CDU 903-033.6=98{282.28) SíTIO CERÂMICO TUPIGUARANI NA BACIA DO RIO VACACAí-MIRI,M, VICTOR HUGO OLIVEIRA RS DA SllVA* EDIO ERNI PRADE** ANA INEZ KlEIN*** RESUMO O sítio arqueológico conhecida como Cabeceira munidpio de Santa objeto Maria. Encontra-se do mar. Climatologicamente, ocupa apreciável recobre à Depressão data apresentando rio. Ocupa pelo Até o presente, estudado, revelou-se encontramos, tratamento Tupiguarani. A Tradição relação à cronologia, melhor, das peculiaridades d'água, podemos Cabeceira trabalho do foi possfvel coletados, embora diferenciada. * ** *** de uma 1500 observar a localização Rio Grande, 4:43-52,1992. apresenta dos até certa Antropologia o à Tradição como caracterfs- de sangas ou córregos. o Com dos encontre-se ou de curso para d.C. uniformidade Cultural estudado, próximo aproximada ± 1700 mesmos que acordelado, do material datação uma do da localização, d.C. uma vez Das conclusões são comuns próximos prospec- e corante}, técnica consegui da através Coordenador do lEPA e professor História do CCSH da UFSM. Bolsista CCSH da UFSM. Estagiária do lEPA. BIBlOS, aberto, da cerâmica, estabelecer Raimundo a do sítio bibliográficas. sistemáticas, Tupiguarani. Tupiguarani de campo A localização (cerâmica e as formas Ceramista em sltios da do Mesozóico, e por fontes superficiais seguintes: a queima e, apesar isto é, do Ouaterná- Brasileiro. recolhido da Tradição as de superfície, tica a vivência Com ser salientamos do nível latifoliada Fisiograficamen- e início mais recente, coletas material formas extensões. de moradores realizadas cujo acima A mata que faz parte da Região Sul, cuja Meridional depoimento foram ções e escavações, de 100m do Paleozóico áreas de formação a área do Planalto foi facilitada Central, do final na localidade de Boca do Monte, da região sob diferentes te, a região pertence porém em torno ainda hoje regulares formação geológica situa-se 70 Distrito é uma região subtropical. área dentro grande devastação, deste trabalho do Raimundo, sítio o nosso materiais ligeiramente e História Geral I do Dep. 43 INTRODUÇÃO Há muito tempo uma de nossas maiores preocupações era dotar o curso de História da Universidade Federal de Santa Maria de um núcleo que se dedicasse especificamente ao estudo e à pesquisa arqueológica, porém inúmeras dificuldades tivemos de enfrentar. Entretanto, após muitos anos e desafios, o Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas - LEPA - tornou-se hoje uma realidade. A atividade desenvolvida pelos alunos-estagiários do LEPA está possibilitando a criação de mecanismos de motivação para que outros discentes também se sintam motivados à investigação arqueológica. Estamos presentemente na fase de estudo dos sítios, que se caracteriza pela adoção de técnicas padron izadas de coleta de materiais, prospecção, escavação, localização, distribuição e cadastramento, cujo trabalho foi devidamente autorizado pela lOa Delegacia Regional da SPHAN - Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, conforme Of. nO 195/84, de 11/09/84, da Fundação Nacional Pró-Memória da Secretaria de Cultura do Ministério da Educação. DESCRiÇÃO DA REGIÃO Fisiograficamente a região pertence à Depressão Central, e esta por sua vez faz parte da Região Sul, compreendendo os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cuja formação geológica data do final do Paleozóico e início do Mesozóico, porém, apresentando áreas de formação mais recente, isto é, do Quaternário. Ocupa a área do Planalto Meridional Brasileiro. Quanto ao relevo do Rio Grande do Sul, este participa da Serra Geral, com seus últimos contrafortes nas terras meridionais. Observando-se um mapa, ele mostra que a Depressão Central é um corredor entre duas serras, aberto em ambas as extremidades, constituindo-se numa grande calha que se estende de oeste para leste. Tal assertiva é confirmada por Amyr Borges Fortes (1959:222). quando diz: "A transição do Norte