer que ela pode afirmar-se à luz do dia, como a reserva ou o futuro das possibilidades comuns. (BLANCHOT, 2007, p. 209) A morte entendida como fim, seja como fim das lamentações e da errância dos personagens, da fragmentação da narrativa e da instabilidade do discurso ou morte como verdade absoluta e como poder. 4 Os dois escritores (o romancista e o crítico) devem se deixar perder, eles devem sucumbir ao chamado das Sereias para um lugar ainda não formulado, de origem desconhecida, porém, de ancoragem certa, o espaço literário. Eles devem olhar para trás, perderem-se em Eurídice-obra-literatura. E não devem de modo algum ter um diálogo socrático da ordem, da objetividade e da razão, eles devem possuir um discurso da ausência, do vazio, da negação: “Mas o próprio do escritor é, em cada obra, reservar o indeciso na decisão, preservar o ilimitado junto ao limite, e nada dizer que não deixe intacto todo o espaço da fala ou a possibilidade de dizer tudo.” (BLANCHOT, 2005, p. 149). Os termos ausência, vazio e negação devem ser interpretados à luz da escrita blanchotiana. Esses termos não possuem uma significação pejorativa acerca do texto literário, mas o contrário, visto que são elementos essenciais do espaço poético para Blanchot. A literatura é vazia, pois não tem uma verdade a ser usada com estandarte, e sim uma pluralidade que excede a completude, beirando o vazio. A literatura é o tudo que se transforma no nada (vazio). Por dizer tudo ao mesmo tempo, por apresentar várias noções de escritura concomitantemente, a linguagem poética nada diz, mantendo “apenas um murmúrio que nada acrescentará ao grande tumulto das cidades que suportamos ouvir.” (BLANCHOT, 2005, p. 320). A literatura é negação ao abandonar qualquer refe- Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 101 101 11/7/2011 19:21:39 Gragoatá Davi Andrade Pimentel rência explícita com o mundo e ao não desejar empunhar uma verdade última e absoluta. Ao negar o mundo, a literatura nega a si mesma como um constructo do homem, haja vista que quem a elabora não é um sujeito social, mas um sujeito literário. Desse modo, o autor, como constituição social, é descartado/expulso da obra: “Ninguém que tenha escrito a obra pode viver, permanecer junto dela.” (BLANCHOT, 1987, p. 14). Como o texto literário não sustenta uma intenção, a voz do autor é mais uma voz no meio de tantas outras vozes que surgem no espaço literário. O autor não tem domínio sobre o que escreve, diz-nos Blanchot. Se houve uma intenção no início da escrita, essa intenção passou a ser fragmento de escrita, elemento literário e, por isso, elemento ambíguo. De acordo com Blanchot, a literatura se basta. A literatura é ela mesma. A literatura não serve para. A literatura é perdição. A literatura é ausência. Numa interpretação importante da crítica de Blanchot, os comentários de Perrone-Moisés podem ser resumidos com esta seguinte frase: “O discurso de Blanchot é intransitivo, não diz nada a não ser ele mesmo.” (p. 107). Ao terminar a sua fala sobre Blanchot, Perrone-Moisés a passa a outro escritor, Butor: “A face crítica da obra de Butor é simétrica e complementar à sua face inventiva, de modo que é realmente impossível separá-las.” (p. 126). A autora exemplifica o seu comentário sobre Butor a partir da leitura do texto butoriano História extraordinária, que não pode ser catalogado nos parâmetros textuais que nós conhecemos e não encontra na própria bibliografia do crítico lugar de classificação. Essa obra está em suspensão. Não é uma narrativa, mas também não é uma análise crítica propriamente dita, é apenas um texto de escritura. Nesse livro, Butor apanha alguns fatos da vida pessoal e da obra literária de Baudelaire, bem como recria fatos fictícios. Com esses fatos, o crítico faz desses pedaços baudelairianos argamassa de sua arquitetura textual. Baudelaire é reinventado por Butor. O poeta torna-se um constructo de uma nova figura, de uma nova persona textual: “Figura baudelairiana ou butoriana? Uma coisa e outra. Trata-se de uma figura baudelairiana na medida em que os dados, o material é baudelairiano; mas a coerência que aí encontramos só existe nesta escolha e neste arranjo particular que é Histoire extraordinaire.” (p. 124). Em História extraordinária, há um intenso jogo de escrita, várias formas de linguagem circundam essa narrativa: o começo do texto se inicia com um sonho de Baudelaire (sonho que realmente ocorreu e que foi escrito e enviado em carta para um amigo do poeta) e, logo depois, à escrita desse sonho (criação do inconsciente e desde já elemento puramente literário) são costuradas citações da obra de Baudelaire, que são retiradas à revelia do poeta, pois quem as escolhe e as utiliza livremente é Butor. A essa arquitetura textual é acrescentado Edgar Allan Poe, que dá título a esse texto butoriano (Baudelaire, em vida, traduziu Contos Extraordinários, de Poe). Ou seja, temos vários tipos de textos que 102 Rev Gragoata n 29.indb 102 Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:39 A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes nos oferecem uma pluralidade muito grande de interpretações. Esses textos comungam traços próprios, porém, eles somente podem ser vistos no todo, nunca separadamente. No exercício de bricolagem, Butor agrupa deliciosamente esses textos num jogo de linguagem que somente a escritura poderia dar acesso: Butor não cita Baudelaire como os críticos citam os autores. Os trechos de Baudelaire, mesmo se ainda entre aspas, não constituem um domínio à parte dentro do texto. Butor se apropria dos fragmentos de Baudelaire, dispõe-nos de outra forma, envolve-os com seu próprio texto, armando uma nova obra fortemente estruturada e doravante indivisível em suas partes. (p. 118) Nesse processo inventivo, a escritura que surge faz desaparecer o poeta, como também o crítico, pois o amálgama é tamanho que não podemos fazer distinções, tudo faz parte de um texto de criação. Claro que não podemos descartar que há uma análise, mesmo que criativa, da obra de Baudelaire; todavia, História extraordinária nos apresenta um texto que rompe com as barreiras e hierarquias impostas tanto pela crítica institucionalizada quanto pelo meio social, que não admitia a incursão criativa no discurso crítico. Deve-se a essa liberdade inventiva butoriana, a despreocupação da intertextualidade que se opera em sua escrita de não ser e de não querer ser comprovada, haja vista que tudo faz parte de um único texto; não há dividendos, nem cobranças, há, somente, arte de escritura: O grande crítico é aquele que é capaz de utilizar a obra anterior, não em seu próprio proveito, mas de tal modo que a obra anterior possa entrar na sua. Citação, crítica, colaboração, são as diferentes faces de uma mesma empresa. (BUTOR apud PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 131) Segundo Butor, não há crítica literária sem invenção/criação. Após a análise da crítica butoriana, é chamado o pensamento barthesiano para concluir o estudo sobre a crítica-escritura. No que se refere a Roland Barthes, terreno esmeradamente estudado por Perrone-Moisés, a autora nos diz: “Inconstante, charlatão, esnobe, reacionário, brilhante mas pouco profundo, hábil mas (ou portanto) perigoso – esses qualificativos o seguem, de perto ou de longe, com aquela impressionante constância que caracteriza, através dos séculos, a repulsa a toda vanguarda artística.” (p. 133). A partir das leituras das obras de Barthes, surgem muitas inquietações que se transformam, aos poucos, em questões: algum leitor, mesmo o mais dedicado, pode dizer que conhece Roland Barthes? Alguém pode, precisamente, classificar a obra barthesiana, impondo a ela rótulos ou impondo a Barthes fases, quando estamos nos referindo a um ser da ordem do deslocamento, da sugestão por excelência? O que dizer de sua crítica? Profunda, rasa, comezinha? E se a sua crítica for tudo ao mesmo tempo, Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 103 103 11/7/2011 19:21:39 Gragoatá Davi Andrade Pimentel misturando o sincrônico e o diacrônico, subvertendo o anacrônico? Isso não seria uma expressão libertária da crítica-escritura de Barthes? Nessa impalpabilidade, que é a escrita barthesiana, a única certeza da qual dispomos é a importância de Barthes para o estudo das artes, principalmente, para o estudo da obra literária, pois, seguindo os pressupostos da pluralidade poética, a escrita barthesiana torna-se também plural/diversa, haja vista que a obra de arte comporta múltiplas interpretações, não sustentando, assim, uma Verdade. Barthes não se contradiz. Barthes experimenta as possibilidades que a ele são ofertadas pelo espaço literário. No estudo de Perrone-Moisés, a obra barthesiana em análise é S/Z, em que Barthes comenta a narrativa Sarrasine, de Balzac. Essa leitura poderia se estender pelos demais livros de Barthes, uma vez que a autora estuda/comenta as peculiaridades da crítica-escritura barthesiana, que são inerentes aos demais estudos do crítico, como, por exemplo: o trabalho intertextual, no qual Barthes inicia um trabalho de fusão entre o objeto analisado e a sua escrita, transformando-os em escritura (linguagem plural/produtiva); a avaliação, que se inicia desde a escolha da obra até a sua análise subjetiva dentro do corpo da escritura, e que somente pode ser avaliada/estudada em termos de escritura ou dentro do espaço da escritura, jamais analisada por elementos extra-escritura; a bricolagem (prática das relações), que faz de pedaços de outros textos um quebra-cabeça textual que encontra na escrita barthesiana a sua coerência; a disseminação, que se refere à produção de sentidos dos textos barthesianos, devido à prática da escritura que envolve esses textos (escritura = produção, logo, leitura = disseminação = produção de outros textos); o erotismo: somente sabe trabalhar a linguagem quem a entende como um corpo pulsante, desejoso de carícias e de complementações; e a suspensão, a obra nunca está totalmente decifrada, pois não é decifrável completamente, permanecendo ausente e silenciosa. No decorrer deste artigo, o conceito de escritura, partilhado/ disseminado por Leyla Perrone-Moisés, em seu livro Texto, crítica, escritura, provém dos textos e das indagações de Roland Barthes sobre a escrita literária e a escrita crítica. A escritura, nos diversos livros do crítico, ganha/perde definições. Todavia, no que se reporta ao percurso barthesiano, poderíamos dizer que o conceito atual de escritura refere-se a todo texto que se deseja livre das amarras sociais/institucionais; que se faz poético através de sua pluralidade; que se faz produtivo por ser multifacetado e passível de interpretações; que se faz erótico por trabalhar com a linguagem em todos os seus aspectos sensuais, bem como a utiliza, e é utilizado, como forma de sedução: “Nada mais deprimente do que imaginar o Texto como um objeto intelectual (de reflexão, de análise, de comparação, de reflexo etc.). O Texto é um objeto de prazer.” (BARTHES, 2005, p. XIV). 104 Rev Gragoata n 29.indb 104 Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:39 A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes Como tentativa elucidativa e de conclusão, poderemos definir, não definindo completamente, que a escritura, segundo os críticos referidos neste artigo, é: perdição (Blanchot), invenção (Butor) e prazer/deslocamento (Barthes). Não poderíamos terminar este artigo sem lembrarmos que: “Escrever é entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça. É correr o risco da ausência de tempo, onde reina o eterno recomeço.” (BLANCHOT, 1987, p. 24). Abstract This paper analyses the methodological approach, entitled critical-writing, presented by the researcher Leyla Perrone-Moisés in her book Text, critique, writing. In this book, Perrone-Moisés studies the texts of the writers Maurice Blanchot, Michel Butor and Roland Barthes, showing the new course of literary criticism, dating from the late nineteenth century, which is based on an attitude of approximation to the literary object, dismissing it no longer, staying in its shadow no longer either, but immersing deliberately in its discursive architecture, often confusing this with the object itself. Keywords: Critical-Writing, Literature, Blanchot, Butor e Barthes Referências BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. ______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ______. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004 A. ______. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. S/Z. Paris: Éditions du Seuil, 1970. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. ______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. __________________. A conversa infinita 1 : A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001. ______. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. A conversa infinita 2: A experiência-limite. São Paulo: Escuta, 2007. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 105 105 11/7/2011 19:21:39 Rev Gragoata n 29.indb 106 11/7/2011 19:21:39 A abordagem metodológica da análise multidimensional Tony Sardinha Resumo O presente artigo apresenta a perspectiva metodológica da Análise Multiaspectual Multidimensional (Multi-feature, Multi-dimensional Analysis) ou simplesmente Análise Multidimensional (AMD, BIBER, 1985 et seq.), que é uma das metodologias em uso na Linguística de Corpus (SINCLAIR, 1991; MCENERY e WILSON, 1996; BIBER, CONRAD e REPPEN, 1998; BERBER SARDINHA, 2004; 2005; TEUBERT e KRISHNAMURTHY, 2007; BAKER, 2009; BERBER SARDINHA, 2009; LÜDELING e KYTÖ, 2009). A AMD viabiliza a análise em larga escala de variação de corpora eletrônicos e permite chegar a uma classificação de registros ou gêneros em termos de dimensões, que são padrões de coocorrência de elementos lexicogramaticais que subjazem aos textos de uma língua (BIBER, 2009). Como tal, as dimensões capturam o espaço de variação dos textos, sintetizam-no e mostram a proximidade ou distância entre os textos investigados. A AMD apoia-se na análise estatística de co-ocorrência de grupos de variáveis linguísticas, anotadas de modo automático ou semiautomático. Palavras-chave: Linguística de Corpus, Análise Multidimensional, Variação Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 107 Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:39 Gragoatá Tony Sardinha Introdução 1 ‘Register is used here as a cover term for any language variety defined by its situational characteristics, including the speaker’s purpose, the relationship between speaker and hearer, and the production circumstances.’ 2 ‘a corpus-based methodological approach to, (i) identify the salient linguistic co-occurrence patterns in a language, i n empirical/quant itative terms, and (ii) compare registers in the linguistic space defined by those co-occurrence patterns.’ 108 Rev Gragoata n 29.indb 108 A Linguística de Corpus é a área de investigação linguística responsável pela coleta e análise de corpora eletrônicos, com o auxílio de ferramentas computacionais (SINCLAIR, 1991; MCENERY e WILSON, 1996; BIBER, CONRAD e REPPEN, 1998; BERBER SARDINHA, 2004; 2005; TEUBERT e KRISHNAMURTHY, 2007; BAKER, 2009; BERBER SARDINHA, 2009; LÜDELING e KYTÖ, 2009). Corpora, por sua vez, são grandes quantidades de texto, coletadas criteriosamente e mantidas em formato de computador, com o propósito de servirem à pesquisa linguística (BERBER SARDINHA, 2004). São formados, por definição, por textos de um ou mais gêneros (ou outra variante discursiva). O presente artigo enfoca uma das metodologias da Linguística de Corpus, mais especificamente, a Análise Multiaspectual Multidimensional (Multi-feature, Multi-dimensional Analysis) ou simplesmente Análise Multidimensional (AMD, BIBER, 1985 et seq.). A AMD viabiliza a análise de variação em corpora e permite chegar a um classificação detalhada e abrangente de registros ou gêneros e das relações que estabelecem entre si. Tal classificação é operacionalizada por meio da anotação automática e semi-automática de variáveis relevantes para a caracterização dos gêneros, com o subsequente agrupamento e interpretação dessas variáveis em fatores, que são conjuntos de textos que possuem padrões de coocorrência de variáveis definidos estatisticamente. A AMD opera com o conceito de registro, que significa ‘uma variedade linguística definida por aspectos situacionais, incluindo o propósito do falante, a relação entre falante e ouvinte, e o contexto de produção’1 (BIBER, 2009 , p. 823), podendo indicar desde gêneros específicos, como artigos acadêmicos, quanto variedades mais gerais, como ‘documentos oficiais’ ou ‘discurso acadêmico’. Dimensões de variação são padrões de coocorrência de elementos lexicogramaticais que subjazem aos registros de uma língua (BIBER, 2009). Como tal, capturam o espaço de variação dos textos, sintetizam-no e mostram a proximidade ou distância entre os registros investigados. Um exemplo de dimensão de variação (da língua inglesa) é ‘Interação versus Informatividade’ (BIBER, 1988), que indica que todos os textos dessa língua possuem essas características essenciais, que são a interação, de um lado, e a informatividade, de outro: textos interativos tendem a ser menos informativos e vice-versa. A AMD se caracteriza como uma ‘abordagem metodológica baseada em corpus destinada a (i) identificar os padrões de coocorrência salientes da linguagem (...) e (ii) comparar registros no espaço linguístico definido por tais padrões.’2 (BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006 , p. 5). Como tal, busca revelar as dimensões de variação entre os registros de uma língua. Registro é o termo usado na AMD para se referir a ‘uma variedade linguística definida por Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:39 A abordagem metodológica da análise multidimensional aspectos situacionais, incluindo o propósito do falante, a relação entre falante e ouvinte, e o contexto de produção’ (BIBER, 2009 , p. 823). O termo possui considerável amplitude (BIBER, 1994 , p. 32), podendo especificar tanto gêneros específicos, como cartas de instituições de caridade (ANTHONY e GLADKOV, 2007) e artigos acadêmicos de bioquímica (KANOKSILAPATHAN, 2007), quanto variedades mais gerais, como ‘conversação’ (BIBER, 2004), ‘documentos oficiais’ e ‘humor’ (BIBER, 1988). Todos sabemos que há incontáveis textos em circulação em uma língua como o português do Brasil. Por sua vez, diversas teorias sustentam que os textos não variam livremente, mas na verdade relacionam-se estreitamente ao contexto cultural, situacional, de produção e de recepção, além de compartilharem recursos lexicogramaticais, e propõem conceitos como gênero e registro para explicar essa variação (BRONCKART, 1985; BAKHTIN, 1986; SWALES, 1990; BHATIA, 1993; EGGINS, 1994; FERGUSON, 1994; EGGINS e MARTIN, 1997; BRONCKART, 1999; MAINGUENEAU, 2002; BHATIA, 2004; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004; MACHADO, 2005; MAINGUENEAU, 2005; MEURER, BONINI e MOTTA-ROTH, 2005; MARTIN e ROSE, 2008). Muitas pesquisas em áreas como Análise de Discurso, Análise de Gênero, Linguística Sistêmico-Funcional, Interacionismo Sócio-Discursivo, Estilística e Linguística de Corpus, entre outras, enfocam um ou mais gêneros, tipos textuais, registros e estilos (BIBER e CONRAD, 2009) e mostram tanto as semelhanças e diferenças entre eles quanto sua constituição e organização interna. Tais teorias e estudos empíricos são fundamentais para entendermos questões importantes da constituição da língua e do discurso. A AMD é uma metodologia que propicia um olhar em larga escala sobre essas questões, na medida em que enfoca muitos textos de vários registros ou gêneros ao mesmo tempo. Assim, dado que há uma profusão de registros e textos na sociedade, surgem questões chave da variação em larga escala, tais como: (1) quais são os parâmetros de variação subjacentes aos muitos registros conhecidos, ou, em outras palavras, como podemos chegar a uma síntese dos elementos centrais dessa variação? (2) qual a variação entre textos de uma mesma variedade textual (por exemplo, entre uma dezena de dissertações de mestrado, ou entre dissertações de áreas distintas, como engenharia e letras)? (3) quais aspectos lexicogramaticais (voz passiva, expansão do grupo nominal, metáfora gramatical, etc.) distinguem registros próximos como comunicação oral e artigo científico, ou reportagem e notícia? Tais perguntas podem ser respondidas por meio da AMD. Pesquisas anteriores promoveram a identificação de dimensões de diversas línguas, como o inglês (BIBER, 1988; LEE, 1999; DE MÖNNINK, BROM e OOSTDIJK, 2003; CROSSLEY e LOUWERSE, 2007), o coreano (KIM e BIBER, 1994), o somali (BIBER e HARED, 1994), o nukulaelae tuvalan (BESNIER, 1988), o gaélico (LAMB, Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 109 109 11/7/2011 19:21:39 Gragoatá Tony Sardinha 2008) e o espanhol (BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006; PARODI, 2007); contudo, a variação dimensional da língua portuguesa ainda não foi realizada. Poucos são os estudos de AMD já realizados no Brasil; até onde pudemos determinar, são os seguintes: Oliveira (1997), que investigou a variação entre composições de alunos de inglês e de falantes nativos; Shimazumi (1998), que também enfocou a escrita de estudantes de inglês como língua estrangeira, porém sob a perspectiva da Linguística Sistêmico-Funcional; Silveira (1997), que pesquisou a linguagem de negócios; Conde (2002), que comparou a escrita de alunos de uma escola bilíngue de inglês com a de alunos advindos de institutos de idioma; Shergue (2003), que contrastou comunicações em congresso e os artigos acadêmicos da área médica; Kauffmann (2005), que mapeou a variação na escrita jornalística de um jornal brasileiro; Oliveira (2007) e Oliveira et al. (2009), que coletaram um corpus voltado à AMD; e Bértoli-Dutra (2010), que descreveu a variação entre letras de música popular anglo-americana. Procedimentos metodológicos da Análise Multidimensional Faz-se necessário explicitar como a Análise Multidimensional é levada a cabo. Para ilustrar, tomaremos como base a extração das dimensões da língua inglesa realizada por Biber (1988). Primeiramente, foi selecionado um corpus de textos, disponível na época, que representasse a variedade de registros encontrada no inglês. Os corpora escolhidos foram o LOB, de textos escritos em inglês britânico e o London-Lund, de transcrições de eventos falados, também da variedade britânica. Foram retiradas porções desses corpora e adicionados outros dois registros (variedades de cartas) e obteve-se um total de 481 textos, somando 960 mil palavras. Em segundo lugar, foi feito um levantamento das principais variáveis que, segundo a literatura existente na época, seriam relevantes para a descrição da língua inglesa. Foram elencadas 67 variáveis, de cunho lexical e estrutural. Os 481 textos foram etiquetados com essas variáveis por meio de um etiquetador especificamente desenvolvido para o estudo (conhecido por Biber Tagger). Parte da etiquetagem foi feita manualmente. Em terceiro lugar, partiu-se para a Análise Fatorial, a qual identificou sete fatores como sendo a melhor solução. Fez-se então o mapeamento de quais textos estavam presentes em cada fator. Os fatores foram inspecionados um por um e decidiu-se eliminar o sétimo fator porque era composto de variáveis cujo peso era maior em outros fatores. Em quarto lugar, fez-se, então, a computação dos escores de cada texto em cada dimensão. Os escores consistiam de somas relativas às quantidades das variáveis existentes em cada fator. 110 Rev Gragoata n 29.indb 110 Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:39 A abordagem metodológica da análise multidimensional Para exemplificar o método de cálculo, tomemos o fator 2. Este fator inclui como variáveis de peso positivo as seguintes características: verbos no tempo passado, verbos no aspecto perfeito, pronomes pessoais de terceira pessoa, verbos ‘públicos’ (concordar/agree, reclamar/complain, negar/deny, etc.), orações reduzidas, e negações sintéticas (formadas por ‘no’, ‘neither’ ou ‘nor’). Supondo-se que um dos textos tenha a seguinte contagem destas características: 113 verbos no tempo passado, 124 verbos no aspecto perfeito, 30 pronomes pessoais de terceira pessoa, 14 verbos ‘públicos’, 5 orações reduzidas, e 3 negações sintéticas, seu escore no fator 2 seria 289, isto é, a soma de 113 + 124 + 30 + 14 + 5 + 3. Na verdade, a computação dos escores não foi feita por meio das contagens brutas, mas sim através de contagens padronizadas com base na média e desvio padrão, a fim de se evitar que o tamanho diferente dos textos influísse nos escores. Estes valores padronizados podem assumir valores negativos, pois indicam quão acima ou abaixo da média cada valor está. Por isso, os escores dos textos podem ser negativos também. Desse modo, cada texto possuía um valor que indicava sua participação em cada dimensão. Depois fez-se o cálculo dos escores de dimensão para cada registro, por meio de uma média aritmética. Por exemplo, se houvesse três textos de um registro específico na dimensão 2, e eles tivessem os escores 16, 12 e 11, somar-se-iam os três valores, o que resultaria em 39, e dividir-se-ia este total por 3, o que daria 13. O valor 13 seria então o escore de dimensão deste registro na dimensão 2. É possível haver escores de dimensão negativos. Isto acontece quando há uma maioria de escores negativos de cada texto individual. Por fim, o conjunto de variáveis linguísticas de cada fator foi interpretado funcionalmente e discursivamente, levando ao estabelecimento das dimensões. Cada dimensão é, na verdade, uma escala em que são dispostos todos os registros incluídos na análise, de acordo com seus escores de dimensão. A escala geralmente compreende dois polos opostos, de tal modo que as dimensões são geralmente descritas como ‘polo A versus polo B’. Quanto mais distantes estão os registros na escala, mais distintos são. Na terminologia da AMD, emprega-se os termos ‘positivo’ e ‘negativo’ para se referir a esses polos, sendo que o polo A recebe o nome de ‘positivo’ e o B de ‘negativo’. Contudo, tal denominação não implica em juízo de valor; ambos polos são igualmente relevantes e complementares. Os termos refletem a análise fatorial, na qual são mostradas variáveis com sinal positivo e sinal negativo. Isso significa que, em um mesmo texto, quando uma variável positiva ocorre, uma negativa tende a não ocorrer ou a ocorrer em menor número. Por exemplo, as variáveis positivas de maior peso do primeiro fator são: verbos ‘particulares’ (‘private verbs’, e.g. doubt, forget, guess), apagamento de ‘that’ e contrações. E as principais negativas são: substantivos, palavras longas e propoNiterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 111 111 11/7/2011 19:21:39 Gragoatá Tony Sardinha sições. Desse modo, nos textos em que ocorram verbos ‘particulares’, e apagamento de ‘that’, há uma tendência de aparecimento também de contrações. Por outro lado, nos textos em que existem verbos ‘particulares’, apagamento de ‘that’ e contrações, há uma tendência de escassez ou ausência de substantivos, palavras longas e proposições. Em alguns casos, quando a análise fatorial mostra não haver variáveis negativas, a dimensão é formada por um polo apenas (como a dimensão 6 de Biber 1988). Assim, ainda em relação ao fator 1, decidiu-se que as variáveis com peso positivo tinham como parâmetro subjacente o que se convencionou chamar de ‘produção interativa’. Já o conjunto de características com peso negativo revelavam um parâmetro que se chamou de ‘produção informacional’. Por isso, o rótulo adotado para a dimensão 1 foi ‘produção interativa versus produção informacional’. Na Fig. 1 aparece a escala referente à dimensão 1. Fig. 1: Dimensão 1 de Biber (1988 , p. 128; 2009 , p. 833): Produção interativa versus informacional (ou Interação versus Informatividade). A parte superior da escala indica o polo ‘interativo’ e o inferior o ‘informacional’. Os números representam o escore de dimensão de cada registro. Os registros grafados em letras maiúsculas são falados, enquanto os em letra minúscula são escritos. 112 Rev Gragoata n 29.indb 112 Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:39 A abordagem metodológica da análise multidimensional Como se percebe na figura, os registros mais fortemente associados com a interação (na parte superior da escala), no inglês, são as conversas, sejam elas por telefone ou face a face; já os registros mais diretamente ligados à informação (na parte inferior) são documentos oficiais (relatórios, etc.) e a escrita acadêmica e a jornalística. O mesmo procedimento foi levado a cabo em relação aos outros fatores. Os registros foram então dispostos numa escala, de acordo com seu escore de dimensão. A nomeação dos fatores resultou na identificação de seis dimensões, que são: 1. produção interativa versus produção informacional;3 2. preocupações narrativas versus não-narrativas; 3. referências explícitas versus referências dependente do contexto; 4. expressão explícita de persuasão versus não-explícita; 5. informação abstrata versus não-abstrata; 6. elaboração informacional ‘on-line’. Os registros mais típicos de cada dimensão são: • Dimensão 1 - produção interativa versus produção informacional: os registros que melhor representam o modo de produção com interação são as conversas, tanto ao telefone quanto face a face; os registros que melhor representam a produção informacional são documentos oficiais, reportagem jornalística e prosa acadêmica. • Dimensão 2 - preocupações narrativas versus nãonarrativas: os registros que melhor demonstram uma preocupação com a narração são os registros de ficção, enquanto que os que melhor exprimem uma orientação não narrativa são os registros de rádio e TV, passatempos e documentos oficiais. • Dimensão 3 - referências explícitas versus referências dependente do contexto: os registros que apresentam referência explícita em maior grau são documentos oficiais, cartas profissionais, resenhas jornalísticas e prosa acadêmica. Já os registros de rádio e TV, conversas telefônicas e cara a cara e ficção romântica exprimem referência dependente da situação. 3 O s nome s da s d imensões podem ser sintetizados, de tal forma que a primeira dimensão poderia ser chamada de ‘Interação versus Informatividade’. • Dimensão 4 - expressão explícita de persuasão versus não-explícita: os registros de caráter mais persuasivo são as cartas profissionais, os editorias e a ficção romântica. Por outro lado, os registros nos quais a persuasão é menos explícita são os de rádio e TV, resenhas jornalísticas e ficção de aventura. Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 113 113 11/7/2011 19:21:40 Gragoatá Tony Sardinha • Dimensão 5 - informação abstrata versus não-abstrata: os registros que veiculam informação mais abstrata são os acadêmicos, os documentos oficiais e os religiosos. Já as conversas telefônicas, face a face e ficção romântica apresentam informação menos abstrata. • Dimensão 6 - elaboração informacional on-line: os registros nos quais a elaboração da informação é mais imediata são palestras preparadas, entrevistas e palestras espontâneas, enquanto que os registros nos quais a informação é elaborada de antemão são os de ficção (mistério, aventura, científica e geral.) As dimensões mostram uma inter-relação entre registros escritos e falados. Alguns registros escritos possuem características em comum com registros falados e vice-versa. Por exemplo, de acordo com a dimensão 1, cartas pessoais, palestras espontâneas e entrevistas possuem como característica comum o fato de serem produzidas com interação entre escritor ou falante de um lado e leitor ou ouvinte do outro. Apesar disso, persiste uma diferenciação básica entre os registros falados e escritos na metade das dimensões. Nas dimensões 1, 3 e 5, os registros escritos ocupam majoritariamente um dos polos e os registros falados o outro. O registro que predomina no polo onde se concentram os textos escritos é a escrita acadêmica. Já os registros que se concentram no polo falado destas dimensões são os conversacionais. Principais estudos com base em Análise Multidimensional Conforme colocado na introdução, dimensões de variação são padrões de coocorrência de elementos lexicogramaticais que subjazem aos textos de uma língua (BIBER, 2009). Como tal, capturam o espaço de variação dos textos, sintetizam-no e mostram a proximidade ou distância entre os registros investigados. Conforme define Berber Sardinha (2004 , p. 304-305): ‘Dimensão é o estatuto que um fator assume assim que é interpretado do ponto de vista de sua função comunicativa. Uma dimensão permite visualizar características em comum partilhadas por uma porção significativa dos dados. A interpretação do fator leva em conta tanto as características linguísticas quanto as características partilhadas pelos registros que estão representados no fator. As dimensões permitem redefinir o quadro inicial de registros.’ A metodologia de identificação das dimensões foi introduzida por Biber (1985) e posteriormente refinada por Biber (1988), para a língua inglesa. O termo ‘multidimensional’ deriva do fato de a análise pressupor a existência de múltiplas dimensões no espaço de variação intertextual. 114 Rev Gragoata n 29.indb 114 Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:40 A abordagem metodológica da análise multidimensional Diversos estudos já empregaram a AMD, voltados a uma ampla gama de situações. Entre os estudos disponíveis na literatura, encontramos aqueles que se ocupam da variação geral de uma língua inteira (BIBER, 1985; BESNIER, 1988; BIBER, 1988; BIBER e HARED, 1994; KIM e BIBER, 1994; JANG, 1998; LEE, 1999; LAMB, 2002; BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006; BIBER e TRACY-VENTURA, 2007; PARODI, 2007), bem como outros que investigam registros específicos, tais como o discurso universitário (BIBER, 2006), a linguagem da música pop (BÉRTOLI DUTRA, 2010), composições de aprendizes de inglês (REPPEN, 1994; SHIMAZUMI, 1998; CONDE, 2002) e textos jornalísticos (KAUFFMANN, 2005), entre outros. Existem dois tipos básicos de pesquisa em AMD. No primeiro tipo, é realizada a identificação das dimensões, por meio de análise fatorial, que podemos chamar de ‘completa’ (‘full MD study’ segundo BIBER, 2009 , p. 844), muito embora os corpora analisados não precisem representar uma língua por completo, podendo ser específicos de um registro apenas. Neste primeiro grupo é que se encaixa a presente proposta. No segundo tipo, não são extraídos fatores, mas são utilizadas dimensões obtidas em pesquisas anteriores e são mapeados os dados sobre essas dimensões; podemos chamar essa modalidade de ‘aplicação de dimensões’ (‘applying dimensions’, BIBER, 2009 , p. 844). O segundo grupo, como foi dito, utiliza-se de dimensões já identificadas (geralmente as que se referem à língua como um todo) e serve para descrever a variação de corpora que não estavam presentes nelas. Como exemplos desse segundo tipo (todos referentes ao inglês e tendo como base as dimensões relatadas por Biber (1988)) temos os estudos de Biber et al. (2002), que investiga registros do contexto universitário, como aulas, orientações e livros didáticos; Biber (1987), que compara registros escritos de inglês americano a semelhantes do inglês britânico; Helt (2001), que confronta registros falados do inglês britânico a seus semelhantes do inglês americano; Conrad (1996), que contrasta artigos de pesquisa, livros didáticos e trabalhos estudantis de duas áreas de conhecimento (biologia e história); Biber e Finegan (1989), que mapeiam as mudanças diacrônicas em diversos registros; Atkinson (1992; 2001), que apresenta as mudanças ao longo do tempo no discurso acadêmico; Connor e Upton (2003), que focalizam variação em cartas comerciais; Quaglio (2009), que verifica a semelhança entre o seriado de TV Friends e a conversação face a face; e Rey (2001), que observa as mudanças nos padrões dos diálogos dos personagens masculinos e femininos da série de TV Star Trek. Estão disponíveis na literatura quatro análise multidimensionais de registros específicos do português, sendo duas completas e duas que aplicam dimensões existentes. Os dois estudos que efetuaram uma análise com extração de fatores da língua portuguesa são Oliveira (1997) e Kauffmann (2005). Nenhum Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 115 115 11/7/2011 19:21:40 Gragoatá Tony Sardinha desses estudos, contudo, enfocou a variação da língua portuguesa em geral. Oliveira enfocou composições escritas por estudantes, enquanto Kauffmann investigou a variação de registros jornalísticos da Folha de S. Paulo. Os dois estudos que aplicaram dimensões são Santos (2003) e Berber Sardinha (2003). Santos analisou um manual de gestão de negócios, extraiu palavras-chave (SCOTT, 2000; BERBER SARDINHA, 2009) e as mapeou sobre as dimensões do inglês obtidas por Biber (1988). Berber Sardinha (2003) teve como corpus de estudo uma reunião de negócios e também levantou as palavras-chave desse corpus, encaixando-as nas dimensões do inglês previamente extraídas por Biber (1988). Esses dois estudos têm a limitação séria de empregarem dimensões de uma língua (inglês) para caracterizar dados de uma outra (português), o que não é recomendável, visto que língua diferentes geralmente possuem dimensões distintas. Caso houvesse na época uma pesquisa que tivesse extraído as dimensões do português, esses dois estudos poderiam se servir delas e mapear seu corpus nessas dimensões, o que seria mais apropriado. O arcabouço empregado para a descrição multidimensional do inglês foi aplicado a uma série de outras línguas. Até o presente, foram descritas multidimensionalmente por Biber e outros pesquisadores os seguintes idiomas: inglês (BIBER, 1988; LEE, 1999), nukulaelae tuvalan (BESNIER, 1988), coreano (KIM e BIBER, 1994), somali (BIBER e HARED, 1994), taiwanês (JANG, 1998), gaélico (LAMB, 2008) e espanhol (BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006; PARODI, 2007). No que se segue, são apresentados os resultados das análises que trataram de línguas oficiais, portanto o inglês, nukulaelae tuvalan, coreano, somali e espanhol, concentrando-se nas dimensões encontradas e em seus registros mais salientes. Para a descrição dessas línguas usou-se, em cada estudo, um corpus específico. A quantidade de variáveis, registros e textos também variou consideravelmente. O quadro a seguir resume os elementos centrais de cada corpus empregado. A primeira língua a ser enfocada pela AMD foi o inglês, conforme dito acima, por Biber (1985 et seq.), que empregou uma mescla de corpora de textos escritos e falados de inglês britânico e americano. As dimensões da língua inglesa reveladas nesse estudo já foram apresentadas e discutidas acima. O inglês também foi foco de outros dois estudos, o de Lee (1999) e o de Crossley e Louwerse (2007). Lee replicou e testou a metodologia proposta por Biber com outro corpus, retirado do British National Corpus, de inglês britânico apenas. Seu estudo mostrou que é preciso ter muito rigor na análise estatística fatorial a fim de garantir a confiabilidade dos resultados. Lee, entretanto, não chegou a interpretar os fatores e propor dimensões. Scott e Louwerse utilizaram um conjunto de corpora britânicos e americanos, alguns com situações simuladas, com o TRAINS corpus, que são diálogos simulados 116 Rev Gragoata n 29.indb 116 Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:40 A abordagem metodológica da análise multidimensional (role playing) entre um informante que se faz o papel de passageiro de trem e outro que se faz passar por funcionário do serviço de informação da estação ferroviária (https://192.5.53.208/research/ speech/trains.html). Embora haja textos autênticos (os corpora London Lund, LOB e Brown) na coletânea de corpus empregada, a presença de textos artificiais é passível de crítica, visto que uma das razões de ser da AMD é lidar com a variação existente em um contexto autêntico de uso da língua, e não em dados fabricados para a pesquisa linguística. Mesmo assim, do ponto de vista metodológico, o estudo merece destaque, pois autores inovaram ao empregar variáveis lexicais (mais especificamente, bigramas, que são sequências de duas palavras) como variáveis, em vez de morfológicas, estruturais e sintáticas, que são normalmente usadas em AMD. Os resultados foram promissores, pois sugeriram que a ocorrência de pacotes lexicais frequentes (como os bigramas) seja capaz de distinguir registros. Bértoli-Dutra (2010) também empregou pacotes lexicais na análise multidimensional de músicas pop britânicas e americanas e notou que essas variáveis podem ser úteis na caracterização dos registros. Pretendemos testar o uso de n-gramas (bi, tri ou quadrigramas) na pesquisa a fim de aferir a sua viabilidade para complementar as variáveis lexicogramaticais. Entretanto, devido à presença de textos artificiais, as dimensões encontradas pelos autores ficaram comprometidas, pois não refletem a distribuição de registros autênticos da língua inglesa, não sendo assim comparáveis às encontradas por Biber. Quadro 1: Dimensões de corpora usados em AMD Língua Variáveis Registros (escritos / falados) Textos Textos por registro Total de palavras Inglês (1) 67 23 (17/6) 481 6 a 80 960.000 Inglês (2) 39, 58, 63, 65 66 (41/25) 430 2 a 133 2.006.093 Inglês (3) 84 22 (4/18) Não informado Nukulaelae Tuvaluan 6 7 (2/5) 222 12 a 70 152.771 Coreano 42 22 (12/10) 150 5 a 10 135.500 Somali 58 33 (23/10) 604 3 a 49 600.000 Espanhol (4) 85 19 (8/11) 4049 16 a 791 20.301.847 Espanhol (5) 65 3 (2/1) 90 4 a 74 1.466.744 Não informado 6.287.734 (1) Biber (1988) (2) Lee (1999). Seu estudo testou diversos números de variáveis. (3) Crossley e Louwerse (2007). O artigo relata dois estudos com os mesmos dados, mas com números de variáveis diferentes. Referimo-nos ao estudo 2, considerado mais robusto. (3) Biber et al. (2006; 2007) (4) Parodi (2007) Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 117 117 11/7/2011 19:21:40 Gragoatá Tony Sardinha Cronologicamente, a segunda língua a ser descrita por meio da AMD foi o nukulaelae tuvalan, falado em Tuvalu, um arquipélago localizado no Pacífico. O corpus usado para a descrição do nukulaelae tuvalan consistiu de pouco mais de 150 mil palavras, compreendendo 222 textos de sete registros diferentes. As três dimensões extraídas são apresentadas no quadro abaixo, juntamente com os registros mais característicos de cada uma. Quadro 2: Dimensões da língua nukulaelae tuvalan (BESNIER, 1988) Dimensão Registros mais característicos Polo positivo Polo negativo Abalizado: Sermões escritos e cartas pessoais 1 Discurso atitudinal versus abalizado Atitudinal: Discursos em contextos particulares e comícios 2 Referência interpessoal versus informacional Interpessoal: Cartas pessoais e conversações Informacional: Programas de rádio e TV e sermões escritos 3 Construção textual em grupo versus monológica Em grupo: Conversação, sermões escritos Monológica: Cartas pessoais e programas de rádio e TV A terceira língua cuja descrição multidimensional foi publicada é o coreano. O corpus empregado possuía cerca de 135 mil palavras, incluindo 22 registros. As seis dimensões extraídas aparecem no quadro a seguir. Quadro 3: Dimensões da língua coreana (KIM e BIBER, 1994) Dimensão Registros mais característicos Polo positivo Polo negativo Elaboração: Crítica literária, livros didáticos para faculdade Implícita: Documentos legais e oficiais e notícias de rádio e TV Menos explícita: Reportagem jornalística e documentos legais e oficiais Não-narrativo: Documentos legais e oficiais e crítica literária 1 Interação informal versus elaboração explícita Interação: Conversas particulares e dramaturgia televisiva 2 Coesão explícita versus implícita Explícita: Contos e conversação 3 Expressão explícita de posicionamento interpessoal Mais explícita: Dramaturgia televisiva e conversas particulares 4 Discurso narrativo versus não-narrativo Narrativo: Dramaturgia televisiva e contos 5 Relato presente (‘on-line’) de eventos Mais presente: Transmissões esportivas e discursos públicos preparados Menos presente: Reportagem jornalística e notícias de rádio e TV 6 Honorificação Mais honorífico: Cartas pessoais e conversas em público Menos honorífico: Documentos legais e oficiais e crítica literária A quarta língua descrita multidimensionalmente foi o somali. O corpus que serviu de base para a descrição possuía 33 registros, o que somava por volta de 600 mil palavras. À semelhança do coreano, foram extraídas seis dimensões, as quais aparecem no quadro a seguir. 118 Rev Gragoata n 29.indb 118 Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:40 A abordagem metodológica da análise multidimensional Quadro 4: Dimensões da língua somali (BIBER e HARED, 1994) Dimensão Polo positivo Registros mais característicos Polo negativo 1 Elaboração estrutural: envolvimento versus exposição Envolvimento: conversações e reuniões de família Exposição: Introduções de livros e editoriais 2 Elaboração lexical: produção em tempo real (‘on-line’) versus planejada Em tempo real: Transmissões esportivas e palestras universitárias Planejada: Discursos políticos publicados e editoriais 3 Apresentação argumentativa versus relatada de eventos Argumentativa: reuniões de família e reuniões formais Relatada: Reportagens jornalísticas e estórias populares 4 Organização discursiva narrativa versus nãonarrativa Narrativa: Histórias populares e histórias seriadas Petições e anúncios 5 Interação distanciada e diretiva Mais distanciada e diretiva: Cartas pessoais e reuniões de família Menos distanciada e diretiva: Reportagem jornalística e transmissões esportivas 6 Persuasão pessoal Mais persuasão: Petições e cartas pessoais Menos persuasão: reportagem jornalística e transmissões esportivas A quinta língua cuja variação foi mapeada pela AMD é o espanhol. Há duas pesquisas diferentes referentes a esse idioma, quais sejam Biber et al. (2006; BIBER e TRACY-VENTURA, 2007) e Parodi (2007). A de Biber et al. enfocou uma variedade ampla de registros (19), enquanto a de Parodi trabalhou com um espectro maior de variação (apenas três registros gerais: técnicos, orais e literários). Os resultados são, portanto, diferentes e aparecem nos dois quadros a seguir. Quadro 5: Dimensões da língua espanhola (BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006) Dimensão Registros mais característicos Polo positivo Polo negativo Discurso letrado: Enciclopédia e prosa acadêmica 1 Discurso oral versus letrado Discurso oral: Conversas ao telefone e conversa coloquial face a face 2 Discurso hipotético (‘irrealis’) Mais hipotético: entrevistas políticas e debates políticos Menos hipotético: Enciclopédia e prosa acadêmica 3 Discurso narrativo Mais narrativo: Ficção e teatro Menos narrativo: Enciclopédia e prosa acadêmica 4 Interação focada no interlocutor Mais focada: Teatro e conversas telefônicas de negócios Menos focada: telejornais e transmissões esportivas de TV 5 Relato informacional Mais informacional: Enciclopédias e cartas comerciais Menos informacional: Teatro e debate político 6 Estilo formal Mais formal: Prosa acadêmica e editoriais Menos formal: Conversas telefônicas de negócios e transmissões esportivas de TV No quadro abaixo, apresentamos as dimensões do espanhol obtidas por Parodi (2007). Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 119 119 11/7/2011 19:21:40 Gragoatá Tony Sardinha Quadro 6: Dimensões da língua espanhola (PARODI, 2007) Dimensão Registros mais característicos (a) Polo positivo Polo negativo 1 Foco na contextualização e interação Foco mais contextual e interativo: registros orais Foco menos contextual e interativo: registros técnicos 2 Foco na narração Foco mais narrativo: registros literários Foco menos narrativo: registros técnicos 3 Foco no comprometimento (‘commitment’) Mais comprometimento: registros orais Menos compromentimento: registros técnicos 4 Foco na modalização Mais modalização: registros orais Menos modalização: registros técnicos 5 Foco na informação Mais informação: registros técnicos Menos informação: registros orais e literários (b) (a)Como há apenas três registros no corpus, é apontado apenas um deles para cada polo. (b)Houve empate estatístico entre os escores dos registros nesse polo da dimensão. Os resultados dos vários estudos resenhados aqui indicam que, embora línguas diferentes possuam dimensões diferentes, há certas dimensões que reaparecem, independente da língua e do tamanho do corpus. Segundo Biber e Conrad (2009 , p. 851), há duas oposições comuns a todas as línguas pesquisadas: a primeira, entre textos com foco informacional versus interativo/ interpessoal, e outro entre textos com foco narrativo versus não narrativo. Comentários finais A Análise Multidimensional é uma metodologia que tem permitido enfocar a variação textual em corpora eletrônicos por meio de procedimentos estatísticos. Seus resultados fornecem uma visão sintética da variação de textos em corpora, em forma de escala, auxiliando no entendimento das variantes linguísticas estudadas, por meio de suas propriedades comunicativas, funcionais e discursivas. Abstract This article presents a particular methodology of Corpus Linguistics (SINCLAIR, 1991; MCENERY e WILSON, 1996; BIBER, CONRAD e REPPEN, 1998; BERBER SARDINHA, 2004; 2005; TEUBERT e KRISHNAMURTHY, 2007; BAKER, 2009; BERBER SARDINHA, 2009; LÜDELING e KYTÖ, 2009), namely Multi-feature, Multi-dimensional Analysis, or simply Multi-dimensional Analysis (AMD, BIBER, 1985 et seq.). MDA enables the study of large 120 Rev Gragoata n 29.indb 120 Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:40 A abordagem metodológica da análise multidimensional scale variation in electronic corpora, leading to a classification of registers and genres along dimensions, which are patterns of co-occurrence of lexico-grammatical features underlying (oral and written) texts in a particular language or variety. As such, dimensions capture the space of variation among texts and depict the proximity or distance between texts. Keywords: Corpus Linguistics, Multi-dimensional Analysis, Variation Referências ANTHONY, M.; GLADKOV, K. Rhetorical appeals in fundraising. In: BIBER, D. et al (Org.). Discourse on the Move: Using Corpus Analysis to Describe Discourse Structure. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2007. p. 121-154. ATKINSON, D. The evolution of medical research writing from 1735 to 1985: The case of the ‘Edinburgh Medical Journal’. Applied Linguistics, v. 13, p. 337-374, 1992. ______. Scientific discourse across history: A combined multidimensional/rhetorical analysis of the Philosophical Transactions of the Royal Society of London. In: CONRAD, S.; BIBER, D. (Org.). Variation in English: Multi-dimensional studies. Harlow: Longman, 2001. p. 45-65. BAKER, P. (Org.) Contemporary Corpus Linguistics. London: Continuum, 2009. BAKHTIN, M. M. Speech genres and other late essays. Austin, TX: University of Texas Press, 1986. BERBER SARDINHA, T. 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Niterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 125 125 11/7/2011 19:21:41 Rev Gragoata n 29.indb 126 11/7/2011 19:21:41 Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças Maity Siqueira Maitê Gil Tamara Melo Resumo Neste artigo, são descritos dois estudos que visam à verificação de variáveis psicolinguísticas de uma lista de 135 sentenças envolvendo material linguístico metafórico e não metafórico. A noção de metáfora aqui adotada parte da perspectiva da Linguística Cognitiva, mais especificamente da Teoria da Metáfora Conceitual (LAKOFF e JOHNSON, 1980). O Estudo I (n=200) busca averiguar a existência de uma correlação entre a convencionalidade de mapeamentos conceituais metafóricos primários e a familiaridade das expressões linguísticas metafóricas derivadas desses mapeamentos. O Estudo II (n=316) objetiva verificar o grau de familiaridade, alerta e valência das sentenças que compõem a lista, as quais tiveram tamanho e complexidade sintática previamente controlados. A partir da lista de sentenças aqui elaborada, pretende-se contribuir para a construção de testes psicolinguísticos com material metafórico e não metafórico envolvendo as variáveis apresentadas ao longo dos estudos. Dessa forma, os resultados dos cuidados metodológicos descritos ao longo do artigo podem ser aplicados não só no âmbito da linguística, mas também em estudos de interface entre a linguagem e outras funções cognitivas. Palavras-chave: lista de sentenças; cuidados metodológicos; psicolinguística; metáfora. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 127 Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:41 Gragoatá Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo A elaboração de um teste psicolinguístico exige atenção especial a fatores fundamentais inerentes a esse processo. O controle de variáveis, por exemplo, é essencial para se obter um maior grau de confiabilidade nos resultados finais. O presente trabalho descreve os passos para a construção de uma lista de sentenças envolvendo material literal e metafórico. A partir dos estudos aqui descritos, pretende-se fornecer um material linguístico controlado que possa ser utilizado em pesquisas psicolinguísticas. A abordagem que fundamenta o trabalho é a Teoria da Metáfora Conceitual (LAKOFF e JOHNSON, 1980), que se insere na perspectiva da Linguística Cognitiva. A relevância deste artigo está no fato de que a literatura recente da área vem ressaltando a importância dos cuidados metodológicos nas pesquisas psicolinguísticas (GIBBS, 2007; GONZALEZ-MARQUEZ ET AL, 2007;), frente à exaustiva busca pela confiabilidade nos resultados obtidos. Como nos mostra Gibbs (2007), pesquisadores de outras áreas argumentam que os estudos cognitivos sobre a linguagem não são baseados em experimentos científicos objetivos, o que geraria análises muito subjetivas. Outra crítica, relacionada à primeira, reside na importância dada às intuições dos linguistas cognitivos nas suas pesquisas sobre a linguagem. Gibbs ressalta que, apesar de as reflexões dos pesquisadores serem um recurso valioso para a construção de hipóteses, devemos ser cautelosos ao aceitar os julgamentos linguísticos individuais. Além disso, o autor defende que os pesquisadores devem descrever e explicar mais detalhadamente os seus métodos, a fim de mostrar que eles levam a resultados consistentes. Low (2003), ao falar das pesquisas sobre metáfora, afirma que os critérios metodológicos relacionados aos modelos metafóricos ainda não estão bem estabelecidos. Após analisar cinco estudos na área, o autor propõe sugestões para trabalhos futuros - todas relacionadas à transparência e ao detalhamento de cada etapa da pesquisa. Nesse sentido, o presente artigo pretende contribuir para estudos experimentais que envolvam sentenças literais e metafóricas, não só no âmbito da linguística, mas também para aqueles interessados em construir interfaces entre características da linguagem e outras funções cognitivas superiores, tais como: memória, atenção e percepção. De fato, para a Linguística Cognitiva, a linguagem desempenha um papel central nos estudos da cognição, uma vez que, através da linguagem, é possível identificar aspectos do funcionamento de outras funções cognitivas humanas. Uma das hipóteses basilares com as quais a Linguística Cognitiva opera é a de que a linguagem não é uma faculdade cognitiva autônoma. A ideia de que a linguagem reflete certas propriedades da mente humana tem fortes implicações na agenda e nos métodos de pesquisa da Linguística Cognitiva. O chamado Compromisso Cognitivo (Co128 Rev Gragoata n 29.indb 128 Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:41 Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças Neste trabalho, seguindo uma formalização amplamente estabelecida na Linguística Cog n it iva, dom í n ios conceituais e metáforas conceituais são apresentados em caixa alta. 1 gnitive Commmitment) representa a visão da Linguística Cognitiva de que os princípios que regem o funcionamento da linguagem humana devem ser psicologicamente plausíveis e devem estar em consonância com os pressupostos e achados de outras áreas das ciências cognitivas, tais como a Psicologia, a Neurologia e a Inteligência Artificial. Sendo assim, um modo de testar a adequação de hipóteses dentro da perspectiva aqui considerada é levar em conta as evidências convergentes de outras áreas da cognição (LANGACKER, 1999). O material aqui desenvolvido foi elaborado de forma que possa ser utilizado em pesquisas que envolvam linguagem e outras funções cognitivas. Para isso, foram controladas e verificadas variáveis que serão detalhadas ao longo da apresentação dos estudos. Antes disso, porém, faremos uma breve exposição da Teoria da Metáfora Conceitual. Conforme Lakoff e Johnson (1980), os proponentes dessa teoria, a metáfora é uma questão de central interesse no estudo da cognição, estando presente não só na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Sob essa perspectiva, a metáfora deixa de ser exclusivamente uma questão do âmbito da linguística, isto é, algo que se relaciona somente com palavras, frases e expressões verbais. Mais do que isso, os processos do pensamento humano são amplamente metafóricos. Dessa forma, só é possível produzir e entender um enunciado metafórico porque as metáforas estão no sistema conceitual de cada indivíduo, sistema este que é evidenciado através da linguagem. Assim, as expressões linguísticas metafóricas são a materialização das metáforas conceituais. É importante notar que a metáfora conceitual (doravante MC) se distingue da metáfora linguística, na medida em que a primeira se refere a um nível abstrato do sistema conceitual, e a segunda se refere a um nível concreto de expressão linguística (SIQUEIRA, 2004). Em outras palavras, a MC é o entendimento de um domínio conceitual em termos de outro, e as metáforas linguísticas são expressões que tornam manifestas no nível da linguagem as relações abstratas das MCs. As metáforas conceituais são formadas através de mapeamentos que partem de um domínio conceitual (fonte), tipicamente mais bem estruturado, que serve como fonte de inferências, para outro domínio conceitual (alvo), tipicamente mais abstrato, ao qual as inferências se aplicam. Assim, as pessoas têm, por exemplo, um conhecimento coerentemente organizado sobre o domínio conceitual TAMANHO, no qual se baseiam para compreender o domínio conceitual IMPORTÂNCIA, e esse processo propicia a formação da MC IMPORTÂNCIA É TAMANHO.1 Os falantes atualizam linguisticamente essa metáfora conceitual ao se referirem a uma pessoa ou a um evento importante através de metáforas linguísticas, como: Gandhi foi um grande homem ou Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 129 129 11/7/2011 19:21:41 Gragoatá Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo A ida do homem à lua foi um grande feito. Ainda sobre a formação das metáforas conceituais, é preciso ressaltar a unidirecionalidade dos mapeamentos, já que, contrariando a visão clássica de que as metáforas expressariam similaridade entre dois domínios, as inferências podem ser feitas apenas do domínio fonte para o alvo e não no sentido oposto. Se o mapeamento fosse bidirecional, as pessoas falariam de objetos grandes em termos de sua impor tância, em sentenças do tipo Essa régua é muito importante, então não vai caber no meu estojo, e isso simplesmente não acontece. As metáforas conceituais podem ser classificadas como primárias ou complexas. São consideradas metáforas primárias aquelas que resultam de interações entre particularidades dos aparatos físico e cognitivo humanos com suas experiências subjetivas no mundo, independentemente de língua e cultura (GRADY, 1997). Segundo Lakoff (comunicação pessoal), as metáforas complexas são combinações de metáforas primárias, e tais combinações são determinadas por aspectos culturais. Neste artigo, trataremos apenas de metáforas primárias. Em nossas experiências diárias, existem algumas situações que se repetem mais frequentemente e que têm significados mais salientes, em função do modo como essas experiências estão relacionadas a nossos objetivos. As metáforas primárias são baseadas e motivadas pelas experiências corporais mais salientes e recorrentes, assim como pelo modo como o corpo humano funciona e interage com o mundo físico (YU, 1998). Uma vez que essas experiências são comuns à espécie humana, elas têm um elevado potencial de universalidade. A correlação entre o aumento de peso e uma maior dificuldade, por exemplo, é tão frequente na experiência humana, que as pessoas conceituam “mais difícil” em termos de “mais pesado”, mesmo quando a medida de peso não se aplica literalmente. Essa correlação experiencial motiva atualizações linguísticas metafóricas como O dia foi pesado hoje ou O interrogatório foi mais leve do que o esperado. Tal conjunto de correspondências sistemáticas entre um domínio fonte (tipicamente mais concreto ou acessível aos sentidos) e um domínio alvo (tipicamente mais abstrato) evidencia algumas relações intrínsecas entre a estrutura e o funcionamento típico do corpo humano e o modo como as pessoas conceituam sua experiência no mundo. Em suma, conforme a Teoria da Metáfora Conceitual, a metáfora tem bases corpóreas e experienciais. Tendo em vista os pressupostos aqui apresentados e a relevância que os estudos empíricos têm na perspectiva adotada, passamos à descrição dos estudos desenvolvidos para a elaboração da lista de sentenças. Estudo I Neste primeiro estudo, o objetivo era averiguar a existência de uma correlação entre a convencionalidade de mapeamentos 130 Rev Gragoata n 29.indb 130 Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:41 Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças conceituais metafóricos primários e a familiaridade das expressões linguísticas metafóricas derivadas desses mapeamentos. A familiaridade é definida como uma propriedade de expressões metafóricas inteiras e, por hipótese, está relacionada à frequência de uma dada manifestação linguística em uma mesma comunidade. A convencionalidade, por sua vez, é uma propriedade da relação entre mapeamentos conceituais e as expressões linguísticas oriundas desses mapeamentos, e representa o quão estabelecidas estão essas metáforas conceituais em uma determinada comunidade. Considerando-se que uma mesma metáfora conceitual convencional pode gerar metáforas linguísticas familiares e não-familiares, pretendeu-se, neste estudo, verificar a relação entre essas duas propriedades exclusivamente em metáforas conceituais primárias (SIQUEIRA e ZIMMER, 2006). Método O método utilizado para este estudo foi baseado na aplicação de duas escalas Likert (LANG, 1980) de cinco pontos, elaboradas especialmente para esta pesquisa. Uma delas objetivava verificar o nível de convencionalidade das metáforas conceituais e de suas expressões linguísticas, e a outra pretendia avaliar o seu grau de familiaridade. Participantes A amostra foi composta por 200 estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com média de idade de 24,75 anos (dp= 5,6), 118 do sexo feminino e 72 do masculino, de diversos cursos das áreas exatas e humanas. Sua participação era voluntária e anônima. Instrumentos Foram elaborados dois questionários para a realização deste estudo: um para a verificação do grau de convencionalidade das expressões e outro para a avaliação da sua familiaridade. No primeiro, foram utilizadas oito metáforas conceituais primárias: A FELICIDADE É PARA CIMA; INTENSIDADE DE EMOÇÃO É CALOR; BOM É CLARO; DIFICULDADE É PESO; ACEITAR É ENGOLIR; INTIMIDADE EMOCIONAL É PROXIMIDADE; IMPORTÂNCIA É TAMANHO; SIMPATIA É SUAVIDADE. A partir de cada uma delas, criou-se uma frase contendo expressões que as atualizavam linguisticamente, perfazendo, então, um total de oito frases testadas em cada questionário. A partir da metáfora conceitual TRISTEZA É PARA BAIXO, por exemplo, foi selecionada e apresentada a atualização linguística Estou me sentindo pra baixo, seguida da sua correspondência semântica não-figurada “para expressar minha tristeza”. As frases foram listadas verticalmente em uma tabela (parcialmente representadas pela tabela Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 131 131 11/7/2011 19:21:41 Gragoatá Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo 1). No sentido horizontal, havia uma escala de cinco pontos na qual os participantes eram orientados a assinalar a opção correspondente a sua avaliação de cada frase. No segundo questionário, foram apresentadas, também em forma de tabela, somente as oito expressões linguísticas derivadas dos mapeamentos conceituais utilizados e suas respectivas escalas de cinco pontos, nas quais as frases deveriam ser classificadas quanto ao seu grau de familiaridade (parcialmente representadas pela tabela 2). Nesse segundo instrumento, não foram explicitadas as correspondências semânticas das frases, pois o objetivo era verificar o grau de familiaridade das expressões linguísticas quando descontextualizadas. Tabela 1 – Convencionalidade QUESTÕES SOBRE CONVENCIONALIDADE DOS MAPEAMENTOS Nada convencional Pouco convencional Medianamente convencional Muito convencional Totalmente convencional 1. “Estou pra baixo”, para expressar minha tristeza. 1 2 3 4 50 2. “Hoje é um grande dia”, para dizer que hoje é um dia importante. 1 2 3 4 5 Tabela 2 – Familiaridade QUESTÕES SOBRE FAMILIARIDADE DAS EXPRESSÕES Nada familiar Pouco familiar Medianamente familiar Muito familiar Totalmente familiar 1. “Estou pra baixo” 1 2 3 4 5 2. “Hoje é um grande dia” 1 2 3 4 5 A coleta dos dados foi realizada em grupos na sala de aula dos próprios alunos, os quais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado conforme diretrizes éticas que regulamentam a pesquisa com seres humanos. A amostra foi dividida aleatoriamente em dois grupos, de forma que metade dos alunos respondeu individualmente ou ao questionário de convencionalidade ou ao de familiaridade. A coleta de dados iniciou após os participantes serem informados sobre os objetivos da pesquisa. Em seguida, as instruções foram lidas em voz alta, ainda que elas estivessem escritas no questionário que cada participante recebeu, de modo que eles poderiam lê-las diretamente da sua folha, caso quisessem. Nas instruções para o teste de convencionalidade, foi explicado que, em cada língua, algumas expressões são mais aceitas para veicular determinadas idéias, enquanto outras nem tanto. Os participantes foram, então, instruídos a avaliar essas expressões, marcando, por exemplo, o quanto a frase Essa aula foi pesada (atualização linguística da metáfora conceitual DIFICULDADE É PESO) é convencional para expressar que a aula foi difícil, através das opções da escala: “nada convencional” (1), “pouco convencional” (2), “medianamente convencional” (3), 132 Rev Gragoata n 29.indb 132 Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:41 Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças “muito convencional” (4), ou “totalmente convencional” (5). No teste de familiaridade, era solicitado aos participantes que assinalassem uma das opções da escala, respondendo em que nível as expressões apresentadas lhes eram conhecidas/familiares: “nada familiar” (1), “pouco familiar” (2), “medianamente familiar” (3), “muito familiar” (4), ou “totalmente familiar” (5). Cada participante respondeu individualmente, no seu próprio ritmo, às questões propostas. Tratamento dos Dados Os dados obtidos foram analisados através de cálculos de média simples. Os resultados encontrados revelaram que, quando um mapeamento conceitual é considerado convencional, as expressões linguísticas metafóricas derivadas desses mapeamentos também são consideradas familiares. Todas as expressões apresentadas foram consideradas convencionais e familiares (média de 3,8 e de 3,6 respectivamente), considerando as escalas Likert de cinco pontos (para uma melhor visualização desses dados, ver fig. 1). A partir dessa constatação, foi elaborado um segundo estudo, descrito a seguir. Figura 1. Grau de familiaridade e convencionalidade em português (L1). 4, 1 3, 2 3, 1 3, 3 3, 4 3, 5 3, 5 3, 3 3, 3 4 3, 8 3, 9 3, 3 3, 2 Escala Likert 4 4, 3 4, 2 5 3 2 1 0 1 2 3 4 5 Metáforas primárias 6 7 8 Familiaridade Convencionalidade Estudo II Neste estudo, buscamos verificar os níveis de familiaridade, alerta e valência, uma vez que estudos anteriores (REYNA e KIERNA, 1994; OCHSNER, 2000; KENSINGER e CORKIN, 2003) indicam que essas variáveis influenciam o funcionamento de outras capacidades cognitivas, tais como a memória. Alerta e valência são duas dimensões das experiências afetivas, ou seja, estão ligadas às emoções. A variável alerta se refere ao grau de excitação de uma pessoa em determinada situação, variando entre dois polos: calmo em um extremo e agitado em outro. Já a Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 133 133 11/7/2011 19:21:42 Gragoatá Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo variável valência se refere ao grau em que uma resposta emocional a determinada situação é mais negativa ou positiva, variando, portanto, de altamente negativa a altamente positiva, passando pela valência neutra. As variáveis tamanho e complexidade sintática das sentenças foram controladas no processo de elaboração da lista de sentenças, conforme detalhado na seção Instrumento. A variável convencionalidade não foi controlada ou analisada, devido a sua correlação com a variável familiaridade, como indicaram os resultados obtidos no Estudo I. Método O método utilizado para este estudo foi baseado na aplicação de três escalas Likert de cinco pontos. A tabela de familiaridade (fig. 2) foi especialmente desenvolvida para este estudo, e as tabelas de alerta e valência foram adaptadas das escalas de Lang (1980). Figura 2. Escala de familiaridade, alerta e valência Participantes A amostra foi composta por 316 estudantes, 155 do sexo feminino e 161 do masculino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, de cursos distintos das áreas humanas e exatas. Sua participação era voluntária e anônima, e sua idade média era de 22,8 anos (dp = 5,7). Nenhum dos participantes do estudo II havia colaborado com o estudo I. Instrumentos Para a realização deste estudo, foram elaboradas 135 sentenças, sendo 67 literais e 68 metafóricas. Todas as sentenças eram atualizações linguísticas derivadas de metáforas conceituais primárias, ou suas respectivas paráfrases literais, todas de familiaridade presumidamente alta. Sempre que possível, foram formuladas duas sentenças metafóricas a partir do mesmo mapeamento (uma de valência presumidamente positiva e outra de valência presumidamente negativa) e duas paráfrases literais derivadas de cada uma das sentenças metafóricas (uma de valência presumidamente positiva e outra de valência presumidamente negativa). Em alguns casos, porém, não foi possível elaborar quatro frases a partir do mesmo mapeamento. Partindo do mapeamento RUIM 134 Rev Gragoata n 29.indb 134 Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:42 Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças É FEDOR, por exemplo, temos as atualizações linguísticas A situação está fedendo e A situação está ruim, sentenças de valência presumidamente negativa e, respectivamente, metafórica e literal. A sentença metafórica de valência presumidamente positiva que atualizaria este mapeamento (A situação está cheirosa) não é usual em nossa comunidade, por isso não foi utilizada na pesquisa. Alguns mapeamentos, entretanto, possibilitavam somente atualizações linguísticas de valência presumidamente neutra. Nesses casos foi derivada somente uma sentença metafórica e sua paráfrase literal. Ao contrário da variável valência, os valores para a variável alerta não foram presumidos na construção das frases. Essa variável foi mensurada diretamente pelos participantes da pesquisa. O tamanho das sentenças foi controlado e pareado em relação ao número de palavras e caracteres, dividindo a lista de sentenças em dois grupos: eram consideradas “pequenas” as frases de quatro até cinco palavras, com 15 a 25 caracteres, enquanto aquelas de cinco a sete palavras, com 26 a 35 caracteres, eram classificadas como “grandes”. As sentenças originadas de um mesmo mapeamento preferencialmente enquadravam-se todas em um mesmo grupo, de sentenças grandes ou pequenas. Quando não era possível manter o sentido da sentença ou elaborar uma sentença familiar com o mesmo tamanho, optamos por manter o sentido e a frase mais familiar em detrimento do tamanho exato. As sentenças foram também controladas quanto à complexidade sintática por dois juízes, professores universitários de linguística, a fim de parear suas estruturas e evitar que a complexidade gramatical influenciasse nos resultados de testes envolvendo outras funções cognitivas. As 135 sentenças foram divididas em quatro blocos, de modo que três deles eram formados por 34 sentenças e o outro por 33. Essa divisão foi necessária para que um mesmo participante não respondesse a todas as 405 questões (135 sentenças x 3 variáveis), evitando assim que fatores como o cansaço prejudicassem as respostas finais. As atualizações linguísticas derivadas de uma mesma metáfora conceitual foram separadas nestes blocos, pois a proximidade das frases na lista de estudo poderia influenciar os resultados de testes psicolinguísticos posteriores, particularmente em casos de testes envolvendo memória. Ainda quanto à constituição dos blocos, observou-se o critério de distribuição equitativa no que diz respeito ao tipo de sentença (literal ou metafórica), ao tamanho das frases de cada um dos grupos e à valência presumida (positiva, negativa e neutra). As sentenças foram, então, listadas em uma tabela, que continha as três escalas de cinco pontos distribuídas em linha. Essas escalas, intituladas familiaridade, alerta e valência, tinham o objetivo de avaliar as frases apresentadas (fig. 2). Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 135 135 11/7/2011 19:21:42 Gragoatá Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo Procedimentos A coleta dos dados foi realizada em grupos, na sala de aula dos próprios alunos, os quais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado consoante as diretrizes éticas que regulamentam a pesquisa com seres humanos. Os participantes foram divididos aleatoriamente em quatro grupos, de maneira que a cada grupo foi apresentado um dos quatro blocos de sentenças do experimento. Após serem informados os objetivos da pesquisa aos participantes, foi iniciada a coleta propriamente dita. Foi solicitado aos participantes, então, que avaliassem individualmente o quanto as frases a serem projetadas e lidas em voz alta lhes pareciam familiares ou não. Além disso, eles deveriam informar o quanto elas lhes pareciam estimulantes (alerta) e o quanto as sentenças eram agradáveis ou desagradáveis (valência). Ainda nas instruções, foram dados exemplos, como a sentença Fui numa festa, que pode ser considerada por alguns AGRADÁVEL e ESTIMULANTE, enquanto a frase Estou na praia pode também ser considerada AGRADÁVEL por um grande número de pessoas, porém RELAXANTE. Deste mesmo modo, foi apresentada uma frase considerada por muitos DESAGRADÁVEL e ESTIMULANTE, como Aconteceu um desastre, e também uma classificada como DESAGRADÁVEL e RELAXANTE por outros: Está chovendo. Foi ainda frisado que se tratava de uma avaliação subjetiva, não existindo respostas certas ou erradas, e que não havia uma relação direta entre as três classificações. A seguir, as frases do bloco escolhido foram projetadas uma a uma, com um intervalo de 22 segundos entre elas, e pronunciadas em voz alta para que os participantes pudessem avaliá-las. A projeção foi feita com um datashow em um quadro branco. Tratamento dos Dados A partir dos dados obtidos, cada variável foi analisada individualmente. Para classificar as sentenças quanto a sua familiaridade, foram primeiramente calculados a média e o desvio padrão de todas as sentenças (M= 3,4 / dp= 0,5). As frases que tinham média inferior a 2,9 (M -1dp) foram classificadas como não familiares. Em seguida, calculou-se a média e o desvio padrão geral da variável alerta (M= 2,9/ dp= 0,6). Todas as sentenças que tinham sua média de alerta de 2,3 a 3,5 (M -1dp/ +1dp) foram consideradas frases de alerta médio, o que representa a grande maioria das 135 sentenças. As frases com médias inferiores a 2,3 foram consideradas de alerta baixo, enquanto aquelas com médias superiores a 3,5 foram consideradas de alerta alto. Para a valência, foi igualmente feito o cálculo de média e de desvio padrão (M= 3/ dp= 1). A partir desses dados, foi elaborada a seguinte escala para a classificação das frases quanto a sua valência: sentenças 136 Rev Gragoata n 29.indb 136 Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:42 Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças com média até 2 (M -1dp) foram consideradas negativas; as com média de 2,5 a 3,5 foram classificadas como neutras (M -0,5dp/ +0,5dp) e, por fim, aquelas com média acima de 4 (M +1dp) foram definidas como positivas. Sugere-se que todas as sentenças que ficaram fora dessa margem, ou seja, as sentenças com média entre 2,1 e 2,4 e entre 3,6 e 3,9 sejam descartadas na elaboração de testes psicolinguísticos que envolvam o controle dessa variável. Obteve-se, como produto do trabalho acima descrito, uma lista de 135 frases classificadas quanto ao tipo (literal ou metafórico) e ao tamanho (grande ou pequeno). Além disso, foram verificadas, em uma mesma comunidade linguística, as médias para familiaridade, alerta e valência dessas 135 frases, conforme a tabela 3, em anexo. Considerações Finais As pesquisas na área da psicolinguística necessitam de subsídios metodológicos confiáveis para obterem êxito. O controle de variáveis é um importante passo na exaustiva busca pela confiabilidade nos resultados obtidos através de testes psicolinguísticos. Os resultados dos estudos I e II são importantes para que seja possível a produção posterior de materiais adequados para a investigação de eventuais relações envolvendo sentenças literais e metafóricas e outras funções cognitivas, em testes que exijam um controle prévio das variáveis verificadas (tabelas 3 e 4, em anexo). Considerando, por exemplo, a capacidade mnemônica (REYNA e KIERNAN, 1994), as sentenças apresentadas neste artigo podem constituir um material confiável para verificar possíveis alterações no comportamento da memória quando submetida ao reconhecimento de sentenças literais e metafóricas. A partir dos construtos teóricos e do estudo aqui apresentados, entendemos, portanto, que o controle de material linguístico envolvendo metáforas pode proporcionar um avanço para as pesquisas que correlacionem determinadas habilidades linguísticas a outras funções cognitivas. Abstract This article describes two studies aiming at the assessment of psycholinguistic variables from a list of 135 sentences containing methaporical and non-metaphorical linguistic material. The notion of metaphor adopted here stems from the framework of Cognitive Linguistics, more specifically from the Conceptual Metaphor Theory (LAKOFF and JOHNSON, 1980). Study I (n=200) aims to inquire into the existence of a correlation between the conventionality of mappings involving primary conceptual metaphors and the Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 137 137 11/7/2011 19:21:42 Gragoatá Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo familiarity of linguistic metaphorical expressions derived from these mappings. Study II (n=316) seeks to assess the degree of familiarity, arousal and valence of the sentences included in the list. These had their size and syntactic complexity previously controlled. Through the list of sentences elaborated here, this work aims to contribute to the development of psycholinguistic tests with metaphorical and non-metaphorical material involving the variables presented in the two studies. Thus, the results of the methodological precautions described in this article may be applied not only to studies in Linguistics, but also to studies dealing with the interface between language and other cognitive functions. Keywords: list of sentences; methodological precautions; psycholinguistics; metaphor. Referências GIBBS, Jr. R. W. Why cognitive linguists should care more about empirical methods. In: GONZALEZ-MARQUEZ, M. et al. Methods in Cognitive Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 2007. GONZALEZ-MARQUEZ, M. et al. Methods in Cognitive Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 2007. GRADY, J. Foundations of Meaning: primary metaphors and primary scenes. Tese de Doutorado. University of California, Berkeley, 1997. KENSINGER E. A; CORKIN S. Memory enhancement for emotional words: Are emotional words more vividly remembered than neutral words? Memory and Cognition, 31(8), 1169-1180, 2003. LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago, 1980. 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Development of Gist Versus Verbatim Memory in Sentence Recognition: Effects of Lexical Familiarity, Semantic Content, Encoding Instructions, and Retention Interval. Developmental Psychology, 30, nº2, 178-191, 1994. SIQUEIRA, M. As metáforas primárias na aquisição da linguagem: um estudo interlinguístico. Tese de Doutorado não publicada. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2004. SIQUEIRA, M. S. G.; ZIMMER, M. C. . Metáforas convencionais são metáforas familiares? In: III Conferência Linguística e Cognição, 2006, Campinas. Caderno de Resumos da III Conferência Linguística e Cognição, p. 31-32, 2006. YU, N. The contemporary theory of metaphor. Philadelphia: John Benjamins, 1998. Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 139 139 11/7/2011 19:21:42 Rev Gragoata n 29.indb 140 11/7/2011 19:21:42 Anexos Tabela 3 - Tipo, tamanho, familiaridade, alerta e valência (L = literal, M = metafórica, P = pequena, G = grande) Frase Tipo Tamanho Familiaridade Alerta Valência 1 Ele fica controlando o funcionário. L G 3,5 2,3 2,0 2 Essa moda deixou de existir naquele ano. L G 3,0 1,9 2,9 L L L L L L L L L L L L L G G G P G G P P P P P P P 3,8 4,4 3,2 3,7 3,8 4,2 4,0 3,8 3,6 3,2 4,4 3,8 3,1 3,6 3,2 2,5 2,9 2,6 2,8 3,7 3,1 2,9 2,6 3,0 3,8 2,4 4,3 2,7 3,3 4,1 2,3 2,0 4,4 4,1 3,1 3,7 1,9 4,0 3,2 16 A situação está ruim. L P 4,3 3,4 1,4 17 Nós já chegamos no nosso objetivo. M G 3,4 3,4 4,2 18 Ele tem um jeito antipático. L P 3,9 2,6 2,1 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 Meu trabalho está ficando melhor. O problema foi difícil de resolver. A situação mudou depois da aula. Ele é uma pessoa amável. Ele tem pouco conhecimento do tema. O time está perdendo no campeonato. Esse é um momento bom. Ele aceitou as desculpas. As teorias são diferentes. Esse foi um jogo honesto. Essa aula foi difícil. A proposta me interessa. O contrato ainda é válido. 19 Nossa cidade fica morta à noite. M G 3,4 2,1 2,2 20 Aquela idéia deu ótimos frutos. M G 3,3 3,4 4,3 21 Estou me coçando para ver esse filme. M G 3,1 3,2 3,6 22 O monumento está em péssima forma. M G 2,4 2,1 2,2 23 Nossa amizade nasceu de repente. M G 3,7 3,3 4,1 24 Ela atingiu o topo da carreira. M G 3,1 3,0 3,8 25 O mercado financeiro esfriou um pouco. M G 3,0 2,0 2,5 26 Aquela é uma pergunta central. M G 2,7 2,5 3,0 27 Essa é uma arte maior. M P 2,5 2,8 3,4 28 Ele está numa má posição no emprego. M G 3,1 2,7 1,7 29 Estou me sentindo para baixo. M P 4,2 2,7 1,3 30 Eu vou pesar a decisão. M P 2,7 2,7 2,9 31 Meus colegas são distantes. M P 3,1 2,2 1,8 32 Nosso namoro está quente. M P 3,5 4,1 4,7 33 Ele machucou a minha honra M P 2,2 3,2 1,7 34 Ele é uma pessoa amarga. M P 3,8 2,7 1,8 35 O monumento está em péssimas condições. L G 3,6 2,3 1,8 36 Essa moda passou a existir naquele ano. L G 3,1 1,8 2,9 37 Aquela idéia deu ótimos resultados. 38 Meu trabalho está ficando pior. 39 Aquela é uma pergunta importante. L L L G G G 4,1 3,6 4,1 3,6 3,5 3,5 4,5 1,2 3,4 40 Ele tem muito conhecimento do tema. L G 4,1 3,2 3,8 Rev Gragoata n 29.indb 141 11/7/2011 19:21:43 41 Esse foi um jogo desonesto. L P 4,0 3,5 1,7 42 A proposta não me interessa. L P 3,6 2,3 2,4 43 Ela atingiu o máximo da carreira. L G 3,3 3,3 4,0 44 Eu vou considerar a decisão. L P 3,6 2,9 3,1 45 A situação virou depois da aula. M G 2,9 3,0 2,9 46 Essa aula foi fácil. L P 3,8 3,0 4,3 47 Ele prejudicou a minha honra L P 2,4 3,5 1,4 48 Ele tem um jeito simpático. L P 4,0 2,9 3,9 49 Nossa cidade ganha vida à noite. M G 3,6 3,5 4,0 50 Ela é uma pessoa sofrida. L P 4,0 2,9 1,6 51 O mercado financeiro esquentou um pouco. 52 Ele fica em cima do funcionário. 53 O problema foi duro de resolver. M M M G G G 3,3 3,3 4,2 2,5 2,7 3,3 3,2 2,2 2,7 54 Ele está numa boa posição no emprego. 55 Ele engoliu as desculpas. 56 Nossa amizade morreu de repente. M M M G P G 3,8 3,3 3,3 3,2 2,8 3,4 4,1 2,4 1,4 57 Ele é uma pessoa doce. M P 3,8 2,8 4,1 58 Esse é um momento iluminado. M P 3,2 3,5 4,3 59 O time está atrás no campeonato. M G 3,8 2,8 2,1 60 As teorias são distantes. M P 3,0 2,2 2,5 61 Estou me sentindo para cima. M P 3,8 3,8 4,5 62 Essa é uma arte menor. 63 Nosso namoro está frio. M M P P 2,7 3,3 2,1 3,5 2,4 1,4 64 65 66 67 68 69 L M M L L L G P P G G G 4,0 3,6 3,7 3,8 4,8 3,0 3,6 3,4 3,2 3,0 4,0 2,0 4,4 1,7 4,0 3,1 4,3 2,1 M G 4,1 4,1 2,5 Nós já conseguimos o nosso objetivo. A situação está fedendo. O contrato está de pé. Ela precisa de ajuda no projeto. Estou querendo muito ver esse filme. Nossa cidade não tem atividade à noite. 70 O momento da prova final chegou. 71 O mercado financeiro ficou mais ativo. L G 2,8 1,9 3,1 72 73 74 75 76 77 78 79 80 L M L L L L M M L G G G P P P G G P 3,5 3,0 3,8 3,9 2,5 3,7 3,3 3,1 4,3 2,7 2,6 3,5 3,6 2,3 2,9 1,8 2,6 4,2 1,6 3,0 4,4 1,4 2,4 3,2 3,0 3,3 4,8 81 Nosso namoro está sem emoção. L P 2,7 2,8 1,5 82 Meus colegas são íntimos. 83 Eu sei que existe solução. 84 Ela está muito rancorosa. L L L P P P 2,8 3,9 3,1 2,5 3,7 3,0 3,5 4,1 1,6 85 Ele é flexível em novas situações. M G 3,1 2,4 3,6 86 Nós não chegamos no nosso objetivo. M G 3,2 3,1 1,6 87 Esse foi um jogo sujo. M P 3,5 3,7 1,5 Ele está numa má situação no emprego. Ela precisa de apoio no projeto. Nossa amizade iniciou de repente. Esse é um momento ruim. Essa é uma arte irrelevante. Ela tem certeza desta idéia. Essa moda apareceu naquele ano. Há paralelos entre as duas histórias. Estou me sentindo feliz. Rev Gragoata n 29.indb 142 11/7/2011 19:21:43 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 O monumento está em ótima forma. As teorias são próximas. A proposta não me apetece. Ele tem conhecimento profundo do tema. Meu trabalho está indo para frente. Ele manchou minha imagem O problema foi fácil de resolver. O time está na frente no campeonato. Ele tem um jeito áspero. O contrato foi por terra. Eu entendi essa idéia rapidamente. Nós precisamos aperfeiçoar esse e-mail. Essa aula foi leve. Aquela é uma pergunta irrelevante. Ele tem desejo de poder. M M M M M M L M M M L L M L L G P P G G P G G P P G G P G P 2,0 2,9 3,1 3,9 3,4 2,7 3,9 4,0 3,0 2,4 4,0 2,9 3,5 3,8 3,7 2,0 2,2 2,1 3,1 3,6 3,5 3,1 3,1 2,8 2,7 3,4 2,0 2,6 2,5 3,3 3,3 3,1 2,2 3,8 4,3 1,4 4,3 3,9 1,9 1,8 4,3 2,6 4,3 2,3 2,3 103 Nós não conseguimos o nosso objetivo. L G 3,5 2,4 1,4 104 Essa moda desapareceu naquele ano. M G 2,6 1,8 2,9 105 106 107 108 109 110 111 112 113 114 115 116 L L M L L L L M M L L M G G G G G P P G P P P G 3,7 2,8 3,7 4,3 2,8 3,8 2,7 1,8 3,3 2,9 3,1 3,7 3,2 2,1 2,3 3,6 3,0 2,7 2,6 1,6 3,1 3,6 3,3 3,0 4,1 2,5 2,3 4,1 1,4 1,2 3,4 2,8 2,8 4,0 1,7 4,2 117 Eu peguei essa idéia rapidamente. M G 3,7 3,4 4,1 118 O contrato não vale mais. 119 Ela tem firmeza nesta idéia. L M P P 2,9 3,2 2,7 2,9 2,4 3,3 Ele está numa boa situação no emprego. O mercado financeiro ficou menos ativo. Nós precisamos limpar esse e-mail. O time está vencendo no campeonato. Nossa amizade acabou de repente. Estou me sentindo triste. Essa é uma arte importante. Aquela é uma pergunta periférica. Ele tem fome de poder. Nosso namoro está com emoção. Ele prejudicou minha imagem O problema foi mole de resolver. 120 Ele tem conhecimento superficial do tema. M G 3,6 2,4 2,4 121 Meu trabalho está indo para trás. M G 2,6 3,0 1,4 122 Esse foi um jogo limpo. M P 3,4 2,7 3,9 123 Ele se adapta a novas situações. L G 3,7 3,0 3,9 124 Esse é um momento sombrio. M P 2,9 3,3 2,1 125 A proposta me apetece. 126 Meus colegas são próximos. 127 Essa aula foi pesada. M M M P P P 3,0 3,3 4,4 3,1 2,8 2,9 3,9 3,9 3,5 128 Nossa cidade tem mais atividade à noite. L G 3,5 3,2 3,6 129 Eu vejo que existe solução. M P 3,8 3,7 4,3 130 Ela está cheia de rancor. M P 3,3 2,7 1,6 131 O momento da prova final é agora. L G 3,8 4,1 2,5 132 O monumento está em ótimas condições. L G 2,7 2,2 3,7 133 Há semelhanças entre as duas histórias. L G 3,4 2,5 3,2 134 Ele tem um jeito suave. M P 2,5 1,9 3,3 135 As teorias são similares. L P 3,3 2,3 3,1 Rev Gragoata n 29.indb 143 11/7/2011 19:21:43 Tabela 4 - Metáforas Conceituais Frase 1, 52 CONTROLE É ACIMA 2, 36, 78, 104 EXISTÊNCIA É VISIBILIDADE 3, 38, 92, 121 MELHORA É PARA FRENTE 4, 53, 94, 116 DIFICULDADE É DUREZA 5, 45 MUDANÇA É MOVIMENTO 6, 57 AMABILIDADE É DOÇURA 7, 40, 91, 120 INTENSIDADE É PROFUNDIDADE 8, 59, 95, 108 VANTAGEM É PARA FRENTE 9, 58, 75, 124 BOM É CLARO 10, 55 ACEITAR É ENGOLIR 11, 60, 89, 135 SIMILARIDADE É PROXIMIDADE 12, 41, 87, 122 HONESTIDADE É LIMPEZA 13, 46, 100, 127 DIFICULDADE É PESO 14, 42, 90, 125 INTERESSANTE É SABOROSO 15, 66, 97, 118 VÁLIDO É ERETO 16, 65 RUIM É FEDOR 17, 64, 86, 103 ATINGIR UM PROPÓSITO É CHEGAR NUM DESTINO 18, 48, 96, 134 SIMPATIA É SUAVIDADE 19, 49, 69, 128 ATIVIDADE É VIDA 20, 37 IDÉIAS SÃO PLANTAS 21, 68 DESEJO DE AGIR É COCEIRA 22, 35, 88, 132 CONDIÇÃO É FORMA 23, 56, 74, 109 RELAÇÕES SÃO ORGANISMOS VIVOS 24, 43 Rev Gragoata n 29.indb 144 Metáfora Conceitual Correspondente SUCESSO É PARA CIMA 11/7/2011 19:21:43 25, 51, 71, 106 INTENSIDADE DE ATIVIDADE É CALOR 26, 39, 101, 112 IMPORTÂNCIA É CENTRALIDADE 27, 62, 76, 111 IMPORTÂNCIA É TAMANHO 28, 54, 72, 105 SITUAÇÃO É POSIÇÃO 29, 61, 80, 110 FELICIDADE É PARA CIMA 30, 44 31, 82, 126 32, 63, 81, 114 INTIMIDADE É PROXIMIDADE INTENSIDADE EMOCIONAL É CALOR 33, 47 PREJUDICAR É FERIR 34, 50 SOFRIMENTO É AMARGURA 67, 73 ASSISTÊNCIA É SUPORTE 70, 131 AGORA É AQUI 77, 119 CERTEZA É FIRMEZA 79, 133 SIMILARIDADE É ALINHAMENTO 83, 129 SABER É VER 84, 130 Rev Gragoata n 29.indb 145 CONSIDERAR É PESAR SENTIMENTO É UMA SUBSTÂNCIA EM UM RECIPENTE 85, 123 ADAPTABILIDADE É FLEXIBILIDADE 93, 115 PREJUDICAR É SUJAR 98, 117 ENTENDER É PEGAR 99, 107 IMPERFEIÇÃO É SUJEIRA 11/7/2011 19:21:43 Rev Gragoata n 29.indb 146 11/7/2011 19:21:43 O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná Odete Pereira da Silva Menon Edson Domingos Fagundes Loremi Loregian-Penkal Resumo O objetivo deste trabalho é repensar a questão da seleção de grupos de fatores (GFs) pelo pacote Varbrul, a partir de uma divergência ocorrida quando das rodadas com duas cidades do Paraná, Irati e Pato Branco, na análise da concordância nominal. Um dos GFs estruturais, tipos de formação do plural, foi selecionado quando se rodou Irati, mas não em Pato Branco, apesar de a amostra ter sido feita com uma única metodologia, a do Projeto Varsul, e com exatamente os mesmos GFs, tanto os linguísticos, quanto os sociais. Por isso se questiona até que ponto se deve considerar, na análise, somente a seleção dos GFs pelo Varbrul, quando o objetivo de uma amostra, como é o caso, é perscrutar se e até que ponto a ocupação étnica diferenciada (sobretudo na região Sul) poderia interferir em fenômenos da língua portuguesa no Brasil. Palavras-Chave: Sociolinguística quantitativa. Seleção de grupos de fatores. Concordância nominal em Irati e Pato Branco. VARSUL-PR. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 147 Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:44 Gragoatá Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka O projeto VARSUL: diversidade étnica e sociocultural O Projeto Variação Linguística Urbana na Região Sul (VARSUL), i n ic i ado e m 199 0, é composto inicialmente pelas três universidades federais dos três estados do Sul do Brasil: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1993, passa a contar com a Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC–RS). O Projeto VARSUL tem como horizonte armazenar amostras de realizações de fala de habitantes de áreas urbanas sócio-representativas de cada um dos três estados da região Sul do Brasil, estratificados por localidade, faixa etária, sexo e escolaridade. O Banco VAR SUL vem sendo constantemente ampliado com o acréscimo de novas amostras em todas as sedes. À amostra básica, constituída de informantes sem curso superior, distribuídos por grau de escolaridade, sexo e faixa etária (acima de 25 anos), outras vêm sendo acrescidas, contemplando novas regiões, diferentes faixas etárias, bem como níveis de escolaridade. 2 Como havia a limitação de três cidades por estado, ficaram de fora algumas etnias presentes nos estados: árabes, franceses, japoneses e holandeses, por exemplo. 1 148 Rev Gragoata n 29.indb 148 Os dados de concordância nominal aqui discutidos são provenientes do Banco de Dados VARSUL, cujo objetivo geral é fornecer dados para a descrição do português falado no Sul do Brasil e está sediado em quatro Universidades, dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.1 O Banco de dados VARSUL é resultante da execução do projeto Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil, cuja concepção foi idealizada em 1984, por Leda Bisol, que reuniu, em outubro daquele ano, alguns pesquisadores em Porto Alegre. O projeto proposto pela pesquisadora deveria espelhar-se no projeto pioneiro de levantamento sociolinguístico no Brasil: Projeto Censo Linguístico do Rio de Janeiro, coordenado por Anthony Julius Naro, e executado no final dos anos 70, com os primeiros resultados publicados no início dos anos 80. O Projeto Censo limitou a coleta de dados à cidade do Rio de Janeiro, realizando as entrevistas em diferentes bairros, representativos das diferentes comunidades cariocas, sobretudo do ponto de vista social. Embora o modelo de coleta de dados do Varsul fosse o do Censo, para dar conta da diversidade étnica da região, chegou-se a um denominador comum: não bastaria pesquisar as capitais dos três estados (Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre); seria necessário incluir algumas das etnias representativas da ocupação étnica diferenciada não só da região Sul, mas de cada estado tomado individualmente. A razão disso residia no fato de que se pretendia pesquisar se o português da região sul diferiria dos demais dialetos do PB (português do Brasil) como consequência do povoamento distinto dos três estados (essa região era praticamente despovoada no tempo em que mais entraram escravos no Brasil). Em relação à metodologia do levantamento de dados, a equipe VARSUL seguiu a mesma diretriz laboviana do Projeto Censo, a das entrevistas ditas sociolinguísticas, com duração média de cinquenta minutos. Para dar conta da diversidade étnica, em cada estado foram selecionados, então, três municípios representativos de grupos populacionais comprovadamente relevantes no seu processo de ocupação.2 No Paraná, optou-se pelas etnias mais antigas: Irati (eslavos); Londrina (colonização mineiro-paulista); Pato Branco (colonização gaúcho-catarinense). Em Santa Catarina, foram selecionadas: Blumenau (alemães); Lages (caminho das tropas); Chapecó (italianos, provenientes do RS). No Rio Grande do Sul, uma escolha evidente: alemães (Panambi); italianos (Flores da Cunha) e região de fronteira (São Borja). Uma série de estudos já foi realizada pelos pesquisadores pertencentes ao projeto, a partir do banco de dados, seja no campo da fonética/fonologia; da morfossintaxe ou do léxico, desde 1995, quando já estavam disponibilizadas (transcritas e armazenadas Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:44 O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná em microcomputadores) as entrevistas das capitais. Para detalhamento, consulte-se o site www.cce.ufsc.br/~varsul e www.pucrs. br/fale/pos/varsul/index.php. O fenômeno em estudo: a concordância nominal no Paraná É interessante obs e r va r que, no c a s o dos aumentativos que passaram a constituir entrada lexical independente, como giletão, machão, bailão, bodegão, a não-concordância foi categórica. 3 O grupo de pesquisa do Varsul-Paraná vem se dedicando ao estudo da concordância nominal nas cidades do banco, a fim de verificar se a regra geral do fenômeno, classificada por Scherre & Naro (1997, p. 93) como um “caso típico de variação inerente” no PB, se aplicaria no estado, apesar de ela apresentar uma realização bastante característica, quando um dos determinantes é pronome possessivo (o meus filho). Para fins de comparabilidade com outras regiões do Brasil, adotou-se para os GFs linguísticos o critério de tentar utilizar aqueles já empregados em outras pesquisas do mesmo teor. A igualdade absoluta não foi possível, visto que, em alguns trabalhos, apareceram casos que não foram registrados na nossa amostra, como aquele de Dias (1993, p. 124): “Aí tinha treis filhotin, den da barriga dela (Paul, 10, r, m)”, classificado como “redução do item lexical”. No campo das variáveis extralinguísticas, há a limitação natural do banco: sexo, idade (25-45 e mais de 50 anos), escolaridade (até cinco anos, oito e onze anos) e etnia (conforme acima). Fizemos uma restrição na análise dos dados da alternância na concordância nominal (CN): consideramos somente a concordância intra-sintagmática, deixando de lado a concordância com o predicativo. Como em outros trabalhos, a variável linguística dependente foi a presença/ausência de marca morfológica de plural nos elementos do sintagma nominal (SN) e as variáveis independentes linguísticas foram: posição linear dos elementos no SN; classe gramatical das palavras; posição em relação ao núcleo do SN; tipos de formação de plural, marcas precedentes; contexto fonológico seguinte (para eliminar os casos problemáticos, como “nas porta_? sabe?”); grau dos substantivos3 e adjetivos; tonicidade das palavras; animacidade dos substantivos. Como pretendemos fazer o levantamento das quatro cidades do Paraná, começamos por Irati, visto que, no estudo de outros fenômenos (apagamento do se reflexivo em Bandeira, 2007 e na alternância indicativo/subjuntivo em Fagundes, 2007), essa localidade já havia mostrado apresentar características mais conservadoras quando comparada com as outras três do Banco. Os resultados de Irati foram apresentados no Gel de 2008 e os de Pato Branco no CELLIP de 2009. Em Irati, foram nove os GFs selecionados: relação com o núcleo; posição linear no SN; escolaridade; grau do substantivo; tipos de formação de plural; sexo do informante; traço semântico; idade e classe gramatical. Quando rodamos Pato Branco, apareceu um problema: o GF tipos de formação de plural, que havia sido selecionado em quinto lugar Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 149 149 11/7/2011 19:21:44 Gragoatá Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka em Irati, não foi selecionado porque apresentou nocaute no item VEZ4. Os resultados de Irati podem ser conferidos na Tabela 1 (Input .76). TABELA 1 – Tipos de formação de plural – Irati Fatores Apl./Total % PRel. Item lexical VEZ 24/28 86 .86 Itens terminados em -ão/-ões 59/72 82 .81 Itens terminados em -r 84/106 79 .75 Plural duplo 15/20 75 .73 Itens terminados em -l 33/43 77 .65 Itens terminados em -s/-z 15/22 68 .59 3.316/4.358 76 .48 19/42 45 .33 3.565/4.691 76 Itens com plural regular Itens terminados em -ao/-s Total Para Pato Branco, como não tinha sido selecionado o GF, foi feita uma rodada só com a variável dependente (com ou sem concordância) e o GF tipos de formação de plural, para se obter pesos relativos, a fim de comparar com os resultados de Irati (ainda que esses tivessem sido objeto de iterações com outros GFs). O resultado da rodada está na Tabela 2, com Input de .81 (onde se incluiu o nocaute com o item VEZ só para constar o número de ocorrências visto que, evidentemente, foi retirado do GF para se poder rodar o Varb2000): TABELA 2 – Tipos de formação de plural – Pato Branco Fatores Apl./Total % 02 100 2.187/2.695 81 .51 Plural duplo 11/14 79 .47 Itens terminados em -ão/-s 24/31 77 .45 Itens terminados em -ão/-ões 32/43 74 .41 Itens terminados em -r 52/75 69 .35 Itens terminados em -l 19/28 68 .34 2/3 67 .32 2.329/2.891 81 Item lexical VEZ Itens com plural regular Pela alta incidência da locução nominal às vezes, ela não foi considerada, como já aconteceu em outros trabalhos. O item lexical VEZ foi analisado em separado, conforme critério adotado por Dias (1993). 