Vestir-se poeticamente: literatura e design de superfície Dressing poetically: literature and surface design Rebelatto, Tatiane; Graduanda; Universidade Federal de Santa Maria/UFSM [email protected] Minuzzi, Reinilda; Doutora; Universidade Federal de Santa Maria/UFSM [email protected] Resumo O estudo propõe realizar discussões sobre o uso da literatura como referencial na criação de estampas para vestuário. Neste caso levou-se em consideração a produção poética de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade. No universo sensível das obras de ambos, busca-se, no caso do poeta português Fernando Pessoa, selecionar algumas de suas obras e a partir delas criar padrões de repetição para peças do vestuário feminino. Já no caso de Carlos Drummond, ele é relembrado na coleção do estilista Ronaldo Fraga, com base no poema: “Todo mundo é ninguém”, que dá nome à coleção. Palavras-chave: Design de Superfície. Estamparia. Literatura. Abstract The study proposes to conduct discussions on the use of literature as a reference in creating patterns for garments. In this case took into consideration poetry of Fernando Pessoa and Carlos Drummond de Andrade. In the sensible universe works of both, we seek, in the case of the Portuguese poet Fernando Pessoa, select some of his works and from them create repeating patterns for women's clothing pieces. In the case of Carlos Drummond, he is remembered in the collection of fashion designer Ronaldo Fraga, based on the poem: "Everyone is nobody", which gives its name to the collection. Keywords: Surface design. Prints. Literature. Introdução O design compreende diversas áreas de atuação e pesquisa com processos e metodologias específicas para cada uma. No caso do design de superfície, o acompanhamento de todas as etapas é essencial, pois que projetar a superfície implica o planejamento, adequação e viabilização de toda a área visível do produto. Em produções têxteis, a literatura é pouca frequente como meio de referência embora a subjetividade presente agregue interesse ao cruzamento entre moda, design de superfície e poesia. Tanto para a concepção dos padrões a partir de Fernando Pessoa, quanto para a indumentária de Ronaldo Fraga, buscou-se focar nas emoções ou sensações despertadas, resultando em padrões abstratos. Esse cruzamento multidisciplinar colabora na exploração de novas possibilidades, permitindo aflorar a sensibilidade e a imaginação por meio da interpretação individual. 1 SUPERFÍCIE E LITERATURA O termo “superfície” possibilita diversas aplicações e interpretações. Do ponto de vista do design, representa a união entre a forma e o acabamento, sendo a área visível, a extensão onde se toca, interage, visualiza. A superfície é, de certo modo, o resultado final de um projeto. O Design de Superfície visa trabalhar a superfície (...) conferindo à superfície uma carga comunicativa com o exterior do objeto e também o interior, capaz de transmitir informações que podem ser percebidas por meio dos sentidos, como cores, texturas e grafismos (FREITAS, 2011, p. 17). Evelise Anicet Rütchilling, coordenadora do Núcleo de Design de Superfície da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, afirma que o design de superfície: (...) é uma atividade técnica e criativa cujo objetivo é a criação de imagens bidimensionais (texturas visuais e tácteis), projetadas especificamente para a constituição e/ou tratamento de superfícies, apresentando soluções estéticas e funcionais adequadas aos diferentes materiais e processos de fabricação artesanal e industrial (RÜTHSCHILLING, 2006). O design de superfície pode abranger o segmento cerâmico, de papelaria e têxtil (RUBIM, 2004). Entender este universo provoca a pensar na totalidade do objeto, sua forma, função e suas interações. Nesta área os referenciais que inspiram podem ser os mais diversos possíveis, como a literatura dos poetas Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, pois as poesias carregam metáforas e analogias. Neste caso, designer, produto e usuário podem se relacionar de forma próxima, afetiva e questionadora, tendo em vista que criação e narrativa estão presentes moda e na literatura. 