“Foi uma bela ideia a de reunir numa mesma gravação obras de Froberger e Bach.
Alternando música polifônica, música de dança e o estilo “fantástico”, essas peças
apresentam o cravo de uma forma rica, variada e com forte expressividade. Ana
Cecilia, com sua grande sensibilidade artística e seus dons musicais profundos, sabe
dar a esse repertório toda sua força emocional.”
Olivier Baumont
Entre Froberger e Bach tudo aconteceu na música barroca alemã para cravo. É como se
toda a história da música barroca para teclado na Alemanha tivesse um marco inicial no
séc. XVII, com Froberger, seu primeiro grande compositor, e atingisse seu apogeu com
Bach, no séc. XVIII, o maior compositor da era Barroca.
Separados por pouco menos de um século, ambos trabalharam o contraponto e a
polifonia da música alemã de maneira profunda e tocante, sem deixar de lado, contudo,
toda a influência que os estilos francês e italiano exerciam na época. Embora fazendo
prevalecer a intensidade e expressividade alemãs, Froberger e Bach construíram uma
linguagem comum com grande personalidade.
Organista da corte de Viena e aluno de Girolamo Frescobaldi, Froberger descobre os
mestres do teclado e alaúde da Itália, da Inglaterra e da França, nas inúmeras viagens de
estudo que fez, ausentando-se da corte com o apoio do Imperador Ferdinand III.
Sua obra, como síntese dos elementos estilísticos alemão, italiano, francês e inglês, lhe
deu reputação universal e sua influência é sensível nos trabalhos de compositores como
Bach e Händel. O interesse do público por Froberger nos séc. XVII e XVIII também
evidencia sua grande contribuição para o desenvolvimento do estilo musical dessa
época.
A linguagem das toccatas de Froberger é basicamente a mesma de Frescobaldi, mas as
peças parecem ser mais bem organizadas, com uma forma mais ampla, o cromatismo e
o virtuosismo mais ousados. São divididas em grandes seções contrastantes, começando
por uma abertura cheia de improvisação e liberdade, seguida por um trecho construído
sobre um contraponto imitativo onde se superpõem, às vezes, dois temas. A escrita pede
virtuosismo ao executante, com escalas ascendentes e descendentes, longos acordes
arpejados e muitos pedais harmônicos sustentando passagens rápidas e variadas.
Froberger teve o Imperador Ferdinand III como protetor e amigo por mais de 20 anos. A
morte deste foi para ele uma grande perda e, para externar sua tristeza, compôs, em sua
homenagem, o lamento incluído nesta gravação. Nesta obra-prima, que sobreviveu ao
tempo em um único manuscrito, o compositor divide a peça em três partes, fato que não
se repete em nenhuma outra obra de sua autoria. A conclusão se dá no mesmo clima de
introspecção e melancolia, com a nota Fá repetida gravemente por três vezes.
A suíte em sol menor incluída neste CD representa um gênero musical particularmente
importante em Froberger. Não há certeza de que tenha escrito as primeiras peças neste
formato, mas Froberger é considerado um dos grandes mestres da suíte para cravo.
Cerca de 30 manuscritos chegaram a nossos dias e apresentam forte influência francesa.
Os quatro movimentos típicos da suíte estão presentes, mas com a ordem alterada,
finalizando com a sarabande e deslocando a gigue para o segundo lugar. Muita música
está contida em poucas notas e a música de Froberger tem o poder de conquistar-nos
imediatamente, retendo nossa atenção, levando-nos à emoção.
Ao contrário de Froberger, respeitado e prestigiado na corte, Bach passa modestamente
sua vida ativa nas regiões alemãs de Saxe e Thuringe, compondo principalmente para a
liturgia luterana, cravo e órgão, viajando e publicando pouco.
Gênio incontestável do fim do Barroco, para construir sua vasta obra Bach fez uso de
todos os gêneros, instrumentos e formas musicais então em voga. Era admirado pelo seu
maravilhoso talento como organista e improvisador, por sua técnica surpreendente e sua
arte na registração.
Bach tinha verdadeira sede de aprender com outros mestres, o que o levava a copiar
suas obras, método tradicional para um aprendiz de música. Entregou-se a esse trabalho
enfocando obras de vários outros compositores, como Vivaldi e Corelli, italianos,
D’Anglebert e Couperin, franceses, bem como Kerll e Froberger, mestres católicos, e
Buxtehude e Telemann, mestres protestantes, da Alemanha.