para o Sul sofre forte solução de continuidade pela presença da Depressão Central, grande calha que se estende de oeste para leste". Mais adiante o mesmo autor registra (p.224): "Segundo o trabalho dos professores Delgado Carvalho, Alfredo Rodolfo Simch, Padre Balduino Rambo e outros, a Depressão Central atua como verdadeiro divisor de terras. As elevações ao norte da Depressão são as mais acidentadas, particularmente ao nordeste do Estado, onde se encontram as cotas mais elevadas. Essas elevações são diferentes do tipo coxilha. Suas encostas são abruptas e seu revestimento vegetal alcança, em muitos locais, o tipo florestal. São as terras pertencentes à Serra Geral, formadas por rochas eruptivas, conglomerado de itararé, xistos e carvões permianos; areais triásicos e derramamentos melafíricos campeiam o conjunto". De acordo com Rambo (1956:220-1) "No oeste, a abertura é muito larga, convidando os exploradores do Rio Uruguai a procurarem um caminho ao oceano. De fato o primeiro catequizador dos índios rio-grandenses, P. Roque Gonzáles de Santa Cruz, veio por este lado. Subindo pelo Ibicuí, em 1626, fez um 44 BIBLOS, Rio Grande, 4:43-52, 1992. reconhecimento geral do 'tape', firmando a sua conquista por várias reduções às margens deste rio. "A parte leste da Depressão Central, de per si, constitui uma excelente entrada para os povoadores vindos de Santa Catarina". Segundo Magnani (1959:74-5), "A Região Sul", em sua quase totalidade, localiza-se abaixo do Trópico de Capricórnio, estendendo-se até 330 de latitude Sul. Fatores como o relevo de planaltos elevados e a circulação atmosférica própria dessas latitudes (ventos de Oeste), permitem-lhe uma classificação climática subtropical, não havendo ainda quatro estações nitidamente distintas ". Assim o clima, conforme o sistema W. Koeppen, é o Cfa - 11 - 2 b - clima subtropical ou virginiano; áreas morfoclimáticas: peneplanície sedimentar periférica (altitude inferior a 400m); temperatura média anual superior a 18 °c (19,1). Becker (1976:36) registra: "A mata latifoliada ocupa apreciável área dentro da região. Sob diferentes formas e apesar da grande devastação, recobre até hoje regulares extensões. Em muitas áreas, a mata latifoliada aparece intercalada com a mata de araucária, ocupando os solos mais férteis assim como os vales, revestindo as partes que não se prestam ao desenvolvimento da araucária". No nosso Estado, segundo Fortes (1959:257), "A hidrografia é caracterizada pelos rios de regime pluvial, cuja distribuição é de duas grandes bacias: a do Rio Uruguai e a do Sudeste; ambas possuem lagoas e lagunas. A Bacia do Rio Uruguai tem no Estado 49.183km2, separando-se da Bacia do Sudeste pela Serra Geral. Compreende assim todos os afluentes do Rio Uruguai, entre os quais se destacam o Rio da Várzea, o Passo Fundo, o Ibicuí e outros". HISTÓRICO DA REGIÃO De acordo com o médico santa-mariense Dr. Romeu Beltrão, autor da obra "Em face dos fatos e documentos até aqui conhecidos, deve a segunda metade de 1797 ser o marco inicial da cronologia santa-mariense, restando fixarem-se o mês e o dia em que os demarcadores acamparam no Rincão de Santa Maria, e a velha rua do Acampamento é o testemunho quase duas vezes secular da história da fundação da cidade". Os demarcadores, um dos quais foi Gomes Freire de Andrade, de que fala o Dr. Beltrão, são os membros da Comissão Demarcadora de Limites na América Meridional, criada pelo Tratado de Santo IIdefonso, de 1777. Registra ainda o Dr. Beltrão na obra acima citada (p.7) a existência de um mapa de autoria do Cel. Miguel Ãngelo Blasco e do engenheiro e astrônomo João Bento Pvton, no qual "estão marcadas as estradas ou caminhos gerais da época (1756). como a que vinha do sul, passando por Caiboaté, Pau Fincado, Porteirinha, Durasnal de S. João (atual Estância Velha), para atingir S. Martinho pela Picada da Boca do ~onte, Ãgua Negra, passo do Ibicuí e Perau ou Subida da Serra, o Monte Grande dos jesuítas e dos espanhóis, estrada essa percorrida pela expedição de Gomes Freire e 6ndonaegUi, em sua marcha para as Missões. Esta estrada encontrava, à altura do Mur~snal de, S. João, a que vinha de Rio Pardo, então Tranqueira ou Forte de Jesus, ana e Jose, passando por Cachoeira de hoje, cruzando o rio Jacuí à altura da estação Cronologia Histórica de Santa Maria (1979:4): BIBLOS, Rio Grande, 4:43-52, 1992. 