2 MODA E LITERATURA Nas coleções de moda, as estampas têm como principal função traduzir em imagens gráficas o conceito do produto, da coleção e da marca para a qual foram desenvolvidas, levando em consideração as especificidades de seu público-alvo, além de valorizar e diferenciar as modelagens das peças do vestuário (PEREIRA; RIBEIRO, 2008). Ronaldo Fraga, estilista brasileiro, desenvolveu uma coleção a partir das obras do poeta e escritor Carlos Drummond de Andrade, na semana de moda de São Paulo (SPFW out/inv), em 2005, a partir do poema "Todo Mundo é de Ninguém". A obra é um diálogo entre Todo Mundo e Ninguém, mediado por Belzebu, onde o estilista busca as sensações na simplicidade, usando o vocabulário do homem comum. Drummond foi o primeiro poeta a se afirmar após o movimento modernista no Brasil. Inseriu em suas poesias e contos os versos livres e a temática cotidiana do modernismo, tendo, inicialmente, como característica, a ironia, o humor sarcástico que joga com as palavras. Após, o poeta volta-se mais a sua vida, aos fatos que vivencia e ocorrem à sociedade, como a guerra e o sofrimento. Ao contrário de Fernando Pessoa que deixa evidente seu “eu” sensível ao amor, Drummond fala sobre o tema de forma amarga, não sendo nada sentimental e romântico. Porém, a característica que os torna semelhantes é a solidão que ambos descrevem. Os dois poetas questionam-se, gerando o “eu lírico”, distorcido, amargurado e depressivo. Para uma compreensão das possibilidades deste universo como referência criativa, a imagem (Fig. 1) ilustra o caminho que o estilista Ronaldo Fraga percorreu até o produto final. Figura 1 - Caderno de roupas, memórias e croquis – Registro do processo criativo de Ronaldo Fraga Coleção “Todo mundo é de ninguém”, out/inv 2005 Fonte: BARRA, 2014. Figura 2 - Coleção “Todo mundo é de ninguém”, out/inv- 2005 Fonte: ARTIGAS, 2014. 3 POESIA E CRIAÇÃO VISUAL A escolha da poesia de Fernando Pessoa para um experimento pessoal na área fez-se pela sua carga de sentimentos. O poeta soube expressar todos os anseios que o ser humano leva dentro si, soube colocar no cotidiano dos leitores a incessante busca por compreender e valorizar as subjetividades do indivíduo. Para a criação das estampas, estudaram-se os perfis do poeta e seus heterônimos, sendo possível gerar padrões de acordo com as características de cada um. Após a análise dos poemas com identificação do tema central da obra, fizeram-se estudos compositivos (desenho/criação). Destes, originaram-se os rapporst1 manuais e manipulados digitalmente. Depois, a simulação digital para aplicação em vestuário. Um dos heterônimos de Fernando Pessoa é Alberto Caeiro, que pensava de forma simples, não havendo mistérios nas coisas. Em sua poesia, não demonstra preocupação com estéticas e rimas, é tido como poeta desleixado. Em uma de suas composições deixa evidente sua maneira de pensar e sentir. A obra escolhida do autor para análise foi “Hoje de Manhã”. Hoje de manhã sai muito cedo, Por ter acordado ainda mais cedo E não ter nada que quisesse fazer Não sabia caminho tomar Mas o vento soprava forte, varria de um lado E segui o caminho para onde o vento Me soprava nas costas Assim tem sido sempre a minha vida, E assim quero que possa ser sempre Vou onde o vento me leva e não me sinto pensar. Nesta poesia o autor traz a passagem dos dias como tema central, evidenciando sua despreocupação com a vida. Nas palavras destacadas é possível formar uma imagem que traga leveza e sutileza nas cores, algo harmonioso e com movimento. 