UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ STEFANI ARRAIS NOGUEIRA “O DIVINO” VERSUS O DININO: O MARQUÊS DE SADE E A CRITÍCA À RELIGIÃO CURITIBA 2008 STEFANI ARRAIS NOGUEIRA “O DIVINO” VERSUS O DININO: O MARQUÊS DE SADE E A CRITÍCA À RELIGIÃO Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof.ªDr.ª Ana Paula Vosne Martins CURITIBA 2008 AGRADECIMENTOS. À professora Ana Paula Vosne Martins, pela excelente orientação e apoio. Pela primorosa atenção e dedicação aos seus orientandos. Aos meus grandes amigos e colegas de graduação, Ana Luiza Mendes, Priscila de Lima, Renata Marcela Gabardo de Sousa, Elen Biguelini, Fernando Prestes, Daniele Shorne, Leandro Francisco de Paula, Leonardo Diogo C. N. Machado, Juliana Locatelli, Robinson Abbade, e a todos os demais. RESUMO Essa monografia tem por objetivo analisar a crítica que o Marquês de Sade promoveu contra a religião e a idéia de Deus, através do exame de algumas de suas obras e da contextualização do seu momento histórico. Nascido no século XVIII, o Marquês de Sade se mostrou como uma das personagens mais contraditórias e polêmicas da História francesa. Escritor e filosofo, suas obras demonstram um forte caráter sexual ao mesmo tempo em que criticam cruamente a religião e os valores morais. Sade compartilhou do contexto ilustrado e do movimento da literatura libertina, no entanto, suas obras ultrapassaram ou subverteram os conceitos de ambos, principalmente quando nos referimos aos conceitos de Natureza. Fortemente ligado as doutrinas materialistas e ao pensamento ateu, Sade foi responsável por um dos discursos mais intensos e peculiares contra a Igreja e à idéia de Deus. Além disso, sua filosofia influenciada pelas doutrinas materialistas e atéias foi responsável por um relativismo absoluto que acabou por fundar como valor fulcral o Mal. Palavras chave: ateísmo, materialismo, filosofia do Mal, Natureza. ABSTRACT The objective of this monograph is analyzing the Marquis de Sade criticism promoted against religion and the idea of God, through the examination of some of his works and historical contextualization. Born in the XVIII century, Marquis de Sade became one of the most contradictories and polemics figures of French History. Writer and philosopher, his works demonstrated a strong sexual character and at the same time, a raw criticism towards religion and the moral values. De Sade shared the illustration and the libertine literature context; nevertheless, his works overcame or subverted the concepts from both, mostly when referred to the concepts of Nature. Strongly attached with the materialist doctrines’ and the atheist thought, De Sade was responsible for one of the most intense and peculiars discourses against the Church ant the idea of God. Also, his philosophy influenced by the materialist doctrines’ and atheistic was responsible for an absolute relativism that eventually founded as a fundamental value the Evil. Key words: atheism, materialism, Evil Philosophy, Nature. SUMÁRIO 1 - INTRODUÇÃO ....................................................................................................6 2 - Sade e o Século XVIII ........................................................................................10 2.1 - O movimento das Luzes no século XVIII na França.....................................11 2.2 - A importância da Literatura erótica no século XVIII e as origens dos movimentos libertinos nos séculos XVI e XVII. ...................................................17 2.3 - O Marquês de Sade dentro do Iluminismo e da tradição literária libertina...20 3 - Sade contra a Natureza ......................................................................................24 3.1- Sade e Hobbes: as naturezas espelhadas.........................................................25 3.2 - Sade e Rousseau: as naturezas opostas ..........................................................30 4 - Sade contra Deus ................................................................................................35 4.1 - Os materialismos de Sade ..............................................................................36 4.2 - Sade/Ateu.......................................................................................................40 5 – CONCLUSÃO....................................................................................................46 REFERÊNCIAS.......................................................................................................49 ANEXO – CRONOLOGIA.....................................................................................52 6 1 - INTRODUÇÃO Donatien Alphonse François de Sade (1740 – 1814), mais conhecido como Marquês de Sade, foi um escritor e filósofo francês famoso por sua controversa vida e obra. Seus escritos estão marcados por uma estética sexual bastante violenta e por uma filosofia que rebate todos os valores morais e religiosos de forma intensa. Uma das características mais marcantes desse autor foi o fato dele ter passado mais de trinta anos de sua vida em prisões ou sanatórios. Alguns especialistas atribuem a esse fato a natureza tão característica dos seus escritos. Produto do século XVIII francês, a obra de Sade é permeada pela estética ilustrada e também pela literatura libertina. No entanto, Sade não é fiel a nenhum desses movimentos. Seus escritos denunciam mais fortemente o seu envolvimento com as doutrinas materialistas e o seu extremo ateísmo. Suas obras obedecem aos preceitos de crítica contundente à moral e aos costumes, especialmente os de natureza religiosa. Nesse sentido, a proposta desse trabalho foi compreender como Sade formula sua crítica à religião. Todavia, não foi intenção nossa promover uma história de caráter bibliográfico, mas sim uma História das idéias a partir da produção intelectual específica de um indivíduo que se preocupou em escrever e expor seus pensamentos a respeito do papel que a religião exercia na sociedade. O objeto dessa pesquisa é a crítica libertina formulada pela literatura erótica e satírica, na qual Sade ocupa um lugar bem específico por não se encaixar em nenhuma escola ou modelo estilístico de conteúdo filosófico. Podemos dizer que sua obra consegue estremecer com frieza e requintes matemáticos qualquer verdade vigente. E é essa sua característica que vem levantando no passar dos anos grandes questões a respeito da sua produção, vida e pensamento. Desde a republicação de seus trabalhos no século XX muito foi discutido e dito sobre Sade. Em 1909, foram publicados alguns de seus escritos e uma biografia por Guillaume Apollinaire. Na década de vinte são os surrealistas que reconhecem em Sade seu espírito. Todavia, esse interesse não se desdobrou em apoio generalizado. A 7 censura manteve proibida a venda das obras do Marquês nas livrarias francesas por boa parte do século, só no ano de 1968 é que sua comercialização foi liberada. 1 Muitos foram os que se debruçaram sobre os seus escritos na tentativa de compreendê-lo. Dentre esses estudiosos estão Maurice Blanchot, Roland Barthes, Simone Beauvoir, Georges Bataille, Pierre Klossowski entre outros. Todos, de forma aproximada ou distinta, promoveram excelentes análises da vida e da obra do libertino. Todavia, é no tema da religião que iremos nos concentrar. Temos obviamente uma concentração de trabalhos de análise de estética literária no campo das Letras, análise de suas idéias e de seu pensamento na Filosofia e na História, além de trabalhos que procuraram obter respostas para a sua literatura na psicologia e sociologia. Dessa forma, é através de suas obras e da análise do pensamento sadiano, que se procurou observar como e de que forma o Marquês formula sua crítica à religião. As questões se concentraram num esforço em responder como o libertino desenvolveu uma filosofia que rechaçaria de forma tão visceral valores cristãos e inauguraria um ateísmo tão implacável. Na maioria das obras sadianas existem pelo menos três discursos recorrentes, o primeiro ataca ferozmente a idéia da religião; o segundo enaltece a filosofia materialista e o terceiro ataca diretamente a idéia de Deus. As três obras selecionadas para análise desse estudo são exemplos bem claros desse pensamento sadiano. Escritos entre 1772 e 1795, essas obras já contém todo o espírito libertino de Sade, todos os seus discursos mais fervorosos em favor da liberdade absoluta, do crime e do mal. A primeira obra analisada foi o Diálogo entre um padre e um moribundo. Porém, não somente o diálogo em si é o objeto de análise. Na edição utilizada encontramos outros textos-chave que nos auxiliam a compreender melhor o esforço que Sade empreende contra Deus e todas as religiões. Em Fantasmas- uma carta que Sade escreve como que direcionada a própria figura de Deus -, elabora um discurso feroz que ataca a idéia de Deus e o poder da Igreja. Já o primeiro e o segundo discursos intitulados Da imortalidade da alma, retirados da edição da Nova Justine, podem ser considerados um verdadeiro exame 1 MORAES. Eliane Robert. Lições de Sade. Ensaios sobre a imaginação libertina. 8 materialista sobre os fundamentos da idéia de alma pregada pelo cristianismo. Do Inferno é um fragmento encontrado na obra História de Juliette que basicamente tem como objetivo criticar duramente o dogma do inferno e também em denunciar o poder que a Igreja mantém sobre os fiéis ancorado no medo das punições eternas. Os outros dois fragmentos textuais são os 44 Mandamentos da Sociedade para os Amigos do Crime, também retirado da História de Juliette, e um panfleto intitulado “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”. A segunda obra estudada foi Justine, ou os infortúnios da virtude. Considerada por muitos como a obra mais polêmica escrita por Sade, na verdade é composta de três livros. Justine foi originalmente escrita em 1787, período que Sade encontrava-se preso na Bastilha. Na sua forma original, era uma novela curta que seria inserida em um livro de contos. Em 1791 uma nova versão de Justine, ou os infortúnios da virtude é publicada. O texto original é ampliado e transforma-se num romance. Cinco anos depois, Sade reformula a obra e ela é publicada como A Nova Justine. Nessa última versão, acrescenta-se a obra novas passagens e novos discursos filosóficos, além disso, alguns detalhes são alterados, como situações e personagens. A edição utilizada aqui é uma tradução da segunda edição de 1791. A última obra examinada foi A Filosofia na Alcova. Publicada em 1795 e com o subtítulo de Escola de Libertinagem, é considerado por muitos como a obra que melhor condensa a filosofia de Sade. Nessa obra, podemos perceber o furor antireligioso mais extremado de Sade. Para a análise das obras sadianas foi necessário extrair dos textos as principais linhas discursivas que denotavam o deboche e a crítica do autor as crenças religiosas. Foi esquematizado um fichário temático onde se destacou os pensamentos do autor a respeito da religião e da idéia de natureza. Passada essa etapa utilizamos os conceitos-chave que contribuíram para o entendimento do texto. Trabalhou-se com o conceito de erotismo empregado por Georges Bataille 2, por esse estabelecer uma relação entre percepções do erotismo sensual e o pensamento religioso. Também o conceito de crítica empregado por 2 BATAILLE, Georges O Erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. 2ª edição. 9 Reinhard Koselleck 3 se fez necessário por instituir como intuito primário da crítica a busca pela verdade. A partir da leitura e da análise dessas obras do Marquês de Sade foi possível notar a forma extremada do discurso sadiano no ataque às crenças religiosas. Também foi possível perceber as diversas influências literárias, sociais, históricas e filosóficas recebidas pelo autor e como ele se utilizou destas para legitimar sua própria filosofia. O trabalho é composto por três capítulos, cada qual dividido entre dois ou três tópicos. O capítulo inicial concentra-se na análise do contexto histórico no qual o Marquês de Sade está inserido e como que esse contexto influencia ou não o seu pensamento. Dessa forma, analisamos a configuração da filosofia das Luzes no século XVIII e também a importância da literatura libertina. Esse capítulo também reforça a idéia de que Sade, apesar de estar inserido no contexto iluminista e de adotar a estética da literatura libertina, o faz ao seu modo. Isso acaba por distanciá-lo dos próprios filósofos iluministas e dos demais autores libertinos. Já o segundo capítulo concentra-se em uma reflexão sobre a importância do conceito de natureza no pensamento e na obra sadiana. Nesse sentido procuramos entender as inter-relações de Sade com os filósofos do século XVII (Thomas Hobbes em especial) e do século XVIII (Rousseau). O objetivo principal dessa discussão foi a de localizar o pensamento sadiano dentro de uma tradição filosófica que refletiu sobre o conceito de natureza. O último capítulo da monografia dedica-se a examinar de que forma Sade promove seu ataque a Deus e como seu ateísmo se fomenta. Além disso, também é examinado o alcance das filosofias materialistas no pensamento ateu do Marquês. Para isso foi indispensável fazer uma aproximação de Sade com La Mettrie e Holbach, seus contemporâneos materialistas e declaradamente ateus. Na finalização do capítulo tratamos do conceito e da primazia do Mal no pensamento sadiano como resposta da natureza à benevolência promovida pelo pensamento cristão. KOSELLECK, R. Critica e crise. Tradução de Luciana Vilas-Boas Castelo Branco. São Paulo: Contraponto, 1999. 