São comumente identificados cinco períodos distintos na evolução criativa de Bach,
que correspondem aos postos que ocupou durante sua vida. Arnstadt (1703) e depois
Mülhausen (1707) correspondem ao seu primeiro período, em que, jovem ainda,
buscava seu próprio estilo. Ele viaja a pé até Lübeck com o intuito de estudar com
Buxtehude. Esse contato com o velho mestre faz aflorar sua imaginação criadora e
marca o fim de seu período de aprendizado.
Já em Weimar (1708), Bach começa a demonstrar seu amadurecimento musical e, ao
conviver mais de perto com a música italiana e com o estilo concertante, coloca-se nos
caminhos da música europeia, o que marca seu segundo período. Compõe aí grande
parte de sua obra para órgão, prelúdios e fugas, toccatas e fugas, arranjos para concertos
de Vivaldi e música de câmara.
Em Cöthen (1717), onde se desenvolve seu terceiro período criativo, Bach compõe
as obras mais importantes de sua música para cravo e câmara. Para de escrever
cantatas para as cerimônias religiosas e dedica-se à música instrumental com forte
ênfase didática. Seu domínio da arte de compor e sua imensa criatividade fizeram que
essas obras atingissem um nível de perfeição e musicalidade muito acima do de seus
contemporâneos.
Em Cöthen também escreveu a maior parte da obra O Cravo Bem Temperado, ponto
culminante de seus estudos e pesquisas, obra-prima universal, ainda hoje considerada
como material de base da literatura para o teclado. Coleção de dois volumes, com
24 prelúdios cada um, seguidos de suas respectivas fugas, cada par é escrito num
tom diferente, apresentados em ordem ascendente, cobrindo todas as possibilidades
tonais em cada volume. Note-se que o método de afinação utilizado até então só
era satisfatório se fossem usados poucos sustenidos ou bemóis. A invenção pelo
organista Andreas Werkmeister, um dos estudiosos que então trabalhavam no assunto,
de uma nova forma de afinação, um novo temperamento, possibilitou o uso de todas
as tonalidades. Bach compreendeu o alcance da transformação musical que o novo
sistema possibilitava e criou esta obra sublime, muito apreciada posteriormente por
Mozart, Chopin e Beethoven.
Os prelúdios, de um modo geral, foram escritos sem uma organização aparente, sem
restrições formais. Não há preocupação com o desenvolvimento dos motivos, a forma
é livre, criando aos poucos o ambiente sonoro, dentro da tonalidade escolhida, que
prepara a entrada das fugas. Estas já apresentam uma forma mais racionalizada, uma
correspondência entre os temas baseada nas técnicas contrapontísticas. Iniciadas
frequentemente com a tônica ou a dominante, as fugas apresentam seus temas sem
qualquer acompanhamento, que é obtido mais à frente com a entrada das outras vozes,
progressivamente, que repetem o tema em diferentes intervalos tonais e acrescentam
variações melódicas. A harmonia evita modulações no começo, para que a tonalidade da
peça fique estabelecida com clareza, mas, gradualmente, o jogo de funções harmônicas
vai tornando-se mais complexo e trabalhado.
Embora Bach tenha voltado a pesquisar a fuga mais no fim de sua vida, com outras
obras magistrais, como por exemplo A Arte da Fuga, com O Cravo Bem Temperado
o mestre consolidou e enriqueceu de modo inigualável todo o conhecimento até então
existente sobre essa forma musical.
O quarto período criativo de Bach tem início com sua mudança para Leipzig, onde
exerce o cargo de Kantor da Escola Santo Tomás. Ali reencontra a música sacra como
forma de expressar sua fé e tem o compromisso de compor uma cantata para cada
domingo ou feriado religioso. Nesse período também compõe com intensidade muitas
peças instrumentais e suas tão conhecidas e admiradas Paixões.
A Partita n.° 3, em lá menor, faz parte de uma série de seis suítes germânicas para
cravo, que Bach chamou de partitas, compostas em Leipzig. Foram as primeiras obras
publicadas pelo próprio compositor, entre 1726 e 1731, e tiveram grande repercussão
no meio musical da época. Representaram forte inovação e profundo desenvolvimento
da suíte, gênero musical muito presente em todo o período barroco. Bach sentiu-se
livre para incluir alguns tipos de danças pouco comuns nas suítes, como a burlesca e o
scherzo, incluídos nesta gravação.