4 150 Rev Gragoata n 29.indb 150 Itens terminados em -s/-z Total P.Rel. Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:44 O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná Nessa rodada, foram selecionados os GFs: posição linear no SN; relação com o núcleo; traço semântico; grau do substantivo; sexo do informante; idade e escolaridade. As diferenças (e/ou aparentes incongruências) que se pode apontar entre os resultados contidos nas Tabelas 1 e 2 compreendem: para os itens terminados em -ão/-ões temos grande favorecimento da aplicação da regra de concordância em Irati (.81) e desfavorecimento da concordância para Pato Branco (.41). O mesmo ocorre em relação ao plural duplo, com Irati favorecendo a aplicação da regra com .73 e Pato Branco desfavorecendo com .47. Seguem na mesma direção os itens terminados em -r (Irati com .75 e Pato Branco com .35); os itens terminados em -l (Irati com .65 e Pato Branco com .34) e os itens terminados em -s/-z (Irati com .59 e Pato Branco com .32). Como ambas as cidades tiveram idêntico tratamento, tanto na gravação das entrevistas como no tratamento dos dados quantificados, não havia explicação lógica para tal situação. Mais: não seria possível a comparação linear dos resultados, pois havia as divergências acima. Tentamos, então, reparar a situação, fazendo outra rodada para Irati, sem o item lexical VEZ (que ali contava com 28 ocorrências, das quais 24 com concordância). A nova rodada consistiu em aplicar a regra também rodando somente a variável dependente (com ou sem concordância) com o GF tipos de formação de plural. Os resultados são os que constam nas duas tabelas abaixo (Input .76): TABELA 3 – Tipos de formação de plural – Irati (sem vez) Fatores Apl./Total % PRel. Itens terminados em -r 84/106 79 .55 Itens terminados em -ão/-ões 59/75 79 .54 Itens terminados em -l 33/43 77 .51 3.320/4.365 76 .50 Plural duplo 15/20 75 .49 Itens terminados em -s/-z 15/22 68 .40 Itens terminados em -ão/-s 19/42 45 .21 3.547/4.676 76 Itens com plural regular Total Como ainda se apresentassem divergências em algumas variantes – o que, em princípio, poderia ser atribuído à questão etnia ou povoamento diferenciado –, resolvemos fazer uma série de testes, com ambas as cidades em separado, rodando a variável dependente com o GF tipos de formação de plural, eliminando ora umas, ora outras variantes do grupo, ou amalgamando variantes com resultados semelhantes. Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 151 151 11/7/2011 19:21:44 Gragoatá Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka Iniciamos com a rodada sem o item vez e sem itens terminados em -r, cujos resultados podem ser comparados nas tabelas 4 e 5 (input .76 e .81, respectivamente): TABELA 4 – Tipos de formação de plural: Irati (sem vez e -r) Fatores Apl./Total % PRel. Itens terminados em -ão/-ões 59/75 79 .54 Itens terminados em -l 33/43 77 .51 3.320/4.365 76 .50 Plural duplo 15/20 75 .49 Itens terminados em -s/-z 15/22 68 .41 Itens terminados em -ão/-s 19/42 45 .21 3.463/4.570 76 Itens com plural regular Total Como se pode observar nessas tabelas, há resultados seme lhantes em alguns itens testados mas, em relação aos itens terminados em -ão/-ões (Irati .54; Pato Branco .41), aos itens terminados em -l (Irati .51; Pato Branco .33) e aos itens terminados em -ão/-ãos (Irati .21; Pato Branco .45) continua havendo certas discrepâncias entre os pesos atribuídos às duas cidades. TABELA 5 – Tipos de formação de plural: Pato Branco (sem vez e -r) Fatores Apl./Total % PRel. Itens com plural regular 2.187/2.695 81 .50 Plural duplo 11/14 79 .46 Itens terminados em -ão/-s 24/31 77 .45 Itens terminados em -ão/-ões 32/43 74 .41 Itens terminados em -l 19/28 68 .33 2/3 67 .32 2.329/2.891 81 Itens terminados em -s/-z Total Face a esses números, e porque o plural regular do ditongo nasal -ão (em -ãos) apresentou divergência de comportamento, resolvemos rodar juntas as duas cidades (Input .78), em relação ao GF tipos de formação de plural, sem o item vez e sem os itens terminados em -ão/-s: 152 Rev Gragoata n 29.indb 152 Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:44 O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná TABELA 6 – Tipos de formação de plural: IRT/PBR (sem vez e - ão/-s) Fatores Apl./Total % PRel. Itens com plural regular 5.510/7.063 78 .50 Itens terminados em -ão/-ões 91/118 77 .49 Plural duplo 26/34 76 .48 Itens terminados em -r 136/181 75 .46 Itens terminados em -l 52/71 72 .44 Itens terminados em -s/-z 17/25 68 .38 5.832/7.492 78 Total Observa-se que o item tipo de formação de plural não foi selecionado e houve favorecimento da marca de concordância para a cidade de Pato Branco (.54) em relação a Irati (.48). TABELA 7 – distribuição por cidade (sem vez e -ão/-s) Fatores Apl./Total % PRel. Pato Branco 2.303/2.858 81 .54 Irati 3.531/4.637 76 .48 Total 5.834/7.495 78 Na nova rodada foram consideradas as duas cidades em relação ao GF tipos de formação de plural (Input .78), sem o item vez e amalgamando os itens terminados em -s/-z (mês/meses) e -r (plural regular: cama/camas); ão/-ões e -ão/-s (pão/pães e mão/mãos) e o plural das palavras terminadas em -r e -l (colher/colheres e animal/ animais). TABELA 8 – Tipos de formação de plural com dados amalgamados e sem vez Fatores Apl./Total % P.Rel. plural regular e terminados em -s/-z 5.527/7.088 78 .50 Itens terminados em -ão/-ões e -ão/-s 134/191 70 .49 26/34 76 .48 Itens terminados em -r e -l 188/252 75 .46 Total 5.875/7.4 78 Plural duplo Observamos que, em todos os casos, a CN fica no limite do ponto neutro, com nítida tendência à queda. Essa talvez tenha sido a razão de o GF não se ter mostrado estatisticamente relevante. Assim, somente cidade é que foi selecionado, com mais possibilidade de aplicação da regra no PB. Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 153 153 11/7/2011 19:21:44 Gragoatá Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka TABELA 9 – distribuição por cidade dados amalgamados e sem vez Fatores Apl./Total % P.Rel. Pato Branco 2.327/2.889 81 .54 Irati 3.550/4.679 76 .47 Total 5.877/7.568 78 A seguir, outra rodada considerando as duas cidades em relação ao GF tipos de formação de plural, sem o item vez e sem plural regular (Input .73). TABELA 10 – Tipos de formação de plural (sem vez e plural regular) Fatores Apl./Total % PRel. Itens terminados em -ão/-ões 91/118 77 .55 Plural duplo 26/34 76 .55 Itens terminados em -r 136/181 75 .53 Itens terminados em -l 52/71 73 .50 Itens terminados em -s/-z 17/25 68 .44 Itens terminados em -ão/-s 43/73 59 .35 365/502 73 Total Nessa rodada, embora haja leve favorecimento para algumas variantes, a significância foi de (.848) e nenhum dos fatores foi selecionado (o stepdown confirmou a eliminação). TABELA 11 – distribuição por cidade (sem vez e plural regular) Fatores Apl./Total % PRel. Irati 227/311 73 .50 Pato Branco 140/194 72 .49 Total 367/505 73 Estaríamos, então, em face de um problema de falta de ortogonalidade? Ao se retirar plural regular, sobraram poucos dados. No entanto, é quando se retira plural regular que a expectativa de que Irati favoreceria a CN se concretiza, mesmo se o GF não se tenha mostrado relevante do ponto de vista estatístico. Para refinar a análise foram feitas duas outras rodadas, via Crosstab ou tabulação cruzada, considerando todos os GFs e selecionando alguns para testar o cruzamento. Um dos resultados que fica evidenciado é que quanto mais regular o item, maior o percentual de concordância. No cruzamento efetuado entre escolaridade e processos morfológicos de formação do plural, por 154 Rev Gragoata n 29.indb 154 Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:44 O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná exemplo, nos itens terminado em -ão/-ãos temos para falantes do primário 62%; para os do ginásio 74% e para os do colegial 90% de concordância (confirmando os pesos relativos das rodadas que consideraram a variável escolaridade). Já para os itens terminados em -ão/-ões, não se verifica tal acréscimo de percentual de concordância, pois temos o primário com 50%; o ginásio com 78% e o colegial com 54% de frequência da concordância. Nesse tipo de análise podem surgir algumas questões que se originam principalmente da “necessidade analítica de comparação controlada” dos dados (cf. Guy e Zilles, 2007, p. 51), sendo as principais: (i) a ortogonalidade dos grupos de fatores e (ii) a assimetria da distribuição dos dados. Ortogonalidade de grupos de fatores e assimetria na distribuição dos dados Para que se possa efetuar análises e comparações precisas e confiáveis de dados, faz-se necessário que os grupos de fatores sejam ortogonais, ou quase ortogonais. De acordo com Guy e Zilles (2007, p. 52), para que tenhamos grupos de fatores ortogonais é preciso que eles coocorram livremente e que não sejam sub- ou supercategoriais uns dos outros. Em outras palavras, quando não temos dados bem distribuídos por grupos de fatores temos a ausência de ortogonalidade: todas as ocorrências de “y” são também as ocorrências de “x”, e todas as ocorrências de “x” são também as ocorrências de “y”. Guy e Zilles ressaltam que para o programa VARBRUL não importa se as não-ortogonalidades ocorrem por acaso ou por impossibilidade estrutural. Isto porque “quaisquer que sejam as origens do problema, nenhum procedimento analítico pode parcializar efeitos separados para dois grupos de fatores que apresentem esse tipo de distribuição dos dados” (GUY; ZILLES, 2007, p.53). Nesse estudo, há dois casos de figura: a) aparentemente, o plural regular (muito mais numeroso e, portanto, mais suscetível de apresentar ortogonalidade) está puxando para baixo a concordância em Irati, quando, pelos dados passados no pente fino, os falantes apresentam maior frequência de concordância (inclusive no caso do plural em -ões); b) há restrições de ordem estrutural, uma vez que a formação de plural irregular é numericamente inferior à do plural regular (veja-se o número de ocorrências de cada um). Essas divergências entre as duas cidades parecem apontar para algum fator de ordem estrutural, que seria de aplicação difeNiterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 155 155 11/7/2011 19:21:44 Gragoatá Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka renciada da regra, por conta da ocupação diferenciada das duas cidades. No entanto, não foi possível localizar exatamente onde residiria essa diferença pois, além de tudo, no caso dos plurais irregulares, caso específico de -ãos, o número de itens lexicais é muito pequeno nas duas cidades (19 ocorrências – 9 de irmão/-s – em Irati e 24 em Pato Branco – 17 de irmão/-s). Isso nos leva a um questionamento: será que o número de palavras com plural em -ãos é menor do que o das palavras cujo plural é -ões? Não se dispõe – que seja do nosso conhecimento – de levantamento estatístico dessa frequência que pudesse nos auxiliar na análise. Além disso, vamos ver que, nas duas últimas grandes rodadas, tanto o plural regular quanto o em -ões têm comportamento similar (desfavorecendo levemente a concordância, com .49 e .43, respectivamente). É no plural -ãos que se localiza a divergência, com favorecimento da CN, em .76, talvez resultado daquele pequeno número de itens e, portanto, de não-ortogonalidade dos dados. E aí é que reside o impasse: Irati apresentaria maior concordância nesse plural irregular (talvez marca de posição/avaliação social?) e menor nos plurais regulares? Guy e Zilles (2007) afirmam que nem sempre a ortogonalidade se dá em termos categóricos, isto porque ela também pode ocorrer como uma propriedade escalar ou relativa. Nesse sentido, a assimetria tem relação direta com a questão de como os dados se distribuem entre as categorias nos diferentes grupos de fatores. “O caso analítico ideal é o de uma distribuição equilibrada com todas as células contendo números iguais (...). Com uma distribuição equilibrada, obtemos resultados analíticos robustos e significativos (...), mas quando começamos a ter distribuições altamente sobrepostas, todos esses resultados começam a cair” (GUY; ZILLES, 2007, p. 58-59). Passamos, então, a considerar como caso de sobreposição (acavalamento) de grupos de fatores dois dos GFs também utilizados em outros trabalhos sobre CN: ordem linear dos elementos dentro do sintagma nominal e posição em relação ao núcleo: isso estaria representando uma espécie de burla para o programa, pois ambas as variáveis estariam testando coisas semelhantes, contrariando o princípio da independência dos fatores, proposta pelo pacote Varbrul. Além disso, parece que a ordem linear não testa a regra, visto que o núcleo pode estar em todas as posições consideradas no GF e, assim, não se pode localizar o que está à esquerda do núcleo. Se esse GF é selecionado em algumas rodadas, é porque ele tem ortogonalidade (tem uma boa distribuição do número de ocorrências em cada variante) e, portanto, é lido pelo programa como estatisticamente relevante. Qualitativamente, ele não acrescenta nada à análise. Realizou-se, então, uma dobradinha de rodadas (Input .78 em ambas): em cada uma delas eliminou-se um dos GFs acima 156 Rev Gragoata n 29.indb 156 Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:45 O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná mencionados, para se verificar se, quando um não está presente, o outro tem comportamento diferenciado. Dito e feito: quando se alterna o padrão dos GFs, alguns dos outros GFs passam a ter comportamento aleatório: é o caso de classes de palavras, que é selecionado em primeiro lugar quando se mantém o GF ordem linear dos constituintes do SN. Quando se exclui ordem linear e se inclui posição em relação ao núcleo, classes de palavras cai para a penúltima posição, antes de animacidade: Tabela 12 – Rodadas com ordem linear (sem posição) e sem ordem linear (com posição) – GF classes de palavras Com ordem linear – 1º. selecionada Fatores Apl./Total Indefinidos 518/523 Determinantes % Com posição em relação ao núcleo 7º P.R Fatores Apl./Total % P.R. 99% .83 Indefinidos 518/523 99% .87 2707/2753 98% .73 Determinantes 2707/2753 98% .79 Possessivos 234/246 95% .73 Possessivos 234/246 95% .57 Adjetivos 306/422 73% .35 Adjetivos 306/422 73% .35 Quantificadores 101/111 91% .34 Quantificadores 101/111 91% .44 Substantivos 2003/3497 57% .27 Substantivos 2003/3497 57% .22 Total 5869/7552 78% Total 5869/7552 78% Isso demonstra que também classes de palavras está interagindo com ordem linear, uma vez que determinantes, possessivos e indefinidos sempre ocorrem nas primeiras posições – favorecedoras da regra; adjetivos, quantificadores e substantivos podem aparecer nas últimas posições, o que desfavorece a CN. No entanto, os outros GFs (escolaridade; grau dos substantivos e adjetivos; idade; cidade; morfologia e animacidade dos substantivos) permanecem nas mesmas posições, o que garante a confiabilidade dos resultados e a certeza de que a sua distribuição e seleção não ficam alteradas por conta do tropeço do acavalamento daqueles dois GFs. Esse equívoco se reflete somente na seleção dos dois GFs, evidenciando que ordem linear não é relevante para a concordância nominal, uma vez que, quando está presente nas variáveis, só é selecionado em terceiro lugar. Quando posição em relação ao núcleo está entre as variáveis, é selecionado em primeiríssimo lugar, demonstrando, como em outras pesquisas sobre o assunto, ser este o mais proeminente no grupo de fatores estruturais, na variação da concordância nominal do PB. Quanto aos GFs sociais, vemos que idade é selecionado depois de escolaridade, apresentando resultado semelhante ao de outras regiões, ou seja, os mais jovens estão realizando menos concordância (.43) que os mais velhos (.55), podendo se caracterizar o fenômeno como de mudança em curso. Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 157 157 11/7/2011 19:21:45 Gragoatá Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka Escolaridade é selecionado em segundo lugar, nos dois casos. Podemos inferir, então, que a passagem pela escola, no tocante à concordância nominal, surte algum efeito. Não que acreditemos que a escola seja altamente competente: trata-se da ação, mais intensificada pela escola, sobre o efeito social de que se reveste o uso da não-concordância. De fato, diferentemente de outros fenômenos de variação do PB (como o de nós/a gente, p. ex.), há um estigma linguístico-social gritante que marca negativamente as pessoas que não produzem concordância nominal (e também a verbal, cf. Naro & Scherre, 1999) no Brasil. Esta sempre é atribuída a pessoas de baixa renda e de pouca ou nenhuma escolaridade. Nos nossos dados, os informantes de colegial não vão além de 64 na aplicação da regra. À guisa de conclusão... Dessa forma, se não se conseguiu localizar exatamente o problema da inversão de resultados da CN entre Irati e Pato Branco (apesar de vislumbrarmos, pelas múltiplas rodadas do Varb2000 e dos crosstabs realizadas, algum resultado estranho em Irati – mais conservador?) para caracterizá-lo como resultante de ocupação étnica diferenciada, pudemos transitar pelos efeitos causados por alguns GFs, quando retirados das rodadas gerais. Esses efeitos seriam o resultado de uma sobreposição (involuntária?) de GFs e que, até agora, não havia sido questionada em outros trabalhos sobre a CN no Brasil. Abstract This paper aimed at thinking over the issue of selecting groups of factors (GFs) for the Varbrul package after a discrepancy occurred during the rounds with two cities of the state of Paraná – Irati and Pato Branco – regarding nominal agreement analysis. One of the structural GFs – types of plural formation – was selected during the Irati round but not in Pato Branco, although the sample was prepared according to a single methodology (that of the Varsul Project) and with exactly the same GFs, both linguistic and social. That is why the question was raised on whether the analysis should consider exclusively the GF selection by Varbrul when the sample objective as in this case – was to investigate if and to what extent the distinct ethnic occupation (especially in southern Brazil) could interfere with phenomena of the Portuguese language in Brazil. Keywords: Quantitative sociolinguistics, factors group selection, nominal agreement in Irati and Pato Branco, VARSUL-PR. 158 Rev Gragoata n 29.indb 158 Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:45 O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná Referências BANDEIRA, G. A. F. O apagamento de SE nas funções sujeito e objeto: um estudo variacionista com dados do VARSUL do Paraná. Tese (Doutorado em Letras – Estudos Linguísticos). Curitiba: UFPR. 2007. 262 p. DIAS, M. C. A. C. A variação na concordância nominal: um contraste entre o urbano e o rural na fala brasiliense. Dissertação (Mestrado). Brasília: UnB. 1993. 177 p. FAGUNDES, E. D. As ocorrências do modo subjuntivo nas entrevistas do VARSUL no estado do Paraná e as possibilidades de variação com o modo indicativo. Tese (Doutorado em Letras-Estudos Lingüísticos). Curitiba: UFPR. 2007. 220 p. FAGUNDES, E.D.; LOREGIAN-PENKAL, L.; MENON, O.P.S. Concordância nominal em Pato Branco. Comunicação apresentada no XIX Seminário do CELLIP. Cascavel, Unioeste, 2009. GUY, G.; ZILLES, A. Sociolinguística quantitativa. São Paulo: Parábola, 2007. MENON, O. P. S.; FAGUNDES, E.D.; LOREGIAN-PENKAL, L. Concordância nominal em Irati-PR. Comunicação apresentada no 56o. Seminário do GEL. São José do Rio Preto, SP, 2008. NARO, A.J.; SCHERRE, M.M.P. A influência de variáveis escalares na concordância verbal. In: A Cor das Letras. Revista do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. No 3, dezembro. Bahia, Feira de Santana, 1999. p.17-34. SCHERRE, M. M. P.; NARO, A. J. A concordância de número no português do Brasil: um caso típico de variação inerente. In: HORA, Dermeval da. (org.). Diversidade linguística no Brasil. João Pessoa: Ideia. 1997. p. 93-114. WEINREICH, U. W.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical fundation for a theory of language change. In: LEHMANN, W.; MALKIEL, Y. (eds.). Directions for historical linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968. p. 97-195. Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 159 159 11/7/2011 19:21:45 Rev Gragoata n 29.indb 160 11/7/2011 19:21:45 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural Cássio Florêncio Rubio Sebastião Carlos Leite Gonçalves Resumo Neste trabalho, apresentamos metodologia para o tratamento conjunto de três fenômenos variáveis do português brasileiro: (i) codificação de primeira pessoa do discurso no plural pelas formas nós e a gente, (ii) concordância verbal com o pronome nós e (iii) concordância verbal com a forma pronominal a gente. Amparada teoricamente na Sociolinguística laboviana (LABOV, 1966, 1972), a metodologia é aplicada a amostras do português falado no interior paulista (GONÇALVES, 2007). Os resultados apontam que fatores de natureza distinta prevalecem na escolha das formas alternantes de cada fenômeno: na concordância verbal com a gente, prevalecem fatores linguísticos; na concordância verbal com nós, fatores sociais, e no uso de nós/a gente, tanto fatores linguísticos quanto sociais. Palavras-chave: concordância verbal, primeira pessoa, nós, a gente. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 161 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:45 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves Introdução No português brasileiro (doravante, PB), já está mais do que provado que a concordância verbal (CV, daqui em diante) de primeira e de terceira pessoa do plural (1PP e 3PP, daqui em diante, respectivamente) é regra variável. Normalmente, as pesquisas sobre o tema se concentram mais na investigação da 3PP do que da 1PP. Grande parte dos trabalhos sobre 1PP se concentra na variação de CV entre o pronome nós e a forma verbal a ele relacionada, como encontramos em Bortoni-Ricardo (1985), que trata da fala de migrantes da zona rural na cidade satélite de Brazlândia (DF), em Assis (1988), que descreve brevemente o sistema de CV do dialeto da Ilha do Desterro (SC), em Rodrigues (1987), que trata do português popular da periferia de São Paulo, incluindo também a 3PP, em Camacho (1993), que investiga aspectos funcionais e estruturais da CV no português culto registrado nas amostras do Projeto NURC de São Paulo, em Zilles, Maya e Silva (2000), que abordam a CV em Panambi e Porto Alegre (RS), e em Lucchesi et al. (2009), que pesquisam amostras do dialeto da Helvécia (BA). A alternância entre nós e a gente também já foi atestada no PB por diversos autores, dentre os quais destacamos Omena (1986, 1996, 2003), para o dialeto carioca, Lopes (1998, 1999), para a fala culta do Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, Zilles (2004, 2005, 2007), que tratou da gramaticalização e da avaliação social da forma a gente na fala e na escrita de diferentes variedades do território brasileiro. A variação na concordância com a forma pronominal a gente, apesar de pouco investigada, já se revela fenômeno comprovadamente variável, segundo estudos de Costa et al. (2001), na comparação entre PB e PE, e de Pereira (2003), sobre concordância nominal entre predicativos e a gente em posição de sujeito. A análise conjunta da variação na concordância de 1PP e da alternância entre as formas nós e a gente foi proposta nos trabalhos de Naro et al. (1999), de Vianna (2006), ambos em amostras de fala do Rio de Janeiro, e de Coelho (2006), para a língua falada na periferia paulistana. O primeiro estudo tratou do uso variável da flexão verbal de 1PP e 3PS junto às formas nós e a gente, em quatro gerações de falantes. O segundo teve como objetivo principal a análise de estruturas predicativas que complementam verbos em dados de fala e escrita. Coelho (2006) apresentou resultados que evidenciam relação direta entre o fenômeno da CV e o da alternância entre nós e a gente, além de atestar que a aplicação de desinência verbal de 1PP junto à última forma é pouco frequente. Com base nas pesquisas ora mencionadas, neste trabalho, propomos a apresentação, discussão e experimentação de opções metodológicas para o tratamento conjunto da variação entre nós 162 Rev Gragoata n 29.indb 162 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:45 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural e a gente em posição de sujeito e da variação na CV em relação ao uso dessas formas pronominais. Variação e mudança em torno da expressão de primeira pessoa do discurso O primeiro ponto a ser discutido nesta seção relaciona-se à distinção entre pessoa do discurso e pessoa gramatical. Como já apontado por Benveniste (1995), a noção de pessoa do discurso é própria somente de eu/tu e suas formas correlatas, porque são essas as únicas que “se prendem ao próprio processo de enunciação” (p. 278). Ao contrário das formas de expressão de pessoa, “há enunciados de discurso, que (...) escapam à condição de pessoa, isto é, remetem não a eles mesmos, mas a uma situação “objetiva”. É o domínio daquilo a que chamamos a ‘terceira pessoa’” (p. 282). No português padrão há correspondência exata entre pessoa do discurso e pessoa gramatical. Para a primeira pessoa, o falante, existe um pronome de primeira pessoa gramatical, eu, com flexão verbal própria. Para as demais pessoas, tanto no singular quanto no plural, a mesma univocidade se verifica. Porém, nas variedades não padrão do PB, a inclusão de novas formas de menção à segunda pessoa (singular/plural) e à 1PP reelaborou o quadro pronominal e de CV, levando à falta de total correspondência entre mesmas pessoa e flexão verbal. É o caso das formas inovadoras você e a gente, que, ao assumirem valores discursivos de segunda pessoa (singular/plural) e 1PP, respectivamente, retêm flexão verbal de terceira pessoa. (OMENA e BRAGA, 1996; MENON, 1996; LOPES, 1999, 2003; ZILLES, 2005). Não é recente o reconhecimento da variação entre as formas nós e a gente. A menção ao uso de a gente como forma “popularesca” de valor pronominal é evidenciada já em gramáticas do início do século XX, como se verifica em Nunes (1919). A parte de pessoa, ocorre, frequentemente, sobretudo na fala popular, o nome gente, que, como aquele, costuma neste caso tomar o género, pedido pelo sexo da pessoa a que se refere. No povo o vocábulo gente tem valor colectivo, valendo pelos pronomes eu e tu ou ele, nos casos em que a língua culta usa nós. (NUNES apud PEREIRA, 2003, p. 13) Mesmo entre linguistas e filólogos da língua portuguesa não é consensual o reconhecimento da forma a gente como pronominal. Perini aponta que formas como o senhor, a senhora, a gente “seriam ‘pronomes pessoais’ no sentido de que se referem ao locutor; mas gramaticalmente não diferem dos outros SNs” (PERINI, 2010, p. 115). Há, segundo o autor, distinção entre o item a gente e os pronomes pessoais, o que faz com que ele esteja mais próximo de “outros SNs” do que de pronomes. Para Neves (2000, p. 470), entretanto, a gente pode ocorrer como pronome pessoal para Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 163 163 11/7/2011 19:21:45 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves referência à 1PP ou para referência genérica a todas as pessoas do discurso, funcionando como forma de indeterminação do sujeito. Ainda que outros sintagmas nominais (o pessoal, o cara, o cidadão) sejam empregados com mesma função na linguagem coloquial, “seu estatuto não tem identificação com a classe dos pronomes pessoais como o sintagma A GENTE tem”. Segundo Hopper (1991), pelo princípio da estratificação, novas “camadas” emergem em um domínio funcional, sem que formas antigas sejam substituídas imediatamente, proporcionando coexistência de camadas novas e antigas no mesmo domínio, que codificam funções semelhantes ou idênticas e compõem diferentes variantes estilísticas. É o que mostram Omena e Braga (1996) sobre a gramaticalização da forma a gente, que passa a coexistir com nós, deixando, gramaticalmente, de ser forma substantiva para integrar o sistema de pronomes pessoais, e constituindo assim claro caso de variação, captado pela estratificação, como postula Hopper (1991). Segundo a tradição gramatical, a flexão verbal de 1PP é requerida nos casos em que figuram como sujeito da oração: (i) pronome 1PP, (ii) formas compostas que possam representar a pessoa do falante em conjunto com outros seres (eu + SN ou pronome) e (iii) uma categoria vazia com referência anafórica ao sujeito. Rodrigues (1987), em estudo da CV variável com o pronome nós, na fala de favelados de São Paulo, obteve percentual de 53% de aplicação de flexão de 1PP contra 47% de 3PS. Zilles et al. (2000), ao analisarem falantes com escolaridade fundamental e média de Panambi e de Porto Alegre (RS), obtiveram frequência geral de 87% de aplicação de desinência de 1PP. No estudo de Lucchesi et al. (2009) sobre a fala da comunidade afro-brasileira de Helvécia, houve 18% de frequência de pluralização verbal em contextos de 1PP (ou seja, frequência de 82% de flexão de 3PS). No tocante à CV com a forma a gente, Teyssier (1989, p. 243) alude ao uso muito comum de a gente na linguagem familiar, normalmente com flexão de 3PS. Contudo, a forma pode ocorrer com verbos em 1PP, uso percebido como incorreto pelos falantes. Além das flexões de 3PS e de 1PP, Vianna (2006) observa, em amostras do PB, do estado do Rio de Janeiro, também a combinação de a gente com flexão verbal de 3PP (a gente estão), padrão menos comum no PB, em relação às outras duas alternantes. Naro et al. (1999) resumem os fenômenos de alternância pronominal e de variação na CV de 1PP da seguinte forma: Em português padrão o sujeito de primeira pessoa do plural é nós e sua forma verbal correspondente é feita com a flexão gramatical –mos. Um exemplo típico é nós falamos. Entretanto, há uma alternativa para o sujeito pronominal de primeira pessoa do plural: a gente, que deriva de um sintagma nominal com a mesma forma e significa as pessoas. Na linguagem padrão o verbo usado com a gente recebe desinência de terceira pessoa do 164 Rev Gragoata n 29.indb 164 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:45 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural singular, com terminação zero. Um típico exemplo é a gente fala. Conquanto, o uso do pronome sujeito, com certa frequência, não é obrigatório, e, na linguagem informal, a desinência –mos é omitida com nós e usada com a gente, a despeito do papel categorial e ao contrário do padrão. As formas nós falamos e a gente fala são padrão; nós fala e a gente falamos são não-padrão. (NARO et al.,1999, p. 201, tradução nossa) Procedimentos para o tratamento conjunto de três fenômenos variáveis Para testar os procedimentos metodológicos de tratamento conjunto dos três fenômenos identificados anteriormente, em nossa pesquisa, utilizamos 76 amostras de fala do Banco de Dados Iboruna (GONÇALVES, 2007), provenientes de informantes da região Noroeste do Estado de São Paulo, estratificados em cinco faixas etárias (7 a 15; 16 a 25; 26 a 35; 36 a 55 e mais de 55 anos), quatro níveis de escolarização (1º. e 2º. Ciclos do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior) e gêneros masculino e feminino, distribuídos de forma equânime por entre as variantes sociais. Para a análise conjunta dos fenômenos em variação, selecionamos ocorrências em que se verifica a expressão de 1PP do discurso tanto na forma pronominal de sujeito explícito nós/a gente quanto na flexão verbal referente às formas nós/a gente expressas em contexto anterior. Segue em (1) a combinação dessas possibilidades, quais sejam: (i) nós com verbo em 3PS (1a); (ii) nós com verbo em 1PP (1b); (iii) a gente com verbo em 3PS (1c); (iv) a gente com verbo em 1PP (1d); (vii) forma verbal de 3PS com referente explícito nós ou a gente em oração anterior ((1e) e (1f)); (vii) forma verbal de 1PP com referente explícito nós ou a gente em oração anterior ((1g) e (1h)).1 (1)a. aí o moleque fa/ acho que foi embora né? nós foi embora pra casa…(AC-015, l. 30) b. nove e meia da noite... nós fomos pro apartamento e num tinha nada (AC-082, l. 55) c. desde junho do ano pasSAdo a gente namorava escondido... (AC-22, l. 5) As indicações nos parênteses que seguem as ocorrências exemplificativas referem-se, respectivamente: ao tipo de amostra (AC, Amostra Comunidade), ao número que identifica o perfil social do informante e à linha em que o dado se situa na transcrição. 1 d. quando a gente chegamo(s)… do serviço ela pegô(u) e ligô(u) pra colega dela (AC-016, l. 40) e. a gente vai:: compra sorvete e fica na praci::nha conversan::(d)o... (AC-034, l. 23) f. Nós fugimo(s) casamo(s)... teve uma vida muito difícil (AC-059, l. 17) g. Inf.: a gente ficô(u) lá::... quinze dias... fomos de ô::nibus chegamo(s) lá tudo (AC-024, l. 70) Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 165 165 11/7/2011 19:21:45 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves Não foram consideradas na análise da CV ocorrências de sujeito desinencial sem referente explícito em contexto anterior, como mostrado em (2a), por se constituírem casos em que não se admite variação entre formas de 1PP e 3PS no único elemento indicativo de pessoa do discurso, como mostra o confronto de (2a) e (2b). (2)a. Inf.:é muito difícil começar... começamo(s) a fazê(r) barzi::nhos começamo(s) a fazê(r) casamen::tos festas... e aí foi crescen(d)o... e e e e fomo(s) convidan(d)o mais músicos e se tornô(u) uma banda (AC-029, l. 02) b. é muito difícil começar... começou em em::... antes da banda começou a fazê(r) barzi::nhos começou a fazê(r) casamen::tos festas... Para a análise da alternância entre nós e a gente, descartamos sujeitos desinenciais (ocultos) e consideramos somente ocorrências de sujeitos pronominais. Também foram descartadas ocorrências em que a gente figura como SN, como em (3a), porque tais casos não constituem alternantes da forma de 1PP, nós, como mostra (3b). (3)a. e sempre que eu ia lá... a gente daquele lugar ficava olhando... (AC-092, l. 222) b. e sempre que eu ia lá... nós daquele lugar ficava olhando... Por constituir objeto de análise a variação entre nós e a gente, desconsideramos ocorrências de sujeitos compostos pela forma pronominal eu e outras estruturas (SNs e pronomes), que, sabidamente, apresentam variação na CV ((4a) e (4b)). A inclusão dessas estruturas inviabilizaria a consideração dos sujeitos do tipo oculto ou desinencial na análise da CV, os quais foram considerados, conforme menção prévia, em relação a seu referente explicitado em orações anteriores. (4)a. eu:: meu tio:: meu pri::mo e um colega nosso tava sentado ali na frente de casa... (AC-046, l. 389) b. graças a Deus eu e meu marido... construímos uma família (AC-083, l. 195) Contextos linguísticos variáveis Dentre as variáveis linguísticas que já se mostraram relevantes para a investigação da CV de 1PP e da variação entre nós e a gente, apenas três servem à análise conjunta dos três fenômenos: grau de determinação do sujeito, saliência fônica verbal e tempo e modo verbal. Sobre elas passamos a discorrer. Diversos trabalhos apontam grau de determinação do referente sujeito como importante fator na alternância entre nós e a gente 166 Rev Gragoata n 29.indb 166 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:45 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural (OMENA, 1986; MACHADO, 1995; LOPES, 1999; VIANNA, 2006, dentre outros). Segundo Buescu (1961, apud PEREIRA, 2003), o pronome pessoal nós possui maior concretude, porque é usado para se referir a um número mais completo ou determinado de pessoas, enquanto a gente é usado para delimitar categorias, isto é, para referir-se a um número não limitado. Em nossa investigação, o controle do grau de determinação do referente sujeito foi feito mediante os seguintes fatores: (i) referência genérica e indefinida, quando o pronome remete a categoria generalizada e indeterminada de indivíduos ((5a) e (5b)); (ii) referência genérica e definida, quando o pronome remete a categoria generalizada, mas determinada de indivíduos ((5c) e (5d)); (iii) referência específica e definida, quando o pronome remete a categoria específica e determinada de indivíduos, em que o falante se inclui junto a outro referente também específico; a recuperação do referente é feita com exatidão no contexto posterior ou anterior ((5e) e (5f)). (5)a. a gente tem que se preocupá(r) SIM com o meio ambiente... (AC-051-550) b. então Deus sabe o que faz e nós num sabe o que fala né?... (AC-090, l. 60) c. então tem um secante de cobalto... que a gente utiliza lá no serviço (AC-086-380) d. todos nós que somos membros... nós temo(s) pintores... nós temos encanadores (AC-106, l. 455) e. eu e minha esposa não saia de lá... a gente passeava lá na pracinha... (AC-111-34) f. aí nós entrô(u) na casa do moleque esperô(u) um tempinho lá aí depois nós foi embora (AC-015, l. 10) Nos trabalhos pesquisados não há menção da influência do grau de determinação do sujeito sobre a CV com nós e com a gente, contudo insistimos na consideração dessa variável para os três fenômenos, motivados pela hipótese de que referentes mais específicos e definidos, nos quais o falante nitidamente se inclui, influenciariam a aplicação da desinência de 1PP, independentemente do sujeito pronominal. No estudo da concordância verbal e nominal, saliência fônica é fator relevante na retenção de marcas de pluralidade no sujeito, no verbo e no predicativo. Os resultados demonstram que distintos graus de diferenciação entre formas em competição no processo de variação têm importância fundamental na seleção da forma preferida. Naro et al. (1999) comprovam que maiores níveis de saliência entre as formas verbais levam a maiores frequências de uso da forma de 1PP, seja com sujeito nós, seja com sujeito a gente. Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 167 167 11/7/2011 19:21:45 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves À medida que o nível de saliência aumenta, a frequência de aplicação da desinência de 1PP também aumenta. Considerando a síncope da vogal postônica em palavras proparoxítonas (LEMLE, 1977), Rodrigues (1987) e Coelho (2006) comprovam que os falantes de suas amostras tendem a evitar formas verbais proparoxítonas, que ocorrem com 1PP em alguns tempos verbais. Os resultados comprovam, nesses contextos, aplicação quase categórica da desinência de 3PS junto do pronome nós (RODRIGUES, 1987) ou a preferência acentuada pela forma a gente, com desinência de 3PS (COELHO, 2006). Com base no exposto em relação à saliência fônica, propomos o controle dos seguintes contextos: (i) saliência esdrúxula: quando a forma de 1PP é proparoxítona, e a oposição X/X-mos não é tônica nas duas formas ((6a) e (6b)); (ii) saliência máxima: quando ocorre mudança no radical e a oposição X/X-mos é tônica em uma ou duas formas ((6c) e (6d));; (iii) saliência média: quando ocorre uma semivogal na forma de 3PS que não ocorre na forma de 1PP e a oposição X/X-mos é tônica nas duas formas ((6e) e (6f)); (iv) saliência mínima: quando a oposição X/X-mos é tônica em uma ou nas duas formas, mas não há mudança no radical ((6g) e (6h)). (6)a. a gente obedecia (obedecíamos) o pai e a mãe antigamente né? (AC-122, l. 10) b. dava incentivo... pra que nós pudéssemos (pudesse) participar de entida::des (AC-114. l. 915) c. graças a Deus a gente fez (fizemos) uma casinha boa... né? (AC-112, l. 250) d. agora como... nós somos (é) em cinco sócios (AC-132, l. 200) e. a gente fomos (foi) tudo mundo pra chácara... catei meus neto (AC-132, l. 80) f. aí nós mudou (mudamos) de lá (AC-015, l. 165) g. aí a gente joga (jogamos) ela num centrífuga que é um lugar que a gente faz o metal (AC-045, l. 290) h. de repente nós tá (tamos) tudo ali esperan(d)o o corpo... (AC-105, l. 100) A opção pela separação dos fatores saliência esdrúxula e saliência máxima se deve à hipótese, observada em trabalhos anteriores, de que esses contextos apresentam comportamento dessemelhante em relação aos fenômenos investigados. Vários são os estudos que investigam a influência da expressão modo-temporal do verbo no emprego das formas nós e a gente e do tipo de CV que elas desencadeiam. Segundo Fernandes e Gorski (1986), em relação à CV, a desinência –mos de 1PP vem adquirindo função de morfema de Pretérito, em oposição ao mor168 Rev Gragoata n 29.indb 168 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:46 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural fema Ø de Presente, o que leva à expectativa de que o pronome nós tenha seu uso mais vinculado a verbos no Pretérito enquanto a gente, a verbos no Presente. Omena (1986) e Lopes (1998) mostram que Pretérito Imperfeito, Presente e formas nominais tendem a favorecer o uso de a gente, enquanto Futuro e Pretérito Perfeito, o uso de nós. A gente estaria relacionado a tempos menos definidos, como o Presente (que pode expressar ação presente, futura, tempo indefinido, atemporalidade e habitualidade) e o Pretérito Imperfeito, que denota ação passada inconclusa. Tempos verbais de valores mais definidos, como o Pretérito Perfeito (que denota ação passada conclusa), estariam mais ligados ao emprego do pronome nós (VIANNA, 2006). Em relação à CV de 1PP, Naro et al. (1999) comprovaram que formas de Pretérito relacionadas aos sujeitos pronominais nós e a gente tendem a apresentar com maior frequência desinências de 1PP do que formas no Presente. Em nossa investigação, esse grupo de fatores compõe-se das seguintes variantes: (i) Presente do Indicativo e do Subjuntivo (7a); (ii) Pretérito Imperfeito do Indicativo e do Subjuntivo (7b); (iii) Pretérito Perfeito do Indicativo (7c); (iv) Futuro do Presente, do Pretérito do Indicativo e do Subjuntivo e outros tempos verbais (7d).2 (7)a. a gente tira o dentinho da onde a gente pingô(u) tirô(u) o dentinho (AC-045, l. 225) b. a gente trabalhava viajando né? sempre viajan(d)o né? (AC-045, 220) c. aí de de lá nós pegamos ela e levamos pra U.T.I (AC-105, l. 20) d. amanhã nós estaremos in(d)o pra lá ficaremos lá mais uns dez dias (AC-151, l. 190) Ainda que optemos pela investigação da variável linguística tempo e modo verbal, é importante mencionar a correlação notável entre ela e o grupo de fatores saliência fônica verbal. Verbos regulares do Presente do Indicativo possuem nível mínimo de saliência entre 3PS e 1PP. A maioria dos verbos no Pretérito Perfeito da amostra tem nível médio de saliência e verbos no Pretérito Imperfeito do Indicativo e Subjuntivo associam-se a casos de saliência esdrúxula. Variáveis sociais consideradas Devido à baixa frequência e ao comportamento semelhante do futuro e de alguns tempos verbais, optamos por amalgamar variantes. 2 Diferentemente de variáveis linguísticas que restringem o tratamento conjunto dos três fenômenos aqui investigados, variáveis sociais estão livres de restrição e suas inclusões no presente estudo já estão de antemão justificadas pela própria importância de considerá-las em todo e qualquer estudo sociolinguístico. Assim, sob as premissas já estabelecidas para as variáveis sociais Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 169 169 11/7/2011 19:21:46 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves mais tradicionalmente consideradas nos estudos variacionistas, controlamos aqui sexo/gênero, idade e escolaridade. Sobre o uso alternante de nós e a gente, é esperado que a forma inovadora esteja mais presente na fala dos mais novos do que na fala dos mais idosos, a exemplo do que constatam Omena e Braga (1996). Em relação à CV, alguns trabalhos evidenciam não haver aumento ou diminuição gradativa da aplicação de marcas relacionada à faixa etária (NARO; SCHERRE, 1998; RUBIO, 2008), não sendo, portanto, previsíveis os resultados para essa variável, por não haver, no PB, um movimento em direção única, seja de aquisição, seja de perda de marcas de plural, ao longo dos anos, o que Naro e Scherre (1991) denominaram fluxos e contrafluxos dos fenômenos sociolinguísticos do PB. Para a variável escolaridade, a hipótese inicial é de que o aumento da escolaridade do informante e, consequentemente, o maior contato com a norma culta presente no ambiente escolar acarretem maior emprego da CV tal como ela é prescrita e do uso de nós em detrimento de a gente. Seguindo princípios gerais da atuação da variável gênero em fenômenos variáveis (LABOV, 1990), a expectativa é de que mulheres, em relação à alternância pronominal, sejam mais propensas ao uso da forma inovadora, comprovadamente pouco estigmatizada no PB (ZILLES, 2004). Para a CV, a hipótese é de que homens apresentem maior propensão de desvio à norma, com menores frequências de aplicação da flexão de 1PP com o pronome nós e da flexão de 3PS com o pronome a gente. O último passo metodológico a ser esclarecido diz respeito à quantificação dos dados, pois ainda que os fatores considerados sejam comuns a todos os fenômenos, os dados não foram submetidos a uma única rodada estatística, já que, como se sabe, as variáveis dependentes possuem natureza distinta. Uma delas ligada ao uso dos pronomes de 1PP nós e a gente em posição de sujeito e as outras duas ligadas à aplicação da desinência de 1PP e 3PS em formas verbais de 1PP do discurso. Para a quantificação da variação na CV, os dados referentes às formas a gente e nós foram rodados separadamente, com a inclusão das ocorrências com sujeitos ocultos ou desinenciais. A decisão sobre a inclusão dos verbos como formas vinculadas ao pronome a gente ou ao pronome nós foi pautada pela presença formal do pronome em orações anteriores, como mostram as ocorrências (8). (8)a. a gente ficô(u) uns seis dias... mas foi muito bom até aproveitamo(s) bastante (AC-042, l. 15) b. nós fica mais sozinho aqui né?... e lá em cima fica um na guarita... e durante o dia fica DOIS... à noite éh:: ficamo(s) sozinho também (AC-121, l. 225) 170 Rev Gragoata n 29.indb 170 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:46 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural Ao procedermos à rodada de verificação da frequência de aplicação de CV nos verbos, consideramos as especificidades de cada pronome. O pronome nós, influenciado pela tradição normativa, normalmente se vincula com maior frequência a desinências de 1PP; o pronome a gente, por se constituir em forma gramaticalizada de um SN, normalmente se liga a verbos com desinência de 3PS (NARO et al.,1999). Dessa forma, os pesos relativos para os verbos ligados ao pronome nós foram extraídos em relação à aplicação da forma de 1PP. Para a forma pronominal a gente, os pesos relativos foram extraídos em relação à aplicação da forma de 3PS. Análise dos resultados Ainda que resultados normalmente constituam-se o ponto principal da maioria dos trabalhos, conforme vimos argumentando até aqui, nosso intuito é a apresentação de uma proposta de consideração conjunta de fenômenos variáveis do PB, o que rende discussão mais ampla do que normalmente se apresenta. Os resultados gerais da tabela 1 comprovam o predomínio da forma a gente sobre nós, evidenciado, sobretudo, pelo percentual quase três vezes maior de frequência da primeira forma pronominal, gramaticalizada, em relação à segunda, conservadora. Tab. 1: Frequência de uso de nós e a gente. Nós A gente Total 25,4% (573) 74,6% (1682) 100% (2255) Em relação aos resultados da frequência de aplicação das desinências de 1PP e 3PS junto aos dois tipos de sujeito, a forma pronominal nós mostrou-se mais suscetível à variação, com 79,5% de flexão verbal de 1PP contra 20,5% de 3PS. A frequência de aplicação de flexão verbal de 3PS com sujeitos a gente prevaleceu acentuadamente sobre a frequência de aplicação de 1PP (94,2% de verbos em 3PS), revelando forte tendência à não pluralização verbal com a gente. A tabela 2 apresenta os resultados para a CV com nós e a gente. Tab. 2: Flexão de 1PP e 3PS com nós e a gente em posição de sujeito (explícito ou desinencial). Nós A gente 1PP 3PS 1PP 3PS 79,5% (551/693) 20,5% (142/693) 5,8% (112/1943) 94,2% (1831/1943) Os percentuais apresentados em relação à alternância das formas pronominais e em relação à CV variável de 1PP confirmam a tendência, já evidenciada em outras variedades, de redução do Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 171 171 11/7/2011 19:21:46 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves paradigma flexional do PB, com a diminuição gradativa do uso da desinência de 1PP, como vemos na tabela 3. Tab. 3: Frequência de uso de flexão de 1PP e 3PS Verbos com desinência de 1PP Verbos com desinência de 3PS Total 25,2% (663) (551-Nós/112-A gente) 74,8% (1.973) (142-Nós/1.831-A gente) 100% (2.636) (693-Nós/1.943-A gente) A soma das amostras com desinência de 1PP, incluindo os casos em que a forma pronominal a gente exerce função de sujeito, representa percentual de apenas 25,2% do total, enquanto o percentual de uso de 3PS junto de nós e a gente é de 74,8%. A seguir, passamos aos resultados da atuação das variáveis linguísticas e sociais sobre os fenômenos aqui considerados. O quadro 1 apresenta os fatores selecionados para cada fenômeno e a ordem de seleção indicada pelo programa Goldvarb. Quadro 1: Ordem de seleção dos fatores considerados para os fenômenos Fenômeno Nós x A gente Nós + 1PP/3PS A gente + 1PP/3PS Saliência fônica verbal 1º 2º 1º Grau de determinação do suj. 4º não selecionado 2º Tempo e modo verbal 5º não selecionado 3º Escolaridade 3º 1º não selecionado Faixa etária 2º 3º 4º Gênero 6º 4º não selecionado sociais Linguísticos Fatores Com base nos resultados do quadro 1, cabem as seguintes observações iniciais: (i) Na alternância nós x a gente, tanto as variáveis linguísticas quanto as variáveis sociais são relevantes; (ii) A CV com nós em posição de sujeito é mais suscetível à influência de fatores sociais do que de linguísticos, já que somente o fator linguístico saliência fônica verbal foi selecionado; (iii) Na CV com o sujeito a gente, há maior influência de fatores linguísticos do que de sociais, o que se verifica pela seleção apenas da variável social faixa etária, última em ordem de relevância; (iv) As variáveis 172 Rev Gragoata n 29.indb 172 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:46 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural saliência fônica e faixa etária são relevantes para os três fenômenos, embora não na mesma ordem de importância. Passando à análise da atuação de cada um dos fatores, iniciemos pelos resultados expostos na tabela 4 para a variável saliência fônica. Tab. 4: Frequência e PR dos três fenômenos em relação à saliência fônica Fenômeno Nós A gente Nós + 1PP peso relativo peso relativo peso relativo peso relativo % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) Esdrúxula (proparoxítonas) 0,497 24 (105/438) 0,503 76 (333/438) 0,096 0,924 59,1 (68/115) 99,7 (358/359) Mínima 0,353 12,1 (109/900) 0,647 87,9 (791/900) 0,271 0,522 76 (76/112) 97,1 (883/909) Média 0,642 38,9 (309/795) 0,358 61,1 (486/795) 0,680 0,200 86,9 (357/411) 88,2 (518/587) Máxima 0,669 41 (50/122) 0,331 59 (72/122) 0,689 0,135 90,9 (50/55) 81,8 (72/88) A gente + 3PS Saliência fônica O peso relativo (PR, doravante) dos níveis médio e máximo de saliência fônica, em relação à aplicação de 1PP junto de nós, foi de 0,680 e 0,689, respectivamente, demonstrando que esses fatores atuam positivamente no uso de nós. Em relação à CV com a gente, os fatores saliência média e máxima apresentaram os menores PRs para aplicação de 3PS (0,200 e 0,135), o que, por análise complementar, sugere que eles atuam positivamente na aplicação da flexão de 1PP junto dessa forma pronominal. Esses resultados confirmam a primeira hipótese sobre a atuação da saliência fônica: maiores níveis de saliência fônica propiciam maior aplicação de 1PP tanto para a gente quanto para nós (NARO et al., 1999). Os PRs em relação à alternância nós/a gente revelam favorecimento de a gente à presença de formas verbais de saliência esdrúxula e mínima (0,503 e 0,647), e de nós junto a formas verbais de saliência média e máxima (0,642 e 0,669). Ainda sobre a aplicação de 1PP e 3PS, é possível observar forte tendência do falante a evitar formas proparoxítonas (verbo em 1PP) com nós (59,1% e PR de 0,096, para aplicação de 1PP) e com a gente (99,7% e PR de 0,924, para aplicação de 3PS). Confirma-se assim a segunda hipótese da atuação da variável saliência fônica: o falante tende a evitar formas verbais proparoxítonas, recorrendo a 3PS para nós e para a gente (RODRIGUES, 1987; COELHO, 2006). Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 173 173 11/7/2011 19:21:46 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves Concernente à variável grau de determinação do sujeito, as expectativas são duas: (i) a forma nós é usada para sujeitos de referência específica e definida, enquanto a gente é usada para sujeitos de referência indefinida; (ii) para variação de CV, a hipótese a ser investigada é de que referentes mais específicos e definidos influenciem a aplicação de desinência de 1PP. Segue a tabela com os resultados para essa variável. Tab. 5: Frequência e PR dos três fenômenos em relação ao grau de determinação do sujeito Fenômeno Grau Nós A gente Nós + 1PP A gente + 3PS peso relativo peso relativo peso relativo peso relativo % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) Genérico e indefinido 0,396 12,7 (27/213) 0,604 87,3 (186/213) não selecionado 0,830 85,7 (24/28) 99,1 (577/582) Genérico e definido 0,443 23 (168/732) 0,557 77 (564/732) não selecionado 0,445 81,6 (199/244) 97,5 (193/198) Específico e definido 0,511 28,9 (378/1310) 0,489 71,1(932/1310) não selecionado 0,320 74,1 (346/467) 91,2 (1061/1163) de det.do suj. Os resultados para alternância pronominal confirmam a hipótese de que a forma a gente tende a ser mais usada com sujeitos de referência genérica e indefinida (PRs de 0,604 e 0,557), enquanto a forma nós tende a codificar com maior frequência referentes mais específicos e definidos (PR de 0,511). A expectativa de que graus diferentes de referência aos sujeitos influenciariam também a CV foi confirmada parcialmente, pois o grupo foi selecionado como relevante apenas para a CV com o pronome a gente. A hipótese de que sujeitos mais específicos e definidos exerceriam influência positiva em relação à aplicação de desinência de 1PP se concretizou, já que, dentre as ocorrências de CV com a gente, a variável referente específico e definido apresentou PR baixo para a combinação com 3PS (91,2% e 0,320, respectivamente). Para o sujeito pronominal nós, a variável não foi selecionada, contudo a maior frequência de aplicação de 1PP é para sujeitos genéricos e indefinidos. A categoria variável tempo e modo verbal tem se mostrado relevante em diversos estudos sobre a alternância entre as formas pronominais nós e a gente, bem como na variação de CV de 1PP. As principais hipóteses já confirmadas em outros trabalhos, a serem investigadas nesta pesquisa são: (i) formas mais marcadas tendem a favorecer o uso de nós, e formas menos marcadas, o uso de a gente; (ii) Nós é mais usado diante de Pretérito Perfeito, a gente, diante de Presente, Pretérito Imperfeito e formas nominais; (iii) formas de Pretérito são mais frequentes com 1PP do que formas de Presente, tanto com sujeito pronominal nós, quanto com a gente. Adiante, segue a tabela para esse fator. 174 Rev Gragoata n 29.indb 174 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:46 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural Tab. 6: Frequência e PR dos três fenômenosem relação ao tempo-modo verbal Nós Fenômeno Tempo- A gente Nós + 1PP A gente + 3PS peso relativo peso relativo peso relativo peso relativo % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) PRES.IND + PRES.SUBJ 0,422 16,6 (171/1032) 0,578 83,4 (861/1032) não selecionado 0,579 80,4 (144/179) 98,3 (967/984) PRET.IMP.IND. + PRET.IMP.SUBJ. 0,502 24,3 (102/419) 0,498 75,4 (317/419) não selecionado 0,883 59,6 (68/114) 99,7 (344/345) PRET. PERF.IND. 0,640 42,5 (288/677) 0,360 57,5 (389/677) não selecionado 0,085 86,9 (338/389) 81 (402/94) FORMAS FUT. + OUTROS 0,470 19,4 (12/127) 0,530 80,6 (115/127) não selecionado 0,788 66,7 (10/15) 99,2 (128/129) modo verbal Ao compararmos os PRs da tabela 6, é possível notar que o Pretérito Perfeito favorece o uso de nós (0,640), enquanto o Presente tende a favorecer o uso de a gente (0,578). Para o Pretérito Imperfeito, os resultados mostram equilíbrio entre o uso de nós e a gente (0,502 e 0,498, respectivamente). O futuro em conjunto com outros tempos e modos favorece o uso do pronome a gente. A expectativa de que formas de Pretérito apresentariam maior frequência de aplicação de 1PP foi confirmada apenas para ocorrências com sujeito a gente no Pretérito Perfeito, já que essa categoria apresentou menor percentual e PR em relação à aplicação de desinência de 3PS (81% e 0,085). Verbos no Presente influenciam negativamente a aplicação de 1PP, pois apresentaram alta frequência de aplicação de desinência de 3PS (98,3 % e 0,579 de PR). Para a CV com nós, não houve seleção da variável tempo e modo verbal, contudo maiores percentuais de 1PP ocorrem com Pretérito Perfeito e Presente e menores, com Pretérito Imperfeito, Futuro e outros tempos, conforme previam as expectativas. Os resultados para Pretérito Imperfeito são justificados pela consideração de que essas ocorrências são, em sua totalidade, casos de saliência esdrúxula, em que a forma de 1PP é proparoxítona, contextos em que os falantes tendem a evitar o uso da forma, seja o sujeito nós, seja a gente. Os percentuais e os PRs confirmam a tendência: junto a nós, a frequência de aplicação de 1PP é a mais baixa (59,6%), e junto a a gente, a aplicação de 3PS é quase categórica (99,7% e 0,883 de PR). Faixa etária foi a única variável social selecionada pelo programa Goldvarb para os três fenômenos. Os resultados alcançados seguem na tabela 7. Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 175 175 11/7/2011 19:21:46 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves Tab. 7: Frequência e PR dos três fenômenos em relação à faixa etária Nós A gente Nós + 1PP A gente + 3PS peso relativo peso relativo peso relativo peso relativo % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) 7 a 15 anos 0,593 26 (98/377) 0,407 74 (279/377) 0,143 0,721 51,2 (62/121) 96 (334/348) 16 a 25 anos 0,282 12,4 (56/452) 0,718 87,6 (396/452) 0,416 0,608 84 (63/75) 95,6 (435/455) 26 a 35 anos 0,443 22,3 (102/458) 0,557 77,7 (356/458) 0,299 0,303 78 (92/118) 90 (368/409) 36 a 55 anos 0,682 39,6 (210/530) 0,318 60,4 (320/530) 0,767 0,385 91,1 (235/258) 94,3 (347/368) 0,573 0,489 81,8 (99/121) 95,2 (347/363) Fenômeno Faixa etária mais de 55 anos 0,490 24,4 (107/438) 0,510 75,6 (331/438) Em referência à alternância pronominal, não se verifica comportamento que possa refletir mudança em direção a uma ou outra variante. Contrariando expectativa geral, falantes entre 7 e 15 anos apresentaram maior uso da forma nós e os de mais idade, leve tendência ao uso de a gente (PRs de 0,593 e 0,510, respectivamente). Para as demais faixas, o comportamento não foge às expectativas; há aumento gradativo de uso de a gente, da faixa de maior para a de menor idade. Sobre a influência da variável faixa etária na CV, constatamse as mesmas tendências exibidas para o uso alternante de nós e a gente, ou seja, os resultados não demonstram movimento único em relação à maior ou menor aplicação de marcas de 1PP nos verbos. Destaquem-se apenas as faixas etárias mais elevadas, com tendência ao uso de 1PP com nós (com PRs de 0,767 e 0,573, respectivamente), e para as duas faixas mais jovens, que demonstraram maior propensão à aplicação de 3PS com a forma a gente (7 a 15 anos, 0,721 e 16 a 25 anos, 0,608). Em observação horizontal da tabela, é possível constatar a propensão dos mais jovens a evitar o uso de 1PP, disposição mais evidente na faixa de 7 a 15 anos, que, ainda que exiba tendência ao uso da forma nós (PR de 0,593), manifestou grande inclinação à aplicação de 3PS com esse mesmo pronome (PR de 0,143). Essa faixa foi também a que exibiu maior PR (0,721) em relação a aplicação de 3PS com a gente. Embora a CV tenha sido considerada em relação à variante padrão, com PRs verificados para aplicação de 1PP para nós e de 3PS para a gente, é possível notar, pelas duas últimas colunas da tabela 7, um comportamento oposto em relação ao uso da forma padrão. Faixas etárias com tendência ao desvio do padrão em um fenômeno de CV são as mais conservadoras em outro, forte indício de que os fenômenos possuem diferentes avaliações na comunidade. 176 Rev Gragoata n 29.indb 176 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:47 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural No que se refere à atuação da escolaridade, seguem na tabela 8 os resultados. Tabela 8: Frequência e PR dos fenômenos em relação à escolaridade Nós Fenômeno A gente Nós + 1PP A gente + 3PS peso relativo peso relativo peso relativo peso relativo % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) % (nº de oc./total) 1º ciclo Ens. Fundamental 0,561 32,9 (148/450) 0,439 67,1 (302/450) 0,161 não selecionado 69,4 (129/186) 94,6 (333/352) 2º ciclo Ens. Fundamental 0,464 21,8 (126/577) 0,536 78,2 (451/577) 0,245 não selecionado Escolaridade 57,4 (89/155) 92,5 (491/531) 0,685 não selecionado Ensino Médio 0,380 17,2 (114/663) 0,620 82,8 (549/663) 92,8 (128/138) 95,3 (603/633) Ensino Superior 0,628 32,7 (185/565) 0,372 67,3 (380/565) 0,852 não selecionado 95,8 (205/214) 94,6 (404/427) Observando os resultados da alternância pronominal, é possível, preliminarmente, concluir que o comportamento de informantes com mínima escolarização (PR de 0,561, para uso de nós) aproxima-se muito do de informantes com o máximo de escolarização (PR de 0,628, para uso de nós), comprovação frustrante em relação às expectativas para a influência do fator escolaridade em fenômenos variáveis do PB. Todavia, ao alargarmos o escopo de análise para incluir os demais resultados da tabela, constamos que a possível seme lhança de comportamento das faixas extremas de escolaridade não se repete na variação de CV. Os valores apontam gradativo aumento na aplicação de marcas de 1PP para o sujeito nós, na medida em que a escolaridade do falante aumenta (PR 0,161; 0,245; 0,685 e 0,852), revelando que falantes de Ensino Médio e Superior primam fortemente pelo uso de 1PP, enquanto os de 1º e 2º ciclos do Ensino Fundamental têm maior tendência à aplicação de desinências de 3PS. Esses resultados corroboram a visão de Lucchesi (2009), que afirma haver uma polarização linguística no Brasil, com gramáticas diferentes em concorrência. Não obstante faixas extremas possuírem semelhança no uso pronominal, têm comportamento regulado por gramáticas diferentes. Para a faixa menos escolarizada, há apagamento sistemático das marcas redundantes de plural nos verbos, fenômeno também verificado em relação à concordância nominal. Já os mais escolarizados tendem a aproximar sua fala da norma-padrão, que prescreve, nesse caso, o uso da desinência de 1PP. Para a CV com a gente, a variável escolaridade não se mostrou relevante, o que pode ser comprovado, inclusive, pelos percentuais apresentados. Discrepâncias entre faixas escolares normalmente Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 177 177 11/7/2011 19:21:47 Gragoatá Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves revelam avaliação social da comunidade em relação às variáveis do fenômeno. Falantes com maior escolaridade tendem a evitar formas estigmatizadas e a privilegiar formas prestigiadas na comunidade. A não seleção dessa variável, aliada ao comportamento uniforme dos informantes, revela que o fenômeno não sofre interferência do nível de escolaridade dos falantes.3 Por fim, seguem, na tabela 9, os resultados para a variável gênero. Tabela 9: Frequência e PR dos fenômenos em relação ao gênero Nós peso relativo % (nº de oc./total) A gente peso relativo % (nº de oc./total) Nós + 1PP peso relativo % (nº de oc./total) A gente + 3PS peso relativo % (nº de oc./total) Masculino 0,545 28 (269/960) 0,455 72 (691/960) 0,429 72,1 (238/330) não selecionado 93,8 (751/801) Feminino 0,467 23,5 (304/1295) 0,533 76,5 (991/1295) 0,564 86,2 (313/363) não selecionado 94,6 (1080/1142) Fenômeno Gênero Os resultados confirmam a hipótese de que as mulheres privilegiam a forma inovadora a gente (PR de 0,533), e os homens, a forma conservadora nós (PR de 0,545). Do mesmo modo, para a CV com nós, as mulheres tendem mais à aplicação de marcas de plural (86,2 % e PR de 0,564) do que os homens (72,1% e PR de 0,429), o que comprova serem elas mais sensíveis ao significado social das variáveis linguísticas, evitando formas socialmente desprestigiadas, a exemplo de falantes mais escolarizados. A variável gênero não foi relevante para o fenômeno variável de CV com a gente, (93,8% para homens e 94,6% para mulheres). Conclusão Esses resultados consideram conjuntamente os contextos de sujeito explícito e de sujeito nulo. Se considerados separadamente, seria possível detectar diferenças na atuação da escolaridade sobre a CV com a gente, principalmente nos contextos de sujeito explícito, como em a gente vamos. 3 178 Rev Gragoata n 29.indb 178 A consideração dos fatores linguísticos e sociais propostos na metodologia deste trabalho permitiu detectar a pertinência deles na análise conjunta de três fenômenos variáveis do PB: o uso variável de nós e a gente, a CV com nós e a CV com a gente. A forte influência dos fatores sociais escolaridade, idade e gênero sobre a CV com nós leva à conclusão de que determinadas faixas sociais têm maior consciência do fenômeno do que outras. Para a CV com a gente, a seleção apenas da variável idade evidencia que o falante é menos consciente do fenômeno, sendo este regulado mais por fatores linguísticos do que sociais. Em relação à alternância entre as formas pronominais nós e a gente, evidenciamos a influência simultânea tanto dos fatores sociais (escolaridade, idade e gênero) quanto dos linguísticos (saliência fônica, grau de determinação do sujeito e tempo e modo verbal). Essas constatações tornaram possível a determinação dos fenômenos propensos a influências de fatores sociais e de suas variantes estigmatizadas e prestigiadas, já que alguns segmentos sociais, como o mais escolarizado e o do gênero feminino, tendem Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:47 Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural a evitar variantes estigmatizadas na comunidade, no caso em questão, a aplicação de 3PS com sujeito nós. Concluímos este trabalho com a convicção de que a metodologia proposta, ainda que restringida por variáveis comuns aos três fenômenos investigados, fornece uma visão mais ampla do uso efetivo da 1PP do discurso na variedade falada no noroeste paulista, metodologia que se mostra aplicável a outras variedades do PB. Abstract This paper presents methodology for an integrated treatment of three variable phenomena in Brazilian portuguese: (i) encoding of first-person plural into the forms nós (we) and a gente (the people), (ii) verbal agreement with the pronoun nós and (iii) verbal agreement with the pronominal form a gente. Based on the theoretical framework provided by Labovian sociolinguistics (LABOV, 1966, 1972), the methodology is applied to a sample of Brazilian portuguese spoken in the countryside of São Paulo State (GONÇALVES, 2007). The results indicate that distinct factors predominate in the choice of the alternative forms of each phenomenon: in the verbal agreement with a gente, linguistic factors are the most prominent; in the verbal agreement with nós, social factors are the most salient; and in the use of nós/a gente both linguistic and social factors prevail. Keywords: verbal agreement, first person, nós (we), a gente (the people). Referências ASSIS, R. M. Variações linguísticas e suas implicações no ensino do vernáculo: uma abordagem sociolinguística. In: Ilha do Desterro, v. 20, 1988, p.59-81. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995. BORTONI-RICARDO,S.M. The urbanization of rural dialect speakers–a sociolinguistic study in Brazil. University Press: Cambridge, 1985. COELHO, R. É nóis na fita! Duas variáveis linguísticas numa vizi nhança da periferia paulistana. 2006. 175f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – USP, São Paulo. CAMACHO, R. G. 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In: Organon, v.14, n.28/29, 2000, p. 195-219. 182 Rev Gragoata n 29.indb 182 Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:47 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? Liliane Pereira Barbosa Resumo O fato de investigações considerarem cê um clítico pronominal sintático e a constatação da possibilidade de esta forma aparecer em posições em que um clítico não aparece fizeram-nos questionar o seu caráter. Assim, baseados em dados extraídos da literatura atestada e publicada, além de construções do dialeto do Norte de Minas, constatamos, fundamentados na teoria da Cliticização e na Fonologia Prosódica, que cê se comporta não como clítico, mas como palavra plena. Ademais, propusemos, ancorados, ainda, na Fonologia Prosódica, que a atonicidade percebida em cê está no nível da frase e não da palavra. Nesse viés, a sua ausência de tonicidade ocorre em razão da possibilidade de alternância de proeminência acentual no nível da frase entoacional, que, por se relacionar a aspectos semânticos, sintáticos e de desempenho do falante, determina nó forte ou fraco a cê, ou seja, sua posição forte ou fraca na sentença. Palavras-chave: forma cê; clítico; palavra fonológica; Fonologia Prosódica; Cliticização. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 183 Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:47 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa introdução Considerando a grande produtividade, atualmente, entre os falantes do Português do Brasil – PB –, das formas pronominais alternantes você/ocê e cê, aliada ao fato de a gramática normativa não se pronunciar sobre essa última forma, pois a considera não padrão (estigmatizada), e a análise proposta por Vitral na qual afirma que o cê é clítico sintático, entre as variáveis citadas, determinamos a forma cê como nosso objeto de estudo e nos propomos a fazer um recorte de seu uso no tempo atual e investigar seu estatuto no PB. Pelo fato de a posição do clítico em Português Europeu (PE) ser sensível à informação prosódica, segundo Frota e Vigário (1996), e de supormos o mesmo para o Português Brasileiro, estabelecemos a seguinte hipótese: assim como alta frequência de ocorrência, velocidade de fala (rápida) e estilo mais informal (fala espontânea) favorecem o processo de redução de itens (BYBEE, 2001) – fato que ocorreu com o pronome você, que se reduziu a cê –, estes dois últimos aspectos, acrescidos de informação semântica, não favorecem alternância do padrão acentual de cê em constituinte prosódico superior à w (palavra fonológica)? Ou seja, o cê não seria uma palavra plena (e, portanto, não clítico, conforme proposta de Vitral) que surge em contextos e nível prosódico específicos, ora como elemento fraco, ora forte? A partir do uso do cê em estilo informal pelos falantes do PB (e com velocidade de fala rápida) pretendemos: a) analisar se a forma reduzida cê se comporta nesta língua como clítico pronominal (sintático e/ou fonológico), dentro do quadro da Cliticização; b) conferir o status de palavra plena cê, tanto dentro do aparato da Cliticização quanto da Fonologia Prosódica; c) propor uma análise alternativa para a atonicidade percebida em cê fundamentada em pressupostos teóricos da Fonologia Prosódica; d) contribuir com uma reflexão sobre os clíticos no PB, enfocando os aspectos sintáticos, morfológicos e fonológicos destas formas, uma vez que constituem tema controverso entre os estudiosos que por elas se interessam, e e) dialogar com outros textos que abordam o mesmo assunto. Em suma, nossa proposta é demonstrar que cê não é clítico sintático, mas palavra plena. 1 revisita à literatura Como nosso objeto de estudo é um pronome, nesta seção revisitamos essa categoria gramatical e os pressupostos das propostas teóricas nas quais nos ancoramos. 184 Rev Gragoata n 29.indb 184 Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:48 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? 1.1 Sobre os pronomes A literatura atesta que a Língua Portuguesa do Brasil possui um elenco de pronomes pessoais clíticos em distribuição complementar com suas formas plenas correspondentes (algumas dessas formas plenas, ao longo dos tempos, passaram por reenquadramentos), cuja distribuição é bem diferente do PE, pois enquanto em PE as regras de posição de próclise e ênclise são bem definidas, em PB há prevalência da posição proclítica (PEREIRA, 1981). Dados também confirmam que o PB não segue a Lei de Wackernagel2 e nem a de Tobler Mussafia3, pois há no PB clíticos iniciando sentenças, distribuição sintática não permitida em PE. Ambos os dialetos do Português Brasileiro e do Europeu possuem padrões bem definidos quanto à posição ocupada pelos clíticos. Alguns autores como Duarte (1986) atualmente defendem a ideia de que os clíticos acusativos em PB estão sendo anulados, optando-se, em seu lugar, pela variante OD nulo, NP lexical ou pronome tônico. 1.2 Cliticização L e i Wa c k e r n a g e l : Ja k o b Wa c k e r n a g e l observou que em líng uas indo-européias os elementos clíticos geralmente aparecem em seg u nda posição nas orações, embora, primeiramente, tenha ident i f icado cl ít ico s como elementos tipicamente sem acento, formas prosodicamente dependentes. 3 L e i d e To b l e r Mussa f ia: pronomes átonos não podem ocupar a posição inicial em sentenças. 4 Adotamos o termo mista para denominar esta terceira abordagem pelo motivo dos estudiosos, por nós selecionados para fundamentar o trabalho, divergirem quanto à análise dos clíticos. Spencer, Zwicky e Klavans optam pelo prisma morfossintático-fonológico e Galves e Abaurre, pelo prisma sintático-fonológico. 2 Clítico é um termo que denomina as formas que se asseme lham a palavras, mas que não podem aparecer sozinhas em um enunciado normal, sendo estruturalmente dependentes fonológica ou sintaticamente de uma palavra vizinha (hospedeiro). Assim sendo, a cliticização expressa a ligação do clítico com um elemento hospedeiro, a qual será, nesta investigação, observada segundo abordagens sintáticas, fonológicas e/ou morfológicas, já que elas auxiliarão na definição do status atual da forma cê. A descrição dos clíticos sintáticos, segundo a literatura transformacional, nos indicará suas propriedades, mas destacamos também os enfoques de Kayne (1975) e Sportiche (1992; 1993; 1995) por considerarmos que suas posições corroboram as de nossa proposta, razão de surgirem destacados. Para a análise fonológica utilizamos o enfoque de Nespor e Vogel (1986) e, por fim, para uma análise mista4, adotamos autores como Spencer (1991), Klavans (1982; 1985), Zwicky (1985), Galves e Abaurre (1996). No quadro 2), a seguir, apresentamos uma síntese dessas abordagens. Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 185 185 11/7/2011 19:21:48 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa QUADRO 2 - Síntese das propostas para clíticos Propostas Abordagem sintática Literatura transformacional Kayne Objetos clíticos estão em distribuição complementar com objetos NPs plenos; clítico em Romance é adjungido ao V lexical e o complexo todo contém categoria V, podendo ser elevado de sua posição inicial. Análises divergentes para a categoria vazia surgida com a elevação: a) Aoun: clítico ocupa posição não argumental; b) Borer: clítico assume posição argumental do NP, mas não absorve Caso; c) Jaeggli: clítico assume posição argumental do NP, absorve Caso e cv deve ser pro. Sua análise para os clíticos é a mesma da literatura transformacional. Propõe testes sintáticos para atestar o caráter clítico de uma forma. Este autor não opta pela análise de que clítico substitui NP (DP), nem por movimento de clíticos ou que clíticos são gerados em posição artificial. Sportiche Para ele, clíticos ocorrem adjungidos ao elemento mais alto da oração que contém XP e clíticos pronominais de sujeito não são clíticos sintáticos, apenas clíticos fonológicos, que assumem a posição de núcleo de NP e não de DP. Abordagem fonológica Nespor e Vogel Clíticos nunca ocorrem sozinhos e não podem receber acento contrastivo. As autoras corroboram três testes fonológicos de Zwicky. Abordagem mista Spencer Clíticos atam-se fonologicamente a hospedeiros, são incapazes de receber acento (exceto grego) e sua posição depende da acentuação da sentença ou fatores prosódicos similares. Atam-se mais a um elemento prosódico que a um sintático, podendo ser de dois tipos: a) aqueles que parecem ter a mesma função morfossintática que palavras plenas; b) aqueles que não parecem corresponder a formas plenas. Klavans Zwicky Propõe uma teoria unificada – parametrização dos clíticos: P1(dominância): inicial/ final; P2(precedência): antes/depois; P3(liaison): próclise/ênclise (P1 e P2 são parâmetros sintáticos e P3 fonológico). Clíticos podem ter um hospedeiro fonológico e um sintático independentes. Domínio da Cliticização: S ou N’ (exceto para línguas românicas cujo domínio é V). Considera dois clíticos: -clítico simples: forma ditada pela frase fonológica; -clítico especial: forma alomorfe separada da forma plena, que não é derivada de processos de redução de frase fonológica. Propõe testes fonológicos e sintáticos para se distinguir clítico de palavra independente. Galves e Abaurre Distinguem clíticos sintáticos e fonológicos, sendo estes mais amplos que aqueles e não totalmente condicionados pela sintaxe. Clíticos sintáticos são núcleos de sintagmas e os fonológicos são parte integrante da palavra em que se ancoram. Pelo exposto no quadro 2, percebe-se que há abordagens para cliticização que sugerem que tal fenômeno é, provavelmente, analisado como um fenômeno sintático, mas algumas reforçam a 186 Rev Gragoata n 29.indb 186 Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:48 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? necessidade de uma operação fonológica e morfológica para seu desvendamento. 1.3 Fonologia prosódica 5 Refere-se à parte dos estudos da língua que analisa o processo por meio do qual os itens se tornam mais gramaticais através dos tempos, focalizando como formas e construções gramaticais surgem e como são usadas (HOPPER e TRAUGOTT, 1993). 6 Segundo Hopper e Traugott apud Vitral e Ramos (1999), a etapa de cliticização apresenta duas propriedades: perda de autonomia lexical (dependência contextual) e significação mais geral. Desenvolvida como uma reação contra os conceitos de fonologia gerativa padrão, que tinha como características uma organização linear de segmentos e um conjunto de regras cujos domínios de aplicação eram definidos segundo uma interface sintaxe e fonologia (sistema fonológico homogêneo), a Fonologia Prosódica – teoria da interação entre fonologia e os demais componentes da gramática (sintaxe, morfologia e semântica) – propõe que a representação mental da fala é dividida hierarquicamente em chunks organizados e cada constituinte prosódico serve de domínio de aplicação de regras fonológicas específicas, além de obter diferentes tipos de informação fonológica e não fonológica, não necessariamente isomórficos, na definição de seus domínios. Esse modelo apregoa que alguns fenômenos fonológicos dependem de sua relação sintática, morfológica e/ou semântica para operarem e lidarem com regras de mapeamento que agrupam os elementos terminais de um nó, criando unidades que não necessariamente estão em uma relação um-a-um com os constituintes da hierarquia morfossintática. Tais unidades constituem os domínios de aplicação de regras fonológicas que fazem uso de diferentes tipos de noções gramaticais em cada nível da hierarquia. São sete os constituintes da hierarquia prosódica, segundo Nespor e Vogel (1986), contudo nos referimos, em nossa pesquisa, apenas à w, C, f e I, cujas regras de mapeamento incorporam informações morfológicas (w), sintáticas (C, f e I) e semânticas (I). Essa relação entre constituintes e informação linguística se dá em razão de diferentes tipos de fenômenos se referirem à hierarquia prosódica, que inclui não apenas processos fonológicos, mas também fenômenos rítmicos, duracionais, entoacionais e de proeminência, podendo haver discordância entre estrutura fonológica e morfossintática, isto é, enquanto a estrutura sintática é fixa, a estrutura fonológica pode variar de acordo com fatores como velocidade de fala, extensão (tamanho) dos constituintes prosódicos. 2 PROPOSTA DA FORMA CÊ COMO CLÍTICO A proposta de Vitral (1996), fundamentada na noção de gramaticalização5, é de que cê comporta-se como clítico pronominal sintático com especialização na posição sintática de sujeito préverbal. Esse estudioso defende que cê passa por uma das etapas desse processo de gramaticalização: a cliticização6. Segundo sua abordagem, um elemento lexical que passa por esse processo de gramaticalização apresenta perda de expressividade e enfraque- Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 187 187 11/7/2011 19:21:48 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa cimento da forma fonológica e do significado lexical, podendo tornar-se cada vez mais gramatical. Vitral (1996) analisa a forma cê sob esse aspecto em razão de, segundo as transformações ocorridas ao longo do tempo, ter sido um pronome lexical (Vossa Mercê) e de hoje se apresentar como forma gramatical. (1)item lexical: Vossa Mercê > item gramatical: você > clítico: cê > afixo flexional7 A proposta de Vitral de que cê é clítico fundamenta-se em vários dados analisados. Esse estudioso alega que a forma cê: a) especializou-se na posição de sujeito (pré-verbal), não ocorrendo em posições deslocadas (sentenças topicalizadas, focalizadas, sujeito posposto), nem sozinha em enunciados ou coordenada e modificada; b) é clítico sintático nominativo em estágio inicial, razão de surgir interpolada, ou seja, haver elementos lexicais entre a forma cê e o verbo; c) caracteriza redução fonológica de você, que se tornou um item mais gramatical com o passar dos tempos, sofrendo enfraquecimento do significado lexical da forma fonológica; d) possui características fonéticas como duração e intensidade, de acordo com seus dados, muito próximas de se. 3 ANÁLISE DE CÊ COMO CLÍTICO Há formas intermediárias entre as etapas descritas em (48): vosmecê entre a 1ª e a 2ª etapas; ocê entre a 2ª e 3ª etapas e essas etapas descritas foram extraídas de Vitral (1996). 8 Para esse propósito, foi tomada parte do corpus do trabalho variacionista de COELHO (1999), a quem agradecemos, como material investigativo, desconsiderando-se suas formas combinadas (docê/ducê (de+ocê), procê/prucê/ pucê (pra+ocê), socê/sucê (se+ocê), concê/cuncê/cucê (com+ocê), quecê/quicê (que+cê), socê (só+ocê)) e vocêis. 9 A tabela 2 de Coelho (1999, p. 56) deixa evidente essa preferência si ntát ica das formas você/ocê/cê. 7 188 Rev Gragoata n 29.indb 188 Vitral (2001b) observa que, numa abordagem tradicional, a atonicidade desses elementos [clíticos] condiciona a distribuição sintática deles, mas isso viria como uma consequência de serem átonos, que seria assim, o traço definitório desses itens. Assim, anteriormente à discussão de sua análise, reavaliamos o comportamento fonológico de cê descrito por Coelho (1999)8, que incluiu, em sua análise, formas combinadas, as quais optamos por desconsiderar. Coelho (1999), em análise, concluiu que a forma cê ocorre, preferencialmente, antecedida de pausa, enquanto as demais formas, de vogal; verificou, também, que cê ocupa preferencialmente a posição sintática de sujeito (assim como as demais formas). 3.1 A forma cê é [um] clítico? Nesta subseção, avaliamos cada argumento de Vitral, que propõe ser o cê clítico nominativo sintático com a finalidade de lhe conferir status e para comprovar ou refutar essa análise. Primeiro Argumento: especialização sintática da forma cê na posição de sujeito (pré-verbal). Relacionamos esse argumento de especialização sintática da forma cê na posição de sujeito (pré-verbal) à análise variacionista de Coelho (1999) que constata ser a forma cê mais frequente em função de sujeito. Porém, em Coelho (1999), fica também evidente que as formas você/ocê preferem essa mesma posição9; logo, esta não é uma característica exclusiva da forma cê, uma vez que é compartilhada por suas outras variáveis. Além disso, esse ambiente sintático Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:48 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? também pode ser ocupado por palavras lexicais. Isso quer dizer que o fato de cê ocupar tipicamente esta posição sintática não é suficiente para classificá-la como clítico, ou seja, não se poderia considerar que cê se alocou na posição de sujeito para se realizar como clítico (posição propícia a clítico para se agregar ao verbo), já que palavras plenas podem ocupar este mesmo lugar. Mesmo assim, buscamos confirmar a especialização proposta por Vitral, mas constatamos no Norte de Minas Gerais a ocorrência de cê em ambientes sintáticos não considerados (e até mesmo tidos como agramaticais) por Vitral (2002), ambientes estes característicos de elementos fortes. Há na região citada emprego da forma de cê: a) em posição pós-verbal: (1) Eu vi cê na festa ontem posposto ao verbo: (2) Foi cê o culpado de tudo. preposto: (3)Cê, ele não viu nascer. d) coordenado com constituinte similar: (4)Cê e Pedro podem votar contra, eu não me importo. e) modificado por advérbio: 5) Apenas cê sabe como tudo aconteceu, mais ninguém. f) tópico: (6) Cês, eu acho que cês não passaram, não. g) foco contrastivo: (7) - Maria, nós vamos comprar esse livro. - Cê vai, eu não. Eu já o conheço e não gosto na- dinha dele. h) resposta: (8) - Pode deixar que vou resolver isso pra você. - Cê??? (risos) Esses ambientes variados de ocorrência de cê corroboram a análise de que é forma forte. Segundo Argumento: a forma cê é um clítico sintático em estágio inicial no processo de cliticização. Segundo Vitral (2002), a forma cê é um novo clítico que trilha os estágios iniciais do processo de cliticização, assemelhando-se aos clíticos do período medieval, pois, nesse período, era recorrente a não estrita adjacência entre clítico e hospedeiro e, embora Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 189 189 11/7/2011 19:21:48 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa os clíticos atuais não compartilhem essa característica – exigem adjacência estrita ao seu elemento hospedeiro –, o mesmo ocorre com a forma cê, já que entre esse elemento e o verbo, seu suposto hospedeiro, vários elementos podem ser intercalados. Acontece que 1) a opção pela não interpolação não era marginal no português medieval (VITRAL, 2002). Há, mesmo em contextos favoráveis à interpolação, opção pela não interpolação, conforme se pode comprovar abaixo: (9) como aqui se comtem. (1522) (10) que não se Laura. (1510) No caso da forma cê, contudo, sabemos que, quando há elementos interpolados, esta opcionalidade não existe: (11) Cê já foi ao mercado? *Já cê foi ao mercado? Verificamos que sua interpolação é obrigatória (11), inclusive já mencionada por Vitral (2002), e atinge até mesmo o nível oracional (12), em que se constata um grande distanciamento entre cê e o verbo do qual é o argumento externo: (12) Cê, que é filho de Deus, saberá o que fazer quando chegar a hora. *Que é filho de Deus, cê saberá o que fazer quando chegar a hora. Comparamos o fato de cê não admitir não interpolação, em ambientes em que há elementos interpolados, com o fato de os clíticos medievais admitirem essa não interpolação (embora preferissem a interpolação); concluímos que cê, na atualidade, não se encontra no mesmo estágio dos clíticos medievais, porque se assim fosse compartilhariam também essa característica (o que não impede que isso venha a ocorrer). Reforça-se ainda que, segundo a literatura, o clítico ocorre contíguo ao seu hospedeiro, sendo a interpolação uma característica de palavras plenas. Então, o fato de surgirem elementos interpolados entre cê e o verbo é indício de que, nessas construções, cê não é clítico; nesses casos, a forma cê é elemento forte. Essa característica de a forma cê surgir em interpolação levanta um questionamento: Terá a forma cê status ambíguo dependendo do contexto, isto é, será elemento forte quando aparece em ambiente de interpolação e elemento fraco quando não há interpolação? Acreditamos que não e, por isso, propomos uma análise que consideramos adequada, conforme veremos posteriormente. Vitral (2002) também verificou que 2) apesar de cê admitir essa “interpolação”, não exibe a segunda característica dos clíticos medievais: não ocorrência em 1ª posição. Pelo contrário, corroborando Vitral, a análise fonológica atesta que cê ocupa, tipicamente, a posição precedida de pausa, isto é, a 1ª posição, ou seja, cê não 190 Rev Gragoata n 29.indb 190 Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:48 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? Mesmo sendo especulação, será que, tentando-se definir um ponto no processo de gramaticalização, a forma cê não estaria num período anterior ao medieval, já que neste período o fenômeno de interpolação entre os atuais pronomes oblíquos átonos e o verbo era variável (+/-) e no período contemporâneo é categórica a não-interpolação (-)? Levando-se em conta a Teoria Variacionista (LABOV, 1972), que prevê variação antes de mudança, será que antes do período medieval a interpolação entre esses elementos não era categórica (+)? Assim: (+) →(+/ -) → ( - ) 11 Construções gramaticais do dialeto norte-mineiro. 10 segue as Leis de Wackernagel e de Tobler Mussafia como os clíticos medievais. Com essas características não é possível se definir um ponto no processo de cliticização em que cê poderia encontrar-se, porque essa forma não se comporta como os clíticos medievais (ela ocorre tipicamente como primeiro elemento da sentença e a interpolação, quando surgem elementos, é obrigatória) e nem como os clíticos atuais, pois cê admite interpolação, quando surgem elementos entre ela e o verbo10. Consideramos que, no período medieval, quando as interpolações eram recorrentes e preferenciais, os atuais pronomes átonos da Língua Portuguesa não eram clíticos, assim como cê não o é; trilhavam possivelmente um estágio anterior do processo de gramaticalização. Terceiro Argumento: o pronome você, com o passar dos tempos, sofreu redução fonológica e se tornou mais gramatical (enfraquecimento de significado). Este terceiro argumento deixa evidente a proposta de Vitral, em seu trabalho com Ramos (1999), de que, com o passar do tempo, você sofreu enfraquecimento de seu significado e já atingiu o status de expletivo, enquanto sua forma reduzida cê apresenta apenas perda de referência virtual. Essa análise é intrigante, porque a noção de gramaticalização pressupõe que a forma reduzida deve apresentar, nesse tipo de fenômeno, maior gramaticalidade (perda de conteúdo semântico) do que a forma plena. Na realidade, esses estudiosos constatam que o inverso ocorreu entre você e cê, isto é, você apresenta maior gramaticalidade que cê, contrariando a noção. Para corroborar essa posição dos autores, estendemos a esta análise exemplos de cê11 com o mesmo suposto uso expletivo de você: (13a) Em Buenos Aires cê/você tem confeitarias. (14) Em Kioto cê/você tem aquela confusão nas ruas. Questionamos se estas formas você/cê são realmente expletivas, porque isto implica que, em PB, há formas expletivas e que o verbo é impessoal, conforme essa análise. E sabe-se que, em PB, não há evidências da existência de formas expletivas até então. Por outro lado, o verbo ter é usado, em nossa língua, com o mesmo valor semântico de haver. Porém, construções como Em Buenos Aires cê há confeitarias não são recorrentes na PB. Acreditamos, na verdade, que a proposta de Viotti (2003) na qual alega que ter é um verbo leve, isto é, esvaziado semanticamente e com predicativo enfraquecido, podendo, portanto, construir uma multiplicidade de sentenças de significados diferentes, cujo significado é resultado da composição do sentido dos vários itens lexicais que compõem a sentença, seja mais interessante. Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 191 191 11/7/2011 19:21:48 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa Essa proposta faz-nos postular que o verbo “ter” poderia imantar-se de sentido pessoal, não de “possuir”, mas de “poder gozar de”, “encontrar”, “dispor de”, justificando a presença de você/ cê com uso indeterminado, indefinido nas sentenças abordadas. Dessa maneira, preservamos a intuição dos falantes norte-mineiros que atestam as formas você/cê nestes ambientes com significado de “a gente”, “as pessoas”, como em: (13b) Em Buenos Aires você/cê pode gozar de confeitarias. (13c) Em Buenos Aires você/cê encontra confeitarias. (13d) Em Buenos Aires você/cê dispõe de confeitarias para ir... Em relação a este argumento, consideramos pertinente a gramaticalização diagnosticada por Vitral nas formas você e cê, mas não há indícios suficientes para se afirmar que você tenha atingido o status de expletivo e nem que cê já atingiu a etapa de cliticização (nem mesmo o estágio inicial, conforme proposta de Vitral). Estas formas possuem emprego definido e indefinido alternantes, de acordo com o uso dos falantes do norte de Minas, diagnosticado nos dados de Coelho (1999). Quarto Argumento: características fonéticas (duração e intensidade) da forma cê são muito próximas de se. Este quarto argumento baseia-se no experimento fonético de Vitral (2001b), que teve por finalidade examinar se a forma cê se aproxima foneticamente, em intensidade (I) e duração (D), de se. A análise concluiu que as duas primeiras formas são clíticos e que a forma Zé é tônica, mas, considerando-se a análise absoluta, esse experimento registra gradação de valores, conforme resultado a seguir: SE: I: 23,6 dB D: 0,129 ms 12 Resultado, em números absolutos, extraído de Vitral (2001b). 192 Rev Gragoata n 29.indb 192 CÊ: I: 26,3 dB D: 0,138 ms ZÉ: I: 31,3dB D: 0,194 ms12 Porém, é necessário considerar que a altura da língua das vogais de cê e Zé atesta diferença de intensidade e duração no português do Brasil – possibilidade esta descartada por Vitral, uma vez que considera que a distinção entre Zé e cê não deve ser atribuída à intensidade das vogais envolvidas. Além disso, fenômenos entoacionais e de proeminência relacionados à velocidade de fala, informações semânticas (foco, tópico) e estilo de fala informal também podem gerar variação da estrutura fonológica e possibilitar que um mesmo chunk se realize com proeminência acentual distinta, conforme demonstra o exemplo a seguir: em (15a) a 1ª frase fonológica apresenta nó forte; em (15b), o nó forte está na 2ª frase fonológica; e, em (15c) o nó forte está na 3ª frase fonológica. Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:48 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? (15a) [ [ [ [ Zé ] w] C ]f [ [ [ num pensô] w] C ]f [ [ [que terminaria] w] C ]f ] I s w w (15b) [ [ [ [ Zé ] w] C ]f [ [ [ num pensô] w] C ]f [ [ [que terminaria] w] C ]f ] I w s w (15c) [ [ [ [ Zé ] w] C ]f [ [ [ num pensô] w] C ]f [ [ [que terminaria] w] C ]f ] I w w s Com base no resultado desse experimento e a partir dos questionamentos levantados, a forma cê não pode ser considerada clítico. 4 TESTANDO O COMPORTAMENTO DE CÊ A partir de nossas reflexões descritas acima, optamos por aplicar testes de identificação de clíticos tanto na perspectiva da teoria da Cliticização quanto da Fonologia Prosódica, conforme a seguir, para verificar o status da forma cê. 4.1 Sob a perspectiva da Cliticização Em razão dos inúmeros questionamentos que permeiam este trabalho, propomo-nos a analisar se o pronome cê se comporta como clítico sintático e a avaliar seu estatuto atual, segundo os testes de Zwicky (1985) e Kayne (1975), uma vez que almejam à identificação de clíticos distinguindo-os de palavras plenas através de suas características fonológicas, morfológicas e sintáticas. Testes fonológicos Os testes fonológicos de Zwicky (1985) indicam o comportamento do elemento investigado, atentando-se à sua formação no constituinte prosódico palavra fonológica. Ou melhor, caso apareça um elemento hospedeiro na palavra fonológica que domine cê, nosso objeto de estudo será clítico; porém, se este constituinte prosódico for não-ramificado, cê é palavra plena porque dispensará hospedeiro. O clítico forma com uma palavra plena uma palavra fonológica: (16)[[[[[Cê,]w]C]f]I[que está de blusa amarela,]I[[[[aproxime-se.]w]C ]f]I]U Em (16) temos três frases entoacionais cuja organização prosódica é justificada pelo fato de orações relativas explicativas Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 193 193 11/7/2011 19:21:49 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa formarem seu próprio domínio entoacional. Nesse exemplo, o pronome cê é uma única palavra plena (possui um acento primário) que forma uma palavra fonológica; esta forma uma unidade prosódica superior: grupo clítico. Este grupo clítico forma uma frase fonológica não ramificada (formada apenas por uma única palavra fonológica) que, por sua vez, constitui uma frase entoacional. Como o clítico pronominal se ancora num elemento hospedeiro verbal, é impossível analisar cê como clítico, pois não há este elemento hospedeiro necessário no grupo clítico e nem no constituinte prosódico imediatamente superior: frase fonológica. Já na terceira frase entoacional de (16) podemos constatar que se é clítico, pois se ancora no elemento verbal aproxime e ambos constituem uma palavra fonológica formada de clítico+verbo. Esta análise é corroborada por Zwicky (1985), quando salienta a importância dos domínios prosódicos na identificação de clítico e de palavra plena: se o elemento descrito possui seus traços prosódicos (acento, p.e.) distribuídos na frase fonológica é palavra plena; mas se seus traços prosódicos estão distribuídos no domínio da palavra fonológica, este elemento é clítico. Testes acentuais Devido ao fato de clíticos carecerem do acento de seu hospedeiro (dependência acentual) por serem formas átonas, estes testes (ZWICKY, 1985) também colaboram na identificação do status de cê. (17) Foi cê o culpado de tudo ≠ (18) Foi-se o culpado de tudo. Através da contraposição entre os sintagmas foi cê (17) e foi-se (18) verificamos, mediante a atonicidade do pronome clítico se, que não há semelhança acentual entre cê e se. Pelo contrário, este par salienta a tonicidade acentual de cê, ratificando o teste anterior, pois em (17) tanto o verbo quanto cê possuem acento primário independente, constituindo duas palavras plenas distintas. Testes usando similaridades entre afixos flexionais e clíticos Estes testes (ZWICKY, 1985) também auxiliam na identificação dos clíticos, já que se comportam como afixos flexionais de uma palavra plena. Segundo o teste de ligação, elementos que estão unidos a um hospedeiro são clíticos. (19)– Pode deixar... eu resolvo este problema pra você. – Cê?!...