3 10 2 - Sade e o Século XVIII Nunca poderemos separar um homem do seu tempo, por tal razão, para uma melhor compreensão dos escritos e do pensamento do divino Marquês, é necessário percorremos o contexto cultural e filosófico que circunscreveu a sua vida. Entender de que forma Sade se aproximou ou contestou o movimentos das luzes, ou Iluminismo, é essencial para a compreensão dos seus escritos. Da mesma forma, analisar a sua inserção no campo da literatura libertina se faz necessário por essa se configurar como a principal identidade de Sade, visto que antes de tudo, ele foi um escritor. Para entender Sade, deve-se apreender o século XVIII europeu, ou melhor, francês. O intuito desse capítulo é delinear as posturas do divino Marquês quando inserido nessa atmosfera cultural, literária e filosófica tão específica que foi o século das luzes. Para tal, devemos primeiramente conceituar quais foram as principais características tanto da filosofia ilustrada, quanto da literatura libertina, para finalmente confrontá-las com a estética própria do filósofo libertino que foi o Marquês de Sade. 11 2.1 - O movimento das Luzes no século XVIII na França Para melhor entendermos as obras e o pensamento do Marquês de Sade, faz-se necessário compreendermos exatamente em que contexto cultural ele estava inserido quando produziu seus textos mais polêmicos e mais famosos. O divino marquês é fruto do século XVIII, mais especificamente do século XVIII francês. O denominado século das Luzes fora chamado assim pela especificidade de um movimento que ali nasceu e se espalhou pelo restante da Europa e do mundo. O iluminismo não foi de forma alguma um movimento ou um momento exclusivamente francês, mas é irrefutável a enorme contribuição de seus filósofos para as Luzes. Como Montesquieu, Diderot, D’Alambert, Rousseau e, talvez o mais famoso dentro do movimento como um todo, Voltaire. Talvez a fama recaia sobre esses ilustres do século XVIII de forma mais evidente por terem eles sido os principais responsáveis por um dos mais importantes símbolos do Siècle des Lumières, a Enciclopédia ou Dictionaire raisonné des sciences, des arts, et des métiers. A Enciclopédia é considerada um dos veículos mais importantes para a divulgação do pensamento iluminista na França e na Europa. Sua publicação tornou possível que as idéias dos filósofos das Luzes se propagassem de forma mais eficaz pelo mundo. Nesse ponto, podemos referenciar a importância que a obra escrita, a literatura como um todo, teve na gênese e a transformação do movimento. Essas novas idéias, novas formas de se compreender os engenhos do mundo e do universo foram expressos em letras, em cartas, em livros. É na escrita que trafega o ideário iluminista, como explica Pierre Chaunu4, é através da escrita, em todas as suas formas, que se concretizam e se transmitem as idéias das Luzes Ao explicarmos dessa forma como se deu o movimento das luzes na Europa, não podemos deixar de retroceder aos séculos anteriores, para procurar neles o início desse processo de mudanças tão profundas no pensamento e nas formas de se entender o mundo como um todo. 4 CHAUNU. Pierre. A civilização da Europa das Luzes Vol. I; Tradução Manuel João Gomes. Lisboa; Editorial Estampa 1985. 12 Segundo Ernest Cassirer, “en el siglo XV se inicia el movimento literárioespiritual del Renascimento; en el XVI llega a su ápice la reforma religiosa; en el XVII el triunfo de la filosofia cartesiana cambia por completa toda la imagen del mundo”5. Esses três séculos em conjunto são fundamentais para compreendermos as mudanças que iriam ocorrer no século XVIII europeu. O Renascimento se caracterizou como um esforço intelectual que procurou reabilitar o humano, provocando uma primeira ruptura entre as verdades dogmáticas da religião e dos novos conhecimentos. Já as reformas religiosas acabaram por confirmar uma ruptura maior entre essas verdades, mas sem deixar de primar pela existência do divino. Ainda mais relevante para o século das Luzes, foram as transformações que ocorreram na Europa durante o século XVII. Falamos assim do século da filosofia dos sistemas, do pensamento cartesiano. O século XVII surge com a força dos filósofos e pensadores racionalistas e a ascese da razão. É o século de Descartes, Leibniz, Malebranche e Espinosa, dos grandes sistemas de pensamento racionais, perfeitos e matemáticos. Para Cassirer o Iluminismo deve muito a estes três períodos que o antecedem, por estabelecerem o alicerce de onde brotaram as novas idéias e pensamentos que revolucionaram o século XVIII. Nesse tocante, podemos estabelecer uma relação ainda mais importante entre os filósofos racionalistas e os ilustrados. Uma palavra extremamente cara aos filósofos iluministas é a “razão”. “La razón se le convierte en punto unitário y central, en expresión de todo lo que anhola y por lo que se empeña de todo lo que quiere y produce”6. Uma das grandes rupturas que ocorreu entre os iluministas e os filósofos do século XVII está em como ambos compreenderam o que seria a razão e como empreendê-la nos processos intelectuais. Para os racionalistas do século XVII, a razão podia ser entendida como um processo de dedução superior, alimentado por dados conhecidos a priori, ou seja, o processo de raciocínio estava dissociado da experiência. 5 CASSIRER, Ernest. Filosofia de La Ilustración. Trad. Eugenio Imaz. Fondo de Cultura Econômica. México – Buenos Aires.1950. p. 17 6 Op. Cit. p. 21 13 Os iluministas herdam do cartesianismo o primado da razão, mas é Locke, que já no século XVII antecipa a experiência como fundamento filosófico. A herança empirista posta em prática pelos Iluministas está fortemente fundamentada, especialmente, em Locke, que acaba influenciando de forma mais decisiva os filósofos das Luzes. É pela defesa da observação e da análise contra o espírito de sistema que Locke se impôs como um mestre da sabedoria aos filósofos franceses do século XVIII. Locke valorizou definitivamente o papel da experiência; ele ensinou a fazer a análise das idéias a fim de se redescobrir a experiência concreta original. Com isso Locke abria caminho para a crítica de nossas idéias morais e de nossas representações. Com isso, também o termo ‘metafísica’ mudava de sentido, para designar a análise das idéias. 7 Os iluministas são herdeiros da primazia da razão, mas sua especificidade está justamente no ponto em que essa razão é entendida de forma distinta. Os filósofos das luzes se afastam dos racionalistas na medida em que incorporam o sentido de experiência no campo da razão, dissociando-o parcialmente do sistema metafísico apreendido pelos racionalistas. El siglo XVIII renuncio a este genero y a esta forma de deducción, de derivación y fundación sistemáticas. Ya no compite con Descartes, Malembranche, Leibniz y Spinoza por el rigor sistemático y la perfección sistemática. Busca otro concepto de la verdade y de la “filosofia”, un concepto que les amplie, que les de una forma más libre y móvel, más concreta y viva.8 Aliás, a experiência é fundamental aos iluministas, isso pode ser devido à evolução da própria ciência natural, onde a observação e a experimentação eram tão relevantes. Experiência e pensamento andam juntos. A razão, para os filósofos das Luzes, ao contrário dos racionalistas, não era o lugar das idéias inatas, mas sim uma energia que só poderia ser alcançada pelo caminho das experiências. Tudo isso empreenderia um esforço que levaria à descoberta da verdade. “La razón, legos de ser uma posesión, es uma forma determinada de adquisición”9. 7 Cf. CHATELET, François (Org.). Historia da filosofia: idéias, doutrinas. Tradução Maria Jose de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1973-74. 8 Idem 6 9 Idem 6. p. 23 14 Como podemos perceber, a razão se constitui como o elemento mais importante dentro da filosofia iluminista é graças a ela que os filósofos puderam praticar mais amplamente aquilo pelo qual foram mais famosos, a crítica. Para Koselleck a razão iluminista é responsável pela instauração de uma critica generalizada, que extrapola os limites da esfera política, recaindo sobre a moral e os costumes. A crítica é uma arte do julgamento, sua atividade consiste em interrogar um fato dado para conhecer a sua verdade, a sua justeza ou a sua beleza para, a partir do conhecimento, fazer um julgamento que possa estenderse também às pessoas 10. Esse processo de crítica permitiu aos pensadores iluministas desenvolverem as idéias mais diversas sobre os mais variados campos que a mente humana poderia alcançar. Eles criticavam a sociedade, o poder, a justiça, os costumes, a moral e talvez mais especialmente a religião e o poder. Aliás, são nesses campos que temos os escritos e discursos mais fervorosos dos iluministas. No campo político foram alvos constantes de ataques as formas de poder absolutistas e as questões sobre a propriedade. Já no campo religioso, criticou-se a intolerância e o poder institucional da Igreja. Todavia, não podemos descrever de forma homogênea o que exatamente fora criticado nesses campos. Uma das principais características do Iluminismo foi justamente a pluralidade do pensamento. Não existia um consenso geral sobre todos aos assuntos. No campo político havia os que apoiassem a propriedade privada, ao mesmo tempo em que criticavam o regime absolutista. Para Kant o Iluminismo ou Aufklärung seria a saída do homem de sua menoridade da qual ele próprio é culpado. Um dos impedimentos à maioridade do homem seriam as superstições e preconceitos difundidos pela religião. Isso explicaria a razão pela qual a religião foi tão criticada e tão discutida pelos filósofos do século XVIII. 10 KOSSELECK. R. Le regnè de la critique. Paris: Minuit, 1979. APUD: MELLO. Maria Elizabeth Chaves de. Critica dos Séculos e das Luzes. Terra Roxa e outras terras: Revista de Estudos Literários da Universidade Federal Fluminense. v. 1, n. 1, p. 64-72, jan./jun. 2002. Disponível em: <http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol1/V1a_MECM.pdf>. Acesso em: 06 abr. 2008. p. 65 15 Por essa mesma razão é que podemos encontrar uma grande divergência entre os filósofos. Uma tendência característica de muitos pensadores da época, bastante influenciada pelos resultados das reformas religiosas e pela idéia de tolerância, foi a prática do deísmo. Muitos filósofos consideravam-se deístas, dentre eles Voltaire. Fundamentalmente o deísmo pregava o abandono dos ritos e dogmas institucionalizados - especialmente no cristianismo -, mas não abandonava a idéia de um Ser Supremo, que poderia ser o próprio Deus cristão. Além do deísmo, os iluministas advogavam a primazia da Natureza como um estado supremo e que ditaria alguns princípios universais à humanidade. Por outro lado, influenciados pelo materialismo renovado na época por outros pensadores, temos o surgimento de uma doutrina que abandonava de vez a idéia da existência de Deus e primava na natureza e na matéria a regência do Universo, o ateísmo. Os mais famosos filósofos e conhecidos ateístas foram Diderot, La Mettrie e Holbach. Porém, suas crenças incomodavam os próprios iluministas, especialmente Voltaire, que considerava a idéia do ateísmo monstruosa. Todavia, essas questões sobre a crítica iluminista à religião e o lugar especial que o divino Marquês possui nessa querela serão retomados nos próximos capítulos, assim como a compreensão que este tinha da própria Natureza. A Natureza ilustrada se constitui como a fonte dos princípios mais caros aos filósofos do século XVIII. Dentre tais princípios encontramos a liberdade e a igualdade. Para Kant a liberdade é o valor mais importante para o homem. Entende-se então, que um dos princípios máximos do Iluminismo seria a liberdade de pensamento e a liberdade política. A liberdade de política tomou várias formas, seja uma forma liberal que não implicasse participação popular, como em Montesquieu e Voltaire, seja numa forma democrática que fundasse a liberdade na vontade da nação, como em Rousseau.11 Outro principio muito caro aos iluministas e que está expresso perfeitamente na Enciclopédia é a igualdade: “a igualdade é o fundamento e o principio da liberdade... 