45 ferroviária do mesmo nome, onde existiam fortificações, e passando por Restinga Seca, Arroio do Sol (e não do Só, como é conhecida hoje essa vila), Tronqueiras, Passo do Sarandi, no atual Campo de Instruções do Exército, passando por Ferreiros, hoje Arroio da Ferreira e Passo da Taquara". Aqui cabe alguns esclarecimentos: 10 - José Saldanha é que cita o mapa de Blasco e Pyton, levantado durante a expedição de Gomes Freire e Andonaegui, de cuja citação se serve Romeu Beltrão. A Obra de Saldanha é Diário Resumido e Histórico, in Anais da Biblioteca Nacional, vol. LI, M.E.S., Serviço Gráfico, R. Janeiro, 1938". 20_ Pau Fincado, conforme Rambo (1956:104-5): "A Coxilha Grande começa à raiz da Serra Geral, estendendo-se para o sul sob os nomes de Coxilha Grande do Pau Fincado e outros; nada mais é senão o divisor de águas, de pouca altura, entre o Ibicuí e o Jacuí; mais para o sul, esta função é preenchida pela borda ocidental da Serra Sudeste". 30 - Porteirinha e atual São José da Porteirinha são localidades pertencentes atualmente ao 70 Distrito de Boca do Monte; este, por sua vez, é do município de Santa Maria. 40 - Segundo ainda Beltrão, na citada obra, (p. 10) "A topografia do município de Santa Maria era bem favorável à maneira de viver dos índios e por toda a parte, mas especialmente nas regiões da Boca do Monte, Cana barro, Santo Antão, Campinas, São Martinho, Sarandi, Ramada e toda a encosta da serra são encontrados vestígios das suas aldeias, representados pelos utensílios de barro e pedra que usavam. Tenho visto panelas de barro cozido, cacos de panelas, machados de pedra, espécies de pilões de pedra, pontas de seta, etc., em tal quantidade que faz admitir terem sido numerosos os índios que habitavam o solo santa-mariense. O Prof. José Proença Brochado, pesquisando para o Museu Etnográfico de S. Leopoldo, localizou um cemitério indígena na região de Sarandi". Observe-se que Sarandi ou Passo do Sarandi dista aproximadamente 4,5km do sítio "Cabeceira do Raimundo", que ora é objeto de nosso trabalho. 50 - Ferreiros, hoje Arroio da Ferreira, recebeu aquele nome inicial, porque, na ocasião em que os exércitos de Gomes Freire e Andonaegui, na Guerra Guaranítica de 1756, permaneceram acampados junto ao passo, onde os ferreiros da expedição tiveram ali as suas forjas. Devemos aqui inserir um interessante relato do célebre viajante e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em viagem científica pelo Rio Grande do Sul, no ano de 1821, que diz (p. 168): " ... os campos por mim percorridos desde o Ibicuí e os que se estendem até às margens do riacho dos Ferreiros faziam parte da zona neutra, onde nem os portugueses nem os espanhóis podiam se estabelecer. Os portugueses aproveitaram-se da condescendência dos comandantes das duas nações, de modo que quando Portugal tomou conta das Missões já ali encontrou vários lusitanos estabelecidos". METODOLOGIA Utilizamos a metodologia, 46 assim como as considerações teórico-interpreta- BIBLOS, Rio Grande, 4:43-52,1992. tivas, que .s.