1 Rapport (fr.), significa repetição. Figura 3 - Desenho inicial, estudo de cor e rapport finalizado Fonte: Autoria própria Figura 4 - Repetição do Rapport Fonte: Autoria própria Figura 5 - Aplicação no Vestuário Fonte: STUPELO, 2014 O segundo heterônimo foi Ricardo Reis, cujo estilo poético é refinado, mediado pela frieza e pelo controle emocional. Oferece reflexão sobre as coisas, define a vida como passageira. A poesia selecionada de Ricardo Reis foi: “Segue teu Destino”. Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam. Pode-se dizer que Ricardo Reis traz uma simplicidade no viver, sem muitos apegos e perguntas sobre a vida, mas também não deixa de refletir sobre a saudade, a passagem dos dias e sobre si próprio. Figura 6 - Desenho inicial e rapport finalizado Fonte: Autoria própria Figura 7 - Repetição do Rapport. Fonte: Autoria própria Figura 8 – Aplicação no Vestuário Fonte: STUPELO, 2014. Como seu heterônimo Alberto Caeiro, Fernando Pessoa não deixa de expressar a efemeridade do tempo. No poema “Ladram uns cães à distância”, de uma maneira não tão sutil, traz uma carga de saudade de algo que deixou passar sem importar-se. Cai uma tarde qualquer, Do campo, e eu deixo de ver Um sonho meio sonhado, Em que o campo transpareceu, Está em mim, está a meu lado, Ora me lembra ou me esquece, E assim neste ócio profundo Sem males vistos ou bens, Sinto que todo este mundo É um largo onde ladram cães. A partir da produção literária selecionada, seguiram-se os estudos práticos, com a produção dos padrões para estamparia. Figura 9 - Desenho inicial, estudo de cor e rapport finalizado Fonte: Autoria própria Figura 10 - Repetição do Rapport Fonte: Autoria própria Figura 11 - Aplicação no Vestuário Fonte: LEMOS, 2014. CONSIDERAÇÕES FINAIS A estampa não deve ser vista como um ornamento isolado, já que recebe funções como a comunicação entre produto e consumidor. Nesta pesquisa o uso de um referencial não convencional atendeu à necessidade de criar estampas diferenciadas que se comunicassem com o público de forma sensível e afetiva. Os dois poetas analisados disponibilizaram uma vasta narrativa de histórias, o que possibilitou aflorar questões sobre o tempo, trazendo essa produção para a contemporaneidade da moda e do design de superfície. O estudo permitiu uma proximidade com as obras dos poetas, despertando a sensibilidade e a imaginação ao utilizar um referencial (a Literatura) ainda pouco explorado no campo do design de superfície e da moda. Referências ARTIGAS, L. Moda pra Ler. Livro de Guarda-Roupa. Disponível em: < http://modapraler.wordpress.com/page/24/ > Acesso em: 08 abril 2014. BARRA, B. Hoje em Dia. Ronaldo Fraga e seu ateliê de memórias em 300 páginas. Disponível em: < http://www.hojeemdia.com.br/m-blogs/necessaire- 1.685/ronaldo-fraga-e-seu-ateli%C3%AA-de-mem%C3%B3rias-em-300p%C3%A1ginas-1.45464 > Acesso em: 07 abril. 2014. FRANÇA, I. Fernando Pessoa na Intimidade. Rio de Janeiro: Paisagem, 1987. FREITAS, O. T. M. Design de Superfície: as ações comunicacionais táteis nos processos de criação. São Paulo: Blucher. 2011. LEMOS, A. Tricô com Bossa. Inspirações em Branco. Disponível em: http://www.tricocombossa.com/2011/12/inspiracoes-em-branco.html> Acesso em: 08 abril. 2014. PEREIRA, F. C. G.; RIBEIRO, J. P. Superfícies: Novas Fronteiras para o Design. Anais do 8º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. São Paulo, 2008. Disponível em:<http://www1.sp.senac.br/hotsites/arquivos_materias/ped2008/39520.pdf> Acesso em: 18 jan. 2014. RUBIM, R. Desenhando a Superfície. São Paulo: Rosari, 2004. RUTHSCHILLING, E. A. Design de Superfície. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2008. STUPELO, A. Bloginvoga. Emily Didonato para Vogue Espanha Agosto 2013 por Miguel Reveriego. Disponível em <http://www.bloginvoga.com/2013/07/19/emilydidonato-para-vogue-espanha-agosto-2013-por-miguel-reveriego-editorial/ > Acesso em: 07 abril. 2014.