11 ROUANET. Sergio Paulo. O desejo libertino entre o iluminismo e o contra-iluminismo; In: NOVAES. Adauto. O Desejo; São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p. 181 16 Posto que a natureza seja a mesma em todos os homens, é claro que segundo o direito natural cada um deve estimar e tratar os outros como seres que lhes são iguais, isto é, homens como ele”.12 Visto que é outro principio extremamente importante e intrinsecamente ligado à idéia de liberdade, o igualitarismo dos pensadores iluministas refere-se, principalmente em dois campos, ao econômico e ao social. A desigualdade econômica e a miséria foram assuntos muito discutidos pelos ilustrados. Segundo Rousseau, numa sociedade organizada, ninguém deveria ser tão pobre que precisasse vender-se, nem tão rico que pudesse comprar os outros.13 Todavia, nem todos os ilustrados eram contrários a uma sociedade hierarquizada. Porém, podemos entender a idéia de igualdade dentro da esfera legal, como igualdade de todos perante as leis. O que implicaria dizer que não se estava cogitando uma sociedade sem classes sociais, mas sim, uma sociedade, na qual mesmo segmentada, todos os cidadãos seriam percebidos como iguais. A soma das idéias ou princípios de liberté et igualité acaba por desenvolver toda uma teoria, todo um pensamento que permeia as próprias noções de moral para os iluministas. Segundo Rouanet, quando falamos de moral iluminista podemos destacar três características principais de pensamento. Primeiramente, a moral da Ilustração era secular, mas era possível salvaguardar a maioria dos preceitos tradicionais, fundando a virtude, seja na natureza, seja no interesse coletivo. Segundo, essa moral era eudemonista e advogava a libertação dos sentidos, nos limites compatíveis com o interesse social. Terceiro, e talvez mais importante, a moral da Ilustração pregava um relativismo mitigado, pelo qual a variedade dos usos e costumes era limitada por certos princípios universais, sintetizados na “regra de ouro”: tratar os outros como gostaríamos de ser tratados.14 12 Idem 11. p. 176 Idem 14 Idem p. 181 13 17 2.2 - A importância da Literatura erótica no século XVIII e as origens dos movimentos libertinos nos séculos XVI e XVII. O movimento libertino expressou-se, assim como o iluminista, através dos textos escritos, especialmente da literatura. Convém salientar que literatura libertina e literatura erótica ou pornográfica somam-se em conceitos. Contudo, o mais interessante foi a importância enorme que esse tipo de literatura teve ao auxiliar na divulgação dos princípios e ideais iluministas. Erotismo e pornografia sempre existiram, desde os primórdios da expressão escrita ou pictórica. Todavia, quando falamos de literatura libertina e literatura erótica, os termos devem ser explicados. Para compreendermos a especificidade do tipo de literatura que encontramos no século XVIII, sua ligação com a filosofia Ilustrada e a denominação de literatura libertina, devemos retornar alguns séculos na história da Europa. Assim como fizemos a retomada dos antecessores históricos da Ilustração, podemos traçar uma linha semelhante ao pensamento libertino. Podemos dizer que a literatura libertina é herdeira direta de uma corrente de pensamento do século XVI denominada libertinismo. De acordo com Eliane Robert de Moraes podemos remeter a libertinagem ao século XVI, onde um clima de rebeldia já era percebido. Suas primeiras manifestações coincidem com o surgimento, em vários pontos da Europa, de novas correntes culturais e políticas que vêm ameaçar a hegemonia da história sacra tradicional. Desafiando a ortodoxia “barroca” e criando modelos alternativos que impregnam a cultura popular da época, esses movimentos de resistência propõem a retomada de alguns ideais “renascentistas”. 15. Existe aqui um paralelo interessante entre Ilustração e libertinagem. O século XVI foi o século das reformas religiosas, momento em que as contestações ao poder da Igreja e as verdades da revelação se intensificaram. Concomitantemente a isso, 15 MORAES. Eliane Robert. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 79. 18 temos o aparecimento de várias obras de cunho erótico que satirizam tantos os católicos quanto os protestantes. Mais curioso ainda, é que essas obras são originadas dentro de ambos os espaços religiosos. Percebemos então que nas origens da palavra a libertinagem ou o libertino estão fortemente associados aos temas religiosos. Essa associação é feita através da própria crítica às crenças ou do deboche. Importante ressaltar que o termo, ainda nesse período tenha uma especificidade não exatamente erótica, já denotava uma pessoa, grupo ou pensamento que se desviavam dos preceitos morais e religiosos vigentes.16 No século XVII, uma literatura libertina começa a aparecer na cena cultural francesa. No seu conteúdo, continuamos a notar tanto a descrença em credos religiosos, quanto uma estilização erótica e subversiva. O próprio “título” de libertino era dado àqueles escritores e pensadores que se manifestavam de forma contrária à moral religiosa. Todavia, mesmo que dotado dessa característica contestadora é só no século seguinte que a identidade do libertino vai se tornar mais fortemente antireligiosa por vincular-se definitivamente ao ateísmo. Somado ao ateísmo dos libertinos do século XVIII, outra característica irá marcar profundamente o seu entendimento isto é, a ligação entre libertinagem e transgressões morais e sexuais Isso nos leva a pensar que inicialmente, os libertinos se caracterizavam pelo desafio aos dogmas da religião e à autoridade do poder, com o passar do tempo, eles vão substituindo a rebeldia política e religiosa pela afronta à moral. 17 O que notamos é que duas noções de libertinagem parecem se fundir no século XVIII na França. Uma libertinagem espiritual, sem dúvida associada ao pensamento ilustrado e difundido pela literatura, e por outro lado, uma libertinagem de costumes, centrada na própria sociedade, seja ela aristocrática ou burguesa. 16 HEUMAKERS, Arnould. Sade, um libertino pessimista. In: CHALIER, Gustave. De Safo a Sade: momentos na História da sexualidade. Tradução de Cid Knipel Moreira. Campinas-São Paulo: Papirus, 1995. p. 141 17 Idem 15. p. 82 19 Enquanto a libertinagem de espírito serviu para regar os romances pornográficos de ideais filosóficos, a libertinagem dos costumes serviu para, podemos dizer, inspirar passagens bastante sensuais nas páginas desses romances. De acordo com Eliane Robert Moraes, muitas das histórias descritas pelos livros libertinos, foram na verdade inspiradas por verdadeiros personagens libertinos que freqüentavam os mais importantes círculos sociais franceses. Outro elemento que pode ser percebido na sociedade francesa do século XVIII é o surgimento de diversas associações libertinas. Essa ligação entre as duas estéticas se mostra ainda mais evidente quando observamos a própria distribuição das obras libertinas e filosóficas. Para fugir da censura, muitos livreiros classificavam tais obras com o título de “livros filosóficos”. A utilização desse termo ajudava a disfarçar o conteúdo erótico e pornográfico dos romances. Editores e livreiros setecentistas usavam a expressão “livros filosóficos” para designar sua mercadoria ilegal, fosse ela irreligiosa, sediciosa ou obscena. Não se importavam com distinções mais refinadas, já que a maioria dos livros proibidos eram ofensivos por várias vias. No jargão desse comércio, livre significava às vezes “lascivo”, mas evocava também o libertinismo do século XVII – isto é, o livre-pensamento. Por volta de 1750, o libertinismo dizia respeito tanto ao corpo tanto quanto ao espírito, à pornografia e à filosofia. Os leitores sabiam reconhecer um livro se sexo quando viam um, mas esperavam que o sexo servisse como veículo para o ataque à Igreja, à Coroa e a toda espécie de abuso social. 18 A literatura libertina, segundo Rouanet19, devido a sua própria natureza menos séria e respingada de humor, foi um excelente instrumento para a divulgação dos ideais iluministas. As idéias dos filósofos das Luzes foram diluídas de sua austeridade e se propagaram com mais facilidade nesses contos satíricos e eróticos. 18 DARTON, Robert. Sexo dá o que pensar. IN: NOVAIS, Adauto. Libertinos Libertários. São Paulo; Cia das Letras, 1996. p. 26 19 Idem 11. 20 2.3 - O Marquês de Sade dentro do Iluminismo e da tradição literária libertina. Na esteira de vários autores libertinos, Sade desempenhou o seu papel ao denunciar os dogmas da religião nas suas obras. No entanto, se nos pautarmos pelo texto de Rouanet, perceberemos que em todos os elementos citados até o momento, sejam os que caracterizam a Ilustração, sejam os que denotam a estética libertina, o divino Marquês nunca se posiciona de maneira unívoca. Rouanet afirma que Sade, apesar de divulgar os valores das Luzes em sua obra, o fez quase que às avessas, promovendo um Contra-Iluminismo. Isso se aplica em quase todos os preceitos do Iluminismo. No quesito religião, a crítica se faz de forma bastante ferrenha e imbuída da crueldade específica de sua Filosofia do Mal. O “divino marquês” tem uma relação ambígua com todas as idéias da ilustração. Ele as difunde como os demais libertinos. Mas, ao contrário dos outros, ele freqüentemente as perverte, inflectindo seu conteúdo num sentido oposto ao desejado pelos filósofos. Ele investe contra todos os valores do Ancien Régime, e nisso é aliado das Luzes, mas agride, também, todos os valores da Ilustração. Ele subverte a sociedade e subverte a subversão. Esse duplo movimento se dá em todos os temas examinados.20 Se formos comparar, uma a um os princípios da Ilustração como Sade os demonstra em suas obras, notaremos que a valorosa liberdade proposta pelos iluministas toma em Sade outros significados. A idéia de que a liberdade é essencial a todos e se reflete tanto no pensamento quanto na política, em Sade é sobreposta ao princípio de que a liberdade é fundamental ao libertino, pouco lhe importando o outro. Dessa forma, a liberdade para Sade é a serviçal do libertino na busca de seu prazer e para Rouanet ela se confunde com a liberdade de oprimir (despotismo). No fundo, o grande libertino é apolítico, coerentemente com seu desprezo pelo interesse coletivo. (...) O libertino não se dá ao trabalho de combater as leis e as instituições humanas, porque está acima delas. Não se interessa pelo poder político, porque ele acabaria por escravizá-lo. A liberdade dos libertinos paira sobre todos esses limites, porque tende a algo mais – a soberania.21 20 21 Op. Cit. p. 178 Op cit. pp. 184-185 21 O que notamos é que o Marquês de Sade promove uma idéia de liberdade ao extremo, ultrapassando as intenções de seus contemporâneos iluministas. Apesar disso, o faz subvertendo todos os valores possíveis e imagináveis através de uma estética cruel, má e de perversões sexuais só encontradas na sua obra. O prazer está acima de tudo, à custa das verdades tolas, à custa de Deus, que obviamente não existe para o autor, pois é uma invenção odiosa, segundo ele. Quando falamos de um igualitarismo à moda sadiana, poucas ressonâncias ilustradas a tocam. A igualdade dos homens nunca seria possível ao libertino sadiano. O libertino é um ser de exceção, os outros estão à mercê de seu prazer, o que impera é a força sobre a fraqueza. Isso se aplica nas suas idéias sobre a miséria. Para Sade os pobres são uma escória, uma multidão destinada ao sofrimento e a morte. Sade concebe que a ascensão social se dê, mas somente sob a forma do crime, do roubo e do assassinato. Quanto às mulheres, Sade é extremamente incoerente. Ao mesmo tempo em que condena o casamento, a virgindade ou o poder das famílias sobre as filhas ou dos maridos sobre as esposas, o marquês afirma que as mulheres devem ser livres, mas também dispostas à fruição dos homens. A contradição se dá quando Sade enfatiza que os homens têm direito de possuírem qualquer mulher, pois elas nasceram para serem possuídas, são instrumentos para o prazer dos homens. A liberdade mais uma vez converte-se em liberdade para imperar. Dessa mesma forma, quando falamos em moral iluminista, em Sade ela se torna uma moral própria. A “regra de ouro” é a primeira a tombar diante do poder libertino. Por que razão respeitar o outro quando ele é o objeto do seu prazer? O libertino só segue os princípios da ilustração quando esses convêm ao próprio libertino, na medida em que os outros são meros objetos. Quanto à fonte inspiradora dos iluministas, a Natureza é para Sade o único estado que possuiria certa grandeza. Porém, a Natureza é cruel e está interessada somente na destruição para a criação da sua próxima vítima. A Natureza tão apreciada pelos filósofos das Luzes, que a consideravam uma mãe, para Sade caracterizaria uma verdadeira madrasta, cruel e destruidora. 