Os últimos cinco anos de vida do mestre alemão representam seu quinto e último
período criativo, ainda em Leipzig. Nessa fase Bach distancia-se progressivamente do
mundo exterior para concentrar-se no trabalho de pesquisa e composição, criando obras
que englobam toda a profunda complexidade da polifonia e do contraponto na música
barroca. São desse período obras como A Arte da Fuga, As Variações Canônicas para
órgão e a Oferenda Musical, peças escritas sob a forma de variações contrapontísticas
sobre um único tema inicial.
A Oferenda Musical foi composta em razão de uma visita de Bach à corte do Rei
Frederic II, em Potsdam, onde seu filho Carl Philipp Emanuel trabalhava como cravista.
O Rei, que era flautista, lhe mostrou um tema e Bach sobre ele improvisou. Ao retornar
a Leipzig, o mestre trabalhou para acrescentar outras variações contrapontísticas à
improvisação que fizera sobre o tema real. Cânones para vários instrumentos, dois
ricercares para teclado e um triosonate fazem dessa obra uma das mais belas da arte
barroca.
Ana Cecilia, 1998
“To put together the works of Bach and Froberger in a single recording was a pretty
good idea. Alternating polyphonic music, dance music and the “fantastic” style, these
pieces present the harpsichord in a rich and varied way, with plenty of expressiveness.
Ana Cecilia, with her great artistic sensitivity and her deep musical skills, knows how to
render this programme with its full emotional strength.”
Olivier Baumont
Between Froberger and Bach everything happened in the German baroque
music for the harpsichord. It is as if the entire musical history for keyboards in
Germany had a starting point in the XVIIth century, with Froberger, being its first great
composer, and reached its apogee with Bach, in the XVIIIth century, the greatest
composer of the entire Baroque period.
Separated by less than a century, both composers worked the German music’s
counterpoint and polyphony in a deep and touching manner, not ignoring, however, all
the influence that the French and Italian styles had in those days. In this way Froberger
and Bach managed to build a common musical language with great character, although
German intensity and expressiveness prevailed in their work.
Froberger as an organist in the Wien court and Girolamo Frescobaldi’s student,
discovered the Italian, English and French keyboard and lute masters, during the study
journeys he made to these countries. To leave the court was possible with the support of
the Emperor Ferdinand III.
His work, as a synthesis of the German, Italian, French and English stylistic
elements, gave him an international repute and his influence can be seen in the works of
composers like Bach and Händel.
Froberger’s toccatas, according to Bukofzer and de Place, are written in a
brilliant style, which Bach specially admired. Their language is basically the same as in
Frescobaldi, but the pieces seem to be well-organised, with a wider character and
audacious chromaticism and virtuosity. They are divided in long and contrasting
sections. The first section begins with an overture full of improvisation and freedom,
followed by a part which is built over an imitative counterpoint. Here two different
themes are superimposed occasionally. The score, which demands virtuosity from the
performer, contains ascendant and descendant scales, long arpeggio chords and many
harmonic pedals supporting rapid and variegated parts.
Froberger had the Emperor Ferdinand III as a friend and protector for more than
20 years. The King’s death caused him great impact, and to show his mourning he
wrote the lamento included in this recording. In this masterpiece, which survived the
centuries as a single manuscript. He divides the score in three parts, and this procedure
wouldn’t happen again in any other further piece he wrote. In the end he explores the
same atmosphere of introspection and melancholy, repeating the note F gravely three
times.
The suite in G Minor included in this CD represents a musical style particularly
important in Froberger music. It is uncertain whether he wrote the very first pieces or
not in this format, but
he is considered as one of the great masters on the harpsichords suites. Around 30
manuscripts reached our days and they show evidence of a great French influence. They
present the four typical movements but in an altered order, finishing with a sarabande
and displacing the gigue to the second position. A lot of music is contained in a few
notes and the final sarabandes set the harpsichordist free to create his own ornaments.
Froberger’s music has the power to conquer listeners immediately, retaining
their attention and evoking many emotions.
Contrary to Froberger, whom was respected and honoured in court, Bach spent
his active lifetime modestly in the German regions of Saxe and Thuringe. He composed
essentially for the Lutheran liturgy organ and harpsichord, and rarely travelled or
published his music.
Incontestable genius of the end of the Baroque era, Bach wrote for virtually
every style, instrument and musical form known at the time. He was admired for being
a wonderful talented organist , by his surprisingly technique and by his great art in the
registration procedures and known as an admirable improviser.
Bach had a genuine thirst to learn with other masters and used a traditional
method held by music apprentices which was to copy their works, He invested time in
this kind of learning focusing in many other composers, as Vivaldi and Corelli, from
Italy, D’Anglebert and Couperin, from France. Furthermore Kerll, Froberger,
Buxtehude and Telemann, Catholic and Protestants German masters.