(risos) Embora, aparentemente, cê pareça não figurar sozinha em um enunciado, conforme atestam dados de Vitral (2002), há contex194 Rev Gragoata n 29.indb 194 Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:49 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? tos que favorecem sua figuração isolada (19). Esta possibilidade é determinada por contextos influenciados pela entoação e fatores prosódicos similares; uma entoação própria da surpresa, dúvida, deboche ou incredulidade parecem favorecê-la. Porém, essa impossibilidade de figurar sozinha em um enunciado não ocorre apenas com palavras átonas; é confirmada em palavras tônicas, conforme Vigário (2001), o que torna esse critério insuficiente para classificar cê como clítico. Também, a posição de Nespor e Vogel (1996), quando afirmam que clíticos nunca ocorrem sozinhos, reforça a classificação de cê como palavra plena, já que esta forma figura sozinha em determinados contextos, assim como palavras tônicas. Elementos que preservam combinações serão clíticos, segundo o teste do fechamento. (20)Cê viu Maria? (21)Cê jamais viu Maria? (22)Cê, que viaja tanto, jamais viu Maria? (23)Cê certamente nunca mais verá Maria. (24)Cê e eu jamais veremos Maria. (25)Vi cê na festa ontem. (26)Cê, que já tá pra ganhar neném e tem problema de pressão alta, deve repousá bastante. Estes dados comprovam as variadas combinações possíveis de cê e atestam seu status de palavra plena, pois, conforme Zwicky (1985), se um elemento tem habilidade para se combinar com frases e muitas palavras, certamente é palavra plena. A ordem dos elementos também é importante, pois, assim como os morfemas adjacentes, os clíticos não possuem liberdade de alterarem sua ordem (certos clíticos exibem alguma liberdade, mas causam mudança de significado cognitivo), podendo permanecer apenas proclíticos ou enclíticos ao seu hospedeiro. (27a) Eu acho que cês não passaram de ano, não. (27b) Cês, eu acho que não passaram de ano, não. O deslocamento de cês em (27b) para a posição inicial de sentença não acarretou mudança semântica. A possibilidade desse deslocamento sem gerar alteração de seu significado cognitivo classifica cê como palavra plena. Também, a distribuição de um elemento colabora na sua identificação como palavra plena ou clítico, pois os clíticos possuem distribuição simples: um único princípio governa sua distribuição (teste da distribuição), assim como os afixos flexionais. Os dados a seguir demonstram distribuições possíveis de cê: Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 195 195 11/7/2011 19:21:49 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa Cê combinada com NP lexical (nominativos pré-verbal): (28) Cê e João serão felizes juntos. Cê (nominativo pré-verbal) combinada com V’: (29) Cê comeu o bolo? Cê (nominativo pós-verbal) combinada com V: (30) Vi cê na festa ontem. Cê combinada com CP: (31) Cê, que é a preferida, receberá uma gratificação. Cê combinada com NP lexical (acusativos): (32) Verei cê e João na festa sábado. Os clíticos também não demonstram complexidade morfológica (raramente possuem dois ou mais morfemas); as palavras sim, apresentam maior complexidade. (33) Cê { pronome} { 2ª pessoa} { singular} O pronome cê (33) possui três morfemas, podendo ser enquadrado entre as palavras plenas. Mas vale ressaltar que essa complexidade morfológica é compartilhada por clíticos de 3ª pessoa em PB; como exemplo temos o pronome oblíquo átono a que possui quatro morfemas: (34) a {pronome} {3ª pessoa} {feminino} {singular} Testes sintáticos Como o clítico não está sujeito a processos sintáticos, em razão de sua fixidez em relação ao seu hospedeiro, o elemento que não for imune a tais processos será palavra plena. No caso de um de dois elementos x+y poder ter sua identidade oculta, ambos serão palavras plenas (apagamento sob identidade): (35a) Eu vou à festa e cê vai também. (35b) Eu vou à festa e cê, também. O apagamento sob identidade do verbo foi possível (35b) nos elementos cê vai (35a); logo, ambos são palavras plenas. A substituição de um dos dois elementos combinados por outro os caracteriza como palavras plenas. E essa substituição foi possível com um pronome tônico e até com um NP lexical: (36) Duas horas e cê só falou isso agora! (37) Duas horas e tu só falou isso agora! (38) Duas horas e Gisele só falou isso agora! O movimento de apenas um dos dois elementos combinados também os caracteriza como palavras plenas. O deslocamento de cê, em (39a) para a posição inicial da sentença (39b) comprova 196 Rev Gragoata n 29.indb 196 Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:49 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? a possibilidade de cê mover-se isoladamente, logo independe do outro elemento; então, ambos são palavras plenas. (39a)Eu acho que cês não passaram de ano, não. (39b) Cês, eu acho que não passaram de ano, não. Como nada intervém entre clítico e verbo, então, se entre cê e o verbo vários elementos podem ser interpolados, conforme (40), esta forma não é clítica. (40) Cê nunca mais me verá. Também, o fato de os clíticos não poderem ser modificados e a presença de modificadores em (41b) não corroboram que cê seja clítico, pelo contrário: (41a)Cê é o mais sem-vergonha. (41b) De todos, cê só é o mais sem-vergonha. Quanto ao teste que se refere à impossibilidade de clítico aparecer unido por conjunção, este não é também aplicável, pois em (42) e (43) temos cê coordenado a um NP lexical e a um pronome tônico, respectivamente; e, se somente coordenamos elementos de mesma hierarquia (paralelismo), então cê não é clítico. (42) Cê e Joaquina vão viajar juntas. (43) Cê e ele serão felizes. Cardinaletti e Starke (1994) corroboram três critérios de Kayne ao afirmarem que apenas pronomes fortes aparecem coordenados, ocupam posição sintática periférica e são acompanhados por modificadores. Assim como Nespor e Vogel (1986), t a mb ém con sidera m que apenas palavras acentuadas (pronomes fortes) suportam acento contrastivo. 13 Por fim, ao se determinar que clítico não pode ser topicalizado, atesta-se que cê não é clítico, é palavra plena, porque esta forma pode surgir como tópico: (44) Cês, eu acho que cês não passaram de ano, não. Essa análise realizada resulta na classificação de cê como palavra plena e não clítico (sintático e/ou fonológico). Os resultados, tanto dos testes de Zwicky (1985) quanto de Kayne (1975)13, reforçam o status de palavra plena da forma cê e descartam a hipótese de clítico fonológico e/ou sintático, visto que os critérios de análise consideraram os aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos. Mesmo que o teste de ligação comprove que cê geralmente não figura sozinha em qualquer enunciado, apenas em contextos influenciados por determinada entoação e outros fatores prosódicos, nossa análise não se enfraquece, pois este fator não ocorre apenas com palavras átonas, também é confirmado em palavras tônicas, conforme Vigário (2001). O fato de cê ocorrer sozinha já descarta a possibilidade de ser clítico, segundo Nespor e Vogel (1986) – para essas estudiosas, clítico nunca ocorre sozinho em enunciados. A revelação de que há em PB pronomes átonos que possuem maior complexidade morfológica que cê é outro aspecto que também não prejudica nossa proposta já que, assim como cê, temos palavras acentuadas com menor complexidade morfológica Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 197 197 11/7/2011 19:21:49 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa que os pronomes átonos de nossa língua (por exemplo, as palavras aquilo, nada, tudo). Em razão do resultado dos testes realizados nesta seção, defendemos que cê possui caráter acentuado (acento de palavra), mas pode sofrer perda acentual no nível da frase entoacional – uma análise alternativa para justificar sua atonicidade em algumas construções, que consideramos mais adequada do que lhe fornecer um status ambíguo. 4.2 Sob a perspectiva da Fonologia Prosódica Visto que cê é palavra com acento primário, como se comprovou através de testes sintáticos, morfológicos e fonológicos propostos pela teoria da cliticização (seção anterior), corroboramos seu caráter; porém, sob uma abordagem prosódica. Isso se torna possível em razão de apenas palavras plenas poderem constituir, sozinhas, prosodicamente, uma palavra fonológica não ramificada. Fundamentando-nos em Selkirk (2004), quando defende que palavras funcionais podem adquirir status de palavra fonológica, e em Bisol (2000), que atesta e comprova a existência de palavras fonológicas monossílabas em PB14, partimos da hipótese de que cê também aí se enquadra. Para confirmar tal hipótese, valemo-nos de palavras do PB que possuem a mesma estrutura, mas que se distinguem apenas pela tonicidade/atonicidade: (38) Palavras monossílabas acentuadas Palavras monossílabas não acentuadas dê [Ède] de [dZI] nu [Ènu] no [nU] dá [Èda] da [d«] E cê também aqui se enquadra: Vigário (2001) afirma que em PE também há palavras fonológ icas monossílabas. 14 198 Rev Gragoata n 29.indb 198 Palavras monossílabas acentuadas Palavras monossílabas não acentuadas cê [Èse] se [sI] Desta distribuição, constata-se que as formas acentuadas constituem w, mas as formas não acentuadas (clíticas) precisam de um hospedeiro acentuado para que façam parte de uma w, porque isoladas não a constituem. (46)[ [Cê]w]C [[se viu]w]C [ [no espelho.] w]C Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:49 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? As 2ª e 3ª palavras fonológicas de (46) demonstram a dependência dos clíticos em relação a seus hospedeiros; porém a 1ª palavra fonológica comprova a ocorrência de cê sem hospedeiro, logo não pode ser clítico. Para reforçar esta classificação, Vigário (2001) afirma que a presença de acento impossibilita a ocorrência de processos fonológicos que se aplicam a ambientes não acentuados: - é impossível redução vocálica: (47) dê [e]/ *[i] de [e]/ [i] cê [e]/ *[i] se [e]/ [i] - é impossível semivocalização ou apagamento da 1ª ou 2ª vogal: (48) cê ia [e]/ *[i]/ *0 se una [e]/ [I 9 ] Se um desses processos se aplica à palavra monossílaba, constitui evidência de que a palavra relevante não é acentuada e, por isso, carece de status de palavra fonológica. Não é o caso da forma cê, pois, conforme demonstrado acima, nenhum dos processos foi aplicado a ela. Vigário (2001) também verificou, em PE, que a presença de um acento tonal (ou focal) pode ser vista como meio de demonstrar o status acentuado de uma dada palavra e o mesmo ocorre com cê em PB: (49)[[[[Cê]w]C]f [[[gostou]w [da festa]w]C]f]I,[[[eu]w]f [[[a odiei]w]C]f]I s w w w w Ao cê formar a frase fonológica mais proeminente da primeira frase entoacional (49) e, dessa proeminência, provocar foco contrastivo, comprovamos que cê ocorre em posição acentual forte; logo, não pode ser elemento clítico, afirmativa também em concordância com Hall (1999a), que defende a ocorrência de foco contrastivo como teste identificador de palavra com acento primário. O mesmo ocorre em (50) e (51). (50)- Maria, cê foi na festa ontem? (51) -Gê, cê adorou a festa, né? - Cê foi, eu não. -Cê adorou, eu a detestei. Como defendemos a ideia de que cê não é clítico nem mesmo nas construções em que apresenta fraca intensidade, em razão dos vários e fortes indícios sintáticos, morfológicos e fonológicos descritos ao longo desse trabalho, propomos que a palavra plena cê pode adquirir ou não acento frasal, dependendo de padrões prosódicos específicos e do contexto no qual estiver inserida. Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 199 199 11/7/2011 19:21:49 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa Major (1985) observa que um acento no nível da palavra pode ser alterado no nível da sentença, isto é, padrão rítmico do nível da sentença pode alterar padrão rítmico do nível da palavra para acomodar uma tendência acentual. Acreditamos que isso explique a fraca intensidade de cê em alguns contextos. Defendemos também o ponto de vista de que a teoria de domínios de aplicação de regras fonológicas e não fonológicas (não necessariamente isomórficas) nos apontará regras rítmicas e de ajustamentos rítmicos que são importantes para o processamento da fala (NESPOR e VOGEL, 1986) da forma cê, pois, enquanto a estrutura sintática é única, a estrutura fonológica pode variar dependendo de fatores como velocidade da fala (VIGÁRIO, 2001), estilo de fala e desempenho do falante. Acreditamos que esta forma, em uma unidade prosódica acima da palavra fonológica, pode sofrer perda acentual com proeminência em outro elemento ou sintagma, de acordo com o contexto. Como em posição de sujeito simples cê é frase fonológica não ramificada, não podendo passar por reestruturação, porque em PB há fronteira de frase fonológica entre sujeito e predicado, conforme Sândalo ([2002]), tal forma constitui nó forte neste contexto, o que é confirmado em (52): (52) [Cê ]f [sabe]f [ muito bem]f [ do que eu gosto.]f s s ws w ww s Na posição de complemento verbal, poderá constituir junto com o verbo uma frase fonológica ramificada, através de reestruturação, como em (53): (53)[Foi cê]f [ que eu vi na festa. ]f w s Será o nó mais forte porque, em frase fonológica, o elemento mais à direita é o mais proeminente, e cê está nesta posição na 1ª frase fonológica da sentença acima. Porém, analisando a frase entoacional, hierarquia acima da frase fonológica, verificamos que cê pode assumir padrões de proeminência diferentes. Isso ocorre em razão de a frase entoacional, formada de uma ou mais frases fonológicas, ser uma unidade prosódica que possui variabilidade na sua organização, conforme explicitado anteriormente. Os exemplos (54) podem assumir três padrões de proeminência acentual diferentes para as frases fonológicas que constituem I, conforme distribuição a seguir: (54a)[ [ [ [ Cê ] w] C ]f [ [ [ o conhecê] w] C ]f [ [ [ muito bem] w] C ]f ] I15 w w s Nó forte está na frase fonológica “muito bem”; as demais constituem nó fraco. 15 200 Rev Gragoata n 29.indb 200 (54b)[ [ [ [ Cê ] w] C ]f [ [ [ o conhecê] w] C ]f [ [ [ muito bem] w] C ]f ] I16 s w w Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:49 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? (54c)[ [ [ [ Cê ] w] C ]f [ [ [ o conhecê] w] C ]f [ [ [ muito bem] w] C ]f ] I 17 w s w O primeiro e o último exemplo dessa série de padrões de proeminência exploram formação fraca para a frase fonológica cê, com proeminência acentual alternante em outra frase fonológica da mesma I; mas o segundo exemplo representa cê como uma frase fonológica da I, com proeminência forte. Este exemplo explora formação não ramificada para cê, já que esta frase fonológica está representada por um grupo clítico formado de apenas um elemento: uma palavra fonológica. Esta mesma formação deixa evidente a ausência do suposto hospedeiro para cê e reforça o seu caráter acentual; consequentemente, esta forma não pode ser considerada clítico, mas palavra plena. Essas descrições prosódicas de cê favorecem a identificação de proeminência acentual alternante no nível da sentença, de acordo com o desempenho do falante. Percebe-se que a palavra plena cê sofre perda acentual no nível da sentença (no constituinte prosódico frase entoacional) em determinados ambientes, recebendo acento fraco. Isso não quer dizer que perdeu seu acento de palavra, mas apenas que não recebeu acento frasal. Outros ambientes são indicadores de sua presença com acento forte, também no nível da sentença (no constituinte frase entoacional), conforme discutido nesta seção. CONCLUSÃO Nó forte está na frase fonológica “cê”, as demais constituem nó fraco. 17 Nó forte está na frase fonológica “o conhece”, as demais constituem nó fraco. 16 Nesta investigação, detectaram-se ocorrências de cê em posições que não constituem ambientes de clíticos. Esses fatos aliados à obrigatoriedade de interpolação, quando entre cê e o verbo surgem outros elementos, a aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos não propícios a clítico revelados pelos testes de Zwicky (1985) e de Kayne (1975) – testes tidos como identificadores de clítico –, serviram de subsídios para refutar a análise de Vitral, conferindo-se e comprovando-se o status de palavra plena a cê e, consequentemente, a impossibilidade de ela ser clítico sintático. Mas, como era nossa proposta investigar seu caráter acentual, fundamentando-nos em pressupostos teóricos da Fonologia Prosódica, valemo-nos da existência de palavras funcionais monossilábicas acentuadas. A impossibilidade de redução e de semivocalização ou apagamento da vogal (neste último caso, quando cê está seguido de palavra iniciada por vogal), conjugada à possibilidade de apresentar acento tonal ou focal, proeminência acentual forte, no constituinte frase entoacional, reafirmaram nossa expectativa, pois acento é fator que impede sândi vocálico, e apenas palavras que possuem acento primário recebem acento frasal. Acrescentando-se, ainda, o fato de constituir frase fonológica não ramificada quando em posição de sujeito, constituinte Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 201 201 11/7/2011 19:21:49 Gragoatá Liliane Pereira Barbosa imediatamente superior ao grupo clítico, e à impossibilidade de reconstrução, já que entre sujeito e predicado em PB é sempre encontrada uma fronteira prosódica, postulamos o status de palavra plena a cê. Devido a essa constatação também num aparato prosódico, questionamos por que percebemos uma perda acentual dessa forma em algumas construções e decidimos observar seu comportamento em um nível hierárquico superior à palavra fonológica. Como frase fonológica, cê, em posição de sujeito, constitui nó forte de f não ramificada; em frase fonológica ramificada, em posição de complemento de verbo, e sendo o elemento mais à sua direita, também é nó forte. Porém, na frase entoacional, nível em que há maior variabilidade do padrão de acento frasal, percebemos que cê exibe ora maior, ora menor proeminência. Assim, o presente estudo advoga que cê possui acento primário, logo é palavra plena (e não clítico), mas que pode apresentar alternância acentual como f (fraca/forte) no domínio da I em fala espontânea e informal. Abstract: The fact that investigations consider ‘cê’ a syntactically clitic pronoun and the finding that this form may appear in positions in which a clitic does not occur made us question its character. Thus, based on data extracted from attested and published literature beyond constructions of the dialect from the North of Minas Gerais, Brazil, based on the Cliticization theory and Prosodic Phonology, we found out that ‘cê’ behaves not as a clitic, but as a full word. Besides, we proposed, still based on the Prosodic Phonology , that the perceived stress on ‘cê’ is at the phrase level, not at the word level. So this stress absence occurs due to the possibility of stress prominence alternance at the intonation phrase level which, due to its relation to semantic, syntactic aspects and speaker performance, determines a strong or weak node to ‘cê’, that is, its strong or weak position in the sentence. Keywords: ‘cê’ form; clitic; phonological word; Prosodic Phonology; Cliticization. Referências BARBOSA, Liliane Pereira. Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?. Orientador: Seung Hwa-Lee. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2005.135p. 202 Rev Gragoata n 29.indb 202 Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:50 Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? GALVES, Charlotte; ABAURRE, Maria B. M. Os clíticos no português brasileiro: elementos para uma abordagem sintático-fonológica. In: Gramática do português falado. Campinas: Ed. UNICAMP, 1996. GREEN, A. D. The prosodic structure of Irish, Scots Gaelic and Manx. 1997. PhD dissertation, Cornell University. HOPPER, Paul J.; TRAUGOTT, Elizabeth C. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. KAYNE, R. Romance clitics, verb movement, and PRO. In: Linguistic Inquiry. vol. 22, n. 4. USA: Massachusetts Institute of Technology, 1991. KLAVANS, Judith L. Some problems in a theory of clitics. 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ZWICKY, Arnold M. On clitics. Bloomington: Indiana University Linguistics Club, 1977. Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 203 203 11/7/2011 19:21:50 Rev Gragoata n 29.indb 204 11/7/2011 19:21:50 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras Isabel Cristina Rodrigues Décio Rocha Resumo Este artigo apresenta a construção de uma metodologia de análise que procurou investigar em que medida os debates acerca da educação bilíngue para surdos no Brasil ao longo da década de 1990, momento em que ganhavam visibilidade no país, reproduziam controvérsias clássicas da área da surdez. A perspectiva teórica adotada foi a da Análise do Discurso de base enunciativa, com ênfase nas reflexões de Maingueneau. O trabalho destaca que a metodologia norteadora de uma pesquisa assentada em bases de ordem discursiva encontra-se em estreita interlocução com o quadro teórico e com o tipo de práticas linguageiras que se deseja investigar. Como resultados principais desta investigação, estão os seguintes elementos: relação entre a delimitação do corpus e saberes do pesquisador acerca do universo pesquisado; eleição de marcas linguísticas como apoio à delimitação de um corpus; especificação do quadro teórico adotado para o tratamento de enunciados de interesse, neste caso, enunciados negativos de caráter polêmico (DUCROT); problematização do quadro teórico adotado. Palavras-chave: Análise do Discurso; negação polêmica; práticas linguageiras; implicações teórico-metodológicas; educação de surdos. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 205 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:50 Gragoatá Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha 1. Introdução O trabalho de análise das práticas linguageiras em uma perspectiva discursiva oferece-nos desafios de diferentes ordens. Com efeito, desde a escolha do ponto de vista teórico a ser adotado – o vasto leque de “análises do discurso” que se apresentam na atualidade já foi amplamente tematizado (ver MAINGUENEAU, 1995) – até a construção de um corpus em meio à diversidade de recortes passíveis de constituírem objetos de análise, as possibilidades são bastante diversificadas. Neste artigo, nossa atenção estará voltada para um dos muitos desafios a que fazemos menção: como enfrentar dificuldades impostas pelo plano metodológico do trabalho em uma perspectiva discursiva – seja ela qual for. Nesse sentido, procuraremos traçar um caminho que reafirme a absoluta solidariedade entre teoria, corpus e metodologia: ... por nosso objeto de análise ser um objeto teórico, é preciso ressaltar que a teorização determina o procedimento metodológico, da mesma forma que este nos faz refletir sobre a teoria. E ambos levam à constituição do corpus, o que significa dizer que o corpus não está dado, mas é construído pelos gestos do analista de pôr unidades em contato, selecionar sequências, agrupá-las em bloco, voltar à teoria para, a partir dela, construir recortes, relacioná-los e, a partir deles, repensar a teoria, num movimento em espiral de retomadas de aspectos metodológicos e teóricos, lançando novos olhares, surpreendendo-se. (MITTMANN, 2007, p. 155) No caso, nas reflexões que ora apresentamos, o caminho escolhido partiu de uma questão de pesquisa voltada para um debate em curso no campo da educação brasileira, e a perspectiva discursiva adotada foi a da Análise do Discurso de base enunciativa (doravante AD), com ênfase nas reflexões de Maingueneau, que nos permitiu redimensionar uma categoria de análise – o não polifônico descrito por Ducrot (1987) – e apostar em sua produtividade na constituição de um corpus. 2. Esboço do corpus em função da questão de pesquisa e do referencial teórico O trabalho de onde se origina este artigo (ver RODRIGUES, 2002) centra-se no debate sobre a proposta de educação bilíngue para pessoas surdas, que, no Brasil, começou a ganhar visibilidade no início da década de 1990 e que, na primeira década do século XXI, produziu uma série de políticas públicas. De acordo com essa proposta, no espaço escolar, a língua brasileira de sinais (Libras) corresponde à primeira língua e o português, à segunda língua, para esses indivíduos. A história da educação de surdos – que possui pelo menos dois séculos – parece narrar uma controvérsia fundamental que se apresenta num movimento pendular entre aceitação e proibição 206 Rev Gragoata n 29.indb 206 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:50 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras Dados os limites deste artigo, estamos sintetizando em uma questão fundamental, no caso, o uso da língua de sinais, a ampla complexidade psicossociocultural que envolve a educação desses indivíduos. 1 do uso da língua de sinais. Essa controvérsia se pauta, em especial, no preconceito que se tem sobre as línguas de sinais – seriam de fato uma língua? – e na preocupação de que, com sua valorização, os surdos acabassem se desinteressando da língua da comunidade ouvinte em que estivessem inseridos.1 Assim, definimos como problema de pesquisa investigar como estavam sendo construídos os discursos que procuravam legitimar e/ou discutir o ensino bilíngue no processo educacional de pessoas surdas no Brasil ao longo da década de 1990. Tal problema relacionava-se com a seguinte hipótese: os discursos em questão continuariam polemizando a controvérsia clássica na área da surdez na tentativa de delimitar as possibilidades de implantação desse projeto político-pedagógico. À luz de uma perspectiva discursiva de base enunciativa, observar como os discursos estão-se construindo requer que os tomemos como um modo de apropriação da linguagem socialmente constituído. Sendo assim, mais do que com o conteúdo temático, os efeitos de sentido que se produzem têm a ver com o lugar sócio-histórico de onde o tema é falado e, consequentemente, com o modo pelo qual ele é falado. Trata-se de uma complexidade que só faz ratificar um modo de funcionamento discursivo compatível com os princípios de uma semântica global (MAINGUENEAU, 2005), com base nos quais não se apreende o discurso “privilegiando tal ou qual de seus ‘planos’, mas integrando-o a todos, tanto na ordem do enunciado quanto na da enunciação” (MAINGUENEAU, 2005, p. 79). Como então, com base na questão de pesquisa e nessa perspectiva teórica, selecionar um corpus de análise? Não bastaria, por exemplo, analisar um corpus procurando o tema em foco, mapeando se ele está presente ou não, e em que quantidade, no debate em questão. O objetivo é justamente outro: o de tentar observar como os enunciados sobre o tema investigado circulam, num movimento dialógico – quem os assume e de que lugar. Discursos sobre a educação bilíngue para surdos no Brasil podem provir de fontes diversas. A produção escrita que trata do assunto é variada, além do que outros caminhos também poderiam ser escolhidos, como realizar entrevistas, gravar reuniões. Enfim, era preciso proceder a um recorte desses discursos. Decidimos então estabelecer um primeiro critério para nortear a escolha do corpus: optar pelas publicações do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) como nossa fonte, pelo papel de destaque da instituição na concretização da chamada “educação de surdos” no Brasil e por sua posição de centro de referência no país na área da surdez. O início das publicações do INES, que foi criado em 1857, data do final do século XIX, mas os primeiros registros da discussão sobre bilinguismo / educação bilíngue são do começo da década de 1990. Desdobramos então esse primeiro critério: pesquisaríamos os periódicos do instituto publicados ao longo da década de 1990. Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 207 207 11/7/2011 19:21:50 Gragoatá Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha A revista Espaço, logo de início, mostrou-se de especial interesse: seu primeiro número foi publicado no segundo semestre de 1990, coincidindo justamente com o momento em que o debate começava a ganhar visibilidade. Além disso, comparando-a com Fórum e Arqueiro, os dois outros periódicos da mesma década, Espaço possuía uma caracterização bem clara, que definia para ela um certo perfil de gênero, ponto a se privilegiar pela natureza de nosso quadro teórico. Já na primeira edição (jul.-dez./1990), na primeira capa, na página 3, no editorial e na quarta capa, essa revista procura se definir como o “informativo técnico-científico para profissionais da área de deficiência auditiva”, “um veículo para democratização da informação”, que “busca preencher a carência de bibliografia específica”, “divulgando artigos e comunicações de profissionais, possibilitando a troca de informações”. Pode-se dizer assim que, desde o início, trata-se de um periódico que define bem seu objetivo de promover um amplo debate de ordem técnico-científica. Sobre o conteúdo, o que se pode dizer, de forma geral, é que, de fato, Espaço tem conseguido reunir um grande número de profissionais / pesquisadores dedicados a diferentes áreas de estudo sobre a surdez, provenientes de instituições variadas. Em meio a dezesseis edições (1990 até 2001) e dezenas de artigos, porém, um novo critério se mostrava necessário para o recorte do corpus. Notamos que havia, ao longo de todas essas edições, artigos que se propunham a tratar especificamente do tema educação bilíngue / bilinguismo. Consideramos essa entrada pertinente por vir diretamente ao encontro do problema da pesquisa. Foram selecionados, assim, todos os artigos que traziam no título os termos “bilíngue” ou “bilinguismo”, descartando-se aqueles cujo objetivo claro era discutir prática fonoaudiológica, e não pedagógica, e os que se referiam a contextos de educação bilíngue apenas para pessoas ouvintes. Restou ao final um total de oito artigos. A organização interna da maior parte deles focalizava a discussão sobre educação bilíngue em seções específicas. Optamos, em consequência, por localizar a análise nessas seções, selecionadas também pelas entradas “bilíngue” ou “bilinguismo” nos títulos. 3. Rumo à definição do corpus em função de uma categoria de análise Após as sucessivas escolhas para o recorte do universo textual de Espaço, faltava ainda decidir por uma entrada de análise que explicitasse o interesse do recorte feito para o debate em questão. Essa decisão levou em conta três fatores inter-relacionados: os objetivos da pesquisa, a natureza do material selecionado e o quadro teórico de análise. 208 Rev Gragoata n 29.indb 208 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:50 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras O material até então selecionado era composto por artigos publicados num periódico que delimita seu caráter genérico como de ordem técnico-científica, destinado basicamente a profissionais da área da surdez. Como partimos da hipótese de que o debate em pauta materializava um embate discursivo que poderia estar retomando uma controvérsia clássica da história da educação de surdos, priorizamos entradas de análise que permitissem identificar e reunir três elementos: pontos de controvérsia; enunciadores que o gênero traz para o debate e que posição enunciativa ocupam; o que estes nos permitem apreender dos efeitos de sentido que se produzem. Avaliando cada artigo e suas características, escolhemos então um artigo do número 6 (1997) de Espaço – “Uma análise preliminar das variáveis que intervêm no projeto de educação bilíngue para os surdos” – para realizar uma análise-piloto, com base nos seguintes critérios: é o único artigo que propõe uma atitude de análise geral do assunto e também é o único que faz parte da seção “Debate” da revista que propôs como tema justamente “Bilinguismo e Educação de Surdos”. Pudemos depreender, não sem uma intensa atividade de leitura do referido artigo, uma marca enunciativa bastante presente e que, por essa razão, deveria representar um traço constitutivo seu: a marca linguística de negação não. Tal presença não poderia ser desprovida de sentido, principalmente quando aproximamos a essa reflexão o fenômeno da negação polêmica descrito por Ducrot (1987). Como veremos a seguir, a “aposta” feita na produtividade dessa entrada linguística permitiu identificar os três elementos que priorizamos como centrais na caracterização de nosso corpus. Uma vez realizada a análise-piloto, sua produtividade fez com que estendêssemos essa entrada para os outros artigos, e verificamos que, em todos, ela se atualizava de modo pregnante, revelando para a pesquisa um caminho que prometia ser bastante produtivo, em especial no que diz respeito ao caráter polifônico dos enunciados. 4. Repercussões do quadro teórico sobre o encaminhamento metodológico da pesquisa Ducrot (1987), ao esboçar sua teoria polifônica da enunciação, recorre à descrição do fenômeno da negação a fim de mostrar a pertinência linguística das noções de enunciador e de locutor no que diz respeito à caracterização da polifonia como traço constitutivo da linguagem. Para esse autor, parece interessante, para descrever a negação, recorrer à distinção entre locutor e enunciador, afirmando que: O locutor L que assume a responsabilidade do enunciado “Pedro não é gentil” coloca em cena um enunciador E1 que sustenta que Pedro é gentil, e um outro, E2, ao qual L é habitualmente assimilado, que se opõe a E1. (DUCROT, 1987, p. 202) Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 209 209 11/7/2011 19:21:50 Gragoatá Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha E1 e E2 sustentariam pontos de vista opostos. Esse choque entre atitudes antagônicas, uma positiva e outra que é a recusa desta, segundo Ducrot, aparece em grande parte dos enunciados negativos. Ele apresenta as condições de emprego da expressão “ao contrário” após os enunciados negativos como uma forma de identificar E1: Depois de um enunciado “Pedro não é gentil”, pode-se encadear “ao contrário, ele é insuportável”. A que o segundo enunciado é “contrário”? Não ao primeiro tomado em sua totalidade, mas ao ponto de vista positivo [Pedro é gentil] que este, segundo penso, nega e veicula ao mesmo tempo. (DUCROT, 1987, p. 203) Assim, Ducrot reafirma que a presença de um enunciador que se confronta com um locutor que assume um enunciado negativo está marcada na frase – é um fato da língua recuperado no enunciado. Esse fenômeno se enquadra no que o autor denomina negação polêmica. É importante destacar aqui que esse enunciador E1 colocado em cena não é assimilado a nenhum locutor que, dizendo eu, assuma a responsabilidade de algo efetivamente proferido, enunciado. Segundo explicação do próprio Ducrot, “a atitude positiva à qual o locutor [no caso o enunciador E2] se opõe é interna ao discurso no qual é contestada” (DUCROT, 1987, p. 204). A uma perspectiva discursiva interessam, fundamentalmente, os efeitos de sentido produzidos pela negação polêmica: a possibilidade de identificar duas “vozes” distintas encenando um embate de posicionamentos em relação a um dado tema, uma polarização de pontos de vista. Com isso, marca-se a presença de “um outro” no discurso, remetendo à discussão sobre heterogeneidade discursiva. Ducrot apresenta sua tese da negação polêmica, mas não faz parte dos limites de suas reflexões aprofundar a análise sobre um caráter discursivo dos enunciadores antagônicos, o que é feito pela AD ao retomar o trabalho desse autor. Retomando a teoria de Ducrot por essa perspectiva, pode-se considerar que a polêmica discursiva não é individual; ela se instaura entre dois sujeitos que representam lugares sócio-históricos antagônicos. Toda organização discursiva pressupõe uma certa forma de se relacionar com o “outro”. Quando um enunciador mobiliza enunciados produzidos por outros enunciadores, ele estabelece relações específicas de similaridade ou de divergência com esses. E a negação polêmica vem denotar um modo como um dado discurso se relaciona com outro que lhe é exterior. Definida assim essa noção operatória, que se mostrou produtiva – o não polêmico –, um recorte final para a delimitação do corpus precisou ser feito. Procedemos ao recorte de todos os fragmentos que contivessem a pista linguística não e verificamos quais poderiam se localizar dentro da categoria definida por 210 Rev Gragoata n 29.indb 210 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:50 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras Ducrot como “negação polêmica”. A identificação desses enunciados só pôde ser feita de forma concomitante à depreensão das afirmativas a eles subjacentes. De fato, em nossa experiência de análise, vimos que se trata de um processo indissociável. Afinal, reconhecer o embate de vozes, quando trabalhamos com uma perspectiva teórica discursiva, é poder distinguir posicionamentos enunciativos distintos. Para isso, a fim de distinguir os casos de negação polêmica2, utilizamos os seguintes procedimentos: • empregar a expressão “ao contrário”, proposta por Ducrot, na sequência do enunciado, a fim de mapear a presença de um outro enunciador; • verificar sob que condições, dentro do contexto do debate, as afirmativas subjacentes, isto é, os diferentes pontos de vista depreendidos que não chegavam a se materializar em enunciados, seriam, de fato, sustentadas por algum enunciador. • A respeito das condições a que ora fazemos referência para vincular os pontos de vista depreendidos a possíveis enunciadores que polemizam com o locutor, diremos no momento tão somente que aí está uma decisão de ordem metodológica a ser explicitada mais tarde. No momento, porém, antes de passarmos a considerações acerca de tal decisão, e também antes de prosseguirmos nas análises realizadas em nosso corpus, faremos uma breve reflexão acerca de todo um conjunto de decisões metodológicas que se acham implícitas ao longo dos itens 2 e 3 deste artigo. Por intermédio de tais reflexões, nosso objetivo será conferir uma maior visibilidade aos procedimentos metodológicos que pudemos construir em nosso trabalho, buscando, desta forma, ao menos mitigar as insuficiências de um dos pontos de debilidade de uma abordagem discursiva: o caminho metodológico construído pelo pesquisador. 5. Revendo decisões metodológicas para a delimitação do corpus E m s e u s e s t udo s, Ducrot distingue três tipos de negação: polêmica, metalinguística e descritiva. Dados os limites deste artigo, detivemo-nos na breve apresentação apenas da primeira, sobre a qual recai nosso interesse. 2 No âmbito das decisões metodológicas que cumpre tomar em todo trabalho de pesquisa, um dos territórios mais áridos é o da delimitação do material a ser submetido a análise. “Segundo que critérios optar por um dado recorte de corpus como preferencial em comparação a um outro? Como garantir que o recorte escolhido seja adequado aos objetivos que se propõe alcançar uma pesquisa? Do ponto de vista quantitativo, com quantos enunciados se faz um corpus suficientemente poderoso para que nos aproximemos de uma resposta à pergunta propulsora da atividade de Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 211 211 11/7/2011 19:21:50 Gragoatá Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha pesquisa?”. Eis algumas das indagações que costumam pontuar no cotidiano o trabalho de delimitação de um corpus de pesquisa. Uma possível resposta à questão parece residir na busca de um princípio que norteie a ação do pesquisador a esse respeito. Com efeito, não há como não perceber que várias seriam as possibilidades de critérios que o levariam à escolha de um corpus, assim como também não se pode deixar de reconhecer o que há de insustentável na eleição de critérios de ordem exclusivamente quantitativa: não há como preconizar um número mínimo de enunciados que possa garantir a adequação de um corpus ideal. Diante das dificuldades levantadas, acreditamos constituir um ponto de partida confiável para a construção de um corpus o recurso a um conceito que se encontra em íntima relação com a problemática interdiscursiva: o conceito de espaço discursivo (MAINGUENEAU, 2004). Trata-se de uma noção que corresponde a uma “escolha estratégica de ação” do pesquisador, tendo em vista a impossibilidade de se apreender a totalidade de um campo discursivo. Assim sendo, o espaço discursivo, entendido como subconjunto do campo discursivo, seria “constituído ao menos de dois posicionamentos discursivos, cuja correlação é considerada importante pelo analista para sua pesquisa” (MAINGUENEAU, 2004, p. 92). Com base nessa definição oferecida por Maingueneau, que fique bem clara a ideia de que a produtividade da correlação entre os dois conjuntos de textos não nos é garantida de antemão, configurando-se, antes, como uma hipótese ou um investimento feito pelo pesquisador. Em outras palavras: afastamo-nos do plano das evidências empíricas, segundo o qual bastaria ir ao campo para “coletar” um corpus já pronto, e adentramos o da construção (sempre por meio de escolhas perspectivas, interessadas, assentadas em um quadro teórico) empreendida pelo pesquisador. Ao iniciarmos uma pesquisa, nem sempre dispomos de hipóteses suficientemente poderosas acerca da inscrição dos textos ali presentes em “posicionamentos discursivos” a serem correlacionados, segundo nos sugere a definição de espaço discursivo que transcrevemos. Na verdade, o procedimento de interdelimitação proposto por Maingueneau parece funcionar mais imediatamente quando se dispõe de pistas deixadas pela tradição, isto é, pelos saberes instituídos acerca dos discursos que circulam em um dado momento e em um dado espaço. Nesse caso, parece facilitada a tarefa de eleição de um espaço discursivo em que dois posicionamentos entrem em confronto. Não parece ser outra a situação dos textos sobre os quais se debruça Maingueneau (2005), por exemplo: o embate entre a prática discursiva do humanismo devoto, em contraposição à do jansenismo, embate esse nítida e largamente atestado pela tradição. 212 Rev Gragoata n 29.indb 212 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:50 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras Outra era a situação dos textos com os quais trabalhávamos. Por evidentes que possam parecer determinadas posições (antagônicas) assumidas no conjunto das práticas linguageiras voltadas para a educação bilíngue3, estávamos efetivamente longe de um quadro em que se vislumbrasse a confrontação de posicionamentos discursivos claramente delimitados. Impedidos de tomar como ponto de partida de nosso trabalho a “confortável evidência” de discursos em franca situação de embate, recorremos a um modo alternativo de entendimento da referida função de interdelimitação: ...o sentido que atribuímos à função de interdelimitação desses textos não coincide necessariamente com o modo como a referida função se atualiza nos trabalhos de Maingueneau, ... (...) ... insistiremos na possibilidade de o Mesmo já se constituir em pista para localizar o Outro (nos pequenos deslizamentos que se verificam). (ROCHA, 2003, p. 201-2) No caso, considerando a tradição desse campo de debate, discursos que preconizam a oralização confrontando-se com discursos que preconizam o acesso à Libras. 3 Como se dá tal possibilidade de apreensão do Outro no Mesmo? Para tentar responder à questão, lembramos inicialmente que trabalhar com grandes conjuntos remetendo a posicionamentos discursivos em franca oposição não representa qualquer garantia de sucesso; pelo contrário, as grandes oposições são também aquelas que dificilmente poderíamos operacionalizar em procedimentos de análise consistentes. Por exemplo, não nos parece de grande interesse a oposição entre discursos do cristianismo versus discursos do budismo, uma vez que lidaríamos com uma oposição excessivamente genérica. Mais valeria, nesse caso, desmembrar cada um dos integrantes desse par em unidades menores, mais claramente situadas, para, então, alcançar um grau de comparabilidade suficiente: discursos do cristianismo de que espécie? situados em que momento da história do cristianismo? em que espaço? discursos sustentados por que atores? Tal “metodologia do fracionamento” seria levada adiante para se alcançar uma possibilidade qualquer de interdelimitação, e o mesmo deveria ser feito em relação ao que denominamos “discursos do budismo”. O resultado seria a obtenção de conjuntos de textos que talvez não se opusessem tão frontalmente, como era o caso dos discursos do cristianismo e do budismo, mas com certeza estaremos diante de unidades que apresentarão um grau de comparabilidade bem superior. O caminho, como vimos, foi o da “progressiva neutralização das diferenças”, até que chegássemos a unidades suficientemente próximas, cuja confrontação possibilitaria resultados mais precisos, porque mais fortemente ancorados em uma dada situação de enunciação. Tal caminho de neutralização progressiva das diferenças, que nos parece corresponder à mencionada “captação do Outro no Mesmo”, também pode ser trilhado como um caminho de produção progressiva de Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 213 213 11/7/2011 19:21:50 Gragoatá Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha diferenças, que ora ilustraremos por meio da exemplificação dos discursos voltados para a educação bilíngue para surdos. Com o objetivo de dar visibilidade ao modo de fracionamento progressivo do material, procedimento que nos permitiu a composição de um corpus no qual o que aparentemente se dava como um Mesmo acabou se revelando como Outro, recuperaremos nossa questão de pesquisa e os sucessivos passos de aproximação ao corpus final. Nosso interesse de pesquisa centrava-se no modo pelo qual estavam sendo construídos no Brasil os discursos de legitimação / discussão do ensino bilíngue no processo educacional de surdos ao longo da década de 1990. Como primeiro passo rumo à consecução de nossos objetivos, deveríamos nos decidir por uma dada categoria de textos, em meio à grande diversidade de práticas linguageiras em que esses debates se atualizavam. Assim, esquematicamente, diremos: 1º.passo: discursos de artigos acadêmicos sobre educação bilíngue X outros gêneros textuais, como entrevistas, reuniões de trabalho Observe-se que, dependendo da perspectiva que venhamos a assumir, o conjunto de textos a que ora nos referimos pode ser apreendido como um Mesmo ou como já configurando traços de alteridade: trata-se de textos que versam todos, sem exceção, sobre educação bilíngue (um Mesmo, portanto), os quais se atualizam em gêneros diversos (condição que nos permite falar da entrada em cena de um Outro). Uma vez feita a opção pelos artigos acadêmicos, novamente se impunha a necessidade de transformar o que então se apresentava como um Mesmo (textos acadêmicos sobre educação bilíngue) em uma composição que explicitasse sua dimensão de alteridade. Este seria, então, o segundo passo a ser dado na construção do corpus: 2º.passo: discursos sobre educação bilíngue apreendidos na revista acadêmica Espaço X discursos sobre educação bilíngue apreendidos em outras revistas acadêmicas A decisão tomada nesse segundo passo consistiu na escolha da revista Espaço, tendo em vista as razões anteriormente apresentadas. Como é fácil perceber, mais uma vez, o que antes se apresentava como um Mesmo (discursos sobre educação bilíngue apreendidos em revistas acadêmicas) acabou se fracionando em um Outro, procedimento que foi sucessivamente adotado, como indicaremos resumidamente a seguir: 3º.passo: artigos da revista Espaço escolhidos ao longo de toda a década de 1990 X artigos de apenas alguns exemplares da revista Espaço escolhidos pontualmente 214 Rev Gragoata n 29.indb 214 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:51 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras 4º.passo: artigos da revista Espaço da década de 1990 em que figuravam no título termos como “bilíngue”, “bilinguismo” X outros artigos 5º.passo: artigos da revista Espaço (década de 1990, figurando no título termos como “bilíngue”, “bilinguismo”) focalizando uma prática pedagógica X artigos focalizando uma prática fonoaudiológica 6º.passo: enunciados negativos em artigos da revista Espaço (década de 1990, figurando no título termos como “bilíngue”, “bilinguismo” e focalizando uma prática pedagógica) X demais tipos de enunciados 7º.passo: enunciados contendo negação polêmica X enunciados contendo outros tipos de negação (descritiva e metalinguística) Desse modo, fica claro de que modo chegamos à definição final do corpus. Aliás, se nos referimos a uma etapa “final” de construção do corpus, que fique bastante claro para o leitor que, na realidade, estamos longe de haver esgotado as possibilidades de recortes sucessivos do material textual em questão: não fazemos senão interromper os procedimentos de recortes sucessivos por acreditarmos que já dispomos de um corpus suficientemente homogêneo para ser submetido à análise e, ao mesmo tempo, suficientemente diverso para garantir o interesse dos resultados que poderemos obter por meio de sua análise. A relatividade de nosso “recorte final” pode ser apreendida no fragmento a seguir: Onde se situa a fronteira que demarcaria a referida passagem do Mesmo ao Outro? Quando é que, nos sucessivos recortes a que procedemos ao longo do trabalho de pesquisa, não mais se teria um Outro em oposição, mas um Mesmo? Isto é, quando é que cessaria a função de interdelimitação? (ROCHA, 2003, p. 203) Gostaríamos de retomar uma questão que deixamos em suspenso ao final do item 4, não sem nos comprometermos em retomá-la mais tarde. É o que pretendemos fazer no momento. Trata-se, no âmbito dos debates que concernem à negação polêmica, da questão dos vínculos entre os pontos de vista afirmativos depreendidos sob os enunciados negativos e os possíveis enunciadores que dariam sustentação a tais pontos de vista. Em outras palavras, o que nos cabe no momento é registrar algumas considerações acerca das condições nas quais identificamos um enunciado negativo como polêmico ou não. Conforme anunciado, estamos convencidos de que temos aí uma decisão de ordem metodológica que cumpre explicitar. No âmbito da teoria de Ducrot, não há uma caracterização satisfatória que permita distinguir entre negação polêmica e descritiva. A materialidade linguística de ambas é a mesma – o não. Sendo assim, em última instância, apenas o conhecimento Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 215 215 11/7/2011 19:21:51 Gragoatá Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha do universo do debate permite o reconhecimento efetivo de um enunciador que sustentaria uma afirmativa subjacente a um enunciado negativo. Queremos salientar com isso que, muitas vezes, coube aos pesquisadores decidir, com base na interlocução que vêm mantendo com a área, se um enunciado negativo era ou não de caráter polêmico. Assim, definidos os enunciados com a marca da negação polêmica, seu conjunto constituiu nosso corpus final de análise. Foi a partir desse conjunto de enunciados negativos que pudemos localizar pontos de controvérsias, propondo a organização de suas afirmativas subjacentes por categorias / perfis de enunciadores. 