22 Sade consegue promover uma inversão quase que total dos valores iluministas, subvertendo a própria idéia de Natureza, como mencionado, porém essa subversão é mais enfática devido ao fato do Marquês classificar a Natureza como a origem de todos os vícios. Sendo dessa forma sua gestora, também implicaria que os vícios não são mais do que naturais e por isso os homens podem exercê-los de bom grado, pois é vontade da Natureza. Talvez o lugar que o Marquês consiga se aproximar do espírito das Luzes seja aquele que critica duramente a religião, o cristianismo. Esse aspecto na verdade o aproxima daquela gama de pensadores materialistas que viam Deus como uma falácia. Sade escreve várias vezes isso na sua obra, além de citar seus materialistas favoritos. Mas e quanto ao deísmo? Sade o considera um absurdo, condena ao esquecimento o Ser Supremo caro a Voltaire da mesma forma que debocha do Deus cristão. Podemos dizer que Sade é responsável por um ateísmo próprio, que o separa do ateu da época e bem mais do deísta. Para alguns autores, seu ateísmo é quase fanático. Ao matar Deus e subverter a própria Natureza, Sade deixa o homem órfão de criadores e refém de seus vícios e de suas vontades, a morte só possui a finalidade de transformar a matéria; a vida é a busca incansável pelo prazer. Essa é a especificidade sadiana. Mesmo inserido intimamente no século das Luzes e envolvido em toda essa riqueza filosófica que procurou dar um novo olhar ao mundo e aos homens, o Marquês consegue contorcer essa visão e denotar numa estética demasiado individual sua Ilustração, ou melhor, sua anti-Ilustração. Do mesmo modo, sua inserção numa tradição libertina também se dá num estilo individual, contrariando os demais libertinos ao inverter os conceitos e idéias que deveriam transmitir ao mundo. Além disso, inova no estilo e na crueza das suas linhas. As suas descrições fervorosas fariam com que anos mais tarde os comportamentos e hábitos descritos em suas obras passassem a designar um tipo de doença ou fetiche, o sadismo. De um modo geral, podemos perceber que o contexto em que o divino marquês está inserido só ressalta suas características mais peculiares. Ao invés de se perder entre os vários filósofos iluministas ou de ser apenas mais um autor nas estantes proibidas das bibliotecas francesas, Sade assume uma identidade contrária a tudo e 23 marca o seu nome e seu pensamento de forma a representar uma das vozes que procuram dar uma visão própria e distinta ao Siècle des Lumières. 24 3 - Sade contra a Natureza No primeiro capitulo compreendemos que o papel que Sade denota a Natureza é bastante distinto daquele dos filósofos da ilustração. Todavia, sendo a Natureza tema extremamente importante para se compreender a filosofia sadiana, o esforço desse capítulo está em promover uma comparação do conceito de Natureza e homem natural entre Sade Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau. O intuito dessa comparação é delinear as aproximações e afastamentos existentes dentre os conceitos filosóficos mais clássicos de Natureza e o pensamento sadiano. No século XVII o inglês Thomas Hobbes formulou um conceito de Natureza que mais tarde influenciou muito o pensamento sadiano. Contudo, essa aproximação entre os dois autores é subvertida por Sade quando ele dá ao estado de Natureza um caráter atinente à natureza humana em Hobbes, excedendo assim o sentido capital do pensamento hobbesiano. Uma comparação com a noção clássica que Rousseau formulou sobre a Natureza se faz demasiado importante também. Enquanto entre Sade e Hobbes podemos notar uma expansão conceitual de Natureza, entre Sade e Rousseau o que percebemos é um total distanciamento. O mérito dessa comparação está no fato que ambos os conceitos se originam de um mesmo contexto histórico cultural e por autores que se destacaram no seu tempo por demonstrarem uma inquietude e um desconforto frente à sociedade que viviam. 25 3.1- Sade e Hobbes: as naturezas espelhadas Muitos conceitos tentam explicar o que seria a Natureza tanto na sua acepção universal, quanto no sentido individual, diga-se, na relação Homem-Natureza. Esse tema clássico constitui, na verdade, um dos maiores objetos de especulação filosófica e cientifica da modernidade. Entretanto, quando pensada entre os séculos XVII e XVIII, uma das suas especificidades recai fortemente sobre o caráter sócio político das relações entre os homens, isto é, ao longo desses dois séculos o estudo da Natureza serviu de base para se promover as teorias que explicariam o lugar do homem no mundo e também a constituição da sociedade. Como podemos notar ao longo do primeiro capítulo, o tema Natureza foi de grande relevância para os filósofos da ilustração e para o Marquês de Sade. Além disso, percebemos o quão distante as visões de Sade e dos ilustrados se posicionam quando se dessa questão. A primeira ruptura que percebemos entre Sade e os demais filósofos de sua época se encontra no papel que teria a Natureza para do homem. Para a maioria dos filósofos do século XVIII a Natureza era uma grande bem-feitora, uma mãe exemplar. Dessa mãe provinham todas as virtudes e bens. Sade rompe justamente nesse ponto. Para Sade a Natureza é uma madrasta faminta de destruição e em constante movimento. Morada dos vícios, é ao mesmo tempo reverenciada e detestada pelo libertino, que se vê acorrentado a ela. Entretanto, essa idéia que atrela o mal à Natureza não é algo inventado por Sade. Segundo Simone de Beauvoir: Declarar a Natureza má não era em si uma idéia nova. Hobbes, que Sade conhecia bem, e cita de bom grado, decidira que o homem é o lobo do homem e o estado de Natureza um estado de guerra; uma importante linha de moralistas e satíricos ingleses seguiu-o por esses caminhos, entre outros Swift, que Sade leu tanto a ponto de copiá-lo. 22 Para Thomas Hobbes (1578-1689), na sua obra Leviatã 23, o estado de Natureza constitui o momento pré-civilizacional do homem. No estado natural, os homens 22 BEAUVOIR, Simone de. “Deve-se queimar Sade”?. Tradução de Augusto de Souza. In: Novelas do Marquês de Sade, São Paulo: Difel, 1961. p. 44. 23 Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Publicado em 1651. 26 viviam livremente e em igualdade, todos se submetiam às leis naturais. Todavia, essa harmonia é rompida quando os homens, movidos por suas paixões, começam a investir uns contra os outros, inaugurando dessa forma o estado de guerra. De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A Primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, (...) Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum (...), eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. 24 Essa concepção de estado de guerra em Hobbes implicava, também, em dizer que a insegurança e o medo eram os sentimentos generalizados, dado que todos são capazes e livres para se apoderarem do que bem entendessem em função das suas paixões e desejos. Por isso mesmo, o poder da frase “o homem é o lobo do homem” se faz tão presente no espírito da filosofia libertina de Sade, “lobos que comem cordeiros, cordeiros devorados por lobos, o forte sacrificando o fraco, o fraco como vítima do forte, assim é a natureza (...)”.25 Hobbes estava constatando no seu pensamento aquilo que Sade promove intensamente nas suas obras. A Natureza fez todos iguais e não distingue os homens dos animais. Todavia, podemos apontar certas ressalvas nessa aproximação entre Sade e Hobbes. A igualdade a que o divino Marquês se refere, diz respeito à relação entre a Natureza e todos os seus entes (donde encontramos os homens, os animais etc.), o que quer dizer que todos são iguais perante a Natureza, ela não discrimina o forte do fraco, o homem do animal. A ela pouco importa a identidade, a espécie ou a relevância dos seres, no seu movimento destrutivo a madrasta sadiana não estabelece diferenças entre as vítimas. 24 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural 1983. p. 75 25 SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova. p.142 27 Já no ideário hobbesiano, a igualdade está na relação dativa entre a Natureza e os homens. Segundo Hobbes, a natureza dotou os homens das mesmas faculdades que os possibilitou lutarem entre si por poder. Mesmo aqueles fisicamente mais fracos poderiam se levantar frente aos mais fortes por uso da violência instrumentalizada. A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontram ameaçados pelo mesmo perigo26 A igualdade à qual se refere Hobbes une os homens na medida em que todos buscam sua preservação. No ponto de vista de Sade, a auto-preservação é irrelevante, visto que para o libertino o que importa é estender seu prazer para além da morte. Salvaguardada essa pequena distinção entre os conceitos de igualdade entre ambos os autores, podemos nos concentrar em um elemento que os une novamente. Tanto para Hobbes quanto para Sade, o homem é naturalmente egoísta. Talvez seja esse o ponto de encontro mais óbvio entre as duas concepções de Natureza para os autores. Motivados unicamente pelo desejo de poder e de prazer, o homem natural não mede esforços para atingir seu objetivo. No estado de natureza, “a utilidade é a medida do direito”. Isso significa que, levado por suas paixões, o homem precisa conquistar o bem, ou seja, as comodidades da vida, aquilo que resulta em prazer. O altruísmo não seria, portanto, natural. Natural seria o egoísmo, inclinação geral do gênero humano, constituído por “um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que só termina com a morte”. 27 Interessante observar em Sade a repercussão desse pensamento. Parece que Hobbes está descrevendo o espírito de um libertino. Sade também constata que o egoísmo é a mola do espírito libertino. Todavia, essa conceituação toma em Sade um caráter bem mais cruel. Sendo o egoísmo movimento natural no homem e a utilidade 26 27 Idem 24. p. 74. Op. Cit. p. xiv 28 refém da sua cobiça mesquinha, ficam totalmente indiferentes ao libertino os conceitos de bem ou mal. Dessa forma, Sade já anuncia esse egoísmo no inicio de Justine, ou os infortúnios da virtude. Talvez acrescentassem que é indiferente ao plano geral que este ou aquele seja bem ou mal e que, se a desventura persegue a virtude e a prosperidade acompanha o crime, as coisas sendo iguais aos olhos da Natureza, vale infinitamente mais tomar partido entre os maus que prosperam do que entre os virtuosos que fracassam. 28 Podemos notar nessa passagem escrita por Sade uma conotação extremamente amoral. É justamente nesse ponto que podemos demarcar a grande ruptura entre o pensamento de Hobbes e o do divino Marquês. Hobbes propõe uma saída para esse estado natural na qual o homem se encontrava. Esse movimento, marca a passagem do homem natural para o homem social. A passagem de um estado para o outro só é dada devido ao instinto de preservação que os homens possuem. O medo de deixar de existir provocaria nos homens o desejo de se agruparem de forma a se estabelecer uma segurança geral. Assim, os homens abdicariam dos seus poderes particulares em favor de um só indivíduo (gênese do absolutismo). O esforço empreendido para se passar de um estado natural a um estado social é entendido por Hobbes como puramente artificial, dada a natureza egoísta do homem. Essa mudança funda os alicerces da sociedade moral estamentada, diga-se, através do contrato social. Guiado pela razão, o instinto de conservação ensina que “é preciso procurar a paz quando se tem esperança de obtê-la. (...) é preciso que cada um “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a si”, é preciso evitar a ingratidão, os insultos, o orgulho, enfim, tudo o que prejudique a concórdia; que o mal seja vingado sem crueldade, que haja moderação no uso dos bens; que os bens sejam distribuídos equitativamente e que haja uso comum daqueles que não possam ser divididos, havendo disputas, que se recorra a um árbitro imparcial e desinteressado.29 28 29 SADE, Marquês de. Justine, ou os infortúnios da virtude. p. 9 Idem 27. p. xv 29 É essa sociedade artificial que Sade ataca tão fortemente nas suas obras. Para o divino Marquês, o homem continua preso às suas faculdades naturais. O que competiria em dizer que essa moral artificial é uma abominação que é contrária à natureza humana. Sade concorda e reproduz Hobbes até o momento anterior ao contrato social, após isso, ele só programa esforços pra denunciar o absurdo que a sociedade moralizada se consiste. “A Natureza sob a perspectiva sadiana concentra todos os dons, mas em sua ordem própria ela é amoral”. 