Researchers usually divide the creative evolution of Bach in five different
periods, which correspond to the jobs he had during his lifetime. Arnstadt (1703) and
then Mülhausen (1707) refer to his first period, in which he was still searching for his
own style. He journeyed by foot to Lübeck with the intent to study with Buxtehude.
This contact with the old master would trigger the flourishing of his creative
imagination, marking the end of his learning period.
In Weimar (1708) Bach begins to demonstrate his musical maturity and, he
starts to have more contact with the Italian music and the concertant style, placing
himself in the paths of European music. He composes then a major part of his works for
organ, preludes and fugues, toccatas, arrangements for Vivaldi concertos and Chamber
Music. This is assumed as his second creative period.
In Cöthen (1717), known as Bach’s third period, he composes the most
important pieces of his harpsichord and chamber music. He stops writing cantatas for
religious services and focuses on instrumental music with emphasis in teaching. His
mastering in the art of composition and his immense creativity render to these pieces a
level of perfection and musicality much higher than his contemporaries achieved in
their works.
In Cöthen Bach also wrote the major part of The Well-Tempered Clavier, the
summit of his studies and researches, a universal masterpiece still considered in our
days as basic material for keyboard musical literature. It is a collection in two volumes,
each one of them with 24 preludes and fugues in all keys and in a chromatically
ascending sequence, covering all tonal possibilities in each volume. It is interesting to
note that the tuning method used then was satisfactory only if few sharp or flat notes
were used. The invention, by organist Andreas Werkmeister, one of the specialists
working then in the subject, of a new method of tuning, or in other words a new
temperament, made it possible for all tonalities to be used. Bach visualized the
important transformation contained in the new system and created this sublime cycle of
pieces. Those pieces would be later highly appreciated by Mozart, Chopin and
Beethoven.
The preludes were, in general, written with no apparent organisation, and no
formal restrictions. The form is free and demonstrates no concerns about developing
the musical motives, gradually creating in each key the sound environment that prepares
the beginning of the fugue. The fugues present a more rational form, containing a
correspondence between the themes based on contrapuntal techniques. Starting in the
tonic or in the dominant, the fugues present their themes without accompaniment, which
is further created with the entrance of the other parts. The theme is gradually repeated in
different tonal intervals adding up other melodic variations. The harmony avoids
modulations in the beginning to grant that the tonality is clearly established, but the
harmonic arrangements become progressively more complexes.
Bach had made new researches on the fugue during his final years, with other
exemplary works, as in The Art of Fugue. However it was with The Well-Tempered
Clavier that the master consolidated and enriched in an unrivalled way all the
knowledge gathered until then about this musical form.
The fourth Bach’s creative period begins when he moves to Leipzig hired as
Kantor at St. Thomas School. He then resumes his work on sacred music as a means to
express his faith, although committed to write one cantata for each Sunday service or
religious holiday. In addition he intensively composes many instrumental pieces and
his well known and admired Passions.
The Partita #3, in A Minor, belongs to a series of six Germanic suites for
harpsichord which Bach called partitas, written in Leipzig. Those were the first works
published by Bach himself,
between 1726 and 1731, and they caused great effect in the musical milieu. They
contained genuine innovation and meant deep development for the suite, a musical
style widely spread in the Baroque period. Bach also felt free to enclose some unusual
dances in the partitas, like the burlesca or the scherzo included in this recording.
The last five years of the life of the German master represent his fifth creative
period, still in Leipzig. During those years Bach turned himself progressively apart
from the exterior world to focus on musical research and composition, creating works
embodying all the deep complexity of the Baroque polyphony and counterpoint. Pieces
like The Art of Fugue, Canonic Variations for Organ and The Musical Offering are
from that period, being works written as contrapuntal variations over only one initial
theme.
The Musical Offering was written after a visit that Bach made to the court of
King Frederic II, in Potsdam, where his son Carl Philipp Emanuel worked as a
harpsichordist. The King, who was a flutist, showed him a theme over which Bach
improvised. After his return to Leipzig the master worked to add up other contrapuntal
variations to the improvisation he had performed on the royal theme. Canons for several
instruments, two ricercares for keyboards and one triosonate are part of this work, one
of the most beautiful of the Baroque musical literature.
Ana Cecilia.
translation
J. Eduardo Ladeira
Download

“Foi uma bela ideia a de reunir numa mesma gravação obras de