6. A negação polêmica e suas tonalidades dialógicas Para Bakhtin (1992), todo enunciado que assume uma completude comunicativa provoca uma “atitude ou compreensão responsiva ativa”, que é uma reação ao processo de produção de sentido que o enunciado deflagra. Tal reação, contudo, não precisa se manifestar necessariamente sob a forma de uma réplica imediata – caso mais recorrente dos gêneros secundários, como os artigos científicos, que não costumam manter relação direta com os enunciados alheios e podem até simular a alternância dos sujeitos falantes própria dos gêneros primários. Essa é uma forma de se trazer a palavra do outro para o interior de um enunciado, de se predeterminarem posições responsivas desse outro: tonalidades dialógicas que se imprimem no enunciado. Um enunciado pode ser motivado, portanto, pelo teor do enunciado do “outro”. É o que reconhecemos no interior dos enunciados polêmicos, nos quais dizer não significa negar o conteúdo que o ponto de vista de um outro poderia assumir, travando-se um diálogo sub-reptício. Admitimos, portanto, duas possibilidades. Se o locutor diz que “a proposta bilíngue não privilegia uma língua”, ele pode estar: • antecipando-se a um enunciador que, a partir das suas considerações sobre o tema, poderia supor que ele (locutor) assume que “a proposta bilíngue privilegia uma língua”; ou, • reconhecendo entre os enunciadores que integram o debate em pauta algum que assumiria que “a proposta bilíngue privilegia uma língua”, isto é, o locutor estaria manifestando sua discordância em relação a esse enunciador. Analisar cada enunciado negativo, depreendendo suas afirmativas subjacentes, foi para esta pesquisa um modo de tornar visível esse diálogo – restava saber quem dialoga. Os enunciados negativos são plenamente assumidos pelo locutor, são de fato “enunciados”. Mas o que dizer das afirmativas subjacentes? Que vozes as assumiriam? Tais vozes são trazidas para o discurso como 216 Rev Gragoata n 29.indb 216 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:51 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras marca de alteridade, como algo que pertence ao “exterior” – um exterior, aliás, que se rejeita. Os pontos de vista sustentados nas afirmativas são exatamente aquilo de que a prática de linguagem instaurada na revista Espaço quer se distanciar. Neste trabalho, não tivemos como objetivo central oferecer ao leitor resultados de análise de um corpus, mas explicitar o caminho metodológico empreendido. Queremos, contudo, apresentar um mínimo acerca dos resultados de nossas análises, uma vez que foi certamente a metodologia que adotamos que nos permitiu cartografar diferentes vozes e o diálogo que elas tecem com o locutor, o que constitui uma forma de compreender efeitos de sentido que o debate sobre a educação bilíngue poderia estar produzindo. Após a depreensão de cada afirmativa subjacente aos enunciados negativos que integraram nosso corpus, concluímos que as vozes recuperadas poderiam ser agrupadas em quatro categorias / perfis mais visíveis de enunciadores, descritas a seguir, que ocupariam um dos polos das controvérsias discursivas. Passemos a essas categorias. Identificamos um enunciador reducionista, ou seja, aquele que reduz a real dimensão dos tópicos em debate, sobretudo no que diz respeito à concepção prática e teórica do que seja educação bilíngue. Por exemplo, com base no enunciado negativo “A educação bilíngue para surdos não é um problema meramente linguístico”, pudemos depreender o ponto de vista afirmativo – A educação bilíngue para surdos é um problema meramente linguístico – o qual correspondia a esse enunciador, que desconsidera a complexidade dos assuntos em discussão. Identificamos também um enunciador equivocado, aquele que apresenta considerações sobre os tópicos em debate que se revelam enganosas e parece tirar conclusões parciais dos assuntos em debate. Exemplo: com base no enunciado negativo “Não se trata [na proposta bilíngue para surdos] de uma negação [à língua portuguesa].”, depreende-se a seguinte afirmativa subjacente: Trata-se [na proposta bilíngue para surdos] de uma negação [à língua portuguesa]. Ora, concluir que uma proposta versando sobre educação bilíngue para surdos seja a negação da língua portuguesa só pode ser uma característica de um enunciador equivocado. A seguir, identificamos um enunciador desinformado, que demonstra não ter acesso a informações referentes ao universo da surdez e às implicações psicossociais que esta pode acarretar. Exemplo: do enunciado negativo “O surdo não pode aprender a língua oral espontaneamente”, depreende-se o ponto de vista afirmativo segundo o qual o surdo pode aprender a língua oral espontaneamente, o que constitui, sem dúvida, uma desinformação. Um outro enunciador depreendido em nossas análises foi o enunciador reacionário, isto é, aquele que mantém valores e visões Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 217 217 11/7/2011 19:21:51 Gragoatá Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha de mundo que podem ser considerados obsoletos, levando-se em conta outros posicionamentos sociais contemporâneos. Um exemplo: ao enunciado negativo “Em nosso multidimensionado mundo atual, não se estabelecem mais certezas”, depreendemos a seguinte afirmativa (reacionária): Em nosso multidimensionado mundo atual, ainda se estabelecem certezas. A definição dessas categorias e suas designações foram feitas com base num dado juízo que o locutor estaria revelando sobre os enunciadores ao negar seus pontos de vista. E dizer isso significa apenas que a atitude de “recusar” um ponto de vista remete certamente a um “valor” que atribuímos a esse ponto de vista. Cabe aqui retomar as considerações de Ducrot – com as quais, pela presente análise, concordamos – quando chama atenção para o seguinte fato do fenômeno da negação polêmica: quem nega desqualifica. Assim, reducionismo, equívoco, desinformação e reacionarismo, em que pesem as motivações de cada um, são atitudes rejeitadas. Ainda sobre as designações, é preciso fazer três justificativas. A primeira, bastante objetiva, é que nossa organização, tanto quanto possível, privilegiou uma economia na caracterização – o que significou reunir o máximo de enunciados num único perfil. A segunda, referente à metodologia do trabalho, é que procuramos considerar a imagem de destinatário da revista, construída pelo gênero do qual participa o corpus, durante a escolha das designações. Isto é, reducionista, equivocado, desinformado, reacionário, da forma como foram descritos, são atribuições possíveis à imagem de coenunciador da revista, no caso, profissionais da área da surdez. A terceira, de ordem mais subjetiva, é que, entre várias designações possíveis, nossa organização acaba, e disso é difícil escapar, por refletir uma compreensão sobre o assunto que é a dos pesquisadores, sobre a imagem do coenunciador e sobre as próprias designações. 7. Alguns impasses teórico-metodológicos frente à produtividade do corpus Durante o recorte do corpus, quando estávamos identificando os enunciados de caráter polêmico, deparamo-nos com dois impasses para os quais não encontramos respostas na descrição proposta por Ducrot. Esses impasses, de natureza teóricometodológica, pareciam se apresentar pela própria natureza da pesquisa – uma pesquisa de corpus. Ambos os impasses diziam respeito à relação entre o enunciado negativo e seu respectivo ponto de vista afirmativo subjacente. Para alguns dos enunciados negativos, no lugar de pontos de vista afirmativos, o que conseguíamos depreender eram interrogativas subjacentes, que nos pareciam questões antecipadas pelo locutor e que obtinham como resposta a negação do que era indagado. Um exemplo disso, vemos no enunciado “Não se sabe 218 Rev Gragoata n 29.indb 218 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:51 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras se algum dia conseguiremos ter crianças suficientemente bem oralizadas para que se possa dar um curso em língua oral.”, que parece responder à pergunta: você sabe se algum dia conseguiremos ter crianças suficientemente bem oralizadas para que se possa dar um curso em língua oral? Propor a depreensão de questões subjacentes nesses casos seria admitir a possibilidade de a polêmica de enunciados negativos se manifestar também com um enunciador que assumiria o caráter de interlocutor. Não que os outros enunciadores não tenham esse caráter – de uma forma ou de outra, são “vozes” com as quais o gênero “dialoga”. Quando denominamos esse enunciador de “interlocutor”, o que estamos querendo salientar é sua característica de parecer estar no meio do caminho “entre” um ponto de vista – remetendo para o conceito de enunciador de Ducrot – e uma voz real – como num diálogo face a face. De fato, apenas um dos enunciados desse tipo não fazia parte do único artigo de Espaço que transcrevia uma palestra – gênero que mais facilmente simula uma interação verbal do tipo diálogo. O outro impasse diz respeito ao teor da afirmativa subjacente. Para apenas três enunciados negativos do corpus, foi possível depreender afirmativas cujos pontos de vista eram qualificados, diferentemente das demais afirmativas, que tinham em comum o fato de apresentarem pontos de vista rejeitados pelo locutor. Um desses enunciados é: “quem não resiste à tentação de vê-los [os surdos], algum dia, serem como os ouvintes não encontrará na educação bilíngue uma tábua de salvação”. O problema apontado aqui não está na segunda negação, mas no sujeito oracional – “quem não resiste à tentação de vê-los [os surdos], algum dia, serem como os ouvintes” – cuja afirmativa subjacente indica que há quem resista à tentação de ver os surdos, algum dia, serem como ouvintes. Ora, o teor dessa afirmativa possui o mesmo caráter crítico que os demais enunciados negativos do locutor, que polemiza com os enunciadores reducionista, equivocado, desinformado e reacionário. Essas três ocorrências de afirmativas qualificadas possuem em comum o fato de estarem na posição de sujeito oracional, mas sua produtividade limitada nos permite apenas apontar para um desdobramento em futuras pesquisas que possam avaliar sua recorrência. De qualquer modo, registre-se desde já o interesse de pesquisas que retomem a questão, tendo em vista que a atualização de um enunciador que assume um ponto de vista afirmativo qualificado, que ora chamamos de “enunciador crítico”, é um caso que não está previsto no tratamento da negação polêmica em Ducrot. 8. (In)conclusões Neste artigo, pretendemos reafirmar que a metodologia que norteia uma pesquisa assentada em bases de ordem discursiva Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 219 219 11/7/2011 19:21:51 Gragoatá Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha encontra-se em ininterrupta interlocução com o quadro teórico e com o tipo de práticas linguageiras que se deseja investigar. No caso da pesquisa que deu origem ao presente artigo, pudemos depreender algumas das ressonâncias da metodologia construída como sucessivas tomadas de decisão do pesquisador. Com efeito, a pesquisa relatada permitiu-nos explicitar as inter-relações entre o plano metodológico e minimamente os seguintes itens: • delimitação do corpus, tendo em vista os sucessivos passos que foram dados, em função dos saberes que detinha o pesquisador acerca do universo pesquisado: relevância de uma instituição (o INES) no campo da educação de surdos, quantidade de revistas acadêmicas publicadas na área, conhecimentos implícitos presentes no debate sobre a educação de surdos na atualidade, etc.; • eleição de marcas linguísticas de apoio à delimitação do corpus, conforme se verificou na escolha de títulos de artigos em que figurassem vocábulos como “bilíngue” e “bilinguismo”, assim como na eleição de enunciados em que se atualizasse a negação polêmica; • especificação do quadro teórico adotado para o tratamento dos enunciados negativos, uma vez que, se todos os tipos de negação são igualmente marcados linguisticamente pela presença de não, também foi uma decisão metodológica considerar como polêmicas as negações em relação às quais o pesquisador poderia identificar como plausível um ponto de vista afirmativo subjacente; • finalmente, problematização do quadro teórico adotado, considerando que o corpus analisado mostrava evidência de situações não previstas, como o atesta a captação dos enunciadores interlocutor e crítico. Uma última observação importante acerca das bases metodológicas de toda investigação de caráter discursivo diz respeito à atualização do princípio de alteridade, que parece funcionar necessariamente como horizonte teórico: ... seja qual for a natureza dos elos que dão consistência ao conjunto de textos escolhidos como corpus de uma investigação em Análise do Discurso, a saber, relação de maior ou menor afrontamento, de alianças mais ou menos explícitas, etc., algo que sempre se mantém como imperativo metodológico é uma certa concepção de corpus que privilegie a perspectiva do não uno, do múltiplo. (ROCHA, 2003, p. 207) Em outras palavras, dando suporte ao ponto de vista apresentado, o que mais uma vez se reitera ao se conceder ênfase à perspectiva da alteridade é a certeza de que a noção de discurso só faz sentido se interligada à de interdiscurso (MAINGUENEAU, 2005). 220 Rev Gragoata n 29.indb 220 Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:51 Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras Abstract This paper presents the construction of a methodological approach in order to investigate in which extent debates on bilingual education for deaf people throughout the nineties in Brazil reproduce classical controversies in studies on deafness. The theoretical approach was Discourse Analysis on an enunciative basis, with a special emphasis on the contributions of Maingueneau. The paper highlights the fact that such a methodology keeps a productive dialogue with the theoretical framework, as well as with the kind of language practices put under analysis. It is pointed out as main results of our research: the existence of a relation between the corpus delimitation and the researcher’s knowledge about the universe investigated; the choice of linguistic features supporting corpus delimitation; specification of the theoretical framework adopted in the analysis of negative utterances which are seen as polemical ones (DUCROT); problematization of the theoretical framework adopted. Keywords: Discourse Analysis; polemical negation; language practices; theoretico-methodological implications; deaf people education. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Cortez, 1992. COURTINE, J.-J. Langages 62 – Le discours communiste adressé aux chrétiens. Paris: Larousse, 1981. DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. INES. 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Para o exame desses dois procedimentos discursivos serão comentados, a título de exemplo da metodologia de análise, dois textos distintos, um conto de Machado de Assis intitulado “O cônego ou a metafísica do estilo” e um texto publicitário da cerveja Nova Schin, publicado em revista semanal de notícias. Palavras-chave: Enunciação. Paixão. Práxis enunciativa. Texto. Veridicção. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 223 Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:51 Gragoatá Arnaldo Cortina Texto e discurso na teoria semiótica: construção do método Dentre as várias acepções atribuídas ao termo texto, Greimas e Courtés (2008) consideram que, segundo Hjelmslev (1975), o texto designa “a totalidade de uma cadeia linguística, ilimitada em decorrência da produtividade do sistema” (p.503). Por outro lado, o termo texto pode ser empregado em sentido restritivo: “isso se dá quando a natureza do objeto escolhido (a obra de um escritor, um conjunto de documentos conhecidos ou de depoimentos recolhidos) marca-lhe os limites; nesse sentido, texto se torna sinônimo de corpus” (p.503). Tanto num sentido quanto no outro, o texto designa uma grandeza considerada anteriormente à sua análise. Assim, pode-se perceber que “o texto se constitui apenas de elementos semióticos conformes ao projeto teórico da descrição” (p. 503), isto é, dependente do foco a partir do qual se observa o material textual. Para muitas teorias, o discurso pode ser considerado equivalente ao texto, mas quando se observa a proposta teórico-metodológica da semiótica, o discurso deve ser entendido como uma instância do percurso gerativo de sentido, correspondente ao enunciado, em que se manifestam o enunciador e o enunciatário, num tempo e num espaço, quando se aborda a sua organização sintática, em que aparecem temas e figuras, no componente semântico. Falar, portanto, do texto e do discurso segundo a perspectiva semiótica significa observar um objeto a partir do ponto de vista de uma teoria que se preocupa com a apreensão do sentido do texto e que, a partir do exame desse objeto, descreve seu sentido, geralmente elegendo-se um ponto de vista específico, na medida em que considera impossível a descrição global do sentido, sem que se possa, a partir de determinada posição, reexaminá-lo e perceber outras variações. É interessante observar que, no decorrer das investigações da questão da significação, mais especificamente no caso dos trabalhos de pesquisadores franceses, a semiótica distingue-se da semiologia. Enquanto esta última adota uma interpretação linguística do signo, nas suas mais diferentes formas de manifestação (o que é realizado por Barthes e Jakobson), aquela, a semiótica, opta por examinar, uma por uma, as diferentes formas de manifestação do signo (quer verbais, quer não-verbais) sem tratá-los metaforicamente como espécies de linguísticas. Nesse sentido, portanto, tomo partido neste trabalho da visão da semiótica que parte de um objeto, o texto, qualquer que seja sua materialidade, para examiná-lo, por meio da aplicação de um método em que se apresentam tensões, contradições, continuidades e descontinuidades e um percurso de geração de seu sentido. 224 Rev Gragoata n 29.indb 224 Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:51 Veridicção e paixão na práxis enunciativas Assim, a semiótica define-se como uma teoria geral da significação, como uma teoria da linguagem. Não uma teoria particularmente linguística, embora sua herança o seja. Ao propor uma descrição da significação em níveis, constitui um modelo de previsibilidade comum a textos verbais, não-verbais e sincréticos, que têm seu processo de textualização descrito por semióticas específicas. Originalmente a semiótica preocupa-se com a delimitação de um objeto homogêneo, com a construção de um modelo de análise de cunho hipotético-dedutivo, com a construção de um modelo para descrever a universalidade da significação, sempre visando a um rigor metodológico. Entretanto, com seus diferentes desdobramentos, deve ser considerada como uma teoria não acabada, um projeto teórico que vai, na sua trajetória, desenvolver seu corpo de conceitos e estender os domínios de sua reflexão de modo a abranger, sucessivamente, aspectos da significação a que renunciou, inicialmente, em nome de um princípio de homogeneidade. As mudanças teóricas mais acentuadas dos últimos anos têm levado à consideração de fases da Semiótica. Hénault (2006) fala de três períodos de síntese da transformação dos estudos em semiótica. O primeiro inicia-se com a publicação de Semântica estrutural, de Greimas, obra fortemente influenciada pelos traba lhos de Hjelmslev e BrØndäl, cujas abundantes análises sêmicas apresentadas abriram amplas perspectivas para os estudos literários e para as pesquisas em lexicologia. A segunda síntese diz respeito a uma série de artigos publicados por Greimas entre 1966 e 1979. Esse período, segundo a autora, foi de intensa reavaliação epistemológica, pois a descoberta da proposta de análise narrativa de Propp é investigada e transformada segundo a perspectiva de uma semiótica que assumia a dimensão transfrástica. Além disso, o “desenvolvimento da problemática das modalidades marca época na história da semiótica, uma vez que ela, por sua vez, permitia fragmentar em percursos actantes mais precisos, os programas de fazer ou de ser que tinham permitido articular e decompor as grandes unidades que eram as provas do esquema canônico” (p. 141). A terceira síntese, segundo a autora, consiste na publicação do Dicionário de Semiótica em 1979, que parecia fixar e definir mais claramente todos os conceitos até então utilizados pelos pesquisadores em semiótica e se estende até 1991, ano de publicação do livro Semiótica das paixões, em co-autoria de Greimas e Fontanille. Hénault (2006) termina seu texto com a constatação de que, a partir de certo momento, a pretensa estabilidade almejada com a publicação do dicionário deu lugar a uma série de insatisfações tendo em vista os diferentes trabalhos que então estavam sendo desenvolvidos por diferentes semioticistas reunidos em torno de Greimas nas sessões dos “Seminários de semiótica”, de Paris. Esse período das três sínteses apontadas pela autora costuma ser Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 225 225 11/7/2011 19:21:51 Gragoatá Arnaldo Cortina designado então como período da semiótica clássica. A partir da morte de Greimas, em 1992, as novas tendências dos estudos em semiótica disputam um lugar na sucessão de seus trabalhos. Zilberberg desenvolve sua proposta de uma semiótica tensiva; Fontanille, a semiótica da práxis enunciativa; Landowski, a sociossemiótica; Coquet, a semiótica subjetal; Petitot, a semiótica morfodinâmica, entre outras. Essas diferentes formas de abordagem da significação em alguns momentos parecem desagregar e fracionar uma postura teórica mais coesa; por outro lado, porém, são também sua força, porque permitem observar a complexidade do processo de constituição da significação em múltiplos objetos. Primeira abordagem dos procedimentos enunciativos Na década de 1970, quando Greimas veio ao Brasil para ministrar um curso de semiótica a um grupo de pesquisadores engajados em compreender suas propostas metodológicas e interessados em contribuir para seu desenvolvimento, houve, em certo dia, uma pergunta a ele dirigida por Edward Lopes e Ignácio Assis Silva a propósito da enunciação. A resposta de Greimas acabou sendo publicada na forma de um artigo, com título “A enunciação (uma postura epistemológica)”, no número um, de 1974, da revista Significação, editada pelo Grupo de Estudos Semióticos “Algirdas Julien Greimas”, que foi fundado exatamente durante aquele curso em Ribeirão Preto, no interior paulista. Como afirma Greimas em seu texto, não se tratava de uma pergunta, mas de um conjunto de perguntas que indagava sobre a relação entre enunciado e enunciação. Não é meu propósito aqui retomar toda a problemática então tratada, mas destacar um dos aspectos desse conjunto de questões. Ele diz respeito à indagação proposta por Lopes e Silva a respeito da possibilidade de interpretar a relação entre enunciação e enunciado como um processo metalinguístico. De fato, Greimas afirma essa possibilidade ao dizer que a enunciação é o próprio enunciado, pois, mesmo que não aponte marcas mais explícitas, é sempre pressuposta, isto é, não se pode conceber o enunciado sem se reportar à enunciação. E por que começar então com essa lembrança? Por que ao me deparar com essa temática reporto-me à questão da metalinguagem? A razão está no fato de que, para falar de veridicção e de paixão, é necessário fazer referência à instância da enunciação no discurso. E na medida em que proponho refletir sobre essa questão, estarei tratando de um mecanismo que é intrínseco ao próprio texto que produzo. Para iniciar, portanto, a discussão, partirei de duas citações de dois diferentes textos que apresentam uma definição para veridicção e outra para a paixão, a partir do ponto de vista designado por Hénault (2006), acima referido, como semiótica clássica. 226 Rev Gragoata n 29.indb 226 Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:52 Veridicção e paixão na práxis enunciativas Segundo Greimas e Courtés (2008), no que se refere ao ato comunicativo, o que interessa observar, do ponto de vista semiótico, não é o problema da verdade, mas o do dizer verdadeiro, isto é, o da veridicção. Assim, entre destinador e destinatário ou entre enunciador e enunciatário do processo comunicativo “um crer-verdadeiro deve ser instalado [...] e é esse equilíbrio, mais ou menos estável, esse entendimento tácito entre dois cúmplices mais ou menos consciente que nós denominamos contrato de veridicção (ou contrato enunciativo)” (p. 530). Dessa forma, portanto, o que os autores apontam é que a semiótica deve estar atenta para a maneira como o discurso constrói seu efeito de verdade. Em outro texto, Greimas afirmava o seguinte: [...] o discurso é esse lugar frágil em que se inscrevem e em que se leem a verdade e a falsidade, a mentira e o segredo; esses modos de veridicção resultam da dupla contribuição do enunciador e do enunciatário, essas diferentes posições fixam-se apenas sob a forma de um equilíbrio mais ou menos estável, proveniente de um acordo implícito entre dois actantes da estrutura da comunicação. É esse entendimento tácito que é designado pelo nome de contrato de veridicção. (GREIMAS, 1983, p.105. Tradução nossa e grifo do autor). Para a semiótica, portanto, todo discurso é o resultado da negociação de um sentido entre sujeitos, o que se estabelece por meio da veridicção. Com relação às paixões, Greimas e Fontanille irão afirmar que elas aparecem no discurso como portadoras de efeitos de sentido muito particulares. Esses efeitos constituem-se num “perfume” difícil de determinar, mas que emana da organização discursiva das estruturas modais. Segundo os autores, compreender as paixões como perfume remete a duas constatações. Uma primeira constatação impõe-se: a sensibilização passional do discurso e sua modalização narrativa são co-ocorrentes, não se compreende uma sem a outra, e, no entanto, são autônomas, submissas, provavelmente, ao menos em parte, a lógicas diferentes. [...] Em segundo lugar, captar os efeitos de sentido globalmente como ‘cheiro’ dos dispositivos semionarrativos postos em discurso é reconhecer, de certa maneira, que as paixões não são propriedades exclusivas dos sujeitos (ou do sujeito), mas propriedades do discurso inteiro, e que elas emanam das estruturas discursivas pelo efeito de um ‘estilo semiótico’ que pode projetar-se seja sobre os sujeitos, seja sobre os objetos, seja sobre sua junção. (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p.21) O que se pode observar nessas citações, portanto, é que tanto a veridicção quanto a paixão correspondem a efeitos de sentido do discurso. Por outro lado, porém, ao mesmo tempo em que essas relações são estabelecidas na superfície discursiva, podem ser identificadas no nível das estruturas narrativas – e foi desse nível que Greimas e seus seguidores partiram inicialmente. Embora o conceito de veridicção tenha emanado do exame das modalidades Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 227 227 11/7/2011 19:21:52 Gragoatá Trata-se aqui de referência ao quad rado sem iót ico proposto por Greimas com o objetivo de tornar operatória a representação da estrutura elementar da significação. Os dois eixos da contrariedade são constituídos por dois termos positivos contrários e dois termos negativos subcontrários. Além disso, representam-se no quadrado as relações de contradição, que é elaborada por um esquema positivo e por um esquema negativo, e ainda a de complementariedade, que se estabelece por meio de uma dêixis positiva e outra negativa. 1 228 Rev Gragoata n 29.indb 228 Arnaldo Cortina veridictórias observadas no nível narrativo em que, por exemplo, o destinador, para manipular seu destinatário, vale-se da mentira (parecer + não-ser), do segredo (não-parecer + ser), da falsidade (não-parecer + não-ser) ou da verdade (parecer + ser) e, por desdobramento, alçado ao nível discursivo, o conceito de paixão levou um certo tempo para se incorporar às análises discursivas no desenrolar das propostas metodológicas da semiótica. Embora Greimas e Fontanille (1993) abram o capítulo “A epistemologia das paixões” com o trecho acima reproduzido, as análises da avareza e do ciúme desenvolvidas nos capítulos seguintes centram-se nas paixões de papel, isto é, na maneira como a avareza ou o ciúme manifesta-se no enunciado. Com relação ao capítulo sobre a avareza, dois textos são citados para discutir essas paixões: a fábula de La Fontaine, “A leiteira e a bilha de leite”, e um trecho do romance de Balzac, As ilusões perdidas, que focaliza a atitude avara de Mme. Bargeton quando se vê obrigada a sobreviver com o dinheiro que havia trazido consigo para viver em Paris. No caso da fábula de La Fontaine, o que se pergunta é se a narrativa trata do “investimento” ou da “dissipação”, duas dêixis do quadrado1 que representam a oposição entre “tomar” e “dar”, correspondentes às ações decorrentes das paixões da “avareza” e da “dissipação”. Na realidade, o que o discurso manifesto nessa história aponta é o fazer do sujeito central, a menina. Ao se distrair com seus pensamentos que consistiam no acúmulo de valor, de bens, e consequente enriquecimento, a garota não realiza adequadamente o percurso do transporte da bilha de leite. Ao tropeçar, deixa cair a bilha, o que significa a impossibilidade de realizar tudo o que imaginara fazer com a venda do leite. A moral que encerra a fábula chama a atenção para a distração da menina: ao invés de ficar sonhando com o que poderia ser, deveria ter mais atenção com o que tinha de fazer. Essa contraposição modal é dirigida ao enunciatário e a narrativa corresponde à figurativização do não-dever-fazer. No caso do texto de Balzac, aponta-se uma oposição de valores. A parcimônia de Mme. Bargeton com seus gastos em Paris é interpretada como avareza pelas pessoas que vivem naquela cidade, pois elas são caracterizadas pela dissipação. Já na cidade do interior francês de onde tinha vindo, Angoulême, sua atitude era comum à de todos os nobres da região, que consistia na moderação dos gastos. Enquanto exame da manifestação passional do texto de Balzac, o que essas observações de Greimas e Fontanille (1993) apontam é que a caracterização da paixão depende do contexto em que se manifesta, pois é uma questão de valor. Em Cortina (2004) procurei mostrar a análise de dois textos tipologicamente distintos com o objetivo de discutir duas perspectivas para o tratamento da paixão. No conto “A desejada das gentes”, de Machado de Assis, ela é vista como elemento constiNiterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:52 Veridicção e paixão na práxis enunciativas tuinte da narrativa e na crônica jornalística “Ereção permanente”, de Mario Vargas Llosa, como manifestação retórica da organização discursiva. A principal preocupação desse trabalho consistiu em contrapor o exame de uma paixão de papel, a obsessão do narrador pela bela Quintília, presente no conto machadiano, à análise da enunciação apaixonada do enunciador da crônica de Llosa, ao relatar sua experiência de conhecer o carnaval brasileiro. No caso do texto de Machado, verifica-se que a paixão é o que move a narrativa que é contada por um sujeito a outro, em segundo plano. A técnica do narrador consiste em diluir sua presença para dar voz a duas personagens que conversam, o que vem a ser a debreagem de segundo grau. Uma delas, o conse lheiro, conta a seu amigo o que se passou em determinada época de sua vida, constituindo-se, assim, num narrador de segunda instância, pois sua narrativa se dá no interior da debreagem de segundo grau. O conto de Machado simula a situação de uma peça de teatro em que as personagens falam. O leitor é um espectador que assiste ao drama. No caso do texto da crônica jornalística, a dimensão passional pode ser identificada na maneira a partir da qual o enunciador se relaciona com o tema do discurso que produz. Ao relatar sua experiência de presenciar as festividades do carnaval carioca o enunciador demonstra estar envolvido com aquilo que narra, pois sua visão sobre o acontecimento é eufórica. Nesse sentido, seu fazer argumentativo consiste em despertar no leitor a mesma paixão, isto é, modalizá-lo pelo querer. As marcas de subjetividade presentes no discurso de Llosa são também uma forma de aproximação de seu leitor, o que corrobora o princípio passional de sua construção. Quanto ao aspecto do valor que adquire a dimensão passional, o que se pode constatar por meio do exame dos dois textos acima referidos é que eles se projetam de forma diferenciada. Enquanto o de Machado constrói um cenário em que a relação entre sujeito e objeto reflete uma tensão entre um querer e um não-poder, que delimitam e confrontam o desejo, pois o narrador da história interna do conto não consegue obter a aceitação de seu amor por Quintília, o de Llosa descreve um cenário em que o desejo não tem limites, é distenso, e em que o querer e o poder não se opõem, pois a relação verdadeira é a da complementaridade. Não se pode deixar de notar, porém, que no texto machadiano há uma transformação do querer que move os sujeitos da história. Inicialmente o interesse do herói por Quintília decorre de uma aposta, pois ela era objeto de interesse de vários homens que cobiçavam suas posses, mas, com a aproximação entre os dois ocorre uma transformação de estados: ao invés de ser movido pelo interesse, ele passa a ser movido pela paixão. De acordo com a análise proposta, a transformação do estado de relaxamento para o de tensão na trama amorosa do conto machadiano se dá em Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 229 229 11/7/2011 19:21:52 Gragoatá Arnaldo Cortina função do apagamento do valor econômico do objeto do desejo, isto é, os dois amigos que haviam feito a aposta deixam de caracterizar Quintília como objeto da riqueza e passam a valorizá-la enquanto sujeito. O que é possível dizer ainda sobre esses textos, do ponto de vista da veridicção, é que cada um deles se vale de um recurso distinto para criar o efeito de sentido de verdade. O conto de Machado, como já apontamos acima, vale-se da manifestação do diálogo como forma de representação do fato narrado. O conselheiro e seu amigo encontram-se e o primeiro conta para o segundo como conheceu e como se apaixonou pela bela Quintília. A reconstituição dessa situação de interlocução é responsável pela manutenção da impressão da realidade do relato. A crônica de Llosa, por sua vez, mantém o efeito de verdade, porque euforicamente o enunciador afirma que viveu a situação que narra ao vir ao Rio de Janeiro para conhecer o carnaval e que isso tinha sido uma experiência inusitada. Partindo, portanto, da visão clássica da semiótica sobre veridicção e paixão, procurei contrapor à manifestação da paixão de papel, que faz parte da estratégia veridictória de um texto no nível de seu enunciado, como é o caso do conto de Machado acima referido, a manifestação da paixão como estratégia veridictória de outro texto, o de Llosa, no nível da enunciação. Resta então examinar como essa mesma questão pode ser observada a partir dos desenvolvimentos mais recentes da semiótica oriunda da obra greimasiana. Segunda abordagem dos procedimentos enunciativos Diferentemente da concepção estrutural de que se originou a semiótica, a questão da enunciação passa a ser observada a partir de uma outra perspectiva. A significação deixa de ser pura e simplesmente um artefato resultante de uma série de combinações do sistema da língua e é compreendida como o reflexo da movimentação desse sistema com o contexto em que é produzida. Nesse sentido, o ideológico é reconhecido como intrínseco à significação, porque determina e é determinado pelo uso da língua. Retomando Hjelsmlev (1975), a interdependência entre uma forma do conteúdo e uma forma da expressão é o que constitui exatamente a linguagem e é isso que fará com que ela construa sentidos. Dessa maneira, portanto, é que os estudos mais recentes da semiótica irão pensar uma práxis da enunciação. Não se trata, portanto, de descrever o mecanismo dos elementos do discurso no percurso gerativo do sentido, mas de entender de forma dinâmica as interligações entre os diferentes patamares que o constituem. Assim, a enunciação não está simplesmente acoplada às instâncias sêmio-narrativas, mas determina-as e, por elas, é determinada. 230 Rev Gragoata n 29.indb 230 Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:52 Veridicção e paixão na práxis enunciativas Reconhecer, porém, a inter-relação entre o enunciado e suas condições de produção não significa afirmar o primado da verdade sobre o dizer. Um texto nunca será a expressão de uma realidade concreta, porque a linguagem é a mediadora entre o real e uma forma de apreendê-lo, ela não é uma instância reprodutora, mas criadora. Assim, quando se pensa na constituição do sentido pela linguagem, pensa-se na veridicção e não na verdade. A interpretabilidade do texto está assentada na forma como ele se faz parecer verdadeiro, isto é, como entre enunciador e enunciatário é negociado o dizer verdadeiro. Além disso, nessa relação entre enunciador e enunciatário está sempre pressuposta a ideia de um contrato, de uma adesão, o que implica que o primeiro age sobre o segundo por meio de um procedimento retórico-discursivo que é a passionalização. Para procurar tornar mais clara essa questão dos procedimentos veridictórios e passionais na constituição da práxis enunciativa, examinemos dois diferentes textos, que se constroem a partir de duas diferentes semióticas: a verbal e a visual. O primeiro deles é o conto machadiano intitulado “O cônego ou a metafísica do estilo” (ASSIS, 1997, p. 570-3), publicado originalmente no livro de contos intitulado Várias histórias. Em primeiro lugar, o que se deve considerar quando se examina a constituição significativa do texto de Machado é que ele, primeiramente, obedece às injunções da linguagem escrita e, além disso, corresponde a um tipo específico de texto, o conto, que é uma das formas da manifestação da linguagem literária. Nesse sentido, a práxis enunciativa está condicionada a um conceito que Fontanille (2007) retoma de Iuri Lotman e procura incorporá-lo à semiótica, qual seja, o de semiosfera. Assim, a forma de construção do enunciado reflete uma concepção cultural do tipo de texto a ser produzido. Uma característica central da narrativa machadiana é o diálogo entre o narrador e seu narratário. Toda a história é contada como se o narrador estivesse diante de seu narratário e a ele contasse um caso. E o conto cria um efeito tão verídico desse diálogo que é um dos poucos textos em que o leitor tem voz, pois a ele são atribuídos três enunciados: “Sexual?”; “Mas, então, amam-se umas às outras?”; “Confesso que não.” (ASSIS, 1997, p. 571). O próprio título sugere esse caráter dialógico, ao coordenar dois sintagmas por meio da conjunção alternativa “ou”, pois sugere que o leitor pode escolher um deles para direcionar a leitura da narrativa. O conto pode chamar-se “o cônego” ou “metafísica do estilo”, porque, ao contar a história de um cônego que escreve um sermão, faz uma discussão sobre o estilo de sua escrita. Cada um desses títulos corresponde a uma narrativa distinta. A primeira é aquela que conta como o cônego recebeu o convite para escrever seu sermão e como se pôs a produzi-lo. A segunda é a que narra Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 231 231 11/7/2011 19:21:52 Gragoatá Arnaldo Cortina a história de uma palavra que procura por outra para construir o discurso. O recurso utilizado pelo enunciador para construir a narrativa da produção do sermão é o da intertextualidade. O conto inicia-se por meio da reprodução de um diálogo entre um casal apaixonado, duas palavras que se procuram, um substantivo e um adjetivo. Ocorre, porém, que o dizer atribuído a cada um dos apaixonados é a reprodução do enunciado do “Cântico dos cânticos”, do Velho Testamento. Por meio do emprego das aspas, o que caracteriza, na perspectiva dos trabalhos de AuthierRevuz (1998), um procedimento de heterogeneidade mostrada marcada, o dizer de um (“Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano” – reprodução de dois versos do 3º canto) é seguido pelo dizer do outro (“Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor...” – reprodução de três versos do 4º canto). Na realidade, a narrativa do conto machadiano simula o ato de produção do discurso. A estrutura que dá suporte à narração é bastante simples. O cônego Matias (S1) fora convidado por algumas pessoas (S2) a escrever o sermão para uma festa. Inicialmente recusa o convite, mas é convencido a realizar a tarefa quando S2 alude a sua competência para compor o sermão (faria aquilo brincando). Assim, seduzido pelo Destinador-manipulador, S1 põe-se a executar a tarefa. O narrador da história dirige-se, então, ao leitor e convida-o a entrar na mente do cônego para ver como ele elaborava seu sermão. Percebe-se, portanto, que a um procedimento de manipulação manifestado no enunciado há outro correlato na enunciação. Porque não tinha muita disposição para escrever, Matias inicia seu sermão com má vontade, mas começa a tomar gosto pelo trabalho e mergulha na construção do texto. Ora escrevendo com mais velocidade, à medida que as palavras fluem na continuidade do discurso, ora diminuindo o ritmo, quando precisa escolher com mais vagar as palavras que irá empregar, Matias, de repente, cai num estado de falta: precisa escolher um adjetivo adequado para combinar com um substantivo, mas o termo apropriado não lhe vem à mente. Essa tensão desencadeada pela ausência do termo que combinaria com outro é narrada de forma alegórica pelo narrador que toma o leitor pelas mãos e convida-o a penetrar no cérebro do cônego. Em verdade o substantivo (Sílvio) que habita o lado direito do cérebro sai à procura de seu par, o adjetivo (Sílvia), que habita o lado esquerdo. A intensidade da procura é marcada pela extensão da busca de um pelo outro. Pode-se ainda fazer uma inferência interpretativa, que a cena narrada sustentaria, em relação ao nome do amado e da amada. Sílvio, na mitologia latina, é o filho de Enéas e Lavínia, que nascera em um bosque; consequentemente, Sílvia é sua forma feminina e significa aquela que é nascida na floresta. A mata, ou o bosque, ou a floresta, cor232 Rev Gragoata n 29.indb 232 Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:52 Veridicção e paixão na práxis enunciativas responde à figurativização do cérebro de Matias, lugar do qual surgem Sílvio e Sílvia que buscam um encontro. O procedimento da intertextualidade, então, já anunciado anteriormente, consiste em que os dizeres dos sujeitos apaixonados trazem para o texto de Machado trechos do texto do “Cântico dos cânticos” bíblico. Em contraposição a esse texto há referência ao texto shakespeariano, também pelo procedimento da intertextualidade (“Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol”). Essa oposição marcada pelo enunciador aponta para o caráter do interdiscurso. No cérebro de Matias, um eclesiástico, o diálogo amoroso só poderia manifestar-se por meio da reprodução do discurso bíblico, pois sua visão do amor entre dois seres só pode ser mediada pela visão bíblica da paixão, por isso “Cântico dos cânticos” e não “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, que fala do amor mundano. Observa-se, portanto, no nível da manifestação, um diálogo entre diferentes posições de discursos, que são invocadas por meio da instância da enunciação, para caracterizar o dizer do sujeito responsável pela transformação narrada, qual seja, a produção de um sermão em comemoração a uma festividade. E essa voz enunciativa, num afirmar metalinguístico reiterado, considera o casamento entre as palavras, fruto da união entre Sílvio e Sílvia que se procuram, a própria definição do estilo. Ao responder a uma pergunta do leitor que se admira pela revelação de que as palavras nutrem um sentimento amoroso entre elas, o narrador responde: “Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo.” Assim, no dizer do enunciador, ao construir seu texto, cônego Matias realiza um encontro entre duas palavras que estão em seu cérebro e a possibilidade desse encontro aí realizado será responsável pela configuração individual do seu dizer, uma maneira de tornar particular a forma de reproduzir um discurso outro, no caso, o religioso. De qualquer forma é preciso também observar que a instauração da práxis enunciativa no texto machadiano é decorrente de uma circunstância da semiosfera, uma vez que se deve levar em consideração que se trata de um texto literário e, dentre os diferentes tipos de textos dessa modalidade, é um conto. Partindo desse dado é possível observar que a relação entre o enunciador e seu enunciatário é marcada por um movimento de tensão crescente que sustenta o jogo entre essência e aparência em que se assenta o contrato veridictório. Entre a narrativa da busca de Sílvio por Sílvia que ocorre na mente do cônego há uma diferença de aceleração em relação àquela que conta o ato da escrita do sermão. Enquanto a primeira segue um movimento frenético, que é a busca do amado e da amada, a segunda é lenta, pois, para escrever, o cônego se põe a pensar e seu estado de reflexão é marcado pela distensão, pela acomodação. Ao mesmo tempo em que esses dois percursos desenvolvemse, há ainda a constituição da narrativa englobante, responsável Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 233 233 11/7/2011 19:21:52 Gragoatá Arnaldo Cortina pelo desenvolvimento das duas anteriores. Ela é a conversa entre dois interlocutores, o sujeito que enuncia e o sujeito para quem se dirige. Essa complexidade discursiva configura a práxis enunciativa do texto machadiano. Seu valor literário reside no fato de que há um efeito estético criado pelo jogo entre um conteúdo e uma forma responsável pelo acabamento do texto. Além disso, o fato de ser uma história mais curta e mais centrada em um único foco (a escrita de um sermão realizada por um cônego), o que a caracteriza como conto, é o que determina a manutenção da tensão da significação no texto. A configuração enunciativa do conto de Machado, portanto, compõe-se por meio do jogo entre o contrato veridictório instaurado entre enunciador e enunciatário e a manifestação passional. Ao mesmo tempo em que há uma paixão enunciada, revela-se uma paixão na enunciação. Examinemos agora outro texto, constituído a partir de outra semiótica, a visual. Na verdade, o texto em questão estabelece uma inter-relação entre a semiótica visual e a verbal, o que o caracteriza como um texto sincrético. Trata-se de uma propaganda da cerveja Nova Schin, veiculada em uma revista semanal. Figura 1 - Propaganda da Nova Schin veiculada na revista Veja, edição 2135, de 21/10/2009, p. 164 234 Rev Gragoata n 29.indb 234 Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:52 Veridicção e paixão na práxis enunciativas Ao observar a propaganda publicitária, o leitor identifica um modelo masculino sentado em uma poltrona com os pés estendidos sobre uma mesinha, segurando na mão esquerda um copo de cerveja e, na mão direita, o controle remoto de um aparelho de áudio e/ou de vídeo. As duas mãos estão simetricamente dispostas, à esquerda e à direita, de tal forma que o foco em plongée da câmera que enquadra a cena faz crer que elas estão à mesma altura, como se estivessem segurando o volante de carro imaginário. Essa imagem ocupa a parte central de um campo de enquadramento retangular e a direção do olhar do homem sentado incide sobre o canto superior direito do retângulo, donde emana uma luminosidade mais intensa que vai se perdendo exatamente em direção ao canto oposto, qual seja, o esquerdo da parte inferior. A cena captada pela foto constrói a imagem de um carro de fórmula 1. A mesinha dianteira sobre a qual o homem apoia os pés descalços é ladeada por duas caixas pretas que simulam os pneus do carro. Exatamente no mesmo ângulo e na mesma direção, duas outras caixas de som pretas estão dispostas na parte traseira da poltrona sobre a qual o homem está sentado, aparentando os outros dois pneus do carro. Entre a poltrona e outra mesinha localizada logo atrás dela há um tapete. A cor dessas três peças, a poltrona, o tapete e a mesinha traseira é a vermelha, o que dá forma a um conjunto monocromático. A disposição do modelo masculino, sentado sobre a poltrona vermelha com as pernas cruzadas e estendidas sobre a mesinha dianteira, configura o eixo do carro de corrida. Seu corpo é a representação do corpo do piloto e do corpo do carro de fórmula 1. Homem e máquina estão em simbiose, tal como é característico do esporte de fórmula 1. A imagem descrita no parágrafo acima, num primeiro momento, pode parecer marcada pela estaticidade, pois os sentidos a ela agregados (poltrona, pés estendidos, contemplação) reforçam o estado