30 Dessa forma, podemos notar em Sade um movimento que enfrenta um a um os princípios morais fundados a partir do contrato social. Exemplo disso seria a escolha do crime como forma de promoção da igualdade e da divisão de bens, Sade contraria Hobbes estimulando o delito. O roubo e o assassinato são medidas de distribuição de renda, são crimes da Natureza, e como tal, não podem ser penalizados. E sobre o convívio social Sade é bem enfático a ponto de inverter todos os sentidos do pensamento hobbesiano. A natureza nos diz que não devemos fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem. Imbecis! Como é que a natureza, que nos aconselha sempre a nos deleitar, que não imprime em nós jamais outros movimentos, outras inspirações, poderia, um momento depois, por uma inconseqüência sem igual, nos assegurar que, no entanto,não nos ocorra deleitar-nos se isso puder causar sofrimento aos outros? (...) a natureza, mãe de todos nós, somos fala de nós; nada é egoísta como sua voz, e o que nela reconhecemos de mais claro é o imutável e santo conselho que ela nos dá de nos deleitarmos, não importa às custas de quem. Mas os outros, dizem-vos a isso, podem se vingar... Na hora certa, o mais forte apenas terá razão. (...) eis o estado primitivo de guerra e de destruição perpétuas para qual sua mão nos criou, e no qual apenas lhe é vantajoso que estejamos. 31 É importante atentar para as especificidades dos estados de natureza que competem entre Sade e Hobbes, apesar de semelhantes, quando falamos da origem do homem natural, ambos os autores estão reverenciando a Natureza como um estado atemporal. Hobbes constata seu homem natural e sua passagem para a civilização através do contrato social como uma alternativa ao seu contexto histórico. Isso implica 30 Cf. Cap. 4. GIANNATTASIO, Gabriel. Sade, um anjo negro na modernidade. 1998. 256 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998. 31 SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova. p. 94 30 em lembrar que Thomas Hobbes escreve no século XVII em uma Inglaterra acometida pela Revolução Inglesa e pelos inúmeros conflitos gerados pela guerra civil. Sua obra está refletindo o seu momento histórico e social. Já Sade escreve seus livros no contexto do século XVIII, entremeado pelo movimento iluminista e pelas filosofias materialistas. As conclusões que ele alcançou sobre a Natureza talvez sejam uma resposta mais pessoal do que geral. 3.2 - Sade e Rousseau: as naturezas opostas É notável que a relação conceitual entre Hobbes e Sade se estabelece pela dinâmica da apropriação. Sade se utiliza do estado de guerra apresentado por Hobbes para definir o que ele mesmo entende como estado de Natureza. Dessa forma podemos promover agora, outra relação conceitual de Natureza. Dessa vez entre a Natureza cruel sadiana e a Natureza pensada pelo seu contemporâneo e ilustrado Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Diferentemente de Hobbes, Rousseau escreve de um contexto sócio-histórico compartilhado pelo Marquês. O interessante, porém, é que mesmo escrevendo na mesma época, os seus conceitos não poderiam ser mais distintos. Existe outra razão para se empreender o pensamento de Rousseau em uma análise do pensamento sadiano. Isso se dá por que podemos observar em ambos um movimento de oposição ao Iluminismo. Enquanto Sade pode ser considerado um deslocado, tanto filosoficamente, quanto fisicamente (visto que passou mais de trinta anos de sua vida sob alguma forma de cárcere), Rousseau, no entanto, mesmo sendo aclamado como um dos principais vultos do Iluminismo, o fez tomando um posicionamento extremamente crítico ao movimento. Sade e Rousseau são, cada um a sua maneira, contra-iluministas. Enquanto as idéias de Sade sobre a Natureza e a moral subvertem por completo a estética ilustrada, a visão rousseauniana, por sua vez, extrapola e ultrapassa os sentidos principais do movimento. Não poderíamos encontrar conceitos de Natureza mais distintos do que em Rousseau e Sade. Por tal razão, empreender uma comparação entre os dois se faz 31 necessária. Rousseau consagra à Natureza o papel de Grande Mãe, e assim como outros ilustrados, essa mãe tem como apanágio todas as virtudes e bens do mundo. A sociedade deveria ser pautada por uma moral natural, que aproxima o homem de suas origens mais simplistas. Essa noção é contrariada por Sade na medida em que ele percebe a Natureza como perversa e cruel. A força, e não o amor é a lei do universo, a maior verdade pagã. A deimônica mãe Natureza de Sade é a deusa mais sangrenta desde Cibele asiática. Rousseau revive a Grande mãe, mas Sade restaura sua verdadeira ferocidade.32 Na obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens 33, Rousseau apresenta um conceito de homem natural que se opõe ao homem natural hobbesiano e, conseqüentemente, ao homem natural de Sade. Podemos inferir que para Rousseau a Natureza se apresenta de forma bastante romântica. Diferentemente da visão hobbesiana, o homem não é governado pelas mesmas pressões e atrações, nem é também um egoísta psicológico. O homem natural de Rousseau é regido pelos sentimentos de simpatia em relação aos demais e há, assim, um sentido em que mesmo no estado de natureza, os homens são seres sociais. A posição de Rousseau consegue promover uma total inversão do sentido de Natureza empregado por Hobbes e adotado por Sade. Enquanto que o egoísmo impera na concepção sadiana de Natureza, o sentimento de empatia governa as emoções do homem natural de Rousseau. Notamos assim, uma importante ruptura entre as visões dos autores, e essa se dá pela oposição entre sentimento e paixão. O libertino sadiano se deixa levar pelas paixões; o prazer é seu objetivo principal na vida. Em oposição, o homem natural rousseauniano estabelece uma relação empática com os demais e suas ações são inocentes e obedecem à regra da bondade natural. Para Rousseau o homem, ao invés de ser naturalmente egoísta, é naturalmente bondoso. Interessante notar que nas obras de ambos os autores, recorre-se aos exemplos das sociedades primitivas ou exóticas para fundamentar o que seria esse homem 32 PAGLIA, Camille. A volta da grande mãe: Rousseau versus Sade. In: Personas Sexuais. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 223. 33 Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Publicado em 1750. 32 natural. Obviamente, são observáveis as grandes oposições, já que o bom selvagem de Rousseau cai por terra quando confrontado pelo selvagem da Natureza em Sade. (...) não há embuste que o lobo não invente para atrair o cordeiro a suas armadilhas; esses estratagemas são da Natureza, a bondade não; não passa de uma característica da fraqueza adotada pelo escravo para enternecer o amo e torná-lo disposto à maior brandura; nunca transparece no homem, a não ser em dois casos: quando ele é o mais fraco ou quando receia tornarse mais fraco; a prova de que essa pretensa virtude não existe na Natureza, é o fato de ser ignorada pelo homem mais próximo dela. O selvagem, desprezando-a, mata sem piedade seu semelhante, seja por vingança ou por avidez...34 Existe uma relação importante nessa conceituação da Natureza para Sade e Rousseau. Essa se apresenta quando apontamos o lugar que se origina, em ambos os autores, a corrupção da Natureza. Tanto para Rousseau, quanto para Sade o homem ao estabelecer o contrato social passa a corromper os valores das quais a Natureza os dotou. Como vimos, a Natureza se constitui de forma bem distinta na visão dos autores. Enquanto a Natureza sadiana é destrutiva e colérica, a Natureza rousseauniana é bondosa e provedora. Para Rousseau o estado de guerra hobbesiano vem depois do estado de Natureza idealizado por ele. Ou seja, após a fundação do estado de poder absoluto e a repartição das propriedades. Para Rousseau esse é o momento que constitui o verdadeiro estado de guerra, de todos contra todos, onde imperaria a desigualdade. A saída para Rousseau se encontra na aplicação da vontade geral, o que denotaria para a sociedade como um todo o poder geral, opondo-se à soberania teorizada por Hobbes. É a relação entre as coisas e não a relação entre os homens que gera a guerra, e, não podendo o estado de guerra originar-se de simples relações pessoais, mas unicamente das relações reais, não pode existir a guerra particular ou de homem para homem, nem no estado de natureza, no qual não há propriedade constante, nem no estado social, em que tudo se encontra sob a autoridade das leis.35 34 Idem 31. p. 187 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. Livro Primeiro. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural 1978. p. 28 35 33 Tanto em Sade quanto em Rousseau, essa sociedade artificial representa uma ameaça. O retorno à Natureza torna-se a única saída do homem em direção à sua identidade primária. Sade defende uma sociedade livre de leis, de credo e de moral (assim é a sociedade idealizada por ele nos 44 Mandamentos da Sociedade para os Amigos do Crime). Reflete-se assim, que o libertino sadiano é apolítico, ou melhor, anárquico. Nada pode subjugar sua liberdade. Já em Rousseau, a sociedade perfeita tem moldes democráticos, a vontade geral impera sobre todos e a liberdade civil é trocada pela cidadania. Voltando ao conceito de Natureza, é interessante observar que tanto Sade quanto Rousseau escrevem obras com o intuito de promover a educação. Rousseau tenta através do Emilio 36 uma educação que se espelha na Natureza com o intuito de promover a criação de um homem bom. Já Sade, em A Filosofia na Alcova, promove a educação da jovem Eugenie, também espelhada na Natureza. Todavia, essa Natureza não é balizada moralmente. Temos assim, dois movimentos: em Rousseau, a educação só viria a potencializar a moral e a bondade inatas no homem. Em Sade, a educação espelhada na Natureza teria como função a destruição da moral religiosa e dos costumes tradicionais. É óbvia a incompatibilidade entre os autores na medida em que, se formos olhar de perto, a Natureza proposta por Rousseau é demasiada cristã e moral para Sade. Outra incompatibilidade que encontramos entre os autores, diz respeito à transparência. Voltamos assim, àquela dicotomia anunciada anteriormente, entre paixão e sentimento. Como sabemos, o homem rousseauniano é puro e empático. Antes da razão se estabelecer ele é regido pelo sentimento. Esse sentir denota a este homem natural as qualidades que Rousseau aponta como benemerência, piedade e passividade. O fato dele ser dotado dessas qualidades o caracteriza como ente transparente, nada nele é dissimulado ou mascarado. Já em Sade essa transparência se dá através da exuberância dos vícios e da concretização das paixões. Todavia, tal movimento só será possível quando a 36 Emílio, ou Da Educação. Publicado em 1762 34 sociedade se livrar de todos os entraves à liberdade. O libertino sadiano, enquanto membro da sociedade regulada, só exerce a transparência de seus vícios nas alcovas, calabouços e porões afastados da sociedade. Mas isso não importa, visto que de uma maneira ou de outra, ele está seguindo os desígnios da Grande Mãe. O que podemos aferir com precisão é que, tanto a Natureza defendida por Sade, quanto a defendida por Rousseau são na verdade antinaturais. Isso se dá na medida em que ambos exaltam em exagero o papel da Natureza. A Natureza positiva de Rousseau é tão exagerada a ponto de Voltaire dizer que a divinização da Natureza é tanta, que daria quase vontade de andar de quatro. 