ão apresentadas por Meggers e Evans (1957 e 1961 J. bem como no trabalho de campo para a caracterização de sítios cerâmicas conforme o "Guia para Prospecção Arqueológica no Brasil" (Evans e Meggers, 1965). Considerada a grande quantidade de amostras cerâmicas obtidas, aplicamos neste estudo a técn ica de seriação proposta por Ford (1962) e por Meggers e Evans (1970). DESCRiÇÃO DO SíTIO O sítio arqueológico está situado na localidade conhecida como "Cabeceira 0 do Raimundo", no 7 Distrito de Boca do Monte, pertencente ao município de Santa Maria, sendo seu atual proprietário a senhora Iva Teixeira Galvão. Entendemos como sítio arqueológico a menor unidade espacial onde se encontram vestígios da cultura passada, incluindo o solo, o clima, a vegetação e os recursos naturais que relacionaram-se com a vida de um determinado grupo humano. O trevo rodoviário de saída de Santa Maria para as cidades de Rosário do Sul e São Pedro do Sul constituiu-se no ponto referencial escolh ido para situar com precisão o sítio arqueológico que é objeto de nosso trabalho. A partir desse trevo segue-se pela estrada pavimentada BR-287, que liga Santa Maria a São Pedro do Sul, percorrendo-se 12,4km. Neste ponto, encontrar-se-á à esquerda uma estrada de chão que vai a São José da Porteirinha. Nesta última, a 500m da BR-287, encontrar-se-á à esquerda outra estrada também de chão, chamada de Picada dos Bastos; contando-se daí mais 4,3km, notar-se-á outra estrada, agora à direita. A 900m desta, seguindo-se ainda pela mesma que vai para São José da Porteirinha, situa-se um armazém (bodegão), próximo a uma bifurcação, na qual segue-se pela esquerda. A 600m encontra-se outra estrada, à esquerda e, dali a mais 3,1 krn, a residência da senhora Iva Teixeira Galvão, em cuja propriedade foi localizado o sítio onde foram identificadas duas concentrações que levaram as letras "A" e "B". O sítio dista da sede do município de Santa Maria cerca de 21,8km, na direção leste-oeste. Situa-se aproximadamente a 300m das nascentes do chamado Arroio do Raimundo, daí o nome do sítio, "Cabeceira do Raimundo", cuja sigla é RS, porque o mesmo foi encontrado no município de Santa Maria, Estado do Rio Grande do Sul; VM - 5 quer dizer Bacia do Rio Vacacaí-Mirim, e o número 5, por tratar-se do quinto sítio aí investigado. HISTÓRICO E TÉCNICA DA PESQUISA Nesse sítio, no dia 22/06/1985, foi iniciada a primeira coleta superficial sistemática, com grande quantidade de fragmentos de cerâmica, corante e nenhum artefato lítico. Nessa ocasião é que foi possível localizar as duas concentrações, sendo a "A" caracterizada pela existência de uma mancha preta, denunciada por essa coloração do terreno, cuja forma mais ou menos ovalada possui 210m2• A espessura máxima dos sedimentos-camada de ocupação foi 28cm, parecendo indicar BIBlOS, Rio Grande, 4:43-52,1992. 47 B Bi'JI':':3C CA Ci~"cias uma ocupação temporária, isto é, sítio-acampamento. Mancha preta, conforme Eble (1973:42): "é a denominação vulgar para sítios abertos que são evidenciados principalmente por uma área escurecida de maior incidência de cinzas, carvão e solo queimado. Essa área se sobressai em relação ao solo circundante. Por ocasião dos períodos de capina ou de aração, tais manchas são consideravelmente visíveis à distância. Material cerâmico, bem como corante e lítico são encontrados nesses sítios". Posteriormente, no dia 7 de setembro do mesmo ano, foram tiradas duas fotos em preto e branco, às 14h50min, nas orientações sul para norte e leste para oeste. Uma vez delimitada a área, processou-se em seguida o levantamento topográfico de todo o sítio, alcançando uma área de 9.346m2• Concluído esse trabalho, observamos que na concentração "A" o terreno é atualmente constituído de gramíneas. Com relação à concentração "B", existem também gramíneas em grande quantidade e, por falta de tempo, não nos foi possível realizar prospecção ou escavação. Em ambas concentrações o tipo de solo é arenoso e utilizado intensamente para fins agrícolas (plantação de canal. mostrando-nos que o sítio está perturbado até uma profundidade de 15cm, aproximadamente. Assim sendo, e em virtude da existência de grande quantidade de material coletado sistematicamente na concentração "A", resolvemos realizar uma escavação, mediante níveis artificiais, buscando a coleta de amostras arqueológicas, com o objetivo de verificarmos a sua potencial