de repouso. Ocorre, porém, que o foco em plongée da câmera fotográfica remete à captação das câmeras de televisão que filmam uma corrida de carros. E, nessa situação, os carros estão em movimento, pois estão em ação numa corrida. Os elementos que quebram essa estaticidade e dão movimento à foto são o isolamento dos objetos visualizados, pois eles não são ladeados por absolutamente nada, como se estivessem numa ampla sala vazia, e, principalmente, a imagem do assoalho sobre o qual os objetos estão dispostos. Trata-se de um assoalho de madeira, com tábuas em diagonal, na mesma direção em que estão os objetos que simulam o carro de fórmula 1, que cria o efeito da velocidade de uma carro deslizando em uma pista de corrida. O efeito estético da foto é o reflexo de uma práxis enunciativa que compõe um texto antitético. Ela retrata a confluência do estático e do dinâmico, do esporte de corrida de carros e do relaxamento do final de semana. É exatamente isso o que afirma o texto reproduzido em amarelo no canto superior esquerdo da Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 235 235 11/7/2011 19:21:53 Gragoatá Arnaldo Cortina foto: “nova schin, a cerveja oficial do GP Brasil de fórmula 1 e do seu fim de semana”. O modelo masculino que aparece na foto veste calça jeans, camiseta e está descalço, representando, dessa forma, a descontração, o lazer. Ele segura um copo de cerveja e, na mesa em que coloca seus pés, estão a lata aberta de Nova Schin e dois pratinhos de aperitivos; é a posição de relaxamento para ver a corrida que passa no aparelho de televisão, identificado pelo leitor da propaganda ao observar o ângulo superior direito iluminado da foto. Nesse mesmo canto superior direito há a advertência para os riscos da ingestão de álcool quando se está conduzindo um veículo: “SE BEBER, NÃO DIRIJA”. Disposta em linha vertical, oposta à da mensagem veiculada no canto superior esquerdo, a frase condicional imperativa, além de cumprir a lei que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de bebidas alcoólicas, reforça a antítese da foto. Embora o motorista esteja ingerindo bebida alcoólica, ele está em repouso, pois o movimento é uma ilusão. A relação entre o enunciador e o enunciatário da propaganda é mediada pelo contrato veridictório da cena narrada, ao mesmo tempo em que o aspecto passional revela-se no apelo ao consumo, que é característico dos textos de propaganda. Nesse sentido, pode-se dizer que a práxis enunciativa constrói-se da mesma forma que no texto literário anteriormente examinado, embora o propósito do texto de propagada seja distinto do literário. A depreensão do sentido revelado pelo texto da propaganda está associada à identificação de um contexto que por ele é acionado. As corridas de carro normalmente acontecem nos finais de semana e é esse momento de descontração, de lazer, que está sendo reforçado pelo texto. A prática semiótica revela que a veridicção e a paixão são elementos intrínsecos à constituição argumentativa dos textos. A mediação dos sentidos entre o enunciador e o enunciatário é sempre realizada por meio de uma negociação em que o aspecto tensivo é inerente. A instituição do parecer verdadeiro, próprio da veridicção, e a modalização do ser, própria da paixão, estão em constante movimento para que o ato de apreensão e de interpretação do texto se realize. Os recursos veridictórios e passionais acionados pelo conto de Machado e pela propaganda da cerveja Nova Schin são idênticos, embora com propósitos distintos. Enquanto o primeiro se vale do recurso estético para manipular um leitor que valoriza positivamente o caráter literário do texto que lê, o segundo também se vale de uma estética visual para levar o leitor ao consumo do produto que é anunciado. A construção de uma representação de verdade tem o apelo passional como seu aliado. O conto ironiza uma paixão representada e aciona o dispositivo passional para 236 Rev Gragoata n 29.indb 236 Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:53 Veridicção e paixão na práxis enunciativas conquistar seu leitor; a propaganda não encena a paixão, mas se vale do dispositivo passional para levar seu leitor à ação. Considerações finais O propósito deste texto consistiu, portanto, em mostrar os procedimentos da veridicção e da paixão presentes no discurso, enquanto resultado de um ato de enunciação, entendido como uma práxis. Retomando a referência a Hjelmslev inicialmente apresentada, é importante destacar que, tal como aponta Bertrand (2003), quando o autor dinamarquês propõe alterar a oposição saussuriana língua/fala para esquema/uso, ressalta o caráter estrutural do aparelho linguístico (língua) ao mesmo tempo em que chama atenção para as práticas envolvidas pelo uso dessa mesma língua, que são determinadas por “hábitos das comunidades linguísticas e culturais ao longo da história” (BERTRAND, 2003, p.86). Bertrand afirma ainda o seguinte sobre esse caráter social do discurso: [...] É portanto a utilização da estrutura de significação que define o uso. Quer esta definição seja vista positivamente – quer negativamente – a partir das coerções e incompatibilidades semânticas impostas – em qualquer dos casos o uso ‘designa a estrutura fechada pela história’. É assim que seus produtos resultam da práxis enunciativa. Podemos, pois, dizer que ‘o cerceamento de nossa condição de homo loquens’ se fundamenta em duas ordens de restrições que determinam a realização do discurso, as imposições a priori das categorias morfossintáxicas e os limites, de ordem sociocultural, impostos pelo hábito, pelas ritualizações, pelos esquemas, pelos gêneros, e até pela fraseologia, que moldam e modelam, sem que o saibamos, a previsibilidade e as expectativas de sentido. (BERTRAND, 2003, p. 86-7. grifos do autor) Ao focalizar, portanto, a questão da enunciação, os conceitos de veridicção e de paixão têm importância uma vez que essa coerção histórica do discurso não anula o fato de que o ato comunicativo realizado por meio da linguagem é uma representação e que e que a linguagem age sobre o sujeito para quem esse ato comunicativo é dirigido. O que é historicamente determinante no discurso, como foi apontado acima, são os hábitos linguísticos e culturais de uma determinada comunidade linguística, mas isso não significa que seja possível uma relação transparente entre a verdade e o dizer. O ato interpretativo apreende os sentidos veiculados pelo texto e ele constrói-se a partir de uma negociação instaurada entre o sujeito que o produz e o sujeito a quem se dirige. Mais do que isso, essas posições de subjetividade são também constructos do texto, uma vez que o enunciador e o enunciatário são instâncias constituintes da linguagem que entra em uso durante o processo comunicativo. A semiótica originária dos trabalhos de Greimas é uma perspectiva teórica que vem ao longo do tempo, desde que Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 237 237 11/7/2011 19:21:53 Gragoatá Arnaldo Cortina foi inicialmente proposta, procurando aprofundar o exame da constituição do sentido na linguagem. Abstract The aim of this paper is to show how the methodological apparatus of Greimasian semiotics is applied to tackle discourse issues. In particular, focusing on the concepts of veridiction and passion, two specific discourse procedures, it is examined how these concepts are included in the enunciative praxis by analyzing two distinct texts: the short story “O cônego ou a metafísica do estilo”, by Machado de Assis, and the Nova Schin beer ad published in a Brazilian weekly magazine. Keywords: Enunciation. Enunciative praxis. Passion. Text. Veridiction. Referências ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Trad. Claudia R. Castellanos Pfeiffer et al. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica. Bauru, SP: EDUSC, 2003. CORTINA, Arnaldo. Duas leituras da paixão. CASA – Cadernos de Semiótica Aplicada. http://www.fclar.unesp.br/grup:, v.2, n.2, 2004. GREIMAS, Algirdas Julien. Du sens II. Essais de sémiotique. Paris: Seuil, 1983. GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Contexto, 2008. FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Tradução de Jean Cristtus Portela. São Paulo: Contexto, 2007. GREIMAS, Algirdas Julien & FONTANILLE, Jacques. Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. Tradução de Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993. Hénault, Anne. História concisa da semiótica. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução de J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1975. LLOSA, Mario Vargas. A linguagem da paixão. Tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Arx; 2002. 238 Rev Gragoata n 29.indb 238 Niterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:53 Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos Célia Regina dos Santos Lopes Leonardo Lennertz Marcotulio Márcia Cristina de Brito Rumeu Alexandre Xavier Lima Resumo Este artigo expõe em discussão procedimentos metodológicos produtivos no processo de reconstrução dos perfis socioculturais de redatores de sincronias passadas da língua portuguesa. Pretende-se pensar a questão da aplicação de categorias sociais (gênero, faixa etária, grau de escolaridade, nacionalidade/naturalidade do autor) aos redatores de missivas manuscritas e de textos impressos, apontando os percalços e os caminhos metodológicos implementados no desenvolvimento de uma sociolinguística histórica do português. Palavras-chave: categorias sociolinguísticas; o método na sociolinguística histórica; os corpora históricos. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 239 Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:53 Gragoatá Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier Considerações iniciais No âmbito dos estudos sociolinguísticos de orientação laboviana (WEINREICH et alii, 1968; LABOV, 1972), a identificação de categorias sociais como gênero, idade, região e grau de escolaridade dos informantes, por exemplo, se justifica em função da relação estabelecida entre o social e o linguístico. O agrupamento dessas categorias constitui, assim, o perfil sociocultural dos agentes, o que proporciona ao linguista um melhor entendimento dos condicionamentos sociais de um fenômeno linguístico variável. Quando se coloca o foco em textos escritos em sincronias passadas, o direcionamento teórico-metodológico pode ser mantido, desde que se façam as devidas ressalvas, tendo em vista, em alguns casos, a escassez de informações disponíveis para dimensionar as condições de produção destas fontes históricas. Caso o objetivo da investigação histórica, numa perspectiva sociolinguística, seja o de descrever a produção linguística de redatores de um determinado local do Brasil, a categoria social região parece ser satisfatória, contanto que se faça um levantamento do local de nascimento desses informantes. O mesmo tipo de estudo geralmente é feito com outras categorias sociais que são reconhecidas através do próprio documento ou de fontes secundárias sobre seus redatores. Por outro lado, essas categorias sociais, tal qual comumente as conhecemos, podem ser insuficientes em estudos que adotem uma perspectiva que considere a reconstituição da sócio-história do português no Brasil e do português brasileiro, inserida num contexto de discussão sobre a História Social da Escrita, razão pela qual torna-se pertinente repensá-las. Não queremos dizer, contudo, que a concepção de perfil como conjunto de categorias sociais utilizadas por diversos estudos atuais esteja equivocada. No nosso modo de entender, a questão que aqui se coloca é que, de acordo com a maneira como se operacionaliza a ideia de perfil, esta pode responder apenas parcialmente aos objetivos almejados. Em nosso caso, em função das necessidades que se apresentam em trabalhos empíricos que buscam tratar da reconstituição sócio-histórica do português, é cabível o questionamento sobre o que estamos entendendo por perfil sociocultural. Em que medida falar em gênero e região, por exemplo, é dar conta da descrição de um perfil? O problema que queremos evidenciar, e que nos preocupa, é o de tomar o perfil como uma mera combinação de variáveis sociais, recortadas e concebidas como realidades estanques e com sentidos prévios ao contexto em que ocorrem. O entendimento do perfil para a análise de corpora históricos sugere um foco privilegiado sobre o indivíduo, o que conduz obrigatoriamente a uma decisão teórica. Por que não realizar uma 240 Rev Gragoata n 29.indb 240 Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:53 Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos leitura da produção linguística (texto) em termos de seu contexto de produção? Por que insistir em fazê-la somente a partir do indivíduo? Se assumirmos que indivíduo e sociedade são dois conceitos que estão intimamente imbricados, não sendo, portanto, dissociáveis, até que ponto faz sentido investigar os redatores apenas em termos de seus perfis? Em outras palavras, até que ponto a caracterização individual de um informante não é simultaneamente a caracterização do grupo do qual faz parte? Devemos ter o cuidado necessário para não tratar do indivíduo desconectado do todo. Repensar, assim, o conceito de perfil torna-se necessário, levando-se em consideração que o nosso propósito é entender a escrita a partir de quem a escreveu em um determinado contexto sócio-histórico. Pelo que vemos, até o momento, a discussão maior que se necessita fazer é acerca dos conceitos de individual e social, de indivíduo e sociedade. Nesse sentido, nosso objetivo, aqui, é levantar questionamentos iniciais que nos permitam pensar que, para trabalhos que busquem reconstituir uma sócio-história do português, devemos pensar, em um primeiro momento, nas formas de abordagens sobre este indivíduo, as vantagens do procedimento de caracterização de seu perfil e sua pertinência para os propósitos de nossos estudos sócio-históricos. Acreditamos no potencial analítico de um cruzamento de perspectivas, que relacione a trajetória de vida dos sujeitos (que vai mais além das categorias tradicionais de perfil), o contexto de produção dos textos (em que momento foi escrito, o que foi escrito, para quem foi escrito, em que condições e com que finalidades foi escrito) e o mapeamento e descrição das redes de escrita (diálogos estabelecidos e possíveis interlocutores). Isto seguramente nos permitirá localizar a produção escrita de um indivíduo num contexto de produção mais amplo, o que, por sua vez, nos garante a possibilidade de uma conceituação alterna de perfil sociocultural. Nesse sentido, este trabalho busca apresentar e justificar alguns procedimentos metodológicos que temos adotado em nossas pesquisas, no que se refere à identificação de perfis socioculturais de redatores de sincronias pretéritas. Relataremos as dificuldades encontradas e as decisões tomadas para a aplicação de categorias sociais aos redatores tanto de textos manuscritos, quanto de textos impressos, assim como a relevância de proceder tais abordagens para o objetivo maior da investigação na temática mencionada. A seguir, apresentaremos notícias de diferentes experiências metodológicas que têm sido desenvolvidas mais afins com a perspectiva aqui discutida. Estamos conscientes de que a não homogeneidade de nosso texto é uma prova de que essa discussão deve ser realizada. Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 241 241 11/7/2011 19:21:53 Gragoatá Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier Notícias de metodologias utilizadas para a identificação de perfis socioculturais de redatores de textos manuscritos No que se refere às metodologias que aqui serão descritas para os textos manuscritos, constamos de dois estudos específicos que versam sobre a análise das formas de tratamento. Tais estudos foram realizados a partir de cartas, o que nos exige que, em função do fenômeno linguístico escolhido e do gênero textual em questão, se proceda não só à identificação dos perfis socioculturais dos redatores (missivistas), assim como dos destinatários das trocas interativas. A opção pelo estudo diacrônico a partir de um corpus constituído por cartas não é gratuita. A carta, como gênero discursivo primário (BAKHTIN, 1997), configura-se como uma circunstância espontânea de comunicação verbal. Estruturada em um eixo que pressupõe um autor, um destinatário e um tema-íntimo, a carta-missiva segue um padrão composicional reconhecido há muito no mundo ocidental. Em geral, o local, a data, a saudação inicial, o corpo do texto, a despedida e a assinatura estão sempre presentes. São essas propriedades características da carta que permitem a identificação do perfil sociocultural do remetente na sua relação com o destinatário. Apesar das aparentes vantagens desse gênero, as cartas não reproduzem dados de fala. Este é, sem dúvida, um problema fundamental que se tem procurado minimizar nos estudos de linguística histórica, perpetuado na máxima laboviana da “arte de fazer o melhor uso de maus dados” (LABOV, 1994, p.11) ou, melhor dizendo, “fazer um bom uso dos dados disponíveis”. A carta é um tipo de fonte documental que permite mais facilmente identificar as categorias sociais tradicionalmente conhecidas pelos que levam em conta o modelo sociolinguístico laboviano. A partir dela e com as informações composicionais do próprio gênero inicia-se o trabalho de garimpo para a identificação da origem do remetente, sua idade, seu nível sociocultural e papel social assumido em determinado contexto histórico. Além disso, a carta pessoal, por exemplo, pelo seu caráter mais íntimo ou espontâneo, pode facilitar a identificação de fatos linguísticos em processos de mudança. É preciso ter mente, entretanto, que se, por um lado, a carta transmite a inovação e mudança linguísticas, por outro, conserva fórmulas fixas em que se perpetuam “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 1997, p. 279 apud SOTO, 2007, p. 100). Apesar de apresentar algumas variações em sua estrutura composicional ao longo do tempo, as cartas se caracterizam por alguns traços prototípicos que podem interferir, sobremaneira, na análise de fenômenos linguísticos quando se parte desse gênero como fonte para o estudo da mudança linguística. Em termos da estrutura textual, o gênero epistolar, no geral, apresenta uma 242 Rev Gragoata n 29.indb 242 Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:53 Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos 1 Obviamente que as partes constitutivas do gênero epistolar apresentam variações de nomenclatura em função do tempo, dos autores e dos inúmeros manuais que ga n ha ra m força no Ocidente a partir da ars dictaminis (disciplina retórica centrada na redação de cartas e documentos). Há diversos tratados da história da epistolografia (o tratado de Anônimo de Bolonha, de 1135; o de Erasmo de Rotterdam, de 1520; e o de Justo Lípsio, escrito em 1590). Os tratados epistolares se multiplicaram nos séculos XVI e XVI. Para maiores detalhes ver as obras citadas em Koch (2008), Simões (2007), Marcotulio (2008) entre outros estudos que fazem menção à história do gênero. 2 SÁ, José d’Almeida Correia de. Vice-reinado de D. Luiz d’Almeida Portugal, 2º Marquês do Lavradio, 3º Vice-rei do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. macroestrutura constituída pelas seguintes partes: a seção de contato inicial (em que costuma figurar a saudação e a captação da benevolência), o núcleo da carta (o corpo do texto, a razão pela qual a carta está sendo escrita, predominando um pedido de algo concreto, notícias ou uma ordem a ser cumprida etc.) e a seção de despedida. Nessas partes constitutivas1, principalmente na saudação houve desde a origem do gênero grande preocupação de conferir respeito aos papéis sociais e às posições de emissor e receptor, construindo laços de boa vontade com o receptor e estimulando sua cooperação (BAZERMAN, 2005 apud MARCOTULIO, 2008). É preciso ter em mente, nesse sentido, as dificuldades de interpretação de fenômenos tipicamente “textuais” que podem mascarar qualquer descrição diacrônica. Certos usos linguísticos podem estar correlacionados ao tipo de texto em que foram localizados, uma vez que existem fórmulas fixas, estruturas relativamente estáveis ou propriedades convencionalizadas que se repetem em determinado gênero particular (LOUREDA LAMAS, 2004). Este é mais um desafio do pesquisador que se aventura na análise de fontes documentais o passado: observar até que ponto a identificação de um dado mais conservador ou inovador localizado no documento realmente evidencia uma etapa de um processo de mudança sistêmica da língua ou se trata apenas de uma peculiaridade daquele tipo de texto. Marcotulio (2008) trabalhou com cartas do Marquês do Lavradio, português e vice-rei do Brasil, escritas no Rio de Janeiro no terceiro quartel do século XVIII a diferentes destinatários. As cartas de Lavradio, que se encontram no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, chamam a atenção não só pela quantidade, mas também pelo grande número de relações sociais existentes. Além de ser um rico material para análises linguísticas, estas cartas também despertam o interesse de historiadores e outros pesquisadores interessados no Brasil Colônia, pelas valiosas informações veiculadas. Quanto à metodologia utilizada para a identificação e caracterização do perfil sociocultural do remetente das cartas, como se trata de um personagem ilustre, os dados biográficos não resultaram de difícil alcance. Além de dicionários de famílias portuguesas, dicionários sobre personagens e momentos importantes do Brasil Colônia e de grandes enciclopédias portuguesas e brasileiras, o autor ainda contou com diversos títulos da historiografia luso-brasileira que retratam o período em questão, assim como uma biografia do Marquês do Lavradio produzida por um de seus descendentes, o 6° Marquês do mesmo título2. Assim, informações como idade, grau de instrução, data de nascimento, local de nascimento, razão pela qual foi escolhido para o posto de vice-rei e informações relativas ao recebimento do título de Marquês do Lavradio foram facilmente obtidas. Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 243 243 11/7/2011 19:21:53 Gragoatá Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier A consulta às fontes secundárias permitiu que Marcotulio (2008) percebesse a existência de uma problemática histórica sobre a questão das hierarquias político-administrativas no Brasil Colônia, na qual as cartas encontradas apresentavam-se como mediadoras de conflitos estabelecidos. Desde uma perspectiva teórica, o rei de Portugal tinha o vice-rei do Brasil como uma figura que representava a extensão do poder régio na Colônia e, por essa razão, esse seria o poder máximo na América Portuguesa. O vice-rei do Estado do Brasil estaria, assim, subordinado somente à Coroa, ao passo que todos os governadores e capitães-generais das capitanias do Brasil estariam, por sua vez, subordinados ao vice-rei. Entretanto, na prática, não era assim que o sistema funcionava. Com o intuito de garantir que o poder predominasse no lado europeu do Atlântico, o rei D. José I, através das atuações do Marquês de Pombal, não deixava claros os limites da atuação de Lavradio. Essa indefinição em torno do poder que detinha o vicerei permitia a leitura de que o vice-rei somente seria responsável por sua capitania, no caso o Rio de Janeiro, por essa ser a nova sede da Colônia a partir de 1763, e pelas capitanias subordinadas a essa, e não toda a extensão da Colônia. Dessa forma, o rei não perdia totalmente o controle da situação, uma vez que não depositava o poder em únicas mãos. Tanto o vice-rei, quanto os governadores e capitães-generais ficavam, assim, subordinados à Coroa. Nesse sentido, ocupar a posição de vice-rei no Brasil Colônia não isentava o seu titular de relações perenes marcadas pela tensão e pelos conflitos, o que representaria uma possível posição de desconforto. Ser detentor de um título que teoricamente conferia poderes, sem, contudo, exercê-los de fato, representava estar em uma constante zona de conflitos, em que todos os atos deveriam ser criteriosamente medidos para que os interesses fossem garantidos. Essa era a situação vivenciada pelo Marquês do Lavradio em sua gestão como representante da Corte na América Portuguesa. Esse quadro subjacente de relações e de tencionamento político circunscreve o eixo central do trabalho de Marcotulio (2008). Na busca de evidências linguísticas que permitissem um melhor entendimento dessa problemática, o autor optou por estudar as formas de tratamento que eram utilizadas por Lavradio, em cartas a diferentes destinatários da esfera pública, por acreditar que elas fornecem indícios de como as relações entre formas linguísticas e papéis sociais se construíram ao longo dos tempos. Para tanto, de modo a obter resultados mais confiáveis, Marcotulio (2008) decidiu analisar, também, as formas de tratamento encontradas nas cartas familiares, de modo a atestar se haveria a presença, no âmbito privado, de um personagem político. Essas informações permitiram que o autor realizasse um recorte histórico a partir do qual foram selecionados os destinatários que participassem da cena, isto é, que ocupassem algum posto político-administrativo no Império luso-brasileiro. A caracterização 244 Rev Gragoata n 29.indb 244 Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:53 Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos Carta destinada ao Conde de São Vicente, em 23 de junho de 1770. 3 social dos destinatários também foi possível através da consulta a fontes secundárias. As cartas foram escolhidas sob a condição de que veiculassem alguma informação relativa à política/modo de governar no Brasil Colônia, para que estivessem evidentes os limites do poder do vice-rei no trato com seus interlocutores. A partir daí, o autor analisou, desde uma perspectiva sociopragmática (BROWN & LEVINSON, 1987), como as formas de tratamento poderiam atuar, nos diferentes eixos hierárquicos sociais, como estratégias de atenuação a favor da polidez linguística, contribuindo para o trabalho de construção das faces dos participantes da interação. Quanto ao âmbito privado, não foi tarefa fácil a seleção dos destinatários. Em princípio, através de uma rápida consulta às cartas pessoais do Marquês do Lavradio, pareceu simples a escolha de alguns dos membros de sua rede familiar, uma vez que o grau de parentesco encontrava-se explícito na seção de contato inicial de cada carta, como em: “Meu Irmaõ, eSenhor domeuCoração”3. Dessa forma, aparentemente, se poderia saber qual era a relação familiar estabelecida entre o remetente e o destinatário. Entretanto, analisando outras cartas, Marcotulio (2008) verificou que as relações de parentesco indicadas pelos rótulos usados por remetente e destinatários, em muitos casos, não correspondiam à realidade histórica, uma vez que subvertiam / ampliavam os limites dos laços familiares tais como são conhecidos hoje, como o fato de chamar os genros de “filhos”, a sogra de “mãe” etc., observado no seguinte excerto da carta do Marquês do Lavradio destinada ao seu tio D. Tomás de Almeida, em 20 de fevereiro de 1770: “eultimamente euRecomendo aVossaExcelência | este negoçio com aquelle ardor comque VossaExcelência deve supor | eu meintereço hoje por huns genroz, ó para melhor dizer filhos | que asestimaveis Serconstançias, que atodoz ouso Repetir dellez, | os fazem ser inseparaveis domeuCoraçaõ.” Nesse sentido, foi necessário que o conceito de família fosse lido não somente como um grupo ligado ao casamento, à consanguinidade e à coabitação, mas, como sugere Moraes Silva, em seu dicionário de 1789, como núcleo familiar, parentes e aliados, uma vez que, durante o século XVIII, “o sentimento de pertencer a uma família ultrapassava, portanto, os laços consanguíneos e se manifestava entre os parentes rituais e aliados” (VAINFAS, 2000, p. 216). Mais do que família, as relações de Lavradio com os “parentes” tinham ligação com as questões da Casa Nobiliárquica, muito mais pertinentes do que o conceito de família. Os próprios casamentos de suas filhas, comentados em algumas cartas, eram estratégias para se garantir prestígio e riquezas para a Casa Lavradio perante os nobres da Corte. Tornou-se necessária, assim, a elaboração da genealogia dos destinatários do Marquês do Lavradio, para que houvesse uma maior fidedignidade na análise das relações. Remontou-se, então, Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 245 245 11/7/2011 19:21:53 Gragoatá Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier Dr. João Pedreira do Couto Ferraz e Zélia Pedreira de Abreu 5 O patriarca da família Pedreira Ferraz – Magalhães é o informante do gênero masculino, João Pedreira do Couto Ferraz, nascido no Rio de Janeiro, a 10 de agosto de 1826. Filho do casal Guilhermina Amália Correia de Lima Pedreira e Luís Pedreira do Couto Ferraz que, servindo como Desembargador Afranista da Relação, residiu na Corte, onde constituiu família composta por sete filhos. Um dos seus filhos é o missivista João Pedreira do Couto Ferraz que iniciou a sua carreira política a partir da advocacia, bacharelando-se, em 1848, na Academia de Olinda. Foi nomeado, ainda jovem, pelo Imperador Dom Pedro II, Moço da Câmara, promovido Veador da Casa Imperial e, por mais de 50 anos, exerceu a função de Secretário do Supremo Tribunal Federal. Difundiram-se, em família, formas específicas de tratamento do Conselheiro Dr. João Pedreira do Couto Ferraz como Conselheiro Pedreira, Dr. Pedreira ou Pai Pedreira. 4 246 Rev Gragoata n 29.indb 246 a sua estrutura social familiar, de modo a estabelecer o condicionamento das formas linguísticas a partir dos diferentes graus de parentesco. Assim sendo, considerou-se como pertencente à esfera privada somente aqueles que tivessem alguma ligação familiar com o Marquês do Lavradio, direta ou indiretamente, sendo a relação formada por laços consanguíneos ou por laços afetivos. A questão da identificação de categorias sociais, como a idade, o gênero, o grau de parentesco, o nível cultural e o tipo de relação estabelecida entre os informantes, também é uma preocupação de Rumeu (2008) que fornece, entre outros aspectos, passos metodológicos para a identificação dos perfis socioculturais dos redatores brasileiros das epístolas familiares trocadas entre os entes da família Pedreira Ferraz-Magalhães na realidade sócio-histórica de fins do Oitocentos e na 1ª metade do Novecentos. Idas constantes ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro propiciaram-lhe o contato com um conjunto de cartas familiares produzidas por integrantes das ilustres famílias Pedreira Ferraz-Magalhães. A relevância desse material reside na real possibilidade de reconhecimento da história da vida privada de uma família brasileira nascida no Rio de Janeiro que circulou da capital carioca para outros espaços sociogeográficos dentro e fora do Brasil. Uma família religiosa que, apesar dos deslocamentos advindos da pressão social da vida adulta, se manteve unida pelas cartas ativas e passivas trocadas entre seus membros ao longo das suas vidas. Em termos metodológicos, foi possível o meticuloso resgate das categorias sociais de cada um dos autores dos documentos, bem como o dos destinatários das cartas, tendo em vista a idade, o gênero, o grau de parentesco, o nível cultural e o tipo de relação familiar estabelecida entre os “informantes”, detectando, pois, as redes sociais engendradas nesse jogo discursivo de intimidade familiar. A reconstrução da história privada da família Pedreira Ferraz – Magalhães se deu basicamente a partir da consulta a dois livros escritos por um dos filhos do casal progenitor da família Pedreira Ferraz – Magalhães (PEDREIRA DE CASTRO, 1943; PEDREIRA DE CASTRO, 1960) e aos registros escritos nos quais havia referências às datas de nascimento e falecimento dos membros da família em análise, mais especificamente dos filhos do casal4. Ainda em relação às fontes secundárias, mostrou-se muito útil a consulta ao Dicionário das Famílias Brasileiras (BUENO & BARATA, 2001) para checar as informações sobre as datas de nascimento e falecimento do progenitor da família (o Dr. João Pedreira do Couto Ferraz5), assim como para averiguar informações sobre a história de vida deste informante (BLAKE, 1902): grau de escolarização e atividades profissionais por ele exercidas no Brasil Império. Esse grau de refinamento de amostras de textos produzidos por informantes seguramente identificados em relação à sua origem brasileira e ao seu nível de escolaridade (culto) permitiu a confecção Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:54 Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos de um estudo de painel (LABOV, 1994) para sincronias passadas em que foi possível resgatar a progressão da mudança linguística (a implementação de Você no sistema pronominal do Português Brasil) em função da análise do comportamento linguístico do indivíduo, através da sua produção escrita, em distintas faixas etárias da sua vida (juventude, adultez e velhice). A opção pela análise de cartas familiares é justificada por se tratar de um gênero textual cujo grau de formalismo é menor, visando à estruturação de uma investigação com uma maior probabilidade de expressão dos contextos linguísticos favoráveis ao aparecimento de formas nominais e pronominais de tratamento no Português Brasileiro. Rumeu (2008) confeccionou um estudo de painel, nos moldes Labovianos (1994), em virtude do conjunto de textos que tinha em mãos: cartas familiares produzidas por brasileiros cultos de uma mesma família no decorrer de suas vidas cujos perfis socioculturais foram identificados. Foram as amostras de cartas que apontaram para o tipo de estudo sociolinguístico mais produtivo: estudo de painel voltado para a diacronia. Ficou-se à mercê do que resistiu à ação do tempo no interior dos arquivos públicos, confirmando a argumentação de Labov (1994) em relação a esse ser um dos percalços na vida do linguista-pesquisador que se volta para estudos sociolinguísticos diacrônicos. A construção de uma sociolinguística histórica do Português Brasil, nos moldes de Lobo (2001), com base na reconstituição da história de vida dos informantes (missivistas), corrobora o controle das díades que sustentam a dinâmica das cartas pessoais trocadas no seio da família Pedreira Ferraz – Magalhães. As díades controladas evidenciam as relações familiares travadas entre pais e filhos, entre avô e netos, entre irmãos, entre tia e sobrinhos e entre amigos como remetentes e destinatários das missivas da família Pedreira Ferraz – Magalhães. Ainda em relação aos procedimentos metodológicos adotados para o trabalho com textos de sincronias passadas, algumas questões suscitadas pela análise dessas cartas se mostraram relevantes: O que é ser um informante culto, em fins do séc. XIX e na 1ª metade do séc. XX? O que é ser um padre ou uma freira nesse contexto sócio-histórico do Brasil? Quais são os seus papéis sociais vinculados a ordens religiosas engajadas em trabalhos voltados para a educação no Brasil e no exterior? Qual é a função social da mulher (mãe e esposa) e também da mulher religiosa, na sociedade brasileira oitocentista e novecentista? No que se refere à íntima relação entre as categorias gênero e faixa etária dos informantes conjecturadas por Labov (1994, 1972 [2008]), o foco metodológico do estudo de painel voltou-se para as seguintes questões: a variável gênero poderia representar um fator de progressão (avanço) ou de regressão (retrocesso) na direção da implementação de uma nova variante (Você) no sistema linguístico? A opção por Tu ou por Você na trajetória linguística da vida Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 247 247 11/7/2011 19:21:54 Gragoatá Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier dos informantes estaria correlacionada ao papel social assumido por homens e mulheres na realidade sócio-histórica e linguística do Português Brasileiro oitocentista e novecentista? A discussão dessas questões sociais guiou a interpretação dos resultados quantitativos da análise de painel para sincronias passadas do PB. Nesse sentido, Rumeu (2008) pensa ter esclarecido, com base em Lavov (1972 [2008, p. 326]), o seguinte: (“(...) uma compreensão plena da mudança linguística exigirá várias investigações que não estão intimamente ligadas ao quadro social, assim como outros estudos que mergulhem na rede dos fatos sociais. (...)”). Esse mergulho na rede de fatos sociais a que Labov se refere é justamente a análise linguística com base na confecção de uma metodologia de pesquisa que conduza à depreensão do perfil sociocultural dos informantes. Notícias de metodologias utilizadas para a identificação de perfis socioculturais de redatores de textos impressos Os textos impressos vinculados aos periódicos também impõem desafios para a construção de corpora, não apenas pelas condições de transcrição, mas, sobretudo, na identificação dos perfis dos informantes. A complexidade da estrutura está intimamente associada à complexidade da sociedade. Se grupos sociais, por meio de categorias sociais, instituem uma língua, poderíamos identificar estruturas linguísticas ou epilinguísticas que revelam esses perfis. Com o testemunho que nos restou, o registro escrito, surgem algumas questões que norteiam os trabalhos com corpora diacrônicos: Quais são as pertinentes categorias sociais presentes em outras sincronias? Qual a forma que tomam na língua? O que revelam sobre o falante? Justifica-se o trabalho histórico com impressos ao lado dos manuscritos pelo fato de terem servido de modelo de erudição para o século XIX. Como Lima (2010) procurou ratificar, os impressos em periódicos faziam parte do cotidiano do carioca. Jornais, como a Gazeta de Noticias, publicavam cerca de 17 mil cópias e ainda circulavam em saraus da sociedade do Rio de Janeiro. As diversas seções nos jornais (Folhetins, Avisos, Publicações a Pedido etc.) entretinham, informavam e formavam os redatores/leitores da época. Um esforço diferenciado é necessário, a começar pela tarefa de localização dos periódicos. Não são muitos acervos que guardam periódicos antigos e, às vezes, por condições naturais, o material encontra-se deteriorado. No Rio de Janeiro, contamos com o acervo da Biblioteca Nacional que reúne periódicos antigos de todo Brasil. Localizado o material, os principais desafios para a caracterização dos perfis dos informantes são a identificação da autoria, da escolaridade e da origem do redator, a ausência de original preservado e de 248 Rev Gragoata n 29.indb 248 Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:54 Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos informações sobre o alcance dos textos, condições essenciais para realizar qualquer afirmação sobre a norma pertencente àquele grupo. Na etapa de levantamento de textos para a formação dos corpora, longas listas de material se formam devido à quantidade de periódicos que surgiram a partir das primeiras décadas do século XIX. Os periódicos surgiam rapidamente, como também desapareciam, acompanhando as ideologias em um momento de extrema instabilidade política. Jornais diários, de tema geral, com ampla circulação, são sempre candidatos ideais para compor os corpora. Contudo, além do veículo, deve-se optar por um gênero vinculado ao periódico. Lima (2010) optou pelas crônicas folhetinescas de França Junior. Tais crônicas são um importante testemunho da vida da nascente burguesia carioca dos oitocentos. Descrevem e ditam costumes, como também servem de modelo para outros redatores/leitores que faziam parte das redes de leitura e escrita daquele período. A localização desse informante é o resultado de um longo exercício filológico, em que foram necessárias visitas a diversos acervos, levantamento no acervo geral e busca na seção de periódicos da Biblioteca Nacional. Desse expediente, localizou-se o livro Folhetins (1878) de França Junior, coletânea de folhetins (crônicas) publicados na Gazeta de Noticias. Até chegar a esse informante e a esse jornal, tateou-se em cada periódico, identificando folhetins e, o mais difícil, identificando os autores desses textos. No século XIX, era comum os autores não se identificarem nos seus trabalhos, ou lançarem mão de codinome ou pseudônimo. No periódico Gazeta de Noticias (1877), além de França Junior, havia outros colaboradores da seção Folhetim. Quase todos usavam codinome, como, Tralgadabas, Nemo, Prouhdome, Varuna; ou abreviavam algum nome importante para a identificação, como, Luiza B., S. Saraiva etc. Alguns ainda usavam pseudônimos, dificultando ainda mais a identificação. O que provavelmente era sabido por todos, como J.X.F.S., ocultou-se com o tempo. A saída para esses casos tem sido observar se há alguma publicação com o mesmo nome, ou se há algum outro testemunho (anúncio de venda de livro, comentário de outro cronista, notícia) no periódico que permita identificar o autor. Quando não encontramos nenhuma outra referência, somos obrigados a descartar os informantes. Embora encontrar outra publicação de um redator não seja condição para identificarmos sua origem, sua escolaridade e outras informações sociais, geralmente, encontram-se dados biográficos de redatores justamente naqueles redatores que foram expoentes em seu tempo e deixaram uma contribuição significativa para a sociedade que faziam parte. É o caso de França Junior. O autor tem uma extensa colaboração nos jornais, exerceu funções públicas, escreveu peças de teatro e conta com várias edições de seus textos folhetinescos ainda em seu tempo, tanto em outros jornais, como também em livro (LIMA, 2010), prova de que seu texto alcançou Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 249 249 11/7/2011 19:21:54 Gragoatá Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier uma considerável repercussão na época. Se o texto fez sucesso, era sinal de que poderia servir de modelo para outros redatores. Contudo, o que se tem hoje é o periódico. Não se têm as provas dos jornais, muito menos os manuscritos. Não se sabe como realmente França Junior escreveu. A ausência do original faz com que se estabeleça a diferença do autor França Junior e do redator França Junior, que podem ser a mesma pessoa, como podem ser entidades diferentes. O autor é o criador da obra manuscrita, enquanto o redator é o responsável pela sua apresentação final vinculada a algum suporte. Assim, o informante em questão é o redator França Junior, pois só se tem o produto final de sua criação, o que também é importante, uma vez que o leitor só tinha acesso a esse produto. A distinção entre autor e redator poderia ser desfeita com a comparação de impressos e manuscritos. No entanto, ainda não foram localizados manuscritos de França Junior. Barbosa (2005) parece ter encontrado uma maneira de aproveitar os testemunhos desses informantes cujos perfis socioculturais desconhecemos. Primeiro é necessário criar corpora com o maior número possível de informantes reconhecidamente eruditos. Depois, identificar um critério objetivo de erudição e conseguir mensurá-lo. A seguir, usar esse material como parâmetro de erudição. Para isso, Barbosa pensou na latinização da grafia, uma vez que havia, no século XIX, uma exacerbação desse modelo de escrita. Quanto mais latinizada a escrita, mais erudito seria o redator. Se também fosse possível, seria pertinente encontrarmos um fenômeno sintático em que pudéssemos contrapor oralidade versus escrituralidade – neste caso, as formas sintética e analítica do gerúndio. Lima (2010) colabora e ratifica a metodologia, quando levanta mais um informante (França Junior) para compor o parâmetro de erudição e testa a metodologia nos folhetins desse autor. Os resultados acenam positivamente para esse recurso que tenta superar a aparente escassez de fontes confiáveis para a reconstrução histórica da norma carioca em sincronias passadas. Considerações finais A discussão sobre a relevância da composição do perfil sociocultural de redatores de sincronias passadas permite tecer duas breves reflexões: 1ª)Tanto nas cartas produzidas pelo marquês do Lavradio, subsidiando a análise do condicionamento das formas nominais de tratamento a partir dos diferentes níveis hierárquicos e dos graus de parentesco dos informantes, quanto nas cartas pessoais da família Pedreira FerrazMagalhães, fundamentando o estudo da variação das formas pronominais Tu e Você, voltou-se o foco para a conexão entre as formas linguísticas e a função social do informante. É claro que esse encaminhamento não 250 Rev Gragoata n 29.indb 250 Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:54 Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos foi ingênuo, uma vez que se queria defender a ideia de que a língua é movida pelo social. Nesse sentido, se faz necessário repensar a validade da aplicação exclusiva das categorias sociais para a depreensão do perfil sociocultural dos redatores em sincronias passadas do português, sem que se leve em conta o cenário sócio-histórico do qual os indivíduos participavam. 2ª)Por outro lado, acredita-se que as marcas linguísticas oferecidas pelo próprio texto, como a latinização da grafia, conforme constatado por Lima (2010) em relação aos folhetins de França Júnior, podem contribuir para a identificação de perfis socioculturais de redatores através da constituição de um parâmetro objetivo para a caracterização da norma culta oitocentista, tomando-se os folhetins cariocas do século XIX como referencial de expressão dos escritores cultos. A proposta de Barbosa (2005) de identificar um critério objetivo de erudição (a latinização da grafia) e mensurá-lo para a análise das fontes documentais se mostrou um excelente caminho de investigação. A partir desse princípio norteador definido por Barbosa (2005), podem-se utilizar, quem sabe em um futuro próximo, outros critérios (talvez não tão objetivos) como é o caso das próprias características linguísticas dos textos. Partindo do que se conhece do português brasileiro hoje, é possível organizar taxinomicamente os documentos em função da presença mais incisiva ou ausência total de traços linguísticos que apareçam como prenúncios ou vestígios do que agora sabemos configurar o português brasileiro ou uma de suas variedades (o uso do futuro perifrástico com ir + infinitivo, a presença de a gente no lugar de nós, pronome reto depois de verbos causativos, pronome tu com verbo na terceira pessoa do singular, entre outros fenômenos). Abstract This article presents a discussion on the methodological procedures in the productive process of reconstruction of socio-cultural profiles of writers from the past synchronicities Portuguese. It is intended to reflect about the implementation of social categories (gender, age, educational level, nationality, place of birth of the author) to writers of handwritten letters and printed texts, pointing out the struggles and methodological approaches implemented in the development of a Portuguese Historical Sociolinguistic. Keywords: sociolinguistic categories; sociolinguistic method in history; historical corpora. Niterói, n. 29, p. 239-253, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 251 251 11/7/2011 19:21:54 Gragoatá Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier Referências: BARBOSA, A. G. “Tratamento dos corpora de sincronias passadas da língua portuguesa no Brasil: recortes grafológicos e lingüísticos”. In.: LOPES, C. R. dos S. A Norma Brasileira em construção: fatos lingüísticos do século 19. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ, FAPERJ. p. 25-43, 2005. BAKHTIN, M. Os gêneros discursivos. 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Sílvia Maria de Sousa Diante da obra de Guimarães Rosa muitos são os estudos quase sempre unânimes em destacar a sua extrema qualidade literária. O uso singular da linguagem, os enredos de contornos fluidos e os enigmas desenvolvidos pelo escritor alimentam os olhos de seus leitores, ao mesmo tempo em que se tornam farta matéria-prima aos exegetas. A arte transborda na escrita de Rosa pelos temas que elege e, sobretudo, pelo modo como trata deles. O livro Semiótica à luz de Guimarães Rosa, de Luiz Tatit – compositor e Professor Titular do Departamento de Linguística da FFLCH da USP – conecta-se a essa rede de diálogos em torno da obra rosiana. Tatit, entretanto, diferencia-se dos críticos e estudiosos do escritor mineiro, pois o elege não para falar sobre sua obra, mas antes sob ela. Nos escritos de Rosa, Luiz Tatit percebe “a existência de uma intenção teórica por trás das soluções literárias” (p.12) e, assim, realiza uma aproximação entre tais “soluções” e as proposições teóricas da semiótica discursiva. A obra de Guimarães Rosa funciona como o filtro através do qual Tatit focaliza os tópicos que a seu ver “não podem mais ser ignorados por uma semiótica que sempre teve como horizonte prioritário a pesquisa de método para a abordagem da construção do sentido” (p. 16). Por meio da análise de seis dos contos presentes no livro Primeiras Estórias, lançado em 1962, Luiz Tatit descortina de maneira bem sucedida o que há de “pura semiótica” e está envolto “sob o véu fino do tratamento literário” tecido pelo romancista (p. 14). A semiótica discursiva retoma a formulação de Hjelmeslev, para o qual a significação se dá na relação entre as formas do plano da expressão e do plano do conteúdo das linguagens. Os estudos semióticos pretendem entender quais são os mecanismos responsáveis pela produção de sentido nos textos. Para isso, foi concebido um aparato metodológico que permite observar a produção da significação como um percurso constituído de etapas que se superpõem, indo de um nível profundo e abstrato até um mais superficial e concreto. A análise semiótica realiza uma espécie de desconstrução do texto que visa a reconstituir e recuperar o modo de produção da significação. A partir do exame das regularidades, o analista observa o processo crescente de complexificação nas diferentes etapas do percurso gerativo. Luiz Tatit parte da formulação de que as propostas desenvolvidas pela semiótica discursiva, tais como as funções sujeito/ objeto, os processos persuasivos e avaliatórios, as ideias de continuidade (conteúdos sensíveis) e descontinuidade (conteúdos inteligíveis), entre várias outras, foram antecipadas por Guimarães Rosa, numa obra que ganha “contornos de um tratado geral sobre as principais categorias empregadas na análise do sentido” (p. 12). Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 257 Niterói, n. 29, p. 257-261, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:54 Gragoatá Sílvia Maria de Sousa Lima Atendo-se principalmente às facetas desenvolvidas pelo escritor brasileiro, no que diz respeito ao desenvolvimento de uma sintaxe de cunho narrativo e tensivo, Tatit desvela, ao longo de seis capítulos, questões ainda não totalmente resolvidas pela semiótica, teoria fundada por Greimas e reconhecida pelo gosto do rigor analítico e por análises que buscam o avanço metodológico da teoria. O primeiro capítulo “O destinador transcendente – ‘Nada e a nossa condição’” discute o estatuto profundo do actante destinador, entendido como aquele que determina toda e qualquer manifestação na narrativa. Tatit considera que a noção de “destinador transcendente” adotada por Greimas e Courtés foi abordada por Guimarães Rosa através da figura do fazendeiro Tio Man’Antônio. O fazendeiro teve uma vida marcada por experiências de perda: a morte da mulher, o casamento das filhas, a emancipação dos próprios empregados, chegando finalmente ao episódio de sua morte. Nesse percurso, o personagem só não perde a função de destinador transcendente, já que é ele quem emancipa os funcionários e planeja detalhadamente a própria morte. No episódio do falecimento da esposa, Man’Antônio não se paralisa no luto e não se rende às forças antagonistas, mas pelo contrário empreende uma grandiosa reforma em sua fazenda. A morte “desperta no destinador o ímpeto da continuidade” (p. 27). A busca pela conservação da continuidade garante o progresso narrativo e, assim, Tatit nos mostra que Guimarães Rosa, através desse fazendeiro com “seus projetos mais sintáxicos que semânticos” (p.26), caracteriza “uma narrativa pura, aquela que representa um fazer, uma transformação ou um processo transitivo, independentemente das razões e dos investimentos discursivos” (p. 29). A análise de Tatit revela um determinado ritmo no conto, responsável pela continuidade do texto “independentemente dos conteúdos investidos” (p.27). Ao observar o ritmo dos textos, os coeficientes tensivos dos protagonistas, como no quinto capítulo “Quando o Ser é Substância – ‘Substância’”, as relações entre continuidades e descontinuidades, entre rotina e acontecimento, Tatit vai dissecando os textos de Rosa, enquanto discute e aprofunda questões semióticas. Não se trata de realizar uma paráfrase da obra, ou de contextualizála social e historicamente, mas a opção do analista é perceber as cifras tensivas que regem os personagens e o estatuto das relações estabelecidas entre sujeitos e entre sujeitos e objetos. Busca-se captar o movimento impresso na escrita rosiana, marcada por aberturas e fechamentos, fraturas e escapatórias. Tais recursos garantem a espetacular progressão das narrativas. “Substância”, por exemplo, conta a história de amor entre o fazendeiro Sionésio e a funcionária Maria Exita, que, depois de abandonada pela família, passa a residir na propriedade do fazendeiro. Tatit mostra que no conto é possível perceber quanto os coeficientes tensivos dos protagonistas são bem delimitados. A personagem Maria Exita, 258 Rev Gragoata n 29.indb 258 Niterói, n. 29, p. 257-261, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:55 TATIT, Luiz. Semiótica à luz de Guimarães Rosa. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010. absorvida pela matéria do polvilho, cuja brancura serve de tom e cenário ao encontro amoroso com Sionésio, é caracterizada por um andamento desacelerado e por uma temporalidade alongada, refletida na sua paciência e em seu estado de espera. Sionésio, pelo contrário, carateriza-se pela alta velocidade, por uma “recusa da duração” (p. 131). Para que a aproximação entre os dois se consolide são, então, necessários diversos ajustes, os quais Tatit denomina de “ajustes musicais” (p. 141). Observar o ritmo que dá conta desse encontro amoroso é um dos objetivos da análise semiótica empreendida por Luiz Tatit, para quem a riqueza da obra de Rosa reside justamente no tratamento dado a esse tipo de questão. A presença de Maria Exita na fazenda, durante muito tempo despercebida, torna-se um acontecimento, quando Sionésio é tomado pela paixão. Entretanto, como isso ocorre de maneira paulatina, Tatit arrisca-se a desenvolver a noção de “acontecimento extenso”, definido como “aquele que só se realiza plenamente ao cabo de numerosas ocorrências do mesmo gesto ou do mesmo fenômeno” (p.117). Esse mesmo “acontecimento extenso” está presente no famoso conto “A terceira margem do rio”, analisado por Tatit no quarto capítulo “Práticas impregnantes – ‘A Terceira Margem do Rio’”, no qual “as aparições longíquas do homem na canoa representam etapas do mesmo fenômeno que vão impregnando a mente do filho” (p. 117). Ao comparar os dois contos, do ponto de vista tensivo, Tatit percebe ainda que em ambos a “espera paciente” de Maria Exita e do personagem “nosso pai” resulta em respostas imediatas. A resposta de Maria Exita “só se for já...” e a pronta saudação do “nosso pai” que rema em direção à margem “surpreende as previsões dos proponentes” (p. 145). Vale ressaltar que as relações entre rotina e acontecimento, surpresa e espera são questões postas em pauta pela teoria semiótica. O tratamento minucioso dado a elas por Tatit se revela como grande contribuição aos estudos semióticos. Os capítulos dois e três “A verdade extraordinária – ‘As Margens da Alegria’” e “O Encontro do Ritmo – ‘Os Cimos’” tratam respectivamente do primeiro e do último conto do volume Primeiras Estórias. O conto que fecha o livro é composto por Guimarães Rosa como uma continuação das mesmas reflexões, personagens e cenários do conto de abertura. Ambos retratam a viagem de um menino com seus tios, a fim de conhecer o local onde será construída uma grande cidade. No primeiro, “tudo parece significar ruptura do cotidiano e encantamento com a nova experiência” (p.47), por ser uma viagem – nas palavras de Rosa – “inventada no feliz”. Já no segundo, a grave enfermidade da mãe do menino é o motivo da viagem, que se torna sombria e triste para ele. O exame desses dois contos leva Luiz Tatit a recuperar a noção de estética, introduzida por Greimas no livro Da Imperfeição (2002). Segundo essa teoria “o irrompimento de um acontecimento extraordinário tem o poder de retirar o sujeito do seu cotidiano e de deixá-lo Niterói, n. 29, p. 257-261, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 259 259 11/7/2011 19:21:55 Gragoatá Sílvia Maria de Sousa Lima exposto e vulnerável aos encantos do objeto” (p.45). No caso de “As margens da alegria”, apesar de toda a novidade apresentada ao menino com a construção da nova cidade, sua vivência epifânica se dá num encontro com um peru no quintal da casa. Em “Os cimos” há o surgimento de um tucano, que exerce sobre o menino um fascínio próximo ao da primeira ave. A partir desses encontros (in)esperados e dos valores postos nesses objetos, Tatit analisa a instauração de relações entre continuidades e intervalos. No primeiro conto, percebe-se “essas experiências excepcionais eufóricas como pequenos segmentos englobados por demarcações ao mesmo tempo recentes e iminentes: nem bem começam já estão prestes a terminar” (p. 69). Do último conto, Tatit depreende uma “teoria sobre os acontecimentos”, através de cinco razões de natureza tensiva, que são trabalhadas por Rosa com o intuito de explicar os motivos pelos quais “não chegamos a apreciar plenamente os bons acontecimentos” (p.81). Isso se dá pelo fato de os acontecimentos ocorrerem depressa e inesperadamente demais, ou, ao contrário, por serem exaustivamente esperados e acabarem diluindo “o traço impactante próprio de todo acontecimento” (p. 82). À teoria desenvolvida por Guimarães Rosa, Luiz Tatit acrescenta as reflexões de Zilberberg (2006) e de Valéry (1973). Ainda no capítulo “O Encontro dos Ritmos – Os Cimos”, Luiz Tatit apresenta a belíssima “teoria do faz de conta”, também presente na análise do conto “Nada e a nossa condição”. Em “Os Cimos”, o menino não tem o poder de restabelecer a saúde da mãe, nem de voltar ao tempo em que podia conviver com ela ainda saudável. Contudo, ele “faz de conta” que sua mãe está presente e, então, “constrói uma narrativa de mão dupla” (p. 92). Segundo Tatit: ‘fazer de conta’ reflete a epistemologia rosiana que concebe as essências da vida como resultados de pequenas narrativas, em geral intermitentes, destinadas a manter o ser humano em atividade mesmo que o Sentido da vida lhe seja sempre nebuloso. (p.93) No último capítulo do livro, “A Extinção Que Não se Acaba – ‘Nenhum, Nenhuma’”, Luiz Tatit analisa as relações entre proximidade e distanciamento, que retratam, através de categorias espaciais, as uniões e separações do plano afetivo. O enunciador do conto tenta rememorar fatos marcantes de sua infância, entretanto “as lembranças se confundem com as distâncias, de maneira que não há certeza nem do tempo, nem do espaço em que se deram os episódios” (p. 153). Para Tatit, Guimarães Rosa trabalha com o valor da imutabilidade que é o ponto em comum das noções denominadas o “nunca mais” e o “para sempre”. Tatit, ao analisar a distribuição aspectual dos personagens, reunidos sem uma justa razão numa mansão rural não localizada, nota que o “Menino” está no início da vida, a “Moça” e o “Moço”, no 260 Rev Gragoata n 29.indb 260 Niterói, n. 29, p. 257-261, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:55 TATIT, Luiz. Semiótica à luz de Guimarães Rosa. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010. meio da vida, o “Homem velho” é um doente em estado terminal e “Nenha” está num “além da vida”, já que há muito ultrapassou os limites da vida humana. Com isso, o espaço tensivo criado por Rosa vai de uma “demarcação incoativa” do menino até uma “extensão incoativa-durativa” da personagem Nenha (p.161). Luiz Tatit demonstra também que o “percurso antagonista” possui uma força muito grande nesse conto, pois “lança alguns de seus atores num campo de desconhecimento, apaga importantes traços de memória que poderiam esclarecer seus episódios” (p. 175). É esse percurso, entretanto, que possibilita “o trabalho do enunciador de combate ao esquecimento e de recuperação de um saber relevante cujo registro ficará para sempre nas linhas desse conto” (p. 185). Com esse laborioso trabalho, Tatit brinda a todos os semioticistas, pois apresenta uma reflexão apurada sobre temas importantes e que careciam de um melhor tratamento teórico. Por outro lado, convida os leitores de Guimarães Rosa, sejam eles semioticistas ou não, a se deleitarem com a perspicácia das análises escritas num estilo cativante, já conhecido pelos leitores de outras obras de Luiz Tatit. O livro Semiótica à luz de Guimarães Rosa endereça-se também a todos os interessados pelas questões da linguagem e da produção do sentido e, ao mesmo tempo, torna-se leitura fundamental para os que pretendem realizar um encontro ou um reencontro com a obra de Guimarães Rosa, agora iluminada por outros e inesperados sentidos. Niterói, n. 29, p. 257-261, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 261 261 11/7/2011 19:21:55 Rev Gragoata n 29.indb 262 11/7/2011 19:21:55 OSTERMANN, Ana Cristina & FONTANA, Beatriz (org.). Linguagem. gênero. sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. Alexandre José Cadilhe “Os estudos sobre linguagem e gênero, na realidade, demandam uma comunidade de prática acadêmica interdisciplinar. Indivíduos isolados que tentam abarcar os dois podem com frequência propiciar intervenções interessantes, mas um real avanço depende da reunião de pessoas de áreas variadas em torno de uma empreitada colaborativa para a construção de compreensões que tenham ampla base comum.” Eckert & McConnel-Ginet ([1992]2010) Como sujeitos que se constroem como mulheres e homens interagem em situações específicas? Que significados e efeitos de sentido essas interações podem ter nas práticas sociais contemporâneas? Como as relações de gênero e poder, em uma perspectiva não-essencialista, podem ser construídas quando há um encontro social entre participantes de diferentes sexos? Possibilidades de respostas a essas e outras questões são propostas pela coletânea de artigos produzidos por clássicos pesquisadores anglo-americanos, organizados pelas linguistas Ana Cristina Ostermann e Beatriz Fontana, e traduzidos por uma equipe de pesquisadoras e pesquisadores, incluindo as organizadoras, com tradicional inserção no campo de estudos de linguagem e gênero. A obra retrata, em perspectiva macro e microssocial, as relações que são estabelecidas e construídas por sujeitos de diferentes gêneros em contextos de interação social – temática que tem se apresentado recorrente nas produções acadêmicas em estudos da linguagem no Brasil, principalmente a partir dos anos 90. Nestes últimos anos, algumas das produções foram apresentadas ao público através de coletâneas de artigos de pesquisadores brasileiros, com base em dados gerados em diversos contextos, incluindo a educação, a saúde e a justiça. Contudo, parte significativa do referencial utilizado em estudos nesta linha foi constituída por produções de origem anglo-americana. Uma das contribuições desta obra está em justamente trazer à leitora e ao leitor sete artigos que deram início e ainda influenciam a produção de analistas do discurso que se engajam nas investigações sobre gênero e identidade social. O artigo introdutório da obra, produzido pelas organizadoras Ostermann e Fontana, busca situar a leitora e o leitor no contexto dos estudos sobre interação, sexualidade e gênero. As autoras apontam a possibilidade de três perspectivas teóricas sobre o tema: déficit, dominância e diferença. Na primeira, propõe-se que o estilo cunhado nas falas de mulheres seria inferior ao estilo dos homens. No segundo, e talvez em decorrência do primeiro, Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 263 Niterói, n. 29, p. 263-267, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:55 Gragoatá Alexandre José Cadilhe impera a ideia de que tal diferença viria, antes, do suposto status inferior da mulher em relação ao homem. Por fim, a perspectiva da diferença advém da ideia de que a diferença entre gêneros é uma questão de diferença cultural, devido a diferentes formas de socialização a qual homens e mulheres estão dispostos durante a infância. Esta última, ainda, pode correr o risco de mascarar as relações de poder que aí estão também presentes. As três perspectivas teóricas descritas pelas autoras são ilustradas pelos primeiros quatro artigos traduzidos na obra. Contemporaneamente, outra perspectiva vem sendo cunhada pelas pesquisadoras e pesquisadores em linguagem e gênero: a da diversidade. Analisar a interação e o discurso, focando a construção social de gênero, significaria compreender a fala como uma prática situada em comunidades que podem ser diversas, o que ocasiona diferentes possibilidades de performances na construção das identidades sociais de gênero. Esta perspectiva é também ilustrada pelos últimos quatro artigos traduzidos na coletânea. Os artigos que seguem compõem as traduções, e foram organizados cronologicamente, sendo o primeiro de 1975, e o último, de 1998. Tal organização não é aleatória: às leitoras e aos leitores que buscam uma introdução ao tema, a leitura cronológica pode ser indicada, dado que alguns artigos fazem referencia entre si, e nem sempre em concordância, dadas as perspectivas teóricas descritas no penúltimo parágrafo. O primeiro artigo traduzido, “Linguagem e lugar da mulher”, de Robin Lakoff (1975), é apontado como o estudo que inaugura a pesquisa sobre linguagem e gênero. A linguista americana, a partir de uma compreensão da relação entre gêneros feminino e masculino como uma relação de déficit, constrói dados a partir da sua própria fala, da de conhecidos e de dados da mídia. Em sua análise, busca compreender como se constrói a linguagem das mulheres, ainda que de modo generalizado – ou, em outros termos, o “falar como uma dama” – analisando itens lexicais, construções sintáticas e entoação presente nas falas de mulheres e homens. Lakoff conclui haver uma discrepância na fala entre homens e mulheres que se relacionariam também a diferenças nas posições sociais em que ambos se encontram. A autora ainda indica que “mudanças sociais geram mudanças linguísticas, e não o contrário” (p.29), e que tal diferenciação nos estilos das falas de homens e mulheres não pode ser negligenciada em contextos de ensino e aprendizagem de língua, pois tal discrepância leva a diferentes níveis de fluência. O artigo seguinte, “O trabalho que as mulheres realizam nas interações”, de Pamela Fishman (1978), discute a relação hierárquica entre homens e mulheres, examinando a conversa diária de três casais heterossexuais, através de gravadores alocados em suas respectivas residências. Fishman, compreendendo poder 264 Rev Gragoata n 29.indb 264 Niterói, n. 29, p. 263-267, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:55 OSTERMANN, Ana Cristina & FONTANA, Beatriz (org.). Linguagem. gênero. sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. como “uma realização humana, situado na interação diária”, faz uso de categorias da análise da conversa, como proposto por Sacks, Schegloff e Jefferson (1974), para compreender as diferentes estratégias lançadas nas interações de modos diferentes entre homens e mulheres. Os modos de fazer perguntas, abrir uma conversa, responder e fazer afirmações constituem diferentes mecanismos que, com a análise dos dados, permitiram com que a linguista concluísse que as mulheres fazem uso de diferentes estratégias para executar a interação. Entre elas, fazem perguntas, abrem conversas (fazendo uso de expressões como “você sabia?”), respondem para “dar apoio”; contudo, são os homens que “controlam o que será produzido como realidade na interação” (p.47). Seguindo a mesma perspectiva teórico-analítica – a Análise da Conversa – o terceiro artigo “Pequenos insultos: estudo sobre interrupções em conversas entre pessoas desconhecidas e de diferentes sexos” (1987), de Candace West e Don H. Zimmerman, focaliza como a relação de poder é construída em contextos de fala através do mecanismo de “interrupção”. Os autores comparam dados de um estudo anterior, em contexto naturalístico, com os de um contexto não naturalístico, através da conversa entre pessoas que não se conheciam, de diferentes sexos, em um laboratório de linguagem, onde as conversas foram gravadas. Os resultados, em ambos os contextos, apontam a prática de os homens interromperem as mulheres em suas falas, em uma frequência muito maior do que o oposto – o que vai de encontro a uma pressuposição estereotipada que as mulheres “não deixam os homens falar”. Concluem as autoras que tal prática constitui um modo de “fazer” poder nas interações face a face, num reflexo da relação assimétrica entre homens e mulheres, em diferentes contextos interacionais, conforme os tipos de dados analisados. Em uma mesma linha teórica de análise, mas com diferente interpretação, Deborah Tannen, no quarto artigo– “Quem está interrompendo? Questões de dominação e controle” (1990) – propõe uma releitura sobre a interrupção na fala em interação entre sujeitos de diferentes gêneros. A autora analisa diferentes eventos de fala, como um encontro de crianças ou um jantar de dois homens e uma mulher (a própria linguista), e propõe uma leitura de que, na interação, diferentes estilos podem ser utilizados. Como exemplos, Tannen apresenta dois: estilo de alta consideração – marcado, por exemplo, pelas poucas intromissões do interlocutor, de modo a preservar a participação do outro – e estilo de alto envolvimento, marcado pela participação incisiva, de modo a indicar um grau de interesse na conversa. Tais estilos podem compreender diferentes estratégias, como a sobreposição de vozes. Contudo, o efeito desta a partir das relações entre os partipantes é que incidirá diferentes estilos. Tannen conclui, então, diferentemente de West e Zimmerman, que são os estilos que definem as interrupções, e não as sobreposições de fala, pois Niterói, n. 29, p. 263-267, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 265 265 11/7/2011 19:21:55 Gragoatá Alexandre José Cadilhe estas podem ter diferentes efeitos, dependendo da relação e do encontro entre os participantes. Em suma, seria uma diferença cultural – ainda que a autora não problematize tal diferença. O quinto artigo, “Comunidades de Práticas: lugar onde cohabitam linguagem, gênero e poder” (1992), de Penelope Eckert e Sally McConnel-Ginet, apresenta uma reflexão de cunho teórico sobre o tipo de pesquisa produzida sobre gêneros. As autoras criticam as excessivas abstrações que alguns estudos fazem a respeito de gêneros, desconsiderando outras identidades sociais. Uma possibilidade de não cair neste risco seria justamente pensar “praticamente” e observar “localmente”: em outros termos, ao estudar as relações de gêneros, deveria se levar em consideração a “comunidade de prática” em que tais relações são construídas. Comunidade de prática, conceito cunhado por Lave e Wenger (1991), refere-se a “um conjunto de pessoas agregadas em razão do engajamento mútuo em um empreendimento em comum” (p.102). Partindo do pressuposto de que as comunidades de práticas são múltiplas, tornam-se múltiplos também os modos de construção das relações de gênero. E finalizam as autoras apontando a necessidade da constituição de uma comunidade de prática acadêmica interdisciplinar que se engaje, em conjunto, ainda que com posicionamentos diversos, sobre os diferentes modos de se construir ou pesquisar linguagem e gênero. O penúltimo artigo, “‘É uma menina’: a volta da performatividade à linguística!” (1997), de Ana Livia e Kira Hall, também de cunho teórico, discute perspectivas linguísticas, com foco na contribuição de Searle, e a Teoria Queer, a partir de Butler, para a construção da perspectiva de “performatividade de gênero”, “afastando-nos da construção social da sexualidade para nos direcionarmos à construção discursiva de gênero” (p.121). Livia e Hall salientam a função e a força que os atos de falas tem ao serem enunciados, e que a performatividade constituiria um elemento fundamental para compreensão da construção do gênero, ainda por levar em consideração o contexto de convenções culturais em que é enunciado para que seja ratificado pelos participantes, constituindo um “performativo feliz”, para usar um termo de Searle (1969). Por fim, Deborah Cameron, com o artigo “Desempenhando identidade de gênero: conversa entre rapazes e construção da masculinidade heterossexual” (1998), fecha o ciclo de traduções, apontando uma perspectiva que se alinha a estudos contemporâneos sobre linguagem e gênero. A linguista parte, assim como Livia e Hall, do conceito de performatividade de gênero, compreendendo que “‘feminino’ e ‘masculino’ não são características que nós possuímos, mas efeitos que produzimos por meio de coisas específicas que fazemos” (p.131, grifos da autora). Assim, a construção da identidade de gênero passa a ser uma prática que precisa ser constantemente reafirmada e publicamente exibida, através 266 Rev Gragoata n 29.indb 266 Niterói, n. 29, p. 263-267, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:55 OSTERMANN, Ana Cristina & FONTANA, Beatriz (org.). Linguagem. gênero. sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. de ações específicas em grupos culturais situados. As estratégias e mecanismos para isso, por sua vez, podem variar em relação ao grupo e aos objetivos. A autora exemplifica com a análise da fala-em-interação de um grupo de rapazes universitários, que se constroem como heterossexuais, e fazem isso através da fala cooperativa por meio da “fofoca”, estilo atribuído de forma estereotipada a mulheres. Contudo, isso ocorreu em um evento específico – um encontro informal na residência dos participantes, enquanto assistiam a um jogo de basquete na televisão. A autora aponta que, provavelmente, os participantes fariam uso de outras estratégias que não a fofoca para reforçar sua heterossexualidade, quando num encontro público e com suas namoradas. Contudo, essa análise indica, de antemão, que seria inútil considerar determinados modos de falar como naturalmente masculinos e femininos, pois se trata de diferentes performances que podem corresponder – e também subverter – a padrões culturais específicos. A coletânea de artigos, portanto, é bastante diversificada: as autoras e os autores apresentam diferentes perspectivas de compreensão de gêneros e lançam diferentes estratégias para defenderem seus posicionamentos. A obra também é de interesse a estudiosas e estudiosos da linguagem em geral, ainda que não contemplem, em seus objetos, questões de gênero. Os artigos que analisam dados ilustram diferentes categorias dos estudos da fala-em-interação, a partir de metodologias etnográficas ou experimentais; os de cunho teórico, por sua vez, desenvolvem conceitos também de grande valia aos que analisam o discurso de modo situado, como o de “comunidade de práticas”, “atos de fala”, “performativos.” Além disso, sua significativa contribuição está também em alinhar diferentes produções em uma coletânea bem traduzida e acessível à leitora e ao leitor, de diferentes níveis e especialidades. Tal passo constitui-se fundamental para a construção de uma comunidade de prática acadêmica efetiva, como proposto por Eckert e McConnel-Ginet em seu artigo. O acesso desta obra a diferentes pesquisadoras e pesquisadores de diferentes áreas poderá proporcionar a estudiosas e estudiosos sobre linguagem, gênero e sexualidade no Brasil uma maior possibilidade de diálogo a partir de fundamentos em comum; ou, ainda que sejam diferentes em suas escolhas conceituais e metodológicas, que o diálogo seja construído com um reconhecimento da tradição e legitimidade dos estudos de seus parceiros. Às organizadoras e às tradutoras e tradutores, fica a expectativa do público leitor de uma continuidade com a tradução de outros artigos contemporâneos, bem como a produção de pesquisas que possibilitem vislumbrar a construção de uma comunidade de prática acadêmica de forma interdisciplinar. Niterói, n. 29, p. 263-267, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 267 267 11/7/2011 19:21:55 Rev Gragoata n 29.indb 268 11/7/2011 19:21:55 Colaboradores deste número ALEXANDRE JOSÉ CADILHE Doutorando em Estudos da Linguagem pela UFF e mestre em Linguística Aplicada pela UFRJ. É docente da FES0 – Fundação Educacional Serra dos Órgãos, em Teresópolis, Rio de Janeiro, em cursos de graduação da área de Ciências Humanas, da Saúde e Tecnológicas. Suas pesquisas voltam-se para a interação, o discurso e identidade social em práticas profissionais, através da Microetnografia como metodologia e da Sociolinguística Interacional como fundamento para análise do discurso. ALEXANDRE XAVIER LIMA Doutorando em Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professor de Língua Portuguesa do Município do Rio de Janeiro. Em 2010, defendeu Dissertação de Mestrado intitulada Crítica Textual e Corpora para a Linguística Histórica: Padrões Ortográficos Oitocentistas em Folhetins (crônicas) e França Junior. Em 2006, publicou, pela editora da UERJ, o texto A edição de folhetins oitocentistas cariocas: o caso França Junior e, em 2005, publicou, em coautoria com Rosane Manhães da Rocha, o artigo Diferentes usos para o rótulo folhetim e a construção do público leitor no século XIX, também pela editora da UERJ. ARNALDO CORTINA Livre-docente pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP – Campus Araraquara e bolsista do CNPq. É docente da UNESP – Campus Araraquara desde 1997. Realizou, de 2000 a 2001, pós-doutorado na Université de Limoges, em Limoges, na França. Sua principal área de atuação é a dos estudos discursivos, com ênfase para a Semiótica, ao mesmo tempo que dialoga com a Análise do Discurso francesa e com os estudos sobre Bakhtin. É coordenador do GELE – Grupo de Estudos sobre Leitura – e vice-coordenador dos CASA – Cadernos de Semiótica Aplicada –, ambos grupos de pesquisa cadastrados no CNPq. Tem diversos trabalhos divulgados em livros e periódicos e, atualmente, tem desenvolvido pesquisa sobre o perfil do leitor brasileiro contemporâneo. CÁSSIO FLORÊNCIO RUBIO Mestre e Doutorando em Linguística (Área de Concentração: Sociolinguística) pela UNESP/S.J.Rio Preto. Tem artigos publicados em vários periódicos de circulação nacional, como Estudos Linguísticos, Revista de Letras e Delta, além de capítulo de livro. É membro do Projeto PHPP/PHPB. CÉLIA REGINA DOS SANTOS LOPES Professora associada de língua portuguesa na UFRJ e bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa em gramaticalização, sistema pronominal do português na sincronia e diacronia. Em 2010, publicou “A persistência e a decategorização nos processos de gramaticalização”(in: Vitral, Lorenzo e COELHO, Sueli (orgs), Estudos de processos de gramaticalização em português: metodologias e aplicações). Em 2009, organizou com Uli Reich (FU Berlin) uma edição especial para a revista Neue Romania sobre Processos Urbanos I: Variação Linguística em Megalópoles Latino-Americanas. Niterói, n. 29, p. 269-274, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 269 269 11/7/2011 19:21:55 DAVI ANDRADE PIMENTEL Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Literatura Comparada) na Universidade Federal Fluminense (UFF). É Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (Mestrado em Letras) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem experiência na área de Literatura, com ênfase em Literatura Brasileira Contemporânea e Literaturas Estrangeiras Modernas, Literatura Francesa. É bolsista da CAPES. Desenvolve no Doutorado a análise das narrativas ficcionais do escritor francês Maurice Blanchot na perspectiva teórico-crítica do próprio escritor, com o objetivo de investigar se há ou não uma convergência entre a concepção de espaço literário proposta por Blanchot em sua obra teórica e o espaço literário de seus romances. DÉCIO ROCHA Professor adjunto do Instituto de Letras e do Instituto de Aplicação da UERJ, onde ministra as disciplinas Linguística e Língua Francesa, respectivamente. Membro do GT Linguagem, Enunciação e Trabalho (ANPOLL) e também dos grupos de pesquisa Atelier e PraLinS (CNPq), atua como docente da área de Linguística do Mestrado em Letras da UERJ. Doutor em Linguística Aplicada pela PUC-SP, é pesquisador nas áreas de linguagem/trabalho e discursos midiáticos. É bolsista do CNPq e da FAPERJ. EDSON DOMINGOS FAGUNDES Possui graduação em Letras (Português-Alemão) pela Universidade Federal do Paraná (1989), mestrado em Letras pela UFPR (1997) e doutorado em Letras/Estudos Linguísticos pela UFPR (2007). É professor de Língua Alemã e da disciplina de Sociolinguística do Curso de Letras da Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR. Integra a equipe de pesquisadores do Projeto VARSUL. ISABEL CRISTINA RODRIGUES Professora assistente de Língua Portuguesa do Instituto de Aplicação da UERJ, mestre em Linguística pela UERJ e doutoranda em Estudos de Linguagem pela UFF. Organizou, com Del Carmen Daher e Maria Cristina Giorgi, o livro Trajetórias em enunciação e discurso: práticas de formação docente (Claraluz, 2009). Publicou, entre outros, o artigo “Discurso jurídico, argumentação e construção de um direito” (Cadernos do CNLF, 2008). É membro do grupo de pesquisa PraLinS (CNPq). LEONARDO DAVINO DE OLIVEIRA Doutorando em Estudos Literários na Universidade Federal Fluminense. Publicou dois capítulos no livro Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (2010) e um capítulo no livro Caetano e a filosofia (2009), além de resenhas, artigos e ensaios publicados em revistas acadêmicas. Mantém uma coluna quinzenal no Caderno de Cultura do Jornal A União, da Paraíba, e desenvolve o projeto 365 canções, disponível no blog: http://www.365cancoes.blogspot.com Rev Gragoata n 29.indb 270 11/7/2011 19:21:55 LEONARDO LENNERTZ MARCOTULIO Doutorando em Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desenvolve trabalhos na área de Línguística Histórica e Crítica Textual, atuando principalmente na análise das formas de tratamento do latim ao português assim como na edição digital de documentos antigos. Em 2010, publicou o livro Língua e História: o marquês do Lavradio e as estratégias linguísticas da escrita no Brasil Colonial. Em 2009, publicou, em coautoria com Célia Lopes, Aline Silva e Viviane Santos, no volume 39 da revista Neue Romania, o artigo intitulado “Quem está do outro lado do túnel? Tu ou você na cena urbana carioca”. LILIANE PEREIRA BARBOSA Doutoranda na UFMG, é professora na UNIMONTES (Universidade Estadual de Montes Claros). Publicou, entre outros: Influência do Contexto Fonológico no Uso dos Types Você, Ocê e Cê no Dialeto Norte-Mineiro (in: Vínculo (Unimontes), v.07, 2006). Atualmente, co-coordena o Grupo de Pesquisa em Estudos Linguísticos (GESLIN) do Departamento de Comunicação e Letras da Unimontes e desenvolve pesquisa na área de Fonologia. Seus interesses de pesquisa referem-se às seguintes questões: Sociolinguística, Dialetologia e Estrutura Sonora da Linguagem. LOREMI LOREGIAN-PENKAL Possui graduação em Letras Português/Italiano pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (1993), mestrado em Linguística pela UFSC (1996) e doutorado em Linguística pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2004). Atualmente é professor Adjunto da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná, UNICENTRO. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Sociolinguística, atuando principalmente nos seguintes temas: variação e mudança linguística, sistema pronominal, tempo verbal e ensino/aprendizagem de língua portuguesa. É líder do grupo de pesquisa: Língua, história e literatura ucraniana, na Unicentro, além de integrar a equipe de pesquisadores do Projeto VARSUL. É, também, membro do Comitê Assessor de Linguística e Letras da Fundação Araucária, no estado do Paraná. LUIZ COSTA LIMA Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1972). É professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e bolsista do CNPq, com atuação nas áreas de Teoria da Literatura e Filosofia da História. Recebeu o Prêmio Alexander von Humboldt como pesquisador em Humanidades para o ano de 1993. Publicou, entre outros: Mímesis e Modernidade (1980), Mímesis: Desafio ao Pensamento (2000), O Controle do Imaginário e a Formação do Romance (2009). MAITÊ GIL Graduada em Letras pela UFRGS, é mestranda em Linguística Aplicada na mesma Universidade. Publicou Metáfora e cultura: uma interface entre a Linguística e a Antropologia (Antares, v.2, 2009), em coautoria com Siqueira e Parente. Niterói, n. 29, p. 269-274, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 271 271 11/7/2011 19:21:55 MAITY SIQUEIRA Psicóloga, mestre e doutora em Letras. Professora adjunta da UFRGS, onde atua no Programa de Pós-graduação em Letras. Publicou Metaphor identification in a terminological dictionary (Iberica, v.17, 2009), em coautoria com Almeida, Brangel e Hubert, e A especificidade semântica como fator determinante na aquisição de verbos (Psico, v.39, 2008), em coautoria com Tonietto, Villavicencio, Parente e Sperb. MÁRCIA CRISTINA DE BRITO RUMEU Professora adjunta da área de língua portuguesa da Faculdade de Letras da UFMG. Desenvolve trabalhos na área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa, voltada principalmente para os seguintes temas: rearranjo do sistema pronominal do português brasileiro, gramaticalização e crítica textual. Em 2008, publicou, na Revista da ABRALIN, Volume 7, o artigo intitulado “A categoria Pronome na construção da metalinguagem do português”. Publicou, em coautoria com Célia Regina dos Santos Lopes, o capítulo intitulado “O quadro de pronomes pessoais do português: as mudanças na especificação dos traços intrínsecos” (in: CASTILHO, Ataliba; MORAIS, Maria Aparecida Torres; LOPES, Ruth Vasconcellos; CYRINO, Sônia (orgs.), Descrição, História e Aquisição do Português Brasileiro, 2006). ODETE PEREIRA DA SILVA MENON Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Paraná (1975), mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1984) e doutorado em Linguistique Théorique et Formelle - Université de Paris VII - Université Denis Diderot (1994). Atualmente é coordenadora regional do Projeto Varsul, membro do GT de Sociolinguística da ANPOLL, membro do conselho editorial da revista Intercâmbio (PUCSP) e professor sênior da Universidade Federal do Paraná. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Sistema Pronominal do Português, atuando principalmente nos seguintes temas: português do Brasil, variação e mudança, gramaticalização, projeto varsul e variação linguística. OLGA GUERIZOLI-KEMPINSKA Possui graduação e mestrado em Filologia Românica pela Uniwersytet Jagiellonski de Cracóvia, Polônia. Doutorou-se em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2008. É professora adjunta de Teoria da Literatura no Departamento de Ciências da Linguagem da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência nas áreas de Letras e Teoria da Arte, com ênfase nas relações entre literatura e pintura. PAULO CESAR DUQUE-ESTRADA Professor do Departamento de Filosofia da Puc-RJ, onde ministra cursos de Filosofia Contemporânea. Doutor em Filosofia pelo Boston College, com pós-doutorado na New School for Social Research. É fundador do Núcleo de Estudos em Ética e Desconstrução (NEED) e membro do GT Heidegger (ANPOF) e da Sociedade Brasileira de Fenomenologia. 272 Rev Gragoata n 29.indb 272 Niterói, n. 29, p. 269-274, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:56 SEBASTIÃO CARLOS LEITE GONÇALVES Mestre e Doutor em Linguística (Área de Concentração: Sociolinguística) pelo IEL/UNICAMP. Bolsista do CNPq, é professor na graduação e pósgraduação da UNESP de São José do Rio Preto, ex-coordenador do Curso de Licenciatura em Letras, ex-chefe do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários, ex-presidente do GEL-SP e Coordenador do Projeto ALIP (Amostra Linguística do Interior Paulista), financiado pela FAPESP. Tem artigos publicados em vários periódicos de circulação nacional, como ALFA, Estudos Linguísticos, Sínteses, Scripta, Veredas, Cadernos de Estudos Linguísticos, Delta, Gragoatá. SERGIO RICARDO LIMA DE SANTANA Doutor em Letras pela UFBA, é bolsista do Programa Nacional de PósDoutorado (CAPES), atuando junto ao Núcleo de Pós-Graduação em Letras da UFS no projeto ‘Formação docente e inovação tecnológica para o ensino-aprendizagem de Português como Língua Estrangeira (PLE)’. Sua tese de doutorado trata da adaptação cinematográfica sob a perspectiva da tradução intersemiótica. Publicou, entre outros: Film im Sprachunterricht: eine semiotische Annäherung (Dafbrücke, Caracas, 2009); Metrópoles em movimento: a crítica à globalização pelas imagens e narrativas cinematográficas (Salvador, Goethe-Institut, 2010). SÍLVIA MARIA DE SOUSA Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal Fluminense e professora de Linguística no Departamento de Ciências da Linguagem da mesma instituição. Publicou o capítulo “Nem rei, nem majestade: estratégias de sincretização na TV” (in: OLIVEIRA e TEIXEIRA (orgs.), Linguagens na comunicação: desenvolvimentos de semiótica sincrética, 2009) e vários artigos em periódicos, entre os quais “Apontamentos sobre o gênero programa de auditório” (em Revista Universitária do Audiovisual, v. 6, 2009), “Que rei sou eu? - estratégias enunciativas na TV” (em Caderno de Discussão do Centro de Pesquisas Sociossemioticas, v. 1, 2006) e “Luz, câmera e movimentação: Estratégias enunciativas de construção do sincretismo no Programa Silvio Santos” (em CASA. Cadernos de Semiótica Aplicada, São Paulo, v. 03, 2005). SÍRIO POSSENTI Professor associado no Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, onde fez mestrado e doutorado. Leciona disciplinas introdutórias à linguística e à análise do discurso, campo no qual realiza pesquisas e orienta estudantes de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado. Estuda os discursos humorístico, jornalístico e publicitário. Publicou Discurso, estilo e subjetividade (S. Paulo: Martins Fontes), Os humores da língua (Campinas: Mercado de Letras) e Os limites do discurso e Questões para analistas do discurso (São Paulo: Parábola) e Humor, Língua e Discurso (São Paulo: Contexto). Co-organizou coletâneas de trabalhos em análise do discurso e traduziu Gênese dos discursos, de Dominique Maingueneau. TAMARA MELO Graduada em Letras pela UFRGS e mestranda em Teoria e Análise Linguística na mesma universidade. Tem no prelo a comunicação Controle de variáveis em um teste psicolinguístico, a ser publicada nos Anais do III Congresso Internacional sobre Metáfora na Linguagem e no Pensamento (Fortaleza, Universidade Federal do Ceará), em coautoria com Siqueira. Niterói, n. 29, p. 269-274, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 273 273 11/7/2011 19:21:56 TONY SARDINHA Professor associado do Departamento de Linguística e do PPG em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUCSP. Pesquisador do CNPq, fez doutorado na Universidade de Liverpool (Reino Unido) e pós-doutorado na Northern Arizona University (EUA). É o responsável pelo Corpus Brasileiro, coletânea de um bilhão de palavras de português brasileiro (corpusbrasileiro.pucsp.br; Fapesp). Coordenador do GELC (Grupo de Estudos de Linguística de Corpus; http://corpuslg.org/gelc), desenvolve pesquisa com corpora em Linguística Aplicada, ensino de língua, metáfora, tradução e linguística forense, além de desenvolver corpora e programas online para análise de dados no CEPRIL (Centro de Pesquisa, Recursos e Informação em Linguagem). Seus projetos atuais são “As metáforas ao nosso redor: Identificação, em corpus eletrônico, de metáforas em uso” e “Dimensões de Variação do Português Brasileiro” (ambos com financiamento pelo CNPq). 274 Rev Gragoata n 29.indb 274 Niterói, n. 29, p. 269-274, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:56 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Instituto de Letras Revista Gragoatá Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/nº Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 518 24210-201 - Niterói - RJ e-mail: [email protected] Telefone: 21-2629-2608 Normas de apresentação de trabalhos 1 A Revista Gragoatá, dos Programas de Pós-Graduação em Letras da UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de interesse para estudos de língua e literatura, em língua portuguesa, inglêsa, francesa e espanhola. 2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo. 3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas cópias impressas sem identificação do autor, bem como em CD, com título do artigo em português e em inglês, indicação do autor, sua filiação acadêmica completa e endereço eletrônico no programa Word for Windows 7.0, em fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer tipo de formatação, a não ser: 3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico). 3.2 Margens de 3 cm. 3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo. 3.4 Recuo de 2 cm nas citações. 3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA). 3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e períodicos. 4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23). 5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas no final do texto. 6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecendo às normas a seguir: Livro: sobrenome do autor, maiúscula inicial do(s) prenome(s), título do livro (itálico), local de publicação, editora,data. Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Artigo: sobrenome do autor, maiúscula inicial do(s) prenome(s), título do artigo, nome do periódico (itálico), volume e nº do periódico, data. Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódicos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1, p. 81-104, jan./abr. 1989. Gragoatá Rev Gragoata n 29.indb 275 Niterói, n. 29, p. 275-278, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:56 Normas Gragoatá 7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa reprodução gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda, e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig. 2 etc). 8Os originais serão avaliados a partir dos seguintes quesitos: 8.1 adequação ao tema; 8.2 originalidade da reflexão; 8.3 relevância para a área de estudo; 8.4 atualização bibliográfica; 8.5 objetividade e clareza; 8.6 linguagem técnico-científica. 9 A responsabilidade pelo conteúdo dos artigos publicados pela Revista Gragoatá caberá, exclusivamente, aos seus respectivos autores. 10 Os colaboradores terão direito a dois exemplares da revista. Os originais não aprovados não serão devolvidos. Próximos números Número 30 Tema: Aquisição da linguagem Organizadores: Jussara Abraçado e Eduardo Kenedy Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2011 Ementa: Aquisição da linguagem: universalidade e variação. A cognição linguística no processo de aquisição. O papel do input e da interação. Aquisição e aprendizado. Estudos de caso. Bilinguismo e plurilinguismo. Análise de aquisição/aprendizado de fenômenos gramaticais. Número 31 Tema: Cruzamentos interculturais Organizadores: Paula Glenadel e Angela Dias Prazo para entrega dos originais: 15 de julho de 2011 Ementa: Tradução, mercado global e literaturas nacionais. A tarefa do tradutor. Traduzibilidade das formas contemporâneas de arte; mistura e reescritura de gêneros narrativos; diálogos e interrelações de códigos diversos. Interseções entre o público e o privado; política e produção de subjetividades nas artes e na literatura comtemporânea. 276 Rev Gragoata n 29.indb 276 Niterói, n. 29, p. 275-278, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:56 Normas UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Instituto de Letras Revista Gragoatá Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/nº Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 518 24210-201 - Niterói - RJ e-mail: [email protected] Telefone: 21-2629-2608 General Instructions for Submission of Papers 1. The Editorial Board will consider both articles and reviews in the areas of language and literature studies, in Portuguese, English, French and Spanish. 2. In considering the submitted papers, the Editorial Board may suggest changes in their structure or content. Papers should be submitted in CD, with the title both in Portuguese and English, author’s identification, academic affiliation and electronic address, together with two printed copies, without author’s identification, typed in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font 12, without any other formatting except for: 2.1 bold and italics indication; 2.1 3cm margins; 2.3 1cm indentation for paragraph beginning; 2.4 2cm indentation for long quotations; 2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE) for emphasis; 2.6 italics for foreign words and book or journal titles. 3. Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no more than 8 pages. 4. Authors are required to resort to as few footnotes as possible, which are to be placed at the end of the text. As for references in the body of the article, they should contain the author’s surname in uppercase as well as date of publication and page number in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47). 5. Bibliographical references should be placed at the end of the text according to the following general format: Book: initial’s author’s pre name(s) in uppercase, author’s surname, title of book (italics), place of publication, publisher and date. (eg.: ELLIS, Rod. Understanding second language acquisition. Oxford: Oxford University Press, 1994). Article: author’s surname, initial’s author’s pre name(s) in uppercase, title of article, name of journal (italics), volume, number and date. (eg.: HINKEL, Eli. Native and nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts. TESOL Quarterly, v. 28, n° 2, p. 353376, 1994). 6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend, and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.) Niterói, n. 29, p. 275-278, 2. sem. 2010 Rev Gragoata n 29.indb 277 277 11/7/2011 19:21:56 Normas Gragoatá 7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to 5 keywords, also in Portuguese and in English, are required. 8. Originals will be evaluated from the following items: 8.1 appropriateness to the theme; 8.2 originality of thought; 8.3 relevance for the study area; 8.4 bibliographic update; 8.5 objectivity and clarity; 8.6 technical-scientific language 9. The responsibility for the content of articles published in the journal Gragoatá sole discretion of their respective authors. 10. Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned. 278 Rev Gragoata n 29.indb 278 Niterói, n. 29, p. 275-278, 2. sem. 2010 11/7/2011 19:21:56 Rev Gragoata n 29.indb 279 11/7/2011 19:21:56 PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br) após a implementação de um Programa Socioambiental com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes à neutralização das emissões dos GEE´s – Gases do Efeito Estufa. Este livro foi composto na fonte Book antiqua.12 Impresso na Globalprint Editora e Gráfica, em papel Pólen Soft 80g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa) produzido em harmonia com o meio ambiente. Esta edição foi impressa em julho de 2011. Rev Gragoata n 29.indb 280 11/7/2011 19:21:56