37 Já em Sade, poderíamos concordar com Voltaire também. Sua Natureza perversa e cruel reduz os homens e os animais à mesma classe e os deixam libertos às paixões e aos instintos. Em ambos os casos, mesmo que posicionados de forma contrária, as concepções de Natureza acabam por extrapolar o sentido palpável de sociedade humana. Esse exercício de comparação nos permitiu aferir que Sade não se encaixa realmente em nenhuma estética natural, visto que concorda, em parte com Hobbes, mas no entanto discorda com Rousseau, que mesmo sendo uma figura atípica dentro do iluminismo consegue estabelecer com Sade grandes abismos conceituais. 37 HIRSCHBERGER, Johannes. História da Filosofia Moderna. Tradução de Alexandro Correia. Editora Herder. São Paulo: 1967. p. 257. 35 4 - Sade contra Deus Até o presente momento, esse trabalho promoveu uma gradação entre os temas caros ao Marquês de Sade na construção de sua filosofia. Primeiramente tivemos o delineamento do seu contexto, depois, apreendemos de que forma os conceitos de Natureza dos séculos XVII e XVIII se relacionam com a conceituação proposta pelo divino Marquês. Dessa forma, para melhor compreendermos as idéias de Sade sobre a Natureza e a sua negação a Deus, é necessário empreender um esforço de análise sobre as correntes de pensamento dos séculos XVII e XVIII que o influenciaram. As doutrinas materialistas influenciaram o pensamento sadiano, talvez mais fortemente que a própria estética iluminista. Em conseqüência disso, é notável o peso que os conceitos de Natureza tiveram no fomento da filosofia sadiana. Entretanto, devemos atentar que nesse momento, as doutrinas que ligam os conceitos de Natureza ao materialismo, acabam por trazer à tona um modelo ateu de compreender o mundo. Observamos em Sade uma grandíssima influência de vários materialistas ateus do século XVIII. Alguns desses Sade leu a exaustão, outros, chegou quase a plagiar. O propósito desse capítulo é justamente promover uma análise sobre todas as influências e conceituações na obra do Marquês, bem como entender como que a reflexão filosófica de Sade acaba por transbordar a intenção dos materialistas e fundar uma filosofia do Mal. Também procuramos delinear os meios pelos quais a filosofia de Sade termina por anunciar um ateísmo completamente distinto daquele do século XVIII. 36 4.1 - Os materialismos de Sade A primeira coisa que devemos compreender quando falamos de materialismo, é que não existe somente um. Podemos elencar ao menos quatro correntes que tentam englobar algum tipo de conceito. São eles; o materialismo metafísico, o metodológico, o prático e o psicofísico. No geral, materialismo envolve toda doutrina que atribua casualidade à matéria. Em todas as formas identificáveis ao longo da História, materialismo consiste em afirmar a matéria como a causa de tudo.38 Para melhor compreender o pensamento sadiano e como ele se utiliza das doutrinas materialistas, podemos nos concentrar em pelo menos duas dessas correntes já citadas. A primeira, diz respeito ao materialismo metodológico. Thomas Hobbes não influencia Sade somente no momento de conceituação da Natureza. Quando falamos de materialismo metodológico, Hobbes se apresenta como um dos seus principais defensores. A dimensão materialista hobbesiana diz respeito a uma antropologia. O homem é corpo, é sentido. A razão e o entendimento são faculdades sensíveis acionadas pelas forças de atração e reação humanas. Todavia, foi nos pensadores do século XVIII que Sade mais se pautou para empreender um caráter materialista nas suas obras. Falamos do materialismo psicofísico. Podemos contabilizar quatro grandes pesadores materialistas que influenciaram a obra do divino Marquês. O primeiro deles constitui um dos exemplos mais importantes ao materialismo do século XVIII, La Mettrie máquina 40 39 . De La Mettrie, Sade provavelmente leu o Homem- , obra na qual o médico explica o funcionamento do corpo humano e da Natureza através de ponto de vista biológico. De La Mettrie, Sade utiliza o conhecimento biológico, o que o possibilita dar aos seus libertinos um vocabulário e 38 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes. 2000. p. 649 39 Julien Offay de La Mettrie (1709-1751) – Médico, polêmico e filósofo francês. 40 Publicado anonimamente em 1747. O Homem máquina tenta uma síntese da filosofia cartesiana e do sensualismo inglês afirmando um materialismo sereno, baseado em dados científicos contemporâneos, orientado para uma busca da felicidade, sem preocupar-se com os moralistas e, desprezando os preconceitos, de um ceticismo racional com relação à religião. 37 conhecimentos que os auxiliam a entender as engrenagens dos corpos, a dinâmica dos fluidos corporais, das dores e dos prazeres. Essas teorias de La Mettrie são essenciais para Sade na construção dos diálogos libertinos que ridicularizam, no nível do deboche, as crenças supersticiosas, especialmente as cristãs. Entretanto, a grande contribuição do pensamento de La Mettrie para Sade está na configuração do homem como fundamentalmente um ser material. La Mettrie procura explicar todos os fenômenos mentais e físicos que ocorrem no homem como manifestações de reações químicas ou cinéticas que ocorrem no movimento interno dos corpos. Esse pensamento é identificado em Sade quando ele professa que “a vida é a soma dos movimentos de todo o corpo. O sentimento e o pensamento são partes desses movimentos: desse modo, no homem morto, esses movimentos cessarão assim como os outros.” 41 Outro grande pensador materialista do século XVIII é Condillac 42 . Sua principal tese atestava que a alma e as idéias se reduzem à experiência e ao hábito; todo o desenvolvimento humano depende da educação e das circunstâncias externas.43 Influenciado por esse tipo de raciocínio, Sade escreveu que seria incabível pensar a alma separada do corpo, isso devido às sensações serem possibilidades únicas e exclusivas do corpo. A alma seria uma impressão deixada pelas ondas dos sentidos nos corpos. De forma bem atinada com os materialistas, Sade sobrepõe o físico ao espiritual, somos matéria antes de tudo e é o movimento desta, princípio da própria natureza, que nos move e nos permite sentir. Ousar sustentar que podemos ter idéias sem os sentidos seria tão absurdo como dizer que um cego de nascença pode ter uma idéia das cores. 44 Um outro pensador bastante importante ao materialismo francês é Helvétius 45. Seu pensamento é, de fato, muito semelhante ao pensamento de Sade. Seu 41 SADE, Marquês de. Diálogo entre um padre e um moribundo e outras diabrites e blasfêmias. Tradução Alain François e Contador Borges. São Paulo: Iluminuras. 2001. p. 24. 42 Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780) 43 CORBISIER, Roland. Enciclopédia filosófica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. pp. 190-191 44 Idem 41. p. 22. 45 Claude Adrien Helvétius (1715-1771) 38 materialismo se sustenta sobre a observação da sociedade e por tal razão acaba por se tornar análogo ao conceito de natureza empregado por Sade. Para Helvétius as nossas idéias são consequências necessárias da sociedade em que vivemos. Os interesses pessoais e egoistas determinam a conduta dos homens e o egoísmo os leva à vontade de poder.46 Em uma de suas obras, se não prestarmos atenção, irá parecer que estamos na verdade lendo o próprio Sade. Homem humano é aquele para quem a vista da infelicidade alheia é vista insuportável e que, para safar-se desse espetáculo, é, por assim dizer, forçado a socorrer o infeliz. Para o homem inumano, ao contrário, o espetáculo da miséria de outrem pe um espetáculo agradável, é para prolongar seus prazeres que recusa qualquer socorro ao infeliz. Ora, esses dois homens, tão diferentes, tendem ambos, todavia, a seus prazeres, e são movidos pela mesma mola. 47 Outro materialista importantíssimo para Sade foi Holbach 48 , que assim como Helvétius e Diderot, acreditava que movimento e matéria eram inseparáveis. A obra que Sade provavelmente leu de Holbach foi O Sistema da Natureza 49. O interessante da influência que Holbach exerceu sobre Sade está também, na forma em como as teorias do materialista também forneceram argumentos ao ateísmo de Sade. Por outro lado, Sade utiliza o pensamento de Holbach para fundamentar o seu materialismo e a razão do homem. Porém, enquanto Holbach simplifica essa razão como o caminho para se compreender o funcionamento do mundo e da sociedade, procurando com isso exaltar as capacidades do homem, Sade desenvolve um caminho contrário. Para Sade a compreensão do homem se dá pela compreensão das leis da Natureza. 50 46 Idem 43. p. 148 Helvétius. De L’esprit, II, 2. APUD. CHALLAYE. Félicien. Pequena História das Grandes Filosofias. p. 168. 48 Paul Henri Dietrich D’Holbach (1723-1789). Filosofo de origem alemã, que viveu em Paris e escreveu em francês. Colaborador da Enciclopédia; publica com freqüência sob pseudônimo. 49 Publicado em 1770, escandalizou muitos contemporâneos de Holbach (inclusive os espíritos mais esclarecidos) pela intransigência de SUS materialismo; para ele, a matéria e o pensamento são uma única e mesma realidade, submetidas a leis rígidas, cujo rigor só pode levar a Filosofia ao fatalismo. 50 GIANNATTASIO, Gabriel. Sade, um anjo negro na modernidade. 1998. 256 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998. HART, Kevin. The right to say everything. Disponível em: <http://152.12.30.4: 2804/journals/social_text/v018/18.4polat.html>. Acesso em: 04 mai. 2008. p. 47 39 Se analisarmos de perto, notaremos que existe uma continuidade filosófica entre esse grupo de materialistas que influenciaram Sade e o século XVIII. Se aplicarmos o conceito de materialismo prático, notaremos que este é herdeiro de uma linha de pensamento oriunda do século XVI denominada libertinismo51. Interessante notar como que Sade acaba por reencontrar nas doutrinas materialistas e atéias uma linha interpretativa que se aproxima e muito do libertinismo do século XVI. Libertinismo esse que é fundamental para a compreensão do surgimento da própria literatura libertina no século XVIII. Uma das características principais de todos esses pensadores materialistas que influenciaram Sade está no fato de todos serem ateus declarados. Assim também o faz Sade, obviamente. Entraremos agora no mérito da discussão sobre o ateísmo sadiano. Em Sade é impossível pensar materialismo separado de ateísmo, como é verificado nas autonomeções dos próprios filósofos. Ainda que Sade promova, nesse aspecto, um tipo bastante distinto de ateísmo, considerá-lo fora da égide da conceituação de Natureza e fora do pensamento ateu é impossível. 51 Libertinismo: corrente anti-religiosa que se difundiu, sobretudo em ambientes eruditos da França e da Itália na primeira metade d século XVII; constitui a reação – em grande parte subterrânea – ao predomínio político do catolicismo naquele período. Não tem idéias filosóficas bem determinadas, e a ela pertenceram: católicos sinceramente ligados à Igreja, mas que achavam impossível aceitar inteiramente sua estrutura doutrinária; protestantes emancipados de qualquer preocupação religiosa; e céticos declarados que se remetem a doutrinas do paganismo clássico ou pelo menos à forma por elas assumida no humanismo renascentista. Portanto, a propósito do libertinismo, não é possível falar de um corpo doutrinal coerente, mas sim de certo número de temas comuns, que podem ser resumidos da seguinte forma: 1º Negação da validade das provas da existência de Deus e da possibilidade de entender e defender os dogmas fundamentais do cristianismo. 2º Negação da moral eclesiástica e, em geral, da moral tradicional, e aceitação do prazer como guia ou ideal da vida. O significado da palavra libertino no uso corrente deriva exatamente desse aspecto. 3º Aceitação da doutrina da ordem necessária ao mundo como defendida pelos aristotélicos do Renascimento. 4º Tese de que a religião é, em geral, um produto do embuste das classes sacerdotais. 5º Aceitação do princípio da “razão de Estado”, isto é, do maquiavelismo político. 6º Destruição das crenças e práticas religiosas, sua ridicularizarão e, por vezes, sua tradução em imagens obscenas. 7º Fideísmo. 8º Caráter aristocrático atribuído ao saber, em particular à reflexão filosófica, e limites impostos à sua difusão e ao seu uso, para evitar o choque com os interesses do Estado e das instituições a ele ligadas. Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes. 2000. p. 613. 