idade cultural. Por isso efetuamos um corte na concentração "A", no qual utilizamos a técnica de quadrícula de 2x2m. Toda a terra foi peneirada e o material, uma vez recolhido, foi colocado em sacos de pano e de plástico devidamente etiquetados, posteriormente, no laboratório, lavado, numerado e classificado de acordo com os níveis artificiais de 10 em 10cm, até alcançar-se a camada estéril. Considerou-se também a tipologia, cujo material hoje pertence ao acervo do Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas (LEPA). DESCRiÇÃO DO MATERIAL ARQUEOLÓGICO 1) CERÂMICA O nosso estudo compreendeu a análise de 1.121 fragmentos de cerâmica, dos quais 55 são bordas e os restantes 1.066 são partes do bojo e bases, todos da Tradição Tupiguarani. Tradição é definida como "Grupo de elementos ou técnicas que se distribuem com persistência temporal", de acordo com o Seminário de Ensino e Pesquisas em Sítios Cerâmicos. Terminologia arqueológica brasileira para a cerâmica. Manuais de Arqueologia (1966:20). Quanto ao termo Tupiguarani, escrito sem hífen, foi definido no Segundo Seminário do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA). realizado em Belém, Pará, em 1968. Foi assim adotado para distinguir a tradição ceramista da família lingüística, cuja denominação se escreve separada - Tupi-Guarani. Faz-se mister citar aqui Mentz Ribeiro (1981 :8-9), que diz: "Esta cerâmica da Tradição Tupiguarani, nos primeiros contatos com o europeu, foi encontrada exclusivamente 48 RIRLOS, Rio Grande, 4:43-52,1992. entre grupos de família lingüística Tupi-Guaran]. Agora, a recíproca não é verdadeira, isto é, nem todos que falavam o Tupi-Guarant eram portadores desta cerâmica. Ela continuou sendo produzida e utilizada em tempos históricos por alguns destes grupos, naturalmente com variações locais e regionais. Os grupos indígenas historicamente conhecidos, possuidores desta tradição, eram portadores de uma cultura tipo Amazônica ou de Floresta Tropical. Eram horticultores de coivara, isto é, praticavam a roça, plantando milho, mandioca, tubérculos e raizes, tabaco e algodão, e seu ambiente ótimo era a selva tropical ou subtropical úmida. Viviam em aldeias compostas de casas grandes comunais, utilizavam a rede para dormir e navegavam em canoas de casca ou tronco de árvore". A técnica de confecção da cerâmica foi a do acordelado (que consiste em superpor roletes de pasta de comprimento variável, em sentido circular até construir a parede do vaso), observando-se com nitidez, na maioria dos fragmentos, os negativos e positivos do rolete com os quais eram fabricadas as peças ou vasilhames. A cerâmica encontrada no sítio "Cabeceira do Raimundo" tinha as mais diversas finalidades ou funções, como por exemplo a busca e a guarda de água para o preparo de bebidas fermentadas de milho e mandioca, bem como para o armazenamento e o cozimento de alimentos. Depois de velhos e inúteis, os vasilhames maiores eram usados ainda para o enterramento dos mortos. Esta cerâmica era artesanal e produzida pelas mulheres, que utilizavam barro, ao qual, por ser excessivamente plástico, acrescentavam areia, grânulos (quartzo) ou cacos bem triturados, dando assim maior consistência. Para o estudo e classificação dos fraqmentos cerâmicos empregamos métodos e bibliografia concernentes, ou seja, "Terminologia arqueológica brasileira para a cerâmica" (1966 e 1969) e Meggers & Evans (1970) cujas obras foram fundamentais para o nosso trabalho. Dos 1.121 fragmentos estudados (ver quadro), chegamos à seguinte análise: toda a cerâmica foi confeccionada pela técnica do acordelado, observando. se os positivos e os negativos dos roletes com que foram produzidos os vasilhames ou peças; os roletes partiam desde a base. .~ MATERIAL CERÂMICa Corrugado-ungul. Corrugado Ungulado Simples Ponteado Inclassificável TRADiÇÃO TUPIGUARANI LOGO 56 57 345 58 59 60 94 95 96 Total '(. 67,62 77 63 41 75 111 42 04 04 758 '- 01 01 02 01 02 01 12 12 02 1,07 02 04 03 - 05 -- 28 2,50 19,71 101 22 34 17 19 15 _. - 13 -. 221 02 .- - - -- 23 - 02 08 0,18 07 09 07 09 07 -. 70 6,24 11 01 22 1,97 02 0,18 06 0,53 1121 100,00 Pintado "A" 02 01 04 -- Pintado "B" -- -- 03 01 -- - 01 01 05 .. - - .. 489 -- 115 - - 113 72 101 143 82 06 Pintado "K" Total '. BIBLOS. Rio Grande, 4:43.52,1992. 49 Textura - observamos com freqüência bolhas de ar e fendas no rolete, sendo a fratura mais ou menos regular. A cor do núcleo apresenta as seguintes características: preta, cinza e parda com diferentes tonalidades. Antiplástico - predomina o arenoso, detectável pelo tato; a areia está irregularmente distribuída na pasta. Em alguns casos (20'/.) encontramos também ó argiloso. Queima - incompleta, com a maior parte em ambas as faces. Superfície - os fragmentos apresentam bom alisamento - 55"/.; regular alisamento - 30"/.; mau alisamento - 15"/., aproximadamente. Raros são os casos em que aparecem as estrias do alisamento. As cores predominantes são as seguintes: marrom escuro em ambas as faces, marrom claro em ambas as faces, alaranjado em ambas as faces e amarelo escuro em ambas as faces. Tipo de decoração Corrugado-ungulado: associação de ungulações e corrugações. Corrugado: execução com as pontas dos dedos, através de pressões, mais ou menos regulares, espaçadas, unindo os roletes. Ungulado: incisões produzidas pelas unhas sobre a superfície externa. Ponteado: incisão de instrumento formando pequenas cavidades. Simples: sem decoração. Pintado "A": vermelho sobre branco na face externa. Pintado "8": vermel ho sobre branco na face interna. Pintado "K": branco sobre vermelho na face externa. Dureza - entre 3,5 a 4,0 (escala de Mohs). Formas - a abertura dos vasilhames varia entre 10 e 45cm, predominando a faixa entre 16 e 32cm. Quanto às formas, as mais comuns são as meio esféricas. As bordas quanto à forma são: direta - 60"/.; extrovertida - 24,44"/.; introvertida2,22"/.; introvertida com reforço externo - 2,22"/' e inclassificável - 11, 12"/., em virtude de suas reduzidas dimensões. Os lábios apresentam-se arredondados 42,5"/.; aplanados - 25"/.; apontados - 15"/.; aplanados ungulados - 1O"/.; digitungulados - 5"/.; arredondados com reforço externo - 2,5"/. . No que diz respeito às bases, em número de cinco (5), todas são arredondadas e levemente cônicas. 2) MAT~RIA CORANTE Como matéria corante foram encontrados pequenos fragmentos de hematita (óxido de ferro), que fornece o vermelho e outras tonalidades. A forma é irregular com vestígios de utilização, onde são nítidos os sinais de unha. CONCLUSÕES O sítio "Cabeceira do Raimundo" é constituído pela Tradição Tupiguaraculturais, tais como a técnica do acorde lado, o tratamento de superfície, a queima e a forma das vasilhas e, de acordo com Mentz Ribeiro (1986:56) "A técnica do acordelado, o tratamento de superfície, a queima ni, em virtude das características e as formas são comuns a toda Tradição Tupiguarani do sul do Brasil, incluindo parte de São Paulo, nordeste e litoral fluvial argentino e Uruguai". Quanto à cronologia, esta foi obtida graças às peculiaridades da cerâmica bem como à 'localização do sítio, ou seja, próximo de curso d'água e também por tratar-se de um sítio de campo aberto; por isso, podemos estabelecer uma datação aproximada de 1500 d.C. até ± 1700 d.C. Os vestígios do sítio-acampamento permitem ainda hoje a sua delimitação, quer seja pela concentração de fragmentos, quer pela colaboração do solo (mancha preta). O fato de o sítio localizar-se afastado das margens dos grandes cursos d'água sugere a pouca dependência imediata do transporte fluvial. Tratando-se de um sítio-acampamento de campo aberto, a horticultura deveria ter alguma importância na dieta alimentar. Enterravam seus mortos no solo através de urnas de cerâmica enterramento secundário. Chamou-nos a atenção a ausência de material que comumente é associado à tradição ceramista Tupiguarani, como por exemplo, lâminas de machado polido, afiadores em canaleta e cachimbos de cerâmica. Não encontramos também nenhum material que indicasse um processo de aculturação. Finalmente, este trabalho possibilitou-nos o surgimento de muitas interrogações, como o estudo tecnotipológico mais aprofundado, com o objetivo de resolver os problemas de estagnação, regressão ou evolução da vida dos grupos de indígenas pré-históricos de nossa região. Tais indagações consideramos normais, pois é inerente à pesquisa arqueológica, cuja atividade dificilmente se esgotará. Por isso, novas pesquisas deverão ser realizadas na tentativa de se buscar respostas, bem corno o salvamento do material arqueológico, uma vez que tais esforços irão contribuir para a reconstituição de nossa História. AGRADECIMENTO ESPECIAL Queremos deixar registrado nesta oportunidade o nosso agradecimento especial ao morador do interior, cuja colaboração jamais nos foi negada. Graças à sua compreensão e muitas vezes sua cooperação, tornou-se possível alcançar os nossos objetivos. A maioria não só possibilitou-nos o trabalho de campo em suas propriedades, como também abandonava seus afazeres para nos auxiliar e mesmo prestar-nos informações sobre ocorrências da cultura material indígena ou doação de material arqueológico. Desejamos também agradecer aos alunos estagiários do Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas - LEPA, que participaram na maioria das ocasiões, tanto na pesquisa de campo como no trabalho de laboratório e de gabinete. Sua dedicação e desempenho contribuíram para que levássemos a bom termo este trabalho. Ao amigo e colega Pedro Augusto Mentz Ribeiro e sua esposa Catarina, que contribuíram com suas valiosas sugestões e tornaram-se incansáveis na orientação e incentivo para a realização deste trabalho. Para ambos, o nosso muito obrigado. 51 BIBLOS, Rio Grande, 4:43-52,1992. 50 BIBLOS, Rio Grande, 4:43-52,1992. UFPR-SC/SA BlaUÜTECÀ BIBLIOGRAFIA CDU ~2 CONSULTADA BECK, Anamaria; ARAUJO, Edson Medeiros; DUARTE, Gerusa Maria; SI LVA, . Victor Hugo Oliveira da; SÃO THIAGO, Maria Angélica &FOSSARI, Tereza D. 1969. Estudos sobre o sambaqui do rio Lessa. Anais do Museu de Antropologia, Florianópolis, 2: 193-205,6 quad., ilus. BECKER, ítala Irene Brasile. 1976. índio Kaingang no Rio Grande do Sul. Pesquisas. Antropologia, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, n. 29. BELTRÃO, Romeu. 1979. Cronologia Histórica de Santa Maria. Canoas, La Salle. BROCHADO, José Proenza. 1969. Pesquisas Arqueológicas nos vales do Ijuí e Jacuí. Publicações Avulsas, Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, PRONAPA, 13:31-62. ilus. CHMYS, Igor. 1966. Terminologia Arqueológica Brasileira para Cerâmica. CEPA, Manual de Arqueologia, Curitiba, Conselho de Pesquisas da Universidade Federal do Paraná, n. 1. EB LE, Alroino B. 1973. Problemas Arqueológicos da Região do Alto Vale do Itajaí. Anais do Museu de Antropologia, Florianópolis, v. 6, n. 6. FORD, James A. 1962. Método para estabelecer cronologias culturales. Wastiington, Unión Panamericana, OEA. 122 p. FORTES, Amyr Borges. 1959. Geografia Física do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Globo, p. 254-257. MAGNANI, Ruth Lopes da Cruz. 1959. Clima. In: ATLAS DO BRASI L. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. p. 74-75. MEGGERS, Betty J. & EVANS, Clifford. 1970. Como interpretar a linguagem da cerâmica: manual para àrqueólogos. Washington, Smithsoniam-Institution. ° ° 111 p. MENTZ RIBEIRO, Pedro Augusto. 1981. Tupiguarani no Vale do Rio Pardo e a Redução Jesuítica de Jesus Maria. Revista do CEPA, S. Cruz do Sul, 10: 172, 46 f., 6 tab. PORTO, Aurélio. 1954. História das Missões Orientais do Uruguai. 2.ed. Porto Alegre, Selbach. v.3, 434 p. RAMBO, Pe. Balduino S. J. 1956. A Fisionomia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Selbach, v. 6, 456 p. SAINT HILAIRE, Auguste. 