40 4.2 - Sade/Ateu Sade obedece a uma estética lingüística e filosófica que promove contra as crenças religiosas uma crítica fervorosa. Tanto a literatura libertina, quanto a filosofia dos esclarecidos promoveu um ataque e uma crítica à Igreja ou à crença cristã como medida de refutação à religião e aos preconceitos morais. Todavia, no texto sadiano, esse movimento expressa, mais do que uma critica, uma renovação estética. Sade escreve vários discursos que promovem uma degradação dialética dos princípios religiosos. Vamos agora elencar os momentos em que Sade ataca diretamente a idéia de Deus. Em uma de suas frases mais famosas ele diz que “a idéia de Deus é o único erro que jamais perdoaria na humanidade”. Somente essa sentença já nos permite entender que para Sade Deus é uma fábula criada pelos homens para lhes dar sentido. Constantemente ao longo de suas obras, Sade refere-se a Deus como uma quimera ou um fantasma. A Natureza é destacada como o único estado que possui realmente alguma relevância sobre o destino dos homens. É por isso que ele afirma ser absurda a idéia de que a Natureza seja criação de Deus ou que a Natureza seja equivalente a Deus. Não Thérèse,não, não existe Deus, a natureza basta-se a si mesma; não tem qualquer necessidade de autor, esse suposto autor, não passa de uma decomposição de suas próprias forças, não passa do que chamamos na escola de um erro de fundamento. 52 Como podemos notar, a razão materialista eleva-se sobre o princípio da fé. É bastante clara nesta obra a influência do pensamento de materialistas como La Mettrie, Holbach e Diderot. Percebemos isso quando no Diálogo entre um padre e um moribundo, o moribundo diz: “prova-me a inércia da matéria e admito o criador. Prova-me que a natureza não basta a si mesma, e te permito conceber-lhe um senhor” 53 . Outra característica do pensamento de Sade é a promoção de uma dialética que se utiliza das próprias contradições das escrituras bíblicas ou da crença cristã para 52 53 SADE, Marquês de. Justine, ou os infortúnios da virtude. pp. 44-45 Idem 41. p. 15 41 extinguir o pensamento cristão. Para a efetivação dessa proposta, Sade se utiliza habilmente das doutrinas materialistas. MORIBUNDO — Meu amigo, conforma-te com a evidência de que cego é quem se veda com uma fita, não quem a arranca dos olhos. Tu edificas, inventas, multiplicas; eu destruo, simplifico. Tu acumulas erros sobre erros; eu combato todos. Qual de nós é o cego? PADRE — Então não crede mesmo em Deus? MORIBUNDO — Não, por uma razão bem simples.É perfeitamente impossível crer no que não se compreende. Entre a compreensão e a fé devem existir relações imediatas. A compreensão é o primeiro alimento da fé. Onde a compreensão falha, a fé está morta; e aqueles que assim mesmo continuam a crer, enganam-se redondamente. Desafio-te a crer no deus que me pregas, pois não saberias me demonstrá-lo, nem compete a ti me defini-lo; por conseguinte não o compreendes, e, se não o compreendes, como me podes fornecer um argumento razoável a seu respeito? Em suma: sendo quimera ou inutilidade tudo o que ultrapassa os limites do espírito humano, e teu deus só podendo ser uma dessas coisas, no primeiro caso eu seria louco de crer nele, no segundo um imbecil.54 Essa passagem da obra de Sade nos permite fazer uma relação mais aproximada entre ateísmo e materialismo. É notável que para muitos dos materialistas ateus a eliminação da idéia de Deus se dava justamente devido à afirmação da matéria. Sade, seguindo esse mesmo caminho, promove através dos seus discursos libertinos essa idéia. Deixando bem claro que a matéria é a causa de todos os fenômenos naturais, o conceito de Deus perde o seu lugar nessa dinâmica. Todavia, não podemos constatar o ateísmo sadiano de forma tão fria, muito pelo contrário. Uma das características suas mais marcantes, e que o separa dos ateístas de sua época é como Sade exercitou sua negação de Deus. A simples constatação que Deus não pode existir devido à existência da matéria, não se prova suficiente para Sade. Ele precisa dessa idéia derrubada para inflamar ainda mais o sue discurso. Seu ateísmo se dá, muitas vezes, como uma forma de negação, e não como supressão completa da figura divina; um materialismo herege é o que nos parece o seu em diversos momentos. Em seus escritos é muito comum encontrarmos invectivas ao Ser Supremo, como se o sujeito da fala estivesse dirigindo seu discurso a “alguém”, isto é, ele admite a 54 Op. Cit. p. 16 42 presença de um Deus que aparece, de certa forma, como um personagem de sua ficção e que é destinatário de suas ofensas, pois, segundo o próprio Marquês, essas invectivas seriam mais gratificantes se realmente houvesse um Deus a quem direcioná-las. 55 É justamente essa característica que compete contra Sade uma dificuldade de encará-lo como um ateu puro. Nunca um auto-proclamado ateu falou tanto ou chamou tanto o nome de Deus. Todavia, vale a pensa refletir sobre a intenção de Sade em fazer isso. Para o divino Marquês, negar Deus constitui um exercício de libertinagem. Seu libertino precisa dessa relação negativa para mover-se. Como a idéia de Deus é tão abominável a ele, mas tão cara a muitos, o ato de blasfemar e ultrajar a imagética cristã constitui, na verdade, mais uma fonte de prazer para o libertino. Um dos escritos mais notadamente anticristão produzido por Sade seria A Filosofia na Alcova. Nessa obra, o exercício de blasfêmia e negação de Deus é exercido continuamente e em uma linguagem bastante crua. Deus é inútil, foi criado pelos homens. A natureza é tudo, é matéria em movimento. Deus é um fantasma abominável, Nossa Senhora é uma prostituta judia, Jesus é definido como um bandido e a religião tem a audácia de associar a esta aliança um outro fantasma que se chama Espiríto Santo e aformar que os três são apenas uma pessoa. (...) Cristo, um vigarista, transformando água em vinho numa ceia de bêbados, alimentando marginais com provisões escondidas, um de seus camaradas se finge de morto e nosso impostor ressucita-o, numa montanha perante dois ou três amigos faz truques de mágica de que se envergonharia o pior charlatão dos nossos dias. 56 Atentamos aqui, que esse exercício de blasfêmia não precisa ser direcionado somente à figura de Deus. Qualquer elemento que denote caráter cristão pode ser atacado e pode ser objeto de prazer do libertino. Como conseqüência fatal desse ateísmo herege pregado por Sade, o divino Marquês acaba por promover mais uma subversão. Além de subverter a estética iluminista e o conceito de Natureza, Sade, em última instância, promove uma oposição aos próprios materialistas que o influenciam. 55 JOAQUIM, Ana Cristina & PIVA, Paulo Jonas de Lima. La Mettrie e Sade: Ciência e Literatura no materialismo francês do século XVIII. Revista eletrônica de Iniciação Científica. Ano I. Ago. 2007 nº 1. Disponível em: ftp://ftp.usjt.br/pub/revistaic/pag49_edi01.pdf. Acesso em: 15. Abr. 2008 p. 52 56 PEIXOTO, Fernando. Sade. Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 198. 43 Enquanto os ateus materialistas pensam um mundo livre de Deus, mas regido por uma moral natural e em compasso com a sociedade humana, Sade toma o vício como triunfo absoluto. O vício adquire em Sade um caráter supremo, que leva a uma extrema relativização dos conceitos de bem e mal. Indiferentes à Natureza, pouco importa que se pratique o bem ou que se pratique o mal, seus efeitos são irrelevantes ao quadro geral. Para os libertinos o prazer importa, por isso mesmo os meios de atingi-lo não podem ser considerados criminosos, o assassinato, a flagelação, a violência etc., são inspirações naturais, o crime é natural. Essa total relativização do que é bem ou mal acaba por fundar em Sade aquilo que chamamos de filosofia do Mal. Palavras como vício e virtude só nos dão idéias puramente locais. Não existe nenhuma ação, por mais singular que possa se supor que seja verdadeiramente criminosa, e nenhuma que possa se chamar virtuosa.57 Essa noção relativa do crime em Sade acaba também por transformar o mal em um objeto tão caro quanto o bem. Praticar o mal acaba sendo mais prazeroso que praticar o bem. Essa noção liga-se ao caráter destrutivo que a Natureza sadiana possui. A destruição é sua primeira lei, o libertino é livre para provocar todo o mal possível e gozar com ele na Natureza. Existe outro elemento referente ao caráter da filosofia do mal em Sade que diz respeito à sua índole atéia. Como já vimos Sade não pratica um ateísmo nos moldes filosóficos. Para pesadores como Bataille, Klossowski e Blanchot, o ateísmo de Sade se constitui de maneira teológica. Relação negativa com Deus: essa consciência não é atéia “a sangue-frio”, poder-se-ia dizer com Sade; ela o é por efervescência, portanto por ressentimento. Seu ateísmo é apenas uma forma do sacrilégio: a profanação dos símbolos da religião pode sozinha convencê-la de seu ateísmo aparente, com que ela se distingue claramente da consciência do filósofo ateu, para quem o sacrilégio não tem outra significação que a de revelar a fraqueza de quem a ele se entrega.58 57 Idem 28 KLOSSOVISKI, Pierre. Sade, meu próximo. Tradução de Armando Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. p. 85 58 44 Isso significa que para esses autores, o ódio direcionado a Deus ao invés de estar perfazendo uma relação negativa de aniquilação, estaria na verdade afirmando Deus. Isso quer dizer que Sade seria, conseqüentemente, um cristão revoltado com a divindade. Para aceitarmos essa hipótese, teríamos que conceber uma análise do pensamento sadiano que permeasse características histórico-psicológicas. Como tal análise é quase impraticável, podemos simplesmente discordar, em parte, dessa noção. Sade não acredita em Deus ou em Ser Supremo, ele acredita sim na Natureza e na matéria, assim como vários de seus contemporâneos. Não podemos esquecer que as doutrinas materialistas percorreram toda a Europa e influenciaram muitos pensadores. Sade estava em certa medida, acompanhado o que estava em voga na sua época. Porém, sua especificidade está na medida de sua descrença. O ateísmo de Sade não obedece à frieza do ateu do século XVIII que destronou Deus e adotou a matéria. Sade aniquila Deus, mas o ato de aniquilá-lo lhe provoca prazer. Isso só é possível por causa da literatura. Antes de ser filósofo, Sade é escritor. A figura de Deus é uma personagem a ser espezinhada, é mais uma vítima a ser ridicularizada e destruída dentre tantas outras. Se for assim, por que dizemos que concordamos em parte com a visão dos autores mencionados? Ora, Sade não afirma Deus às avessas como eles acreditam, mas o aniquila de forma teológica. Toda a teoria do mal, da Natureza perversa e da relatividade do crime, acaba por conferir à filosofia sadiana uma aura quase religiosa. Isso quer dizer que Sade, está inovando o ateísmo por fundar na filosofia do Mal uma nova maneira de agir no mundo. A filosofia do Mal de Sade é uma proposta inversa ao cristianismo, ou seja, o homem só deve prestar honras a si mesmo, ao princípio natural dentro de si que busca a qualquer custo o prazer. Entendamos que a força empreendida por Sade contra Deus almeja a liberdade. A idéia de Deus é um obstáculo a ser superado. Os homens na sua infantilidade, ignorância e insegurança criaram esta entidade a fim de tentar, através dela, explicar a 45 si e o próprio mundo. Por tal razão Sade afirma que “a religião é incompátivel com o sistema da liberdade”59. O ateísmo de Sade revela-se como revolta contra todo e qualquer obstáculo imposto à liberdade do homem, seja ele originado da moral religiosa, da ética, da política ou ainda dos imperativos da ciência e da razão. 60 Em ultima instância Sade, antes de tudo, prima pela liberdade. Liberdade de sentir prazer, liberdade de praticar o crime, liberdade de agir na Natureza. Talvez mais importante do que entender essa teologia invertida de Sade, seria entender que o objetivo fulcral de sua filosofia é a total libertação dos sentidos dos homens, total afogamento na matéria que os constitui e que lhe dar prazer. 59 60 Idem 41. p. 6 Idem 22 46 5 – CONCLUSÃO A crítica sadiana à religião se deu de forma extremamente violenta. Sade inaugurou um ateísmo bastante peculiar devido à forma tão visceral que atacava a idéia de Deus. Esse ateísmo fervoroso acabou por produzir no pensamento de Sade uma contradição. Muitas das conclusões que Sade alcançou devem-se a grandíssima influência que seu pensamento recebeu das doutrinas materialistas, e em conseqüência, do pensamento ateu. A contradição mencionada acima diz respeito ao fato de Sade praticar um ateísmo inflamado. Ao invés de eliminar Deus do discurso e primar pela excelência da matéria e da Natureza, como fazem os outros filósofos e pensadores materialistas e ateus, Sade mesmo enaltecendo a matéria, continua atacando Deus. Cabe ressaltar que para Sade, atacar Deus é forma de expressar um tradicional movimento crítico, próprio da ilustração e do seu ataque ao tradicionalismo, mas também, característica da literatura libertina. O divino Marquês estava, essencialmente, obedecendo à estética da crítica generalizada, própria do seu contexto histórico. Entender essa permanência em Sade consiste em reconhecer primeiramente nele o escritor libertino. Antes de ser filósofo e pensador a identidade que melhor define o Marquês foi a de literato. Nas suas obras os libertinos professam as mais cruas blasfêmias, ao mesmo tempo em que legitimam as doutrinas materialistas. Fala-se da magnitude dos sentidos, dos movimentos da matéria e das engrenagens da Natureza, o que por si só justificaria a eliminação da figura divina de qualquer texto. Todavia, nas obras sadianas Deus representa o alvo da fúria libertina, trata-se de uma personagem cuja função é atiçar mais ainda a concupiscência libertina. Entendamos então que em Sade há um constante esforço em conciliar uma visão materialista e atéia do mundo com uma imagética onde a figura divina existe, mesmo que só para ser rechaçada. Esse esforço fica explícito nas suas obras quando vários de seus personagens exibem um desejo de que Deus pudesse existir de fato, pois dessa maneira suas blasfêmias e brados raivosos ofenderiam verdadeiramente os céus e inflamariam sobremaneira a volúpia libertina. 47 Na perspectiva filosófica, Sade inova por ultrapassar ou subverter todas as doutrinas ou conceitos chaves que chegam até ele. A Natureza é por ele entendida como a origem de todos os males e a perpetuadora da destruição, o que contrapõe aos filósofos ilustrados na sua generalidade. Já com as doutrinas materialistas Sade consegue ultrapassar seu sentido conciliador do homem com a Natureza e os sentidos. Para o Marquês a moral baseada na materialidade humana deveria ser, na verdade, amoral. Com isso, Sade acaba por fundar um relativismo absoluto, onde a dicotomia bem e mal se torna irrelevante. Nesse sentido, Sade expressa que essencial aos homens é a libertação total e que o movimento primário dos homens é a busca pelo prazer. É por tal razão que Sade termina por fundar uma filosofia que prima pelo Mal. Dado que os vícios mostram-se mais satisfatórios do que as virtudes e que o prazer está acima de tudo, praticar o crime é estar em sintonia com a própria Natureza. Podemos considerar Sade uma espécie de anti-ateu. Isso não implica em dizer que Sade era, na verdade, um cristão enrustido, muito pelo contrário, como ele mesmo diz, a idéia de Deus é o único erro que ele não perdoa aos homens. Sade é um anti-ateu por não se portar como um. Nunca um ateu falou tanto de Deus como ele. Criticar as crenças religiosas e atacar os costumes cristãos não foi prerrogativa somente de Sade. Muitos atacaram a Igreja e os preconceitos religiosos, mas a novidade que Sade imprime está em não somente atacar, mas promover como valor fulcral o Mal. O Mal é natural ao homem, o egoísmo, a destruição são os primeiros princípios da Natureza. Esse ateísmo sadiano toma um ar quase teológico na sua obra. A filosofia do Mal de Sade é uma proposta inversa ao cristianismo, ou seja, o único Deus que o homem deve prestar honras é a si mesmo, ao princípio natural dentro de si que busca a qualquer custo o prazer. O estudo do ateísmo negativo de Sade é uma forma de contribuir para a ampliação das discussões sobre os limites do pensamento ateu e suas ligações com todas as formas de materialismos. O Marquês de Sade torna-se assim, personagem fundamental por ter desenvolvido este tema de forma única, inaugurando uma maneira 48 totalmente nova de pensar e agir no mundo, por mais paradoxal e repulsiva que possa parecer. 49 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes. 2000. ALEXANDRIAN. História da Literatura Erótica. Tradução: Ana Maria Scherer e José Laurêncio de Mello. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense: 1971 BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. _________________. O Erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. 2ª edição. 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Diálogo entre um padre e um moribundo e outras diabrites e blasfêmias. Tradução Alain François e Contador Borges. São Paulo: Iluminuras. 2001 ________________. Justine, ou os infortúnios da virtude. Tradução de Gilda Stuart. São Paulo: Circulo do Livro, 1989. 51 STAROBINSK, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo, seguido de sete ensaios sobre Rousseau. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 52 ANEXO – CRONOLOGIA 1740 — Nasce, a 2 de junho, Donatien-Alphonse-François, o marquês de Sade, em Paris. 1744 — Donatien é enviado à Provença onde é educado primeiramente por suas tias e depois pelo tio, o abade de Sade, erudito e libertino. 1746 — Diderot publica seus Pensamentos filosóficos e assume a direção da Enciclopédia. 1751 — A Enciclopédia começa a ser publicada. 1755 — O marquês é nomeado alferes de infantaria junto à casa do rei. 1756 — Tem início a "Guerra dos Sete Anos". Durante a campanha, o jovem oficial Sade é beneficiado com várias promoções. Começam suas primeiras ações como libertino. 1763 — Fim da "Guerra dos Sete Anos" com o tratado de Paris. Sade é reformado como capitão de cavalaria. Ligação com a senhorita de Lauris, de uma antiga casa da nobreza provençal. Casa-se a contragosto, a 17 de maio, com RenéePélagie de Montreuil, uma jovem rica oriunda da aristocracia inferior. Ações de libertinagem em Paris. Sade é encarcerado em Vincennes, a 29 de outubro, por uma lettre de cachei (ordem de prisão com o selo real) e solto a 13 de novembro. 1764 — Voltaire publica o Dicionário filosófico. Sade se relaciona com a senhorita Colet, atriz do Teatro Italiano, e com diversas prostitutas de Paris. 1766 — Várias relações com prostitutas e atrizes. 1766— Nascimento do primeiro filho do marques, Louis-Marie, a 27 de outubro. 1768 — A França adquire a Córsega um ano antes do nascimento de Napoleão Bonaparte. A 3 de abril, o primeiro grande escândalo do marquês: flagela em Arcueil, num domingo de Páscoa, uma jovem mendiga, Rose Keller, que consegue fugir e denunciá-lo. A 8 de abril, é encarcerado em Saumur, a despeito dos apelos da mulher Renée e da desistência da vítima do processo. E transferido em seguida para PierreEnclise, perto de Lyon. A 10 de junho é processado em Paris e condenado a pagar multa de cem libras. A 16 de novembro é solto por ordem do rei. 53 1769 — Nasce a 27 de junho o segundo filho do marquês. Viagem aos Países Baixos. Redige uma Viagem a Holanda, em forma de cartas. 1770 — D'Holbach publica sob o nome falso de Mirabaud o Sistema da natureza, obra que terá grande influência no pensamento sadiano. Retoma seu trabalho como capitão-comandante. 1771 — Nasce, a 17 de abril, Madeleine-Laure, filha do marquês. Nova prisão, em agosto, por causa de dívidas. 1772 — Ligação de Sade com a cunhada. Orgia em Marselha, a 27 de junho, juntamente com seu criado e quatro mulheres. As mulheres, obrigadas a ingerir bombons de anis contaminados por cantáridas, como "afrodisíaco" e "para fazê-las peidar", segundo o marquês, sentiram-se mal e deram queixa, o que lhe valeu nova condenação, desta vez "à morte por contumácia", pena que equivalia a uma grande desonra e cuja execução foi en effigie. Tratava-se na verdade de uma representação grosseira, mediante um quadro ou boneco do condenado a quem se fazia experimentar a pena pronunciada. Tinha ao menos dois objetivos: imprimir uma maior ignomínia ao acusado e inspirar no povo, por tal aparelho, maior horror pelo crime. O marquês e seu criado, por terem cometido crimes de libertinagem, algolagnia, sodomia e envenenamento, foram assim "queimados" em praça pública. 1774 — Morte de Luís XV. 1774— Uma criada dá à luz uma filha do marquês: novo risco de escândalo, que a família procura abafar. Sade foge para a Itália e só retorna no ano seguinte para seu castelo de Lacoste. 1777 — E encarcerado novamente em Vincennes, por uma lettre de cachet emitida pelo rei por insistência da sogra, visando preservar a honra da família SadeMontreuil de suas afrontas. 1778 — Morte de Rousseau e de Voltaire. Durante uma transferência a Paris, Sade foge, e após 39 dias em liberdade é preso em Lacoste. A 7 de setembro retorna ao torreão de Vincennes, onde ficará cinco anos e meio. Inicia sua obra literária. 1782 — Choderlos de Laclos publicai relações perigosas. Sade redige o Diálogo 54 entre um padre e um moribundo e começa os 120 dias de Sodoma. 1784 — E conduzido à Bastilha, onde permanece até a Revolução de 89. 1786 — Começa a redigir Aline e Valconr. 1786— Problemas de saúde. Escreve Os infortúnios da Virtude, em dezesseis dias. 1788 — Convocação dos Estados Gerais. Publicação dos últimos livros das Confissões, de Rousseau. Morte de Buffon, naturalista que Sade admirava. Redige Eugénie de Franval e conclui Aline e Valcour ou romance filosófico. 1789 — Reunião dos Estados Gerais que se tornam Assembléia Constituinte. A 4 de julho, Sade é transferido da Bastilha para Charenton. Permanece nove meses em Charenton. 14 de julho: Queda da Bastilha. A 4 de agosto, dá-se a abolição dos privilégios. Declaração dos Direitos do Homem. 1789 — A Assembléia constituinte abole as "lettres de cachets". Sade é libertado a 2 de abril. A 9 de junho, a senhora de Sade obtém o divórcio. Sade torna-se "cidadão ativo" da futura seção de Piques a 1 de julho. Tem início, a 25 de agosto, sua relação com Marie-Constance Quesnet, a "sensível". Aceita várias encomendas de peças para os teatros parisienses. 1791 — Fuga de Luís XVI, destituído de suas funções. Reunião da Assembléia Legislativa. Sade passa a viver com a senhora Quesnet. Primeira edição de Justine ou os infortúnios da Virtude. Em outubro e novembro, faz sucesso com a peça O Conde Oxtiern ou as desgraças da libertinagem. 1792 — Em setembro, o castelo de Lacoste é saqueado. Em outubro, Sade é nomeado comissário da seção de Piques. 1792 — 21 de janeiro: execução de Luís XVI. Instaura-se a fase do "Terror". Em julho, o "cidadão" de Sade torna-se presidente da seção de Piques. Ele risca os Montreuil da lista dos suspeitos. A 29 de setembro, pronuncia um Discurso às almas de Marat e de Le Pelletier, ambos "mártires da liberdade". A 8 de dezembro, nova detenção de Sade, acusado de "moderado''. E sucessivamente encarcerado nas Madelonnetes, nos Carmes, em Saint-Lazare e em Picpus. 55 1794 — Sade é condenado à morte, a 27 de julho. Robespierre, Saint-Just e outros são executados a 28 de julho. 15 de outubro: Sade é liberado. 1795 — Agosto: publicação de Aline e Valcour e da A filosofia na Alcova. 1796 — O castelo de Lacoste é vendido em outubro. 1796 — Publicação de A nova Justine ou os infortúnios da Virtude, seguida da História de Juliette, sua irmã. Viagem de Sade a Provença. Problemas financeiros e jurídicos. 1799 — Sade vive na miséria, trabalhando como empregado no espetáculo de Versalhes. 1800 — Publicação dos Crimes do amor, precedidos de uma idéia sobre os romances. 1801 — 6 de março: detenção de Sade como autor de obras pornográficas. E encarcerado em Sainte-Pélagie. 1801 — 14 de março: após tentar seduzir jovens detentos, Sade é transferido de Sainte-Pélagie para Bicêtre. Finalmente, a 27 de abril, é enviado ao Hospício de Charenton. Inicia Jornadas de Florbelle ou a natureza desvelada. 1805 — Sade auxilia na missa de Páscoa, em Charenton. 1805 — Morte de Restif de la Bretonne. Sade rediçe seu testamento. 1805 — Conclui, em abril, as Jornadas de Florbelle. A 5 de junho, tem seus manuscritos apreendidos e destruídos pela polícia. 1808 — Sade organiza um teatro com os detentos de Charenton. 1808 — Morre seu filho mais velho. 1808 — Morre, a 7 de julho, Renée-Pélagie, a marquesa de Sade. 1812 — Sade redige Adelaide de Brunswick, princesa da Saxônia. 1812 — Escreve A história secreta de Isabelle da Baviera, e publica A marquesa de Gange. 1812 — Abdicação de Napoleão e retorno de Luís XVIII. O novo diretor do 56 hospício pede transferência do marquês. Morre Donatien-Alphonse-François de Sade, a 2 de dezembro. A despeito de suas disposições testamenteiras, é sepultado religiosamente no cemitério do hospício.