1974. Viagem ao Rio Grande do Sul. Tradução de Leonam de Azevedo Penna. São Paulo, Universidade de São Paulo, Itatiaia. SALDANHA, José de. 1938. Diário Resumido e Histórico, in Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, Serviços Gráficos. v. 51. SCHMITZ, Pedro Ignacio. (Coord.). 1967. Arqueologia no Rio Grande do Sul. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, n. 16. TERMINOLOGIA ARQUEOLÓGICA BRASILEIRA PARA A CERÃMICA. 1966. Manuais de Arqueologia. Curitiba, Universidade Federal do Paraná, Centro de Ensino e Pesquisa Arqueológica: v. I, 22 p., ilus. FRANCISCO DAS NEVES ALVES* IN MEMORIAN (PROF. HUGO ALBERTO PEREIRA NEVES - 1943 - 1990) Existem pessoas que nascem exatamente "talhadas" para executar uma determinada função social, cumprindo-a não apenas pelo compulsório motivo da sobrevivência, mas sim atuando como se ela, naturalmente, fizesse parte de sua existência. Nesse caso enquadram-se muitos daqueles que resolveram se dedicar à vida de educador, e dentre esses, como típico exemplo, destacou-se a figura do Prof. Hugo Alberto Pereira Neves. Mesmo possuindo o título de Bacharel em Ciências Jurídicas, foi no Magistério que encontrou sua real vocação e, sempre sustentando seus próprios estudos, licenciou-se em Estudos Sociais e, posteriormente, em História. Trabalhou assim, resgatando o papel das Ciências Humanas em quase todas as séries das escolas rio-grandinas, tanto na rede pública quanto na particular, sendo já nesse momento reconhecido o seu valor perante a comunidade. Foi na Universidade do Rio Grande, porém, que o Prof. Hugo atingiu o ápice de seu trabalho. Durante muito tempo, devido ao pequeno número de professores, esse trabalho foi tremendamente árduo, com altíssima carga horária, tendo ele ministrado com eficiência praticamente todas as disciplinas existentes no Curso de História, lidando assim com as mais variadas matérias tanto em História Geral como do Brasil. Para manter-se atualizado formou uma valiosa biblioteca, motivo de um de seus maiores orgulhos. Na Universidade, também trilhou brilhantemente pelos caminhos da pesquisa histórica, desenvolvendo uma série de projetos, além de diversas outras pesquisas apresentadas em congressos e artigos; procurou ainda promover novas oportunidades para os estagiários de História, através de diversos projetos de ensino. Em janeiro de 1980, deu importante passo em sua carreira, obtendo o título de Mestre na Universidade Federal do Paraná, com a dissertação "A Importância do Porto do Rio Grande na Economia do Rio Grande do Sul (1890 1930)", tendo a História Econômica como área de concentração. Através de seu ccmpetente profissionalismo, tornou-se membro extremamente reconhecido em nossa comunidade e, com a constante participação em encontros estaduais e nacionais, levou junto dele a representação do município do Rio Grande. Dificilmente se encontrarão pessoas que, como ele, tenham conhecido a história, os hábitos, as instituições e, principalmente, a gente desta cidade. No ano de 1990, começou a realizar um de seus maiores sonhos - o Doutorado - na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com o *Prof. do Dep. de Biblioteconomia e História. 52 BIBlOS, Rio Grande, 4:43-52,1992. BIBlOS, Rio Grande, 4:53-54.1992. 53 tema "O Porto do Rio Grande e o Comércio Sul-Rio-Grandense durante o Período Imperial (1822-1889)", o que infelizmente não conseguiu concretizar. Nesse malfadado ano de 1990, perdia-se esta pessoa, que sempre, para todos que o cercavam, confundia-se com a palavra "amizade", deixando insuperável vazio entre sua família e seus amigos, além de grande número de planos que ficaram sem ser concluídos. Agora resta-nos pensar que, se existe este lugar chamado céu, é Ia que ele está, colocando apelidos, como sempre foi seu costume, agora em anjos, arcanjos ou santos e torcendo por cada um de nós, que tanto estamos carecendo de sua presença. 54 BIBLOS, Rio